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guarda republicana

A Guarda Republicana nasceu com a implantação da República, incorporando a antiga Guarda Municipal de Lisboa e Porto, essencialmente com funções de policiamento urbano (Polícia de Segurança Pública), cujo nome passou a ser Guarda Republicana de Lisboa e Porto, por decreto de 3 de maio de 1911 (República). De notar que a Guarda Municipal fora a última força monárquica a render-se aos republicanos, sendo, por isso, curioso o facto de se ter transformado talvez na única instituição pública portuguesa com o título de “republicana”. Tratava-se de uma força de segurança composta por militares e organizada num corpo especial de tropas. Em tempo de paz, dependia do ministério responsável pela segurança pública para efeitos de recrutamento, administração e execução dos serviços correntes, e do ministério responsável pelos assuntos militares para efeitos de uniformização e normalização da doutrina militar, de armamento e de equipamento. Em situação de guerra ou de crise grave, esta força ficava operacionalmente sob comando militar. Isto explica o seu destacamento para o Funchal em maio de 1919, no quadro da chamada República Nova e após o assassinato do “Presidente-Rei”, Sidónio Pais, a 14 de dezembro de 1918, quando se encontrava como representante da Madeira em Lisboa e presidente da Câmara de deputados o antigo Gov. civil do Funchal José Vicente de Freitas (1869-1962), já então com interferência na área de segurança interna, que o levaria, após o golpe de 1926, à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, ao Ministério do Interior e à presidência do Conselho de Ministros. Guarda Republicana na Quinta Vigia. 1921. Arquivo Rui Carita O decreto de criação da companhia independente n.º 1 da Guarda Republicana foi de 10 de maio de 1919. Esta força chegou ao Funchal a 3 de dezembro do mesmo ano, no paquete Quelimane, com 2 sargentos, 3 cabos e 21 soldados, oriundos de forças de militares de infantaria e cavalaria. Foi reforçada na Madeira com 16 elementos locais, constituindo uma força de comando de capitão e com um total de quase 90 homens, tendo tido por quartel a antiga Quinta Vigia, que passara à posse do Estado com a extinção da Sociedade dos Sanatórios e onde mais tarde se instalou o Casino Park Hotel. O efetivo desta força nunca foi perfeitamente definido. Pensou-se que poderia vir a ter de criar destacamentos na Ilha mas, dada a instabilidade política no continente, foi mandada recolher a Lisboa em 1922, viagem que efetuou no vapor São Miguel nos meses de abril e maio desse ano.   Rui Carita (atualizado a 13.12.2017)

Sociedade e Comunicação Social

guarda nacional

Com a implantação do Governo liberal foram criadas novas forças militares, dado entender-se estarem as vigentes – pois não foi possível desmobilizá-las na totalidade –, em especial nas zonas rurais e mais afastadas dos grandes centros urbanos, fora do contexto ideológico das novas instituições (Guarnição militar). Arquivo Rui Carita Por alvará do prefeito Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1847) (Prefeito), de 15 de setembro de 1834, foi nomeada uma comissão para fazer o recenseamento e alistamento nominal de todos os indivíduos que, nos termos do decreto de 29 de março do mesmo ano, deviam fazer parte dessa Guarda. Para tal, foi chamado o coronel do extinto Batalhão de Milícias de São Vicente, João Lício Vilhena Teixeira de Lagos (1776-1846), secretariado pelo bacharel Daniel de Ornelas e Vasconcelos (1800-1878) (Vasconcelos, Daniel de Ornelas, Barão de S. Pedro) e pelo primeiro-tenente Manuel Joaquim Moniz Bettencourt. No final de 1835, no entanto, a Guarda não estava ainda devidamente organizada, apesar de os oficiais da mesma terem sido eleitos e aprovados pelas autoridades competentes. Teria havido, nos primeiros tempos, algum receio em fornecer armamento aos seus elementos, por se suspeitar de que nem todos eram afetos à causa constitucional.   William Hinton (1817 - 1904) Arquivo Rui Carita A formação da Guarda Nacional provocou alguma celeuma nas principais cidades do reino por causa dos privilégios alardeados pelos estrangeiros, que reclamavam estar isentos dos serviços e das reuniões daquela força. O problema era geral e também se fez sentir na Madeira, obrigando o Governo a esclarecer o então prefeito Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, em julho de 1835. Face à reclamação recebida pelas caixas gerais do contrato do tabaco, o Governo informou que os estrangeiros abrangidos pelo contrato em causa estavam de facto “isentos das companhias e de quaisquer cargos públicos e militares”, mas ressalva-se que apenas para o serviço ordinário e para as reuniões. Quanto ao resto, frisava-se