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susan harriet vernon harcourt

Lady Susan Harriet Vernon Harcourt nasceu em 1824 e recebeu o nome de Susan Harriet Holroyd. Era filha do 2.º conde de Sheffield (1802-1876) e casou-se, em agosto de 1849, com Edward William Vernon Harcourt (1825-1891). No ano anterior ao do seu casamento, lady Susan acompanhou o noivo à Madeira com sua mãe, a condessa de Sheffield. Edward já tinha estado na Madeira de outubro de 1847 a abril de 1848., e esteve com a noiva de novembro de 1848 a maio de 1849. Volta à Ilha depois do casamento, de novembro de 1849 a maio de 1850 e de novembro de 1850 a abril de 1851. Na família Harcourt parece ter sido tradição, entre os que apresentavam debilidades físicas, a passagem do inverno na Madeira, onde esteve o pai de Edward, Rev. William Vernom Harcourt, e, no inverno de 1847 para 1848, seu irmão William George Granville Venables Vernon Harcourt (1827-1904), depois ministro do Interior de um dos governos da rainha Vitória e uma das figuras políticas determinantes do seu tempo; mais tarde, o filho deste também frequentaria a Madeira (Turismo terapêutico). O álbum de lady Susan Harcourt Sketch of Madeira, editado em Londres, em 1851, por Thomas McLean, espelha a educação das classes abastadas da sua época, a que não escapava a autora e o marido, que edita na mesma data e pelo mesmo editor A Sketch of Madeira, Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitor, dedicado à sogra, condessa de Sheffield. Edward também se interessava por ornitologia e daria à estampa as suas observações sobre as aves da Madeira, igualmente editadas em Londres, em 1855. Trocava, inclusivamente, correspondência com Charles Darwin; da qual se extraíram as informações sobre as suas deslocações à Madeira. O conjunto de litografias de lady Susan reúne 22 vistas da Madeira, litografadas pela própria ou pelo menos com a sua colaboração. Destas litografias 3 são em grande formato, demonstrando muito boa qualidade de desenho, com um traço suave, delicado e feminino, abarcando os grandes planos gerais e esboçando somente os pequenos detalhes. Desconhece-se o destino dos originais, bem como de posteriores trabalhos da autora, que terá passado a dedicar-se inteiramente à educação dos dois filhos. Morre aos 64 anos, em abril de 1894. A documentação da família encontra-se hoje integrada na Bodleian Library da Universidade de Oxford, onde, em conformidade com o que foi dito não constam os desenhos originais nem referência a trabalhos posteriores, que talvez se mantenham na posse da família. O conjunto editado do casal Harcourt enquadra-se no “grand tour” de educação das sociedades europeias abastadas, que olhavam para a Madeira como um destino no leque de possibilidades do turismo terapêutico. Ao mesmo tempo, este conjunto retrata uma nova posição e atitude da mulher ao longo do séc. XIX, que não só desenha em público, o que até então era quase impossível, como edita depois as suas obras, podendo, inclusivamente, trabalhar na sua passagem à litografia. Poucos anos antes, em 1845, também Jane Wallas Penford (1821-1884) editara os seus trabalhos em Londres, no conjunto Madeira Flowers, Fruits, and Ferns, este elaborado a partir de aguarelas feitas na sua propriedade da quinta da Achada – e não em público – e de litografias posteriormente aguareladas pela sua mão, também na sua quinta do Funchal. Edward Harcourt tece algumas considerações sobre os desenhos da sua então ainda noiva lady Susan, onde descreve a dificuldade em captar o cenário grandioso da paisagem madeirense, face à contínua mudança de luminosidade. Ao contrário da permanente neblina dos ambientes nórdicos, na Madeira a constância dos brilhos alterava-se constantemente pela simples passagem de uma nuvem. O autor conta ainda as dificuldades em que se via a pintora ao iniciar o seu trabalho, por ser de imediato rodeada de inúmeros observadores que, parecendo não ter mais nada para fazer, ali se mantinham inabaláveis durante horas a fio. Informa e alerta também os futuros leitores sobre a taxa imposta pela Alfândega do Funchal aos desenhos levados da Ilha, 6 xelins e 8 pences por libra de peso, o que considerava um verdadeiro exagero, mas que configura a consciência do interesse económico dos mesmos por parte das autoridades aduaneiras insulares.   Rui Carita (atualizado a 30.12.2017)

Artes e Design Madeira Global Sociedade e Comunicação Social

áustria, carlota de

Maximiliano e Carlota da Áustria. 1857. Coleções Imperiais Austríacas A princesa Maria Carlota (1840-1927) era a filha mais nova do Rei Leopoldo de Saxe-Coburgo (1790-1865), que a revolução de 1831 fizera eleger Rei da Bélgica, e de Luísa Maria de Orleães (1812-1850), princesa de França, tendo nascido no castelo de Laeken, nos arredores de Bruxelas, a 7 de junho de 1840. Dentro da política de casamentos e alianças entre as casas reinantes europeias, chegou a colocar-se a hipótese do príncipe e futuro Rei D. Pedro V de Portugal (1837-1861), mas a opção foi para o seu casamento, em 27 de julho de 1857, com o arquiduque Ferdinando Maximiliano de Habsburgo-Lorena (1832-1867), futuro e malogrado Imperador do México (Áustria, Ferdinando Maximiliano de), tornando-se, assim, arquiduquesa de Áustria e depois, Imperatriz do México. O arquiduque fora nomeado vice-rei da Lombardia e de Veneza, reino dependente do Império Austríaco, por pressão ou sugestão do Rei Leopoldo da Bélgica, fixando-se o casal em Milão. A evolução da guerra de independência de Itália, entretanto, levou à ampliação do antigo reino da Sardenha com a Lombardia, em meados de 1859, e ao afastamento do arquiduque Maximiliano de Milão, passando para Trieste e voltando à armada austríaca, onde anteriormente prestara serviço. A frustrada viagem ao Brasil Carlota, Imperatri do México. Foto aguarelada. 1867 A 6 de dezembro de 1859, Maximiliano e Carlota, no vapor de guerra austríaco Elisabeth – em homenagem à Imperatriz Sissi, Isabel de Áustria (1837-1898) (Áustria, Isabel de) –, entravam no porto do Funchal, dando depois vários passeios pelos arredores da cidade, que o arquiduque já conhecia. Os arquiduques, desembarcando, passaram a residir na Qt. Bianchi – designada, na altura, como Qt. da Pontinha –, colocada à sua disposição pelo cônsul da Áustria, Carlo de Bianchi (1834-1910), espaço depois incorporado no complexo do Casino (Casino Parque Hotel). Uma das primeiras deslocações foi à Qt. do Monte, onde foram recebidos por Teodósia Arabela Pollock Gordon, referida por Carlota como uma “velha inglesa muito simpática, cujo filho casou há pouco tempo com uma portuguesa, filha do visconde de Torre Bela”. Nessa sequência, tinham descido para o Funchal em carro de cesto do Monte a “uma velocidade estonteante”, chegando à cidade “como por encanto”. Tendo ido ao Hotel Milles (Arquitetura do turismo de lazer), deram-lhe a provar “todas as espécies de compotas da região” e frutas tropicais da Madeira, que não lhe agradaram. Carlota escreveu, inclusivamente, nada existir, na sua opinião, “de tão desagradável ao gosto e ao olfato”, salvaguardando os ananases. Achava serem “detestáveis, como as bananas, ou então espalham, como as goiabas, um odor infeto, e possuem um gosto tão horrível, que tive de engolir muitas tangerinas antes de me livrar dele” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 92).   