que todos os residentes deviam alistar-se na Guarda Nacional e armar-se “para se reunirem aos seus respetivos corpos, logo que seja preciso combater quaisquer inimigos externos ou internos da pátria” (RODRIGUES, 2006, 720). Aludia-se, desta forma, à possibilidade de as forças do infante D. Miguel se aliarem às congéneres absolutistas espanholas. Conhecendo a situação na Madeira e assumindo em Lisboa a pasta do ministério do Reino, a posição de Mouzinho de Albuquerque não poderia ter sido outra, aludindo desta forma à possibilidade de as forças do infante D. Miguel se aliarem às suas congéneres absolutistas espanholas. O assunto conheceu depois outros desenvolvimentos, entre os finais de 1838 e janeiro do ano seguinte, quando se levantou uma forte contestação por parte de alguns comerciantes estabelecidos no Funchal, especialmente as casas de George & Robert Blackburn, de Keirs & C.ª e de Robert Wallas, cujo gerente seria depois sogro do conhecido industrial William Hinton (1817-1904), casas comerciais que pretendiam que os seus criados e empregados em geral ficassem isentos de qualquer recrutamento, mesmo os madeirenses. Nessa altura, o relacionamento luso-britânico atravessava algumas dificuldades, o que alertou o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. O cônsul em Lisboa, Howard de Walden, foi informado pelo congénere da Madeira, George Stoddart (1795-c. 1860) (Stoddart, George), tendo sido pedido um parecer ao juiz conservador britânico em Lisboa. O parecer foi negativo, tendo concordado com o mesmo o ministro britânico lord Palmerston. Contudo, o assunto continuou a agitar a comunidade britânica no Funchal. Corpo cavalaria Guarda Nacional. Arquivo Rui Carita A portaria de 19 de março de 1835, entretanto, determinou a formação, na Madeira, de um Batalhão de Caçadores da Guarda Nacional, o qual se constituiu definitivamente em 1836, tendo os seus oficiais sido eleitos em 10 de janeiro desse ano, numa reunião realizada na Pr. da Constituição (Palácio e fortaleza de S. Lourenço). A Câmara Municipal do Funchal enviava ao prefeito a lista dos oficiais eleitos, para este a submeter à aprovação do Governo de Lisboa. Eram eleitos de dois em dois anos e o primeiro comandante do Batalhão de Caçadores da Guarda Nacional foi o Cor. Valentim de Freitas Leal (1790-1879), que já havia comandado o Batalhão dos Voluntários Reais de D. Pedro IV, sendo depois membro do conselho do Governo e governador interino (Governo civil). A Guarda Nacional do Funchal tinha uma bandeira oferecida por Ana Mascarenhas e Ataíde (c. 1795-1887), mulher do prefeito, em 14 de janeiro de 1835. Os guardas nacionais foram dissolvidos pela lei de 7 de outubro de 1846, no contexto político que levaria às revoltas da Maria da Fonte e da Patuleia, nas quais perdeu a vida o antigo prefeito da Madeira, junto a Torres Vedras, a 27 de dezembro de 1847. Rui Carita (atualizado a 13.12.2017)

Sociedade e Comunicação Social

susan harriet vernon harcourt

Lady Susan Harriet Vernon Harcourt nasceu em 1824 e recebeu o nome de Susan Harriet Holroyd. Era filha do 2.º conde de Sheffield (1802-1876) e casou-se, em agosto de 1849, com Edward William Vernon Harcourt (1825-1891). No ano anterior ao do seu casamento, lady Susan acompanhou o noivo à Madeira com sua mãe, a condessa de Sheffield. Edward já tinha estado na Madeira de outubro de 1847 a abril de 1848., e esteve com a noiva de novembro de 1848 a maio de 1849. Volta à Ilha depois do casamento, de novembro de 1849 a maio de 1850 e de novembro de 1850 a abril de 1851. Na família Harcourt parece ter sido tradição, entre os que apresentavam debilidades físicas, a passagem do inverno na Madeira, onde esteve o pai de Edward, Rev. William Vernom Harcourt, e, no inverno de 1847 para 1848, seu irmão William George Granville Venables Vernon Harcourt (1827-1904), depois ministro do Interior de um dos governos da rainha Vitória e uma das figuras políticas determinantes do seu tempo; mais tarde, o filho deste também frequentaria a Madeira (Turismo terapêutico). O álbum de lady Susan Harcourt Sketch of Madeira, editado em Londres, em 1851, por Thomas McLean, espelha a educação das classes abastadas da sua época, a que não escapava a autora e o marido, que edita na mesma data e pelo mesmo editor A Sketch of Madeira, Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitor, dedicado à sogra, condessa de Sheffield. Edward também se interessava por ornitologia e daria à estampa as suas observações sobre as aves da Madeira, igualmente editadas em Londres, em 1855. Trocava, inclusivamente, correspondência com Charles Darwin; da qual se extraíram as informações sobre as suas deslocações à Madeira. O conjunto de litografias de lady Susan reúne 22 vistas da