Quinta Bianchi. An Hiver. 1860. Na Qt. Bianchi também já lhe tinham dado a provar outro “fruto aquoso e detestável duma passiflora a que os portugueses chamam maracujá” (Id., Ibid., 89), mas que agradou bastante ao marido. Mais tarde, mostrou interesse em provar cana-de-açúcar, cujo sabor achou muito agradável, assim como refere então “um encantador costume da Ilha que consiste em lavar as mãos após o jantar em taças cheias de rosas vermelhas desfolhadas” (Id., Ibid., 96). Toda a paisagem natural da Madeira, no entanto, encantou-a profundamente, considerando-a “um espetáculo tão grandioso como imponente” (Id., Ibid., 98), como se refere à vista do pico Grande sobre o Curral das Freiras. As descrições das quintas e dos jardins visitados são igualmente quase sempre encomiásticas. Os arquiduques saíram do Funchal a 15 de dezembro, com destino a Cabo Verde e ao Brasil, em viagem de estudo, chegando às Canárias, ao porto de Orotava, na ilha de Tenerife, a 17 seguinte, mas não lançando âncora, dadas as condições do mar. O mau tempo alterou totalmente o plano de viagem, assim como a autonomia do Elisabeth, que não estava preparado para as grandes viagens atlânticas. O navio levou Carlota e a sua comitiva de volta para o Funchal, ficando a arquiduquesa na Madeira nesse inverno de 1859-1860, aguardando o regresso do marido do Brasil, que ocorreu a 5 de março de 1860. Os arquiduques saíram da Ilha a 12 desse mesmo mês, com destino ao Adriático e à costa da antiga Dalmácia, que incorporava o então Império Austro-Húngaro (Áustria). O diário de Carlota Vilão da Madeira. An Hiver. A arquiduquesa Carlota, tal como fez Maximiliano, veio a publicar as suas impressões da viagem na Madeira e, tal como as do marido, anónimas e com um sentido muito crítico para com os habitantes da Ilha. O trabalho, editado em Viena em 1863, é um diário que se inicia a 10 de novembro de 1859, quando o casal embarca num porto do Adriático no navio Fantaisie, escalando depois em Pola, onde passam para o vapor Elisabeth, e acaba a 25 de março de 1860, quando chegam ao porto de Gravosa, na cidade croata de Ragusa, que também se denomina Dubrovnik. O texto, em francês, é acompanhado por 15 litografias referentes à Madeira, algumas das quais a cores e fora do texto. A autoria destas parece ser de um dos membros da comitiva de Carlota, que menciona algumas vezes no texto “o pintor” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 105); uma delas aparece depois assinada pelo reverendo Waldheim X. A. Wien (NASCIMENTO, 1951, 89). O historiador italiano Cesare Cantu (1804-1895), mais tarde, ao descrever romanticamente a vida deste casal, referirá taxativamente que Carlota ilustrou este trabalho “com estampas de sua mão” (Id., Ibid., 101). O investigador Eberhard Axel Wilhelm alvitra que o pintor em questão seria o austríaco Joseph Selleny (1824-1875) (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 105), citado em outras viagens financiadas por Maximiliano, e que se encontrava no Funchal, pelo menos, em abril de 1857, a bordo da fragata Novara; regressara à Europa em agosto de 1859 (Litografias e litógrafos), pelo que terá acompanhado os arquiduques nesta viagem, não tendo ficado, porém, com Carlota, no Funchal. De qualquer forma, havendo um pintor na comitiva e, muito provavelmente, também um reverendo pintor – embora a arquiduquesa tivesse por certo tido lições de pintura, quase obrigatórias à época na educação de uma princesa –, na elaboração das estampas houve vários autores, tal como depois um gravador e litógrafo, que as deram à estampa. [caption i     Sé do Funchal. An Hiver.1860   O inverno de 1859-1860 A arquiduquesa, então com apenas 19 anos, era uma pessoa cultivada, entendendo de botânica, e.g., e enumerando a maior parte das espécies encontradas pelos seus nomes científicos, embora na comitiva seguissem naturalistas, que forneceram também esses dados. A geografia, a história e a política também lhe eram familiares, inclusivamente com algum sentido crítico, como quando refere que os letreiros das lojas tinham quase sempre tradução inglesa à vista. Acrescenta então que, “se bem que tenha voltado a ficar oficialmente, em 1815, sob o domínio português, a Madeira nunca deixou de ser, de facto, uma espécie de colónia inglesa” (Id., Ibid.,, 90). A autora começa logo por se queixar da não existência de portos a partir de Lisboa e de Cádis, tecendo depois opiniões gerais sobre política e eleições, tendo consultado, inclusivamente, alguns periódicos locais, embora não os tendo podido ler completamente, dado não dominar a língua portuguesa, e emitindo opiniões que não correspondem taxativamente ao que lá se encontrava escrito. Mais tarde, também refere as “tendências miguelistas dos madeirenses” (Id., Ibid., 110) e que o Governo de Lisboa mandara à Ilha o visconde de Atouguia (Atouguia, Aloísio Jervis de) para atalhar a situação nas seguintes eleições. O visconde, no entanto, não seria eleito e Luís Vicente de Afonseca (1803-1878), membro do Partido Reformista, conhecido por Popular, que não era propriamente miguelista, manteria o seu lugar de deputado. As fontes de informação de Carlota de Áustria não teriam, assim, sido as melhores. Ao regressar das Canárias, onde nem conseguiu desembarcar, Carlota trouxe do Elisabeth – que voltou àquele arquipélago para retomar a viagem para o Brasil – tudo o que entendeu necessário para uma longa estadia na Qt. Bianchi. Acrescenta, entretanto, que “nos países quentes, quanto menos mobilados são os quartos, mais estamos à vontade”. Tinha, assim, encontrado na residência “algumas boas poltronas, paredes caiadas, uma grande esteira das Índias”, entendendo “tudo muito adaptado ao clima” e que o “embelezamento das quintas torna-se, na Madeira, inteiramente supérfluo” (Id., Ibid.,, 108), face à adaptação ao meio ambiente e à relação estabelecida com a exuberância dos jardins envolventes, que nunca deixa de enaltecer. A comitiva da princesa organizou uma festa de Natal, na noite de 24 para 25 de dezembro, com uma christbaum, escrevendo a mesma que teria sido a primeira árvore de Natal que se ergueu na Madeira, o que não era verdade, pois há descrições anteriores (FRANÇA, 1970, 169-170) e, por certo, dada a antiga presença alemã, muitas teriam sido já montadas. No final do mês, o cônsul da Áustria organizava um baile pela passagem do ano, tendo os convites sido enviados com bastante antecedência. Escreve então a princesa, que “os madeirenses, que são muito lentos, não gostam de imprevistos” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 117) e daí a antecedência do envio dos convites. As críticas da princesa Carlota a este baile foram essencialmente para a obesidade das madeirenses. No intervalo das danças, o cônsul Bianchi trazia duas senhoras de cada vez para as apresentar à arquiduquesa, começando pelas suas irmãs, a primogénita das quais, Isabel Leopoldina, casada com o advogado Gregório Perestrelo da Câmara, por lapso citado como Francisco, tinha “sido a mais bonita das três, mas há algum tempo já, embora ainda conserve vestígios disso”. A princesa refere-se ainda à mulher do cônsul, Ana de Velosa Castelo Branco, afirmando que, apesar de ser da sua idade, “porém, ultrapassa-me em volume”, o mesmo se passando com a irmã, “duas vezes mais gorda do que ela”. Ao aproximar-se a meia-noite, o cônsul serviu vinho velho da Madeira, para ser bebido “pelo ano novo e pelos ausentes”, o que constitui uma das poucas, vagas e prováveis referências da arquiduquesa ao marido, a quem quase nunca alude, tal como também acontece com ele. A descrição encerra com a informação de que foi no meio de uma quadrilha, dançada com o comandante militar, o Cor. José Herculano Ferreira Horta, “que se abriu para mim o 1.º de janeiro de 1860” (Id., Ibid.,, 118). Um dos destaques deste quase diário, para além dos inúmeros passeios, vai para a festa organizada no palácio de S. Pedro (Palácios e Arquitetura senhorial) pelo 2.º conde do Carvalhal (1831-1888). A arquiduquesa achou que fora “um belíssimo baile, que teria feito as honras a um salão de Londres ou de Paris. Nunca se suspeitaria de que, no meio de uma pequena ilha do oceano, privada de comunicação com o mundo civilizado, se pudesse ostentar tanta elegância e tão bom gosto” (Id., Ibid., 127). Acrescenta ainda que a “festa foi muito animada e não faltaram os lindos trajes de gala, que faziam lembrar os de Milão”. Ao soar da meia-noite abriu-se de repente, como por encanto, uma sala até aí fechada, surgindo um toldo branco e vermelho decorado aos quatro cantos com bandeiras austríacas, belgas e portuguesas. Sob esse toldo aguardava-os uma ceia sumptuosa, servida em pratos armoriados, de porcelana inglesa, alguns dos quais sobreviveram. “A sala, que se prestava a este esplêndido uso, era um teatro, utilizado normalmente quando das representações de sociedade às quais a aristocracia portuguesa se entrega com paixão”. No entanto, não deixa de voltar a referir que “entre as frutas que guarneciam o bufete, encontravam-se ananases da Ilha, que são muito coriáceos e não se comparam, na minha opinião, com os que amadurecem nas estufas da Europa” (Id., Ibid., 128). A arquiduquesa foi também a uma récita no Teatro Esperança, a 11 de fevereiro, espantando-se com o facto de haver um teatro público no Funchal (Teatros), embora colocasse algumas reservas. Era, “de muita boa-fé, uma miniatura bem proporcionada, deveras bonita no seu género. Não tem nenhum camarote, mas à volta da sala encontravam-se duas filas de senhoras muito bem arranjadas”, não resistindo, porém, a acrescentar: “algumas de pronunciada nutrição” (Id., Ibid., 129). Também não deixa de referir que o público se fartou de rir com uma série gracejos vulgares, como se se tratasse de qualquer coisa superior. A 21 de fevereiro, ainda refere o célebre jantar de gala dado pelo conde de Farrobo (1801-1869) e pela mulher, em São Lourenço, destinado a comemorar a sua elevação ao cargo de governador civil do Funchal. O jantar tinha sido especialmente preparado, tendo-lhe os condes de Farrobo apresentado as principais individualidades insulares e reservando-lhe, na mesa, um lugar entre o bispo do Funchal, D. Patrício Xavier de Moura (c. 1800-1872), e o conde governador civil. A arquiduquesa mostrou-se maravilhada, escrevendo que “o jantar foi magnífico. Tudo quanto se encontrava sobre a mesa, candelabros, requintados suportes guarnecidos de confeitaria, etc., estava coberto por uma profusão de flores, ocultando graciosamente a riqueza metálica dos objetos, complementados por pães de açúcar com diversas bandeirinhas” (Id., Ibid., 132). Descreve ainda que na sala se viam “três retratos de corpo inteiro” de D. João VI (1767-1826), da mãe, D. Maria I (1734-1816), “que morreu louca”, e do avô, D. José (1714-1777), “em cujo tempo reinou Pombal” (1699-1782) (Id., Ibid., 132). Os retratos em questão, salvo o de D. João VI, que permaneceu em São Lourenço, deveriam ser propriedade dos Farrobo, regressando com os mesmos a Lisboa. A última opinião da arquiduquesa, embora abusiva, reflete algum conhecimento da situação política portuguesa e a informação sobre D. Maria I também, embora desconhecesse a autora que o mesmo lhe iria acontecer a ela e dentro de poucos anos. Após o jantar, descreve Carlota que cantou “uma pessoa jovem” – que Cabral do Nascimento (1897-1978) e Duarte Mendonça, que publicou e anotou a mais recente tradução deste texto identificam como a cantora Júlia de França Neto (1825-1903) – e que o governador, “que pertence a uma família muito musical” (Id., Ibid., 129), a acompanhou ao piano. Parece pouco provável que se tratasse da cantora Júlia de França Neto, que teve aulas de canto em Génova e atuou em vários salões aristocráticos franceses, regressando à Madeira em 1854. Embora a cantora tenha dado depois vários recitais para fins de caridade, inclusivamente em São Lourenço, tinha então já 35 anos e, tendo a atenta Carlota 19, crítica como se mostrou com quase todas as mulheres na Madeira, dificilmente poderia tê-la descrito como uma jovem. O arquiduque Maximiliano entrou no porto do Funchal a 5 de março, mas como vinha do Brasil e na Baía grassava uma epidemia de febre-amarela, o navio teve de aguardar 5 dias de quarentena e só então os passageiros puderam desembarcar, tendo o arquiduque recebido uma salva de 21 tiros. Carlota já fizera parte das suas despedidas e, juntos, os arquiduques ainda assistiram, das janelas do escritório do cônsul, a uma procissão. Descreve a autora que tomaram parte na solenidade as autoridades locais, como de costume, entre as quais o administrador do concelho, a quem, embora tivesse como nome de batismo Tarquínio Torcato da Câmara Lomelino (1818-1888), a folha local O Direito apelidava sempre de “o paxá de três caudas” (Id., Ibid., 113-114, 142). Descreve a arquiduquesa que, na manhã desse dia 11 de março de 1860, ela e o marido ainda participariam, na capela montada na Qt. Bianchi , no batizado do filho do cônsul Carlos Bianchi, de que foram padrinhos; o rapaz nascera a 15 de abril do ano anterior e receberia então o nome de Ferdinando Maximiliano Bianchi (1859-1930).   Registo de batismo de Ferdinando Bianchi. ABMad. Os arquiduques saíram, no dia 12, da Qt. Bianchi, mas antes de embarcarem ainda assistiram a um concerto de caridade no palácio do governador, na mesma sala onde fora oferecido o banquete, e nesse concerto participou Júlia de França Neto (“Notícias locais”, A Ordem, Funchal, 10 mar. 1860, 3), embora Carlota não a mencione, até por só terem assistido a metade do concerto. Acrescenta ainda a arquiduquesa que o vapor estava ornamentado a preceito para os receber e se viam na coberta móveis de verga da Madeira (Indústrias do Turismo e Vimes), “leves e cómodos” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 142), que o marido havia adquirido a 9 de dezembro do ano anterior, quando pensavam que iriam ambos para o Brasil. Nas suas memórias, Maximiliano de Habsburgo refere ter-se deslocado no seu “trenó de quatro lugares à cidade para fazer várias compras: os famosos embutidos, os pontiagudos barretes madeirenses com para-raios e cadeiras de braços feitas de vime para as nossas varandas” (Id., Ibid., 63), numa provável alusão ao palácio de Miramar, em Trieste, onde residiam. A aventura mexicana Imperatriz Carlota. Gravura em Santa Bérbara, México. 1870. ABM Em abril de 1864, os então Imperadores do México voltavam a passar na Madeira. A 10 de abril de 1864, o príncipe Maximiliano de Áustria aceitara, por indicação ou pressão de Napoleão III (1808-1873), o referido cargo de Imperador, sendo logo aclamado como tal e passando, a 28 desse mês, pelo porto do Funchal, na companhia da Imperatriz Carlota, a caminho do México, onde voltariam a ser aclamados. Deslocaram-se a bordo da fragata austríaca Novara, acompanhada pela fragata francesa Thémis, sendo-lhes sido prestadas as devidas honras. Os Imperadores convidaram depois para jantar a bordo o governador civil, jurisconsulto Jacinto António Perdigão, o bispo da diocese, D. Patrício Xavier de Moura, o 2.