Madeira, litografadas pela própria ou pelo menos com a sua colaboração. Destas litografias 3 são em grande formato, demonstrando muito boa qualidade de desenho, com um traço suave, delicado e feminino, abarcando os grandes planos gerais e esboçando somente os pequenos detalhes. Desconhece-se o destino dos originais, bem como de posteriores trabalhos da autora, que terá passado a dedicar-se inteiramente à educação dos dois filhos. Morre aos 64 anos, em abril de 1894. A documentação da família encontra-se hoje integrada na Bodleian Library da Universidade de Oxford, onde, em conformidade com o que foi dito não constam os desenhos originais nem referência a trabalhos posteriores, que talvez se mantenham na posse da família. O conjunto editado do casal Harcourt enquadra-se no “grand tour” de educação das sociedades europeias abastadas, que olhavam para a Madeira como um destino no leque de possibilidades do turismo terapêutico. Ao mesmo tempo, este conjunto retrata uma nova posição e atitude da mulher ao longo do séc. XIX, que não só desenha em público, o que até então era quase impossível, como edita depois as suas obras, podendo, inclusivamente, trabalhar na sua passagem à litografia. Poucos anos antes, em 1845, também Jane Wallas Penford (1821-1884) editara os seus trabalhos em Londres, no conjunto Madeira Flowers, Fruits, and Ferns, este elaborado a partir de aguarelas feitas na sua propriedade da quinta da Achada – e não em público – e de litografias posteriormente aguareladas pela sua mão, também na sua quinta do Funchal. Edward Harcourt tece algumas considerações sobre os desenhos da sua então ainda noiva lady Susan, onde descreve a dificuldade em captar o cenário grandioso da paisagem madeirense, face à contínua mudança de luminosidade. Ao contrário da permanente neblina dos ambientes nórdicos, na Madeira a constância dos brilhos alterava-se constantemente pela simples passagem de uma nuvem. O autor conta ainda as dificuldades em que se via a pintora ao iniciar o seu trabalho, por ser de imediato rodeada de inúmeros observadores que, parecendo não ter mais nada para fazer, ali se mantinham inabaláveis durante horas a fio. Informa e alerta também os futuros leitores sobre a taxa imposta pela Alfândega do Funchal aos desenhos levados da Ilha, 6 xelins e 8 pences por libra de peso, o que considerava um verdadeiro exagero, mas que configura a consciência do interesse económico dos mesmos por parte das autoridades aduaneiras insulares.   Rui Carita (atualizado a 30.12.2017)

Artes e Design Madeira Global Sociedade e Comunicação Social

indústrias do turismo

O alerta oficial para o turismo e todas as futuras indústrias relacionadas com o mesmo ficou a dever-se ao Gov. José Silvestre Ribeiro (1807-1891), que, a partir de 1847, desenvolveu uma intensa pressão sobre toda a sociedade insular nesse sentido. O governador implantou, inclusivamente, a iluminação pública no centro da cidade, no que envolveu a Câmara Municipal e os comerciantes, tentou criar normas de relação cívica “com os inúmeros estrangeiros que nos visitam”, propôs a edição de “memórias históricas” (MENESES, 1849, I, 607-608), no âmbito dos anais municipais e chegou mesmo a propor a sua publicação em várias línguas, e, no palácio de S. Lourenço, em 1850, realizou uma exposição industrial que foi a base da representação madeirense na célebre Exposição Universal de Londres do ano seguinte. Datam dessa época o desenvolvimento dos serviços de instalação e transporte dos forasteiros, que deixam de alugar prioritariamente as antigas quintas madeirenses para optarem por instalações hoteleiras, e dos transportes locais, como os carros de cesto do Monte e os carros de bois, e o lançamento das indústrias de artesanato, como bordados, vimes e embutidos, que atingiram depois padrões de certa qualidade na Madeira, dada a sua ligação à indústria geral do turismo. Com profundas raízes na cultura e nas tradições locais, o seu aproveitamento económico, com o aumento dos índices de turismo na Ilha, apresentou aspetos totalmente novos e até inesperados, como é o caso dos bordados, cujo peso económico chegou, pontualmente, a ultrapassar o dos vinhos. A indústria dos bordados na Madeira, enquanto indústria, foi introduzida pelos Ingleses; não que não houvesse já trabalhos de bordado, mas foi com os comerciantes ingleses que este trabalho se adaptou progressivamente aos vários mercados internacionais. As primeiras referências que temos na Ilha à sua existência datam de 1849, quando o futuro conselheiro José Silvestre Ribeiro os refere como “produtos e artefactos de algum merecimento”, numa nota exarada do Governo Civil do Funchal em 23 de novembro desse ano, depois transcrita num periódico continental (Revista Univesal