º conde de Carvalhal, o cônsul Carlos de Bianchi, António da Luz Pita (1802-1870), que a Imperatriz nas suas memórias refere como “o médico de maior renome na Madeira” (Id., Ibid., 119) e outras personalidades. O Elucidário Madeirense refere também a presença do conde de Farrobo, que tinha saído da Madeira, em outubro 1861, para assistir ao casamento de D. Pedro V e entregara o governo ao seu secretário, 3.º Visconde do Andaluz (1833-c. 1900) (Melo, António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e), e que, sabendo da passagem dos Imperadores do México pela Madeira, ali se deslocou para os cumprimentar. O casamento dos Imperadores do México não terá sido perfeito, não havendo descendência. Acresce que Carlota gozou de muito pouco apoio na corte de Viena e sofreu uma franca e agressiva oposição da Imperatriz Isabel de Áustria, a romântica Sissi, que a teria acusado nas páginas do seu diário, inclusivamente, de ambiciosa e de ser, em parte, responsável por Maximiliano se ter metido “no vespeiro mexicano” (HABSBURGO, 2008, 91-92). É muito provável que assim tivesse sido, tendo a Imperatriz Carlota participado na organização do governo do marido e serem de sua mão várias das minutas do Gabinete imperial, como as versões da proposta Carta Constitucional, etc. Com o progressivo isolamento de Maximiliano do México, e quando Napoleão III retirou suas tropas do país, em 1867, o regime ficou numa situação insustentável. Temendo o pior, a Imperatriz Carlota, que já escrevera a Eugênia de Montijo (1826-1920), mulher de Napoleão III, parte para a Europa com o intuito de angariar apoio para o Império mexicano junto da França, da Áustria e da Santa Sé. A França e a Áustria, no entanto, não estavam já em condições políticas para os ajudar e foi numa audiência com o Papa Pio XI (1792-1878) que a Imperatriz subitamente começou a ter diversos colapsos nervosos. A situação piorou decisivamente ao tomar notícia do fuzilamento do marido no México, tendo sido necessário interná-la. Carlota passou então 60 anos confinada no castelo de Bouchout, em Meise, Bélgica, onde faleceu, a 18 de janeiro de 1927, com 86 anos. Encontra-se sepultada na igreja de N.ª Sr.ª de Laeken, perto da cidade de Bruxelas, Bélgica, onde se encontram os pais.   Rui Carita (atualizado a 09.10.2017)

História Económica e Social Madeira Global

exílio

“Exílio” (lat. exilium) significa banimento, desterro ou degredo, sendo o estado de ter sido expulso e estar longe da própria casa, cidade ou nação, podendo assim ser definido também como a expatriação, voluntária ou forçada, de um indivíduo. Alguns autores utilizam o termo “exilado” no sentido de refugiado, embora esta última situação se enquadre somente no quadro de autoexílio ou exílio voluntário, como aconteceu na Madeira no período do absolutismo miguelista. No contexto da Madeira, a situação de exílio, ao contrário da situação de asilo, que pressupõe a ida de elementos nessa situação para a Ilha, aponta para a expulsão de elementos madeirenses da sua casa ou da sua terra. Além de pessoas, pode haver também governos em exílio, como o do Tibete face à invasão do seu território pela China, ou mesmo nações em exílio, como foi o caso dos judeus, exilados na Babilónia no séc. IV a.C. e, depois, após a destruição de Jerusalém, noutros locais, no que ficou conhecido como diáspora. Tal foi também, entre 1078 e 1375, o caso da Arménia, que, depois da invasão do seu território por tribos seljúcidas, se exilou na baixa da Anatólia, na posterior Turquia, formando um novo reino. O termo não tem sido extensivo à deslocação da corte portuguesa para o Estado do Brasil, até então vice-reino, por se entender que se manteve em território nacional. Tal território foi inclusivamente elevado a reino, passando D. João VI, a partir de 16 de dezembro de 1815, a intitular-se Rei de Portugal, Brasil e Algarves, reino que, a partir de 13 de maio do ano seguinte, passou a ter armas próprias. Alguns indivíduos, sentindo-se ameaçados ou vítimas de perseguição política, racial ou religiosa, podem igualmente procurar exílio por iniciativa própria em outros locais ou países, sem que tenha havido qualquer ato legal ou jurídico para tal. Costuma chamar-se a essa atitude autoexílio ou exílio voluntário, embora essa posição seja, na generalidade, desvalorizada pelas autoridades no poder por não configurar um exílio imposto, ou seja, oficial, não sendo assim facilmente detetada na documentação. Somente em meados do séc. XVIII se pode escrever concretamente sobre situações de exílio na Madeira, pois que até então não havia uma concreta consciencialização política que permitisse equacionar tais casos. Porém, já nessa altura ocorreram inúmeras situações de degredo, mas por processos judiciais e não políticos ou religiosos, como na contemporaneidade. Ao analisarmos, e.g., a documentação da Inquisição, constatamos que, nos finais do séc. XVI, terá havido uma forte corrente de autoexílio por parte da comunidade de cristãos-novos madeirenses, quer para Amesterdão, quer para o Brasil. Tal não se terá devido a motivos especificamente religiosos, mas ao medo de futuras denúncias relativas à sua situação, pelo que, instalando-se na Holanda, logicamente acabariam por professar o judaísmo. A ilha da Madeira foi visitada, nos finais do séc. XVI, entre 1591 e 1592, pelo inquisidor Jerónimo Teixeira Cabral (c. 1550-1614), que, entre 1600 e 1614, foi bispo de Angra, tendo sido denunciadas quase 200 pessoas e organizados quase 100 processos, na base dos quais se viria a organizar depois o “Rol dos Judeus e seus Descendentes”. Em 1618, voltou a haver nova visitação, então a cargo de Francisco Cardoso de Torneo, deputado do Tribunal de Coimbra, que terá ficado surpreendido com a escassez de denúncias por judaísmo na Madeira. Assim, a 23 de outubro de 1623, foi à Inquisição de Lisboa Francisco Gomes Simões, cristão-velho, piloto de nau e morador na Madeira, para informar que, tendo partido da Madeira para a Flandres cerca de 5 anos antes, vira ali muitos portugueses fugidos do reino, que lá viviam como judeus. Francisco Simões denuncia cerca de uma dezena de pessoas, entre as quais três que tinham vivido na Madeira: “porquanto ele denunciante partindo das ilhas para a dita cidade de Amesterdão, o senhor Francisco Cardoso, inquisidor, que então visitava as ditas ilhas, lhe encomendou que fizesse na dita cidade diligências sobre as pessoas de nação que para ali eram fugidas, de que ele, denunciante, as fez muito largas e lhas mandou das ditas ilhas” (ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, n.