Lisbonense, 1849, 133-134). Com a crise de 1847, o célebre “ano da fome”, o Gov. José Silvestre Ribeiro reativara a anterior “Comissão Central de Auxílio”, que funcionara entre 1843 e 1844. A ideia foi lançada na “Assembleia-geral” realizada a 4 de fevereiro desse ano de 1847, no palácio de S. Lourenço, reunindo os elementos do Conselho do Distrito, e então alargada a outras autoridades. Foi nessa assembleia que se propôs a reativação da antiga “Comissão de Auxílio”, o que se efetivou no dia 6 seguinte, com o título de “Comissão de Socorros Públicos”, e que se constituiu ainda comissões concelhias. A comissão central foi constituída pelo prelado D. José Xavier Cerveira e Sousa (1810-1862), como presidente, Pedro Agostinho Teixeira de Vasconcelos, John H. Holloway, William Grant e João Francisco Florença, como vogais, e, como secretário, Joseph Selby, então vice-cônsul inglês no Funchal e depois também cônsul da Dinamarca (VIEIRA e RIBEIRO, 1989, 39). Os fundos recolhidos por esta comissão haveriam de ser investidos em obras públicas e, também, no artesanato dos bordados, reconhecendo o trabalho já efetuado por algumas mulheres madeirenses e que as mesmas, através do seu trabalho, poderiam contribuir para o sustento dos seus agregados familiares. Em 1850, na exposição industrial de S. Lourenço, já há referências à presença de panos e de bordados e, para a célebre Exposição Universal de Londres, na representação madeirense dos objetos manufaturados, seguiram igualmente panos de linho, guardanapos, rendas de linho, xaile de meia e obras de croché, demonstrando a visibilidade dessa nova atividade. No entanto, na exposição seguinte, de 1853, descrita, embora sumariamente, por Isabella de França, que a visitou a 29 de abril, a atenta escritora não refere a presença de bordados, limitando-se à descrição das giestas em flor que decoravam os currais, de fetos muito bonitos, etc. A sua apresentação como produto para venda aparece na exposição industrial do Funchal de 1850, e, no ano seguinte, alguns bordados eram expostos em Londres, na Exposição Universal, embora a sua divulgação só ocorra a partir de 1854 e 1856, com as “meninas” Phelps, filhas de Joseph Phelps (1791-1876), antigo presidente da Associação de Comerciantes do Funchal, e de Elisabeth Dickinson (1796-1876). Na correspondência e nos diários das irmãs Mary Phelps (1822-1893) e Bella Phelps (1820-1893) não existe, no entanto, qualquer referência a esse respeito, nem ao ensino de bordados, nem à sua comercialização, como a tradição inglesa tem transmitido. O comércio de bordados seria seguido pelos irmãos Robert e Franck Wilkinson, também Ingleses, estabelecidos na Madeira a partir de 1862 – nesse ano, segundo a “Estatística Industrial do Distrito do Funchal”, de Francisco de Paula de Campos e Oliveira, existiriam mais de 1000 bordadeiras na Madeira, rendendo a venda anual de bordados cerca de 100 contos de réis (SILVA e MENESES, 1998, I, 162). Ao mesmo tempo, diariamente consumiam-se em bordados cerca de 15 kg de linhas. No entanto, a exportação registada pela Alfândega era somente de 6 a 7 contos de réis, pelo que a sua saída se dava, essencialmente, por meio dos turistas, que os transportavam na bagagem, o que justifica que este assunto se torne, depois, um cavalo de batalha da Associação Comercial do Funchal. Elizabeth e Joseph Phepls. 1875. Arquivo Rui Carita. Na Madeira, o bordado para exportação começou por ser executado em tiras de pano, e estimava-se que uma bordadeira trabalhava um dia inteiro para produzir 0,5 m de bordado. Estas tiras destinavam-se a ser aplicadas em roupa branca, confecionadas nos sítios de destino, quer nas casas da cidade do Funchal, quer no estrangeiro. Esta época representou na Europa um novo interesse pela indumentária, especialmente feminina, mesmo íntima, que dominou os hábitos de vestir das classes mais favorecidas e que se estendeu à restante roupa, como a de cama, com lençóis e almofadas, cortinados, etc. Esta fase correspondeu a criações ingénuas e rudimentares, da responsabilidade da própria bordadeira, que, inspirada em temas antigos e tradicionais, utilizava riscos próprios. Mais tarde, as bordadeiras passaram a criar outros modelos a partir de pequenos carimbos ou rodízios feitos em madeira de buxo, muitos fornecidos pelas casas comerciais do Funchal, com os quais imprimiam o desenho sobre o pano, utilizando como material de impressão papel químico ou as antigas almofadas de carimbo embebidas em tinta azul. Vestido de manhã. 