º 202, fl. 301). O autoexílio em questão dos três cristãos-novos detetado nos inícios do séc. XVII era, assim, perfeitamente residual, o mesmo se passando nos dois séculos seguintes, ainda que existissem sempre informações pontuais sobre o autoexílio da chamada gente de nação. Nos meados do séc. XVIII, com a centralização do poder régio e a ação do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), existem casos de exílio por razões políticas, embora à data não fossem naturalmente assim apresentados. O referido governador, e.g., mandou prender e degredar para o norte da Ilha o P.e João José Bettencourt de Sá Machado (1707-1781), que, embora mulato e filho de uma escrava, frequentara a Universidade de Coimbra, fazendo-se inclusivamente acompanhar de um criado branco. O padre afrontara, em várias reuniões, as despóticas diretivas do governador, alvitrando que, como capitão-general, a sua ação se deveria restringir à organização militar e pouco mais. Estas opiniões valeram-lhe o desterro do Funchal, não se cansando o governador de repetir que o “soberbo, arrogante e dissoluto clérigo”, “pardo por nascimento, como filho que é de uma preta”, afrontava as suas ordens (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 4804 e 4805). O clérigo em causa era meio tio-avô de Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1786), levando a família a intervir a seu favor na corte de Lisboa. O Gov. João António de Sá Pereira tomou idêntica atitude com o Cón. Pedro Nicolau Acciauoli e com o Cón. António Acciauoli, assim como com o P.e Luís Spínola, todos enviados para Lisboa sob escolta do sargento-mor, o que levou o intendente Pina Manique (1733-1805) a investigar a atitude do governador, ouvindo o sargento-mor a esse respeito. O clero madeirense nem sempre se pautou pela contenção devida ao seu ministério. Note-se, e.g., que, tendo-se reformado o P.e António Maria do Sacramento, capelão da infantaria de guarnição da Madeira, propôs-se a nomeação do P.e Francisco José da Silva. No entanto, como expôs para Lisboa o Gov. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1726-1798) (Coutinho, D. Diogo Pereira Forjaz), “algum tempo depois da expedição desta proposta, ele se ausentou fugitivamente desta ilha, por se lhe imputar o crime de esperar traiçoeiramente um homem” e o tentar assassinar à espadeirada (ABM, Governo Civil, liv. 519, fls. 141v.-142). O padre, entretanto, não voltou à Madeira, acabando o governador por ter de apresentar outro para o lugar. O referido exílio do P.e Bettencourt de Sá Machado para o norte da Ilha não foi caso único. Na complexa situação da ocupação inglesa de 1801 a 1802, o Gov. José Manuel da Câmara (c. 1760-c. 1825), em 1803, chegou a exilar o bispo D. Luís Rodrigues de Vilares (c. 1740-1810) para o Santo da Serra. O bispo teria tido reuniões secretas com o cônsul inglês e com outros elementos dados como maçons, pelo que, em junho de 1803, o governador comunicou tal situação para Lisboa, fixando-lhe residência no Santo da Serra e proibindo-o de entrar no Funchal. A decisão foi revogada pelo Governo de Lisboa num curto prazo de meses, a 22 de agosto, mas a situação de conflito entre as duas autoridades não deixou de piorar, pelo que acabaram por ser obrigados a regressar a Lisboa em navios separados. Na Madeira, a situação complicou-se nos finais do séc. XVIII com a verdadeira guerra levada a efeito pelo bispo do Funchal, D. José da Costa Torres (1741-1813), contra as lojas maçónicas (Maçonaria). O bispo arvorou-se em defensor dos interesses da Coroa e do Estado, posição que, prudentemente, não quis assumir o Gov. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, perseguindo o prelado, feroz e primariamente, os elementos que entendia ligados à Maçonaria. O bispo perseguiu a tal ponto os presumíveis maçons do Funchal, em princípio com o tácito acordo do governador e até com ordens emanadas de Lisboa, que famílias inteiras tiveram de abandonar a Madeira. D. José da Costa Torres exorbitou, assim, a tal ponto as ordens recebidas, que o próprio Governo central teve que intervir nos excessos praticados pelo prelado, ordenando-lhe que soltasse grande parte dos acusados e “recomendando-lhe a maior moderação no castigo dos delinquentes” (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 918). A perseguição envolveu civis, militares e eclesiásticos, citando-se em documento oficial que, inclusivamente, “demitira, suspendera e prendera, por castigo alguns eclesiásticos” (SILVA e MENESES, 1998, I, 326), pelo que, tendo já sido transferido para Elvas, foi violentamente levado da sua residência privada, então na Penha de França, para o embarcarem para o continente. A memória das lojas maçónicas madeirenses manter-se-ia na corte de Lisboa. Dissolvidas as Cortes, derrogada a Constituição de 1822 e restabelecido o Governo absoluto em julho de 1823, a Madeira era de novo assolada por uma alçada. Em causa estavam as questões das lojas maçónicas, dos vagos mas emergentes partidos políticos (Partidos políticos) e das ligações às ideias liberais, tudo indiciando que os madeirenses queriam subtrair-se à Coroa portuguesa e ligar-se à Inglaterra. Num breve espaço de tempo, havia mais de uma centena de presos, embora só viesse a ser condenada uma dezena deles. De qualquer forma, eram muitos os indiciados e vários saíram da Madeira. A Ilha veio, assim, a ser desapropriada de muitos dos seus principais quadros, entre morgados, funcionários públicos, cónegos e vigários, escritores, militares de todas as patentes, etc. Tal alçada não seria, infelizmente, a última, pois, com a tomada de poder pelo infante D. Miguel (1802-1866), em 1828, e conquistada a Ilha pelas forças absolutistas, nova alçada era enviada à Madeira, levando à prisão quase duas mil pessoas acusadas de “malhados” e maçons. Num curto espaço de tempo, a Ilha perdia, de novo, exilados para Cabo Verde (Cabo Verde), Angola e Moçambique, parte dos seus principais quadros sociais e económicos, militares, administrativos e religiosos. Muitos deles não voltariam à Madeira, optando por ficar em Londres e, depois, no continente, havendo uma parte que optou por emigrar para o Brasil. Ao longo dos sécs. XIX e XX, a Madeira foi um dos principais locais de exílio das várias revoltas políticas ocorridas no continente. Na sequência, e.g., da Revolta de Torres Vedras, a 4 de fevereiro de 1844, foram enviados para a Madeira 23 dos insurgentes, entre advogados, eclesiásticos e militares. Os primeiros deram entrada na fortaleza do Ilhéu a 20 de abril, e os seguintes na do Pico, mas todos vieram a ser colocados em liberdade após o malogro da Revolta. Também ao Funchal chegavam, a 8 de maio de 1919, os prisioneiros políticos da Revolta de Monsanto, a bordo do vapor África, da Empresa Nacional de Navegação, o qual fora arvorado em transporte de guerra. Os deportados monárquicos, em número de 289, foram acompanhados de uma força da Marinha, desembarcando três dias depois e sendo instalados no Lazareto de Gonçalo Aires. Não obstante as precauções, no dia 3 de junho deu-se pelo desaparecimento de oito prisioneiros, sabendo-se depois que tinham chegado a Las Palmas, na lancha rápida Glafiberta, pertencente ao sportsman Humberto dos Passos Freitas (1893-1926) (Freitas, Humberto dos Passos), que preparara a evasão. A situação mais complicada veio a ocorrer com a Revolta do Porto, de 1927, na sequência da qual uma série de militares foi para a Madeira. Embora deportados, estes gozavam de uma certa liberdade de movimentos e de contactos, podendo alguns estar por detrás do movimento popular conhecido como Revolta das Farinhas, entre 4 e 9 de fevereiro de 1931 (Revolta das Farinhas). A ditadura destacou então para a Madeira uma força especial, sendo os oficiais subalternos da mesma quem desencadeou, a 4 de abril de 1931, a chamada Revolta da Madeira (Revolta da Madeira). Na sequência deste acontecimento, constituiu-se um Governo autónomo com os principais militares deportados na Ilha, mas também civis, como Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969), que fora ministro das Finanças do Governo de José Domingos dos Santos (1885-1958), nos finais de 1924 e inícios de 1925. A ditadura responderia um mês depois, quase com todas as forças disponíveis no continente, inclusivamente hidroaviões, recuperando a situação, tendo então os principais revoltosos sido deportados para Cabo Verde e Moçambique. O Ten. Manuel Ferreira Camões (1898-1968) e o Ten. Manuel Silvio Pelico de Oliveira Neto (c. 1888-1953) haviam de se radicar na ilha de S. Nicolau, em Cabo Verde, lugar onde continuaram a ser recordados (Cabo Verde). Deportados da Revolta da Madeira em Cabo Verde. 1932. Arquivo Rui Carita Pela Madeira tinham, entretanto, passado exilados internacionais de grande destaque, como, em 1921, o ex-Imperador da Áustria, posteriormente designado por beato Carlos de Habsburgo (1887-1922), acompanhado da família. Depois de breves dias na Vila Vitória, anexa ao Reid’s Palace Hotel, instalou-se na Qt. do Monte (Quinta do Monte), onde viria a falecer de pneumonia dupla a 1 de abril de 1922, sendo os seus restos depositados na igreja de N.ª Sr.ª do Monte, onde permaneceram. Estaria também alguns dias no Reid’s Palace Hotel, nos finais de 1959, o Gen. Fulgêncio Batista (1901-1973), que havia sido derrotado pela Revolução Cubana em janeiro desse ano. Mais tarde, o Funchal ainda seria local de exílio dos principais governantes portugueses afastados com o pronunciamento militar de 25 de abril de 1974: o ex-Presidente da República Américo de Deus Rodrigues dos Reis Thomaz (1894-1987), o ex-presidente do Conselho José das Neves Alves Marcello Caetano (1906-1980) e os ex-ministros Joaquim Moreira da Silva Cunha (1920-2014) e César Moreira Baptista (1915-1982).   Marcello Caetano e Américo Thomaz na Madeira. Comércio do Funchal.01.05.1974. Arquivo Rui Carita   Declaração de Entrega dos Ex-membros do Governo. 26.05.1974. Arquivo Rui Carita           Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

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arguim

A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha ficaria dependente da Diocese do Funchal, que para ali nomeava capelão e ouvidor, sendo depois sucessivamente ocupada por Holandeses, Ingleses, prussianos e Franceses, até ser por fim abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios das antigas fortificações, com uma pequena povoação de pescadores-recoletores, sendo objeto de diversas lendas e narrativas. Palavras-chave: comércio; Descobrimentos; escravatura; feitorias fortificadas; tradição oral. Arguim é uma ilha na baía do mesmo nome, situada na extremidade norte da República Islâmica da Mauritânia, na costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprimento por 2 km de largura. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes. A ilha faz parte do Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona protegida, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas. Vista aérea do Banco de Arguim. Arquivo Rui Carita. A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa da costa ocidental de África (África Marrocos). Na sequência da passagem do cabo Bojador, em 1434, as embarcações portuguesas ao serviço do infante D. Henrique (1394-1460) prosseguiram para o Sul, passando ao largo da costa saariana e atingindo a costa da Mauritânia. Estas navegações, que de início se revelaram lucrativas, em virtude de atos de corso e de razias, chegaram ao golfo de Arguim na déc. de 1440; e.g., a caravela de Nuno Tristão (c. 1410-1446) tê-lo-á alcançado em 1441, embora outros navegadores ali tenham passado por esses anos, como Gonçalo de Sintra (c. 1400-1444) e Diniz Dias (há divergências entre os vários cronistas quanto à sua ordem de chegada). Em 1443, voltava àquela área Nuno Tristão, então já acompanhado de um mouro, dado como Sanhaja Berber, que servia de intérprete; aí, adquiriu 28 escravos, que levou para Lagos, no Algarve. É desse ano o pedido oficial de carta de corso do infante D. Henrique ao seu irmão D. Duarte (1391-1438), passando aquele a usufruir de 1/5 das capturas efetuadas – que, em princípio, pertenciam ao Rei –, pedido também posteriormente feito pelo infante D. Pedro (1392-1449). Banco de Arguim. Em 1444, a expedição de Lançarote de Lagos a Arguim, na qual participaram forças da Madeira e, provavelmente, o sobrinho de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), Álvaro Fernandes, conseguiria recolher 240 escravos. As relações da Madeira com estas navegações vão manter-se nos anos seguintes, tendo Álvaro Fernandes e Lançarote de Lagos, em 1446, a explorado a embocadura do rio Senegal e a área de Cabo Verde. Este navegador, que já comandara uma caravela de Zarco em 1444, dirigiu a expedição que em 1447 ultrapassou Cabo Verde e que se supõe ter atingido a ilha de Goreia. As relações da ilha da Madeira com este tipo de comércio e com esta área – Arguim, depois Cabo Verde, Guiné, Angola, etc. – vão manter-se nos anos seguintes. Na Furna de Arguim, como era por vezes chamada esta baía de recifes, ficava a ilha dos Coiros, principal centro de comércio de peles de toda a costa e, para o Sul, localizavam-se as ilhas das Garças, de Naar e de Tider. Serviram as mesmas, com mar bonançoso, para abrigo e repouso das naus. Por ali passaram madeirenses, como os da caravela enviada por Zarco até ao cabo dos Matos, com seu sobrinho Álvaro Fernandes, depois o genro do capitão do Funchal, Garcia Homem de Sousa, e Diogo Afonso, Denis Eanes da Grã, João do Porto e outros. Deve datar de cerca de 1445 a substituição da pirataria, com uma função simultaneamente económica e bélica, pelo comércio pacífico – ou, pelo menos, mais pacífico, dado não ser nessa altura possível fazê-lo sem armas na mão. Em 1444, já se procurava estabelecer o tráfico com os nómadas cameleiros do rio do Ouro, tendo cabido a João Fernandes, um colaborador próximo do infante D. Henrique, beneficiando das informações de Ahude Meimão sobre a localização das principais povoações e o interesse comercial da região, concretizar esses planos. Em 1445, aquele navegador foi responsável pela realização das primeiras operações comerciais com as populações muçulmanas daquela região, promovendo a aquisição de ouro, de goma-arábica e de escravos, em troca de tecidos e de trigo. Em 1447, iniciaram-se as relações com o Suz, em Marrocos – grande mercado de escravos, de ouro e de açúcar –, tentando o infante D. Pedro, ainda nesse ano, estabelecer a paz e manter relações comerciais com o Bori-Mali e com os jalofos, na área da Guiné. Poucos anos depois, por volta de 1454-1455, o italiano Luís de Cadamosto (1432-1488) (Cadamosto, Luís de) explica, nas suas memórias, a propósito do contrato da feitoria de Arguim, que, quando esteve ao serviço do infante D. Henrique, as caravelas costumavam ir armadas de Portugal ao golfo de Arguim, umas vezes quatro, outras mais, “e de noite desembarcavam” e saíam sobre as aldeias costeiras de pescadores, “e faziam correria pela terra”, de modo que prendiam esses “árabes, tanto machos como fêmeas e os traziam a vender em Portugal” (GODINHO, 1956, III, 125-126). Pontão. Antigo embarcadouro. A ilha de Arguim