1887 O bordado da Madeira sofreu uma certa concorrência na déc. de 80, especialmente do bordado suíço, parcialmente mecanizado e com uma outra qualidade de execução, de acordo com os padrões internacionais. O bordado madeirense, entretanto, mantinha-se perfeitamente artesanal, sem qualquer inovação nos desenhos e nos padrões apresentados. Embora a sua execução continuasse dentro de bons padrões de qualidade, como atesta Helen Taylor, cidadã inglesa que residiu na Madeira durante algum tempo e que, em 1882, referia que “muito bom bordado” era vendido de porta em porta (TAYLOR, 1882, 27), o produto não atingia, ainda, um patamar que lhe permitisse ser internacionalmente apresentado nas grandes lojas de moda. Mesmo assim, os níveis de exportação conseguiram manter-se, somente com alguma quebra, embora não em valores exponenciais, como até então, e nos quais não é possível contabilizar, acrescente-se, nem o bordado vendido de porta em porta, nem o vendido nos navios que estacionavam na baía do Funchal. Datam do final do séc. XIX, por volta de 1890, as primeiras casas alemãs exportadoras de bordados e as principais responsáveis pela divulgação, na Europa Central e na América, deste produto. O mercado inglês, por razões várias, tinha deixado de se mostrar interessado nos bordados da Madeira, mas estes passaram a encontrar uma boa recetividade nos mercados centrais europeus e americanos. Dos finais do séc. XIX data também a fixação no Funchal de uma importante comunidade de sírio-americanos, que igualmente iriam apostar fortemente na exportação dos bordados, principalmente para a América do Norte. Este aumento tem por base as alterações introduzidas no mercado internacional pela Alemanha, que passa a apoiar, sob o ponto de vista fiscal, num sistema aduaneiro denominado drawback, os tecidos que, exportados da Alemanha, eram reimportados estando valorizados com elementos vários, como seja o bordado, sendo então novamente reexportados, preferencialmente para o mercado americano. Nesse quadro, entre 1893 e 1910, e.g., as casas de exportação de bordados no Funchal quase triplicaram, alterando profundamente o seu esquema de distribuição e produção anteriores. As casas de bordados passaram a elaborar os desenhos que pretendiam, distribuindo assim às bordadeiras do campo o tecido já estampado através de maquinaria própria, que era depois recolhido semanalmente pelos seus agentes. As casas de bordados passaram ainda a possuir serviços especiais para executarem os desenhos e a estampagem, assim como depois para alguns acabamentos finais, que incluíam as lavagens que apagavam os vestígios dos desenhos, o engomar e o empacotar do produto final. De um global de exportação de pouco mais de 200 contos de réis, nos inícios do séc. XX, passava-se, em 1919, para mais de 600 contos. Por esta altura, no Funchal, existiriam cerca de 34 casas exportadoras de bordados, parte das quais na mão de firmas norte-americanas, orientadas no Funchal por elementos de origem síria. A questão da sobrevivência do bordado da Madeira apaixonou alguns historiadores, não sendo fácil explicar a sua capacidade de sobrevivência perante a crescente industrialização de outros centros de produção. A defesa da sua qualidade com base no pressuposto de que, por ser manual, era superior ao mecânico, não resiste à mínima análise, pois os bordados mecânicos revelavam-se idênticos, não sendo facilmente destrinçáveis dos manuais, salvo um ponto mais encorpado no “bordado Madeira”, o que não deixa de ser um pormenor. Acresce ainda que muito do bordado manual apresenta imperfeições de execução. Também o mito da sua originalidade não resiste à análise, pois a maior parte dos desenhos eram enviados pelos importadores e os pontos utilizados são comuns a muitos outros bordados, como o “Richelieu”, “garanitos”, “estrelas abertas” ou “fechadas”, “caseado”, “pesponto”, “cavacas”, “ilhós”, etc., pouco ou nada se tendo inovado nesse campo, com base na alardeada “tradição do bordado Madeira”. A questão assenta assim, essencialmente, no preço da mão de obra, excecionalmente barata (CÂMARA, 2002, 203-221). Bomboto de vimes e bordado. 1936. Arquivo Rui Carita No mesmo caminho se encontram os trabalhos de vime, essencialmente efetuados na área da freguesia da Camacha, mas cujos valores económicos nunca se aproximaram dos do bordado, até porque este se chegou a estender por quase toda a Ilha, enquanto o vime foi pouco mais longe que a Camacha. Estes trabalhos eram construídos a partir dos ramos do vimeiro, salis fragilis, arbusto que se cultiva até uma altitude de cerca de 800 m, em locais húmidos e com abundância de água, quase sempre perto de ribeiras. As tarefas de preparação da planta, embora complexas e utilizando alguma mão de obra, eram compensadas pelo baixo preço da mesma nas freguesias rurais, como era a da Camacha. O tratamento exigia mergulhar as pontas das hastes do vimeiro nas ribeiras, ou em tanques, onde ficava cerca de três meses, para rebentar ou refilar o