veio a configurar-se como um local privilegiado para o estabelecimento de um posto comercial fixo, dado situar-se numa região esparsamente povoada, mas próxima dos circuitos comerciais percorridos pelas caravanas mercantis que atravessavam o Saara, as quais frequentemente se aproximavam da costa, devido à abundância de sal na região. Sendo um território dotado de um bom porto e de água potável, era facilmente defensável pela vantagem que a sua situação insular oferecia face à previsível hostilidade das populações autóctones, sendo por isso escolhido para centralizar o comércio da costa africana. Entre 1454 e 1455, já se tinha efetuado um contrato por 10 anos, explicando Cadamosto que ninguém podia entrar no golfo para traficar com os locais, “salvo aqueles que entrassem no contrato” celebrado com a Coroa para esse comércio, no qual se incluía a “feitoria na dita ilha, e feitores, que compram e vendem àqueles árabes, que vêm à marinha, dando-lhes diversas mercadorias, como são panos tecidos, prata e alquicéis, que são uma espécie de túnicas, tapetes e sobretudo trigo, do qual estão sempre famintos, e recebem em troca negros, que os ditos alarves trazem da Negraria, e ouro Tiber” (Id., Ibid.). Acrescenta o navegador italiano que o infante fazia então levantar “uma fortaleza na dita ilha, para conservar este comércio para sempre; e por esta razão todos os anos vão e vêm caravelas de Portugal à ilha de Arguim” (Id., Ibid.). O castelo só seria terminado após o falecimento do infante, em 1461, sendo a capitania entregue a Soeiro Mendes de Évora, o vedor da construção, que viria a ter carta de 26 de julho de 1464, de D. Afonso V (1432-1481), a conferir-lhe, a si e aos seus descendentes, a capitania-mor da ilha. Saliente-se, no entanto, que o estatuto comercial de Arguim conheceu variantes. Assim, por volta de 1455, aquando da visita de Cadamosto, a feitoria era administrada por uma sociedade privada, que tinha obtido do infante D. Henrique esse monopólio por um período de 10 anos, provavelmente entre 1450 e 1460. Mais tarde, segundo o cronista João de Barros (1469-1570), Fernão Gomes da Mina (c. 1425-c. 1485), após ter assumido o mercado de exploração do comércio da Guiné, que dominou entre 1468 e 1474, conseguiu também obter o de Arguim, ao preço de uma renda anual de 100$000 réis. A área em torno de Arguim era habitada por berberes e negros islamizados, chamados “mouros” pelos Portugueses, sendo uma importante zona de pesca. Da parte portuguesa, esperava-se intercetar o tráfego do ouro que as caravanas transportavam de Tombuctu para o Norte de África; contudo, foi o comércio de escravos que mais prosperou, recebendo Portugal de Arguim, aproximadamente a partir de 1455, cerca de 800 escravos por ano, na sua maioria jovens negros, feitos prisioneiros durante razias conduzidas no interior do continente pelos líderes tribais da região costeira vizinha. No decurso do mandato de Fernão Soares como capitão e feitor, entre maio de 1499 e dezembro de 1501, obtiveram-se 668 escravos e 12.558 dobras e meia de ouro – moeda que, em 1472, valia 327 reais brancos, na razão 1$896 reais brancos por marco (cerca de 235 g de prata) –, sendo parte deste convertida em escravos, totalizando 840 indivíduos. O feitor seguinte, Gonçalo Fonseca, conseguiria somente 406 escravos em dois anos e meio, mas o que se lhe seguiu, Francisco de Almada, entre 1508 e 1511, ultrapassaria a cifra de 1500 escravos. Em segundo plano estava o importante comércio da goma-arábica, produto que a região produzia em quantidade significativa e com qualidade superior, que se adquiria em Arguim a preços muito atrativos. O território conquistado em Arguim passou então a assumir-se como um centro de comércio, estabelecendo ligações comerciais com os portos de Meça, Mogador e Safim (Safim), em Marrocos. Destes lugares provinham os tecidos, o trigo e outros produtos que, na feitoria de Arguim, eram trocados por ouro e escravos; as mercadorias eram transportadas pela rota que ia de Tombuctu até Hoden. A criação desta feitoria representou um ponto de viragem na expansão portuguesa, assinalando o início da política de construção de feitorias fortificadas, dotadas de uma guarnição militar capaz de as defender contra os ataques dos povos autóctones. Em 1487, foi fundada uma feitoria no interior do continente africano, na localidade de Ouadane (ou Wadan), e, na mesma área, foram feitas outras tentativas de fixação de feitorias, e.g., na região de Cofia e junto à foz do rio Senegal, todas goradas face à hostilidade das populações locais e à dureza do clima. Nos anos de 1505 a 1508, a guarnição do castelo de Arguim era composta de 41 indivíduos, 18 dos quais eram soldados e 5 marinheiros. O comércio da feitoria estava sob o controlo da Coroa, sendo os capitães nomeados pelo Rei, habitualmente para comissões de três anos. Tinham direito a arrecadar 25 % dos lucros do comércio realizado na feitoria, sendo assistidos por um feitor, que arrecadava 12,5 % daqueles, e por um escrivão assalariado, que recebia 20.000 réis na fase inicial dos trabalhos. Em finais de 1555, ou em princípios de 1556, a feitoria de Arguim foi atacada pelo pirata português Brás Lourenço e, em 1569, a guarnição tinha-se reduzido a 30 pessoas. A manutenção da guarnição de Arguim não era fácil, tendo de recorrer-se às vizinhas ilhas Canárias ou à Madeira, como aconteceu em 1513, quando era capitão de Arguim Fernão Pinto (que deve ter sucedido a Francisco de Almada, capitão entre 1508 e 1511, embora o seu nome não conste das listagens geralmente divulgadas, que referem apenas o Cap. Pero Vaz de Almada, em 1514-1515). O mestre do navio enviado às Canárias pelo capitão de Arguim acabou por aportar a Machico, tendo requerido ao almoxarife Antão Álvares a compra de diversos mantimentos – 30 moios de trigo, 20 quintais de biscoito e uma parte de remel (possivelmente o açúcar local) –, deixando como pagamento a João de Freitas (c. 1470-1533), executor das dívidas à Fazenda, seis escravos, marco e meio de ouro, e meia onça de ouro em pó e em pedaços, e tendo sido lavrada quitação com data de 3 de maio de 1513. Três dias depois, o mestre do navio São Miguel Fadigas entregava mais 78 dobras de ouro, em pó e em pedaços, para pagamento de novos mantimentos. Não se conhece qualquer descrição do castelo henriquino de Arguim, nem da sua reformulação na época de D. Afonso V, embora a carta de alcaidaria-mor refira ter havido então obras, nem também das remodelações da déc. de 80 do séc. XV, se bem que se saiba que, ao passar, em 1481, a monopólio régio, sob D. João II (1455-1495), o castelo foi aumentado. Arguim foi perdendo a sua importância ao longo dos anos seguintes, à medida que os interesses comerciais portugueses se transferiam para regiões localizadas a sul (e, depois, para a Índia). Desconhece-se a data em que Arguim passou a estar na dependência da Diocese do Funchal, mas julga-se ter isso ocorrido com o abandono de Safim, em 1541, de cuja Diocese deveria depender, embora não houvesse uma clara definição dos seus limites. A referência a Arguim como pertencente à Diocese do Funchal parece datar da bula do Papa Júlio III, de 1550, que separou da antiga Arquidiocese (Diocese e arquidiocese do Funchal) os territórios das novas dioceses dos Açores, de Cabo Verde, etc., que passaram à jurisdição eclesiástica de Lisboa. A referência à integração da ilha de Arguim na jurisdição do Funchal dá-se com o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), que recebeu a doação de Arguim, do seu castelo e do produto das pescas na costa de Atouguia e que, em 1601, nas Extravagantes que adicionou às anteriores Constituições Sinodais, refere que “dispondo os casos da sua jurisdição nela colocava Ouvidor Eclesiástico” (LEMOS, 1601, título 16, const. 