caule, após o que podia ser descascado. Esta operação era da responsabilidade dos produtores, muitos dos quais estavam na costa norte da Ilha, que assim o vendiam quase sempre já descascado. Após esta operação, o vime era seco ao sol durante cerca de dois meses, após o que era novamente humedecido para poder ser trabalhado. O trabalho de verga é comum em toda a Europa e noutros locais do mundo, como no Oriente, já sendo mencionado na Madeira, nos meados do séc. XVI, por Gaspar Frutuoso. Refere assim o cronista, por interposta pessoa, pois nunca foi à Madeira, que, “nas faldas da serra da banda do Sul”, existia muita giesta, “que é mato baixo, como urzes”, e que dá flor amarela. Era gasto nos fornos e dele se colhia “a verga que esbulham como vime”, de que se fazem “os cestos brancos muito galantes e frescos para servir de mesa, e oferta de batismo, e outras coisas, por serem muito alvos, e limpos”. Por isso se vendiam então para fora da Ilha e do reino de Portugal, porque se faziam “muitas invenções de cestos muito polidos e custosos, armando-se às vezes sobre um dez, e doze diversos, ficando todos” como uma “peça só”. Acrescenta ainda que “para se fazerem mais alvos do que a verga é de sua natureza, ainda que é muito branca, os defumam com enxofre” (FRUTUOSO, 1968, 138). Seriam obras deste género as enviadas para a já mencionada Exposição Universal de Londres de 1852 por José Silvestre Ribeiro, citando-se então “cestos de verga de giestas”. Bomboto de vimes. 1950. Arquivo Rui Carita.   Bomboto de vimes. 1936. Arquivo Rui Carita Refere o Elucidário Madeirense, por certo Carlos Azevedo de Meneses, que se debruçou mais especialmente sobre esta área, que o desenvolvimento e a industrialização deste tipo de trabalhos se ficou a dever a William Hinton (1817-1904), que incentivou alguns trabalhadores a executá-lo, aproveitando as especiais e húmidas condições climáticas do local. Um dos primeiros artífices teria sido António Caldeira, o qual, desmanchando uma cesta importada pela família Hinton, a utilizou como modelo para fazer outra idêntica em vime. No entanto, parece que na freguesia da Camacha já se executavam trabalhos semelhantes em vime por volta de 1812, por certo mais rudes e sem o vime descascado, como a cestaria que se utiliza ainda hoje nas vindimas e para obras várias de construção civil, sobretudo para transporte de pedras e madeiras. As obras de vime tiveram larga utilização na Madeira, fornecendo um género de mobiliário adaptado ao clima um tanto húmido da Madeira, vulgarizando-se nos lugares ao ar livre. Foram ainda o mobiliário de eleição para os visitantes temporários do Funchal, especialmente no inverno, que deste modo mobilavam as suas casas por preços módicos e em conformidade com um certo exotismo apreciado em meados e finais do séc. XIX. O seu fabrico disparou na déc. de 80, com o exponencial aumento da navegação atlântica, sendo vendido por bomboto e acumulando-se nos decks dos grandes paquetes, como é patente em inúmeros registos fotográficos da época, servindo, inclusivamente, de mobiliário de bordo, leve e facilmente transportável. Miss Henriette Wilhelmina Montgomery Cadogan na Quinta da Saudade. 1888. Arquivo Rui Carita. A procura motivada pelo fluxo turístico fez crescer a produção, assim como a população da freguesia da Camacha que se dedicava a este artesanato, mas não criou novas relações de produção, como nos bordados, que melhorassem e favorecessem a atividade com algumas inovações mecânicas. O aparecimento, em 1902, no Funchal, de uma oficina da firma britânica Raleigh C. Payne & C.ª, que chegou a mecanizar alguns segmentos da produção, não teve grande seguimento, sendo o grosso da produção efetuado na Camacha e de modo totalmente manual. A produção envolvia quase toda a população daquela freguesia, incluindo mulheres e crianças, cabendo mesmo a algumas mulheres, as cesteiras, transportar parte da produção à cabeça para o Funchal. Salvo a já referida Raleigh C. Payne & C.ª, as restantes firmas eram essencialmente constituídas por capitais locais, com as oficinas na Camacha e um ou outro escritório no Funchal. A produção ficou assim entregue, até aos meados do séc. XX, aos camponeses camachenses, não tendo havido qualquer intervenção mais especializada que lhes melhorasse a qualidade visual e lhes organizasse a produção. Consultando um catálogo dos inícios do século, dos poucos que foram produzidos nesta área, da firma A. F. Nóbrega & Filho, com escritório no Funchal e “com fábrica na origem, na pitoresca freguesia da Camacha”, constata-se que, embora apresentando uma espantosa coleção de mais de 420 obras de vimes (RODRIGUES, 2000, 3-4), não passam os seus modelos do pitoresco e do engenhoso. As obras de marcenaria na Madeira foram quase contemporâneas do povoamento, tendo tido por base o excecional parque arbóreo encontrado na Ilha. Em 1506, e.g., Valentim Fernandes descrevia a utilização das madeiras da Ilha, fazendo uso, por certo, de informações referentes ao século anterior. Assim, refere que se explorava a madeira de cedro, sendo então possível obter tabuado de sete palmos de largo, ou seja, cerca de 1,5 m, referindo que quase parecia madeira para mastros de navios (Arsenal de S. Tiago). Desta madeira fabricavam-se caixas para casa, mesas e cadeiras, conforme também acrescenta. Os trabalhos de preparação das madeiras são igualmente descritos por Gaspar Frutuoso mais de 70 anos depois, com um muito interessante apontamento sobre o trabalho da serra de água do Faial, também referindo que se exportavam móveis e bufetes. Nos meados do séc. XVII, existem inclusivamente cartas de examinação do mestre das obras reais Bartolomeu João (c. 1590-1658), de 28 de setembro de 1656, registada na Câmara do Funchal, certificando que Filipe Correia fora examinado como mestre de ofício de “marceneiro e ensamblador”, e que o mestre das obras “o achara muito destro e hábil em fazer escrivaninhas e bufetes ao mosaico, guarda-roupas marchetados de ébano”, tal como mosquetes (PEREIRA, 1968, II, 788). Estes trabalhos tiveram assim continuidade nos sécs. XVII e XVIII, então utilizando-se madeiras de outras proveniências, como do Brasil, de que os mais importantes exemplos deverão ser o para-vento e os púlpitos, assim como os vários móveis de parede da sacristia da igreja do Colégio dos Jesuítas do Funchal, trabalho efetuado pela mesma data, como consta no para-vento: 1725. Na continuidade desse trabalho, na listagem dos produtos enviados para a Exposição Universal de Londres por José Silvestre Ribeiro, nas “Obras de marcenaria”, figuram mesas, caixas, tabuleiros de xadrez, estantes e facas para cortar papel (FREITAS, 1852, 404-407), não sendo fácil identificar os trabalhos e os artesãos. É provável que uma das peças enviadas a Londres tenha sido a garrafeira de José António de Sousa, que assinava também como “artista madeirense”, a qual se encontra na coleção do Museu Quinta das Cruzes, e que esteve na exposição de 1850 realizada no palácio de S. Lourenço, onde o ensamblador premiado foi António José de Abreu. Outros nomes de embutidores ou ensambladores madeirenses aparecem mais tarde, já perto dos finais do século, com a integração destes mestres no ensino profissional, oficialmente por volta de 1893, na então Escola de Desenho Industrial, na R. de Santa Maria, cujo edifício subsiste, com a sua alta torre. O primeiro elemento de certa notoriedade teria sido Manuel Rodrigues Gaspar, com oficina própria junto ao eremitério da Penha de França, mestre da oficina daquela escola. Já então se distinguiam outros mestres embutidores, entre os quais João de Sousa, José Gregório de Sousa e Eduardo Pereira (c. 1860-1940), que se tornaram notórios a partir dessa data. O último criou uma mesa decorada com os monogramas reais, que foi oferecida ao casal real D. Carlos e D. Amélia na visita que fizeram às ilhas em 1901, e depois depositada na Fundação D. Manuel II, em Lisboa. Os temas dos trabalhos de embutidos, tal como acontecia nos bordados, eram essencialmente vocacionados para os visitantes estrangeiros, repetindo até à exaustão pares de vilões a dançar, carrinhos de bois e cestos do Monte, mais ou menos envolvidos por flores e monótonas cercaduras, como refere, por volta de 1906, Vitorino José dos Santos. Refere o mesmo que havia então na Madeira alguns operários e embutidores “por ensino técnico”, dispondo de “talento para a composição artística, que produzem trabalhos de reconhecido merecimento, procurados e apreciados por pessoas entendidas”. Não deixa, no entanto, de mencionar que, em geral, aos “operários madeirenses falta cultura intelectual e gosto artístico”, o que os desinteressa da ideia de “progredir, variando e melhorando a composição dos seus trabalhos”, e, por isso, a maioria dos embutidos continua “rotineiramente a apresentar-se segundo os mesmos modelos”, quase sempre figurando os tradicionais “vilões madeirenses”, os carros de bois, redes e “carrinhos do Monte”, guarnecidos de “cercaduras de desenhos simétricos e pouco variados” (SANTOS, 1907). Mesa com cabeças de vilºoes. 