2). Aliás, antes de ser meio-cónego da Sé, o cronista Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) foi vigário de Arguim, em 1567, na ausência do P.e António Fernandes, sinal de que a freguesia já existia e dependia do Funchal (embora pouco tempo ali estivesse, passando rapidamente a Lisboa e aí conseguindo a indigitação para uma futura eleição como meio-cónego da Sé do Funchal).   Voyages en Afrique- Asie-Indes orientales et occidentales-Jean Mocquet-1617 Arguim seria visitada por Jean Mocquet (1575-1617) (Mocquet, Jean), aventureiro francês, em 1601, na sua primeira viagem de recolha de objetos exóticos e curiosos, que lhe permitiu ocupar o boticário régio de Henrique IV (1553-1610) e organizar um gabinete de curiosidades (Colecionismo) nas Tulherias para o seu sucessor, Luís XIII (1601-1643). Jean Mocquet conta nas suas memórias que, na sua primeira viagem, em que visitou o Funchal, seguiu “o desejo que tinha há muito tempo de viajar pelo mundo: quis começar pela África”. Partira de Saint Malo a 9 de outubro de 1601, em La Syréne, que se destinava à Líbia (nome pelo qual se designava a costa marroquina à época e, assim parece, também as ilhas atlânticas e da Mauritânia), e que era um “navio carregado de sal e bem equipado de víveres e munições para a guerra” (MOCQUET, 1830, 27). A embarcação passou por diversas peripécias, chegando a ter de combater com vários corsários; passado o cabo de São Vicente, dirigiu-se ao Norte de África, e depois de dobrar o cabo Branco visitou a velha feitoria de Arguim. Conforme se usava à época (como referido), Jean Mocquet refere-se à região como “Líbia”, contando que “de toda a Líbia vão buscar água ao porto de Arguim”, que se situa sobre uma pequena ponta relevada, a seis léguas de cabo Branco. A fortaleza tinha então alguns soldados portugueses e um capitão. Mocquet menciona que os Portugueses eram amigos dos chefes da região, que não eram todos negros, havendo chefes brancos, mas que eram todos muçulmanos. Faziam comércio de plumas de avestruz e de peixe, “que aqui usam como moeda de troca” (Id., Ibid., 34). Mocquet já não refere o rendoso comércio de escravos e de ouro.     Arguim estava a entrar em franca decadência; embora periodicamente visitada pelos pescadores da Madeira e sob a jurisdição do bispo do Funchal, a sua situação militar era muito precária e a guarnição insustentável. A fortaleza de Arguim teve, em 1612, um projeto de reconstrução, a cargo do arquiteto-mor Leonardo Turriano (1559-1628), e elaborado com base nos dados que este recolhera quando estivera em idêntica função nas Canárias, entre 1588 e 1590, sendo muito provável que se tenha deslocado a Arguim. O projeto, no entanto, não passou do papel: não há registo de qualquer despesa ou movimentação de pessoal nesses anos.     A pequena fortaleza de Arguim acabaria por ser conquistada, em 1638, por forças holandesas e, alguns anos mais tarde, por forças inglesas, sendo posteriormente recuperada pelos Holandeses, até que, em setembro de 1678, foi arrasada por forças francesas, embora depois tenha sido pontualmente reconstruída pelos Franceses. Devem datar de meados do séc. XVII (de cerca de 1665) os dois desenhos flamengos de Johannes Vingboons (1616/1617-1670) que sobreviveram e que parecem representar já a remodelação de Arguim pelos Holandeses. Em 1685, estava quase abandonada, sendo então ocupada por tropas brandeburguesas, transformando-se Arguim na primeira colónia do principado de Brandeburgo. Em 1701, com a incorporação do principado no reino da Prússia, Arguim transitou para o controlo prussiano. Em 1721, perante o desinteresse da Prússia pelas suas colónias africanas, o território voltou à posse da França, momento a partir do qual se fazem muitas representações cartográficas e, inclusivamente, um levantamento planimétrico de Arguim, com Perrier de Salvert, a 8 de março de 1721.   Mapa de Arguim de Gerard van Keulen-1720   A praça seria novamente perdida para os Holandeses no ano subsequente, voltando todavia à posse dos Franceses em 1724, que ali permaneceram até 1728, ano em que abandonaram a ilha ao controlo dos líderes tribais mauritanos. Fez-se explodir a fortificação por ocasião da retirada, pouco devendo ter restado dela. A ilha regressou ao controlo francês nos princípios do séc. XX, quando foi incorporada no então protetorado da Mauritânia; em 1960, com a independência da Mauritânia, Arguim passou a fazer parte do território do novo Estado.       Teatro. A Ilha de Arguim, de Francisco Pestana Durante a sua conturbada história, a ilha foi sempre um dos centros do comércio de goma-arábica e, durante muitos anos, um importante local de caça de tartarugas marinhas e de outras atividades mais ou menos artesanais, em que estavam inclusivamente envolvidos pescadores madeirenses – isso justifica a existência de várias pequenas embarcações, quer no Funchal, quer em Câmara de Lobos, com o nome de Arguim. Embora alguns dos seus proprietários não saibam onde fica, e se tenham limitado a repetir os nomes que já os pais e avós tinham utilizado para as embarcações, subsistem lendas e narrativas populares sobre a ilha – que aparecia e desaparecia, que era o local para onde teria ido viver D. Sebastião, etc. –, que foram inclusivamente objeto de peças de teatro. Na época moderna, a dificuldade de navegação dos navios de algum calado nesta área, em razão dos bancos de areia e dos afloramentos rochosos, é patente no desastre ocorrido em julho de 1816 com a fragata francesa La Méduse, que transportava pessoal para a colónia do Senegal e que encalhou na região, sendo abandonada com grande perda de vidas. O acontecimento ficou imortalizado na obra Le Radeau de la Méduse (A Jangada da Medusa), do pintor francês Théodore Géricault (1781-1824), de 1818-1819. Arguim encontra-se ainda na base da fundação do Convento franciscano da cidade da Baía, no Brasil, como resultado da influência da lenda de S.to António de Arguim: nos inícios do séc. XVII, terá aparecido na costa brasileira, roubada por corsários franceses, uma imagem de S.to António, proveniente da antiga praça africana, pelo que o santo foi eleito padroeiro da cidade (padroado que perderia por proposta dos padres jesuítas, em 1686, passando para S. Francisco Xavier). Em suma: foi em Arguim que se localizou a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha foi sucessivamente ocupada por Portugueses, Holandeses, Ingleses, Prussianos e Franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios da antiga fortificação, tendo uma pequena povoação, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recoletores da etnia imraguen, sendo, para os madeirenses, provavelmente até aos inícios ou meados do séc. XX, um destino de pesca, e permanecendo no seu imaginário como uma antiga lenda. Pesacadores. Arguim. 2006   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017) Imagens: Arquivo Rui Carita

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