1930 Miguéis e Franco. Arquivo Rui Carita. O diploma de 4 de setembro de 1916 determinou a oficialização da marcenaria na então Escola Industrial e Comercial do Funchal, através da constituição de uma oficina de “incrustação e embutidos”, que só viria a funcionar em outubro de 1919, sendo seu primeiro regente o ensamblador Manuel dos Passos Aguiar, depois medalha de ouro da grande Exposição Industrial Portuguesa de 1939 (PEREIRA, 1968, II, 789). Com este regente, aparecem a trabalhar o já citado Eduardo Pereira, o marceneiro Francisco Franco (pai), cujo diploma se encontra no espólio do Museu Henrique e Francisco Franco, os pintores Henrique Franco (1883-1961) e Alfredo Miguéis (1883-1943), assim como, provavelmente, também o escultor Francisco Franco (1888-1955). Devem datar dessa época os desenhos “arte nova” com cabeças de menino com barrete de vilão, bem ao gosto de Henrique Franco, ou algumas mesas com cabeças de senhoras, indubitavelmente da autoria de Alfredo Miguéis. A saída dos irmãos Franco para Lisboa nos anos 30 e o falecimento de Alfredo Miguéis em 1943 levaram à estagnação criativa desta atividade. A indústria dos embutidos manter-se-ia nas primeiras décadas do séc. XX, mas acusaria algum cansaço nos meados do século. Apesar da introdução do pintor Américo Tavares de Oliveira e Silva, a lecionar na Escola Industrial entre 1945 e 1950, a situação de impasse manteve-se, como é patente pela tentativa de revitalização da então Delegação de Turismo, de 20 de abril de 1948, no sentido de “difundir o gosto pelas artes, ofícios e curiosidades de produção local, reintegrando-os no seu pitoresco e na pureza das suas características” (Id., Ibid., 170), cujos termos enunciados são já de perfeita morte anunciada. Passeio de rede. Pico dos Barcelos. Fotografia sem data. Os meados do séc. XIX assistiram ao nascimento da fotografia, inicialmente tímido, a qual, porém, a partir dos inícios da segunda metade desse século, iniciou a sua progressiva internacionalização e democratização, o que, de certa forma, alteraria e condicionaria, a partir de então, toda a forma de estar das sociedades urbanas. O séc. XIX foi um século ávido da fixação da imagem, primeiro através da litografia, mais ou menos animada a aguarela (Andrew Picken, Frank Dillon, Pitt Springet e Lady Susan Vernon Harcourt), e, depois, da fotografia, também essa muitas vezes igualmente animada, e que fornecia o que se entendia ser a inteira verdade da realidade captada, tão cara ao positivismo. Se, numa primeira fase, os viajantes internacionais adquiriram nos fotógrafos locais as principais imagens da Ilha, como fez o médico Carl Passavant (1854-1887), em 1883, muito provavelmente no estúdio de Augusto Maria Camacho (1838-1927), e, em 1887, o marquês de Albizzi, para depois as passar a gravura e ilustrar os seus “Six mois à Madère”, publicados em Paris em 1888, em breve muitos chegavam à Ilha como fotógrafos amadores, tirando as suas próprias fotografias, como, inclusivamente, o Rei D. Carlos, na visita régia de junho de 1901. Nessa altura, já se encontravam estabelecidos no Funchal os fotógrafos Vicente Gomes da Silva (1827-1906) e já saíra para Lisboa João Francisco Camacho (1833-1898), que passara o atelier ao irmão Augusto Maria Camacho, estúdio onde se viria a instalar, depois, Joaquim Augusto de Sousa (1853-1905), embora sempre se dando como amador, e, ainda, Manuel de Olim Perestrelo (1854-1929), a que se seguiram os filhos, netos, bisnetos e trisnetos. Sé do Funchal. Georges Balat. 1901. Arquivo Rui Carita. A fotografia desempenhou e desempenha um muito especial papel num destino turístico como a Madeira. Primeiro, com a possibilidade de registar a passagem pela Ilha dos inúmeros doentes, dos quais, por vezes, só regressavam a casa as fotografias, mas também as paisagens, de que avidamente os muitos visitantes levavam fotografias, quer como prova de ali terem estado quer como recordação do que ali tinham visto, ou que gostariam de ter visto. A instalação dos estúdios fotográficos e a posterior divulgação das máquinas fotográficas, assim como da indústria das reproduções, associada ainda à divulgação dos correios, criará igualmente uma outra indústria totalmente nova, a do bilhete-postal, que se tornará uma novidade que promoverá a imagem da Madeira um pouco por todo o mundo e dará origem a uma moda de colecionismo romântico excecionalmente importante, que entrará pelos meados do séc. XX; e, no séc. XXI, pela divulgação do digital, aparecem quase todos os dias nos diversos fóruns destas áreas novas fotografias tiradas na ilha da Madeira.   Rui Carita (atualizado a 18.12.2017)

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convento das mercês

Com a prosperidade de algumas famílias madeirenses na segunda metade do séc. XVII, um certo fervor religioso e as necessidades da época de concentração de propriedades nos morgadios, que colocava a maior parte dos elementos femininos numa situação de resguardo social, também a família Berenguer de Leminhana, herdeira de um importante morgado na Calheta, fundou um pequeno recolhimento, em terreno quase anexo ao Convento de S.ta Clara. Este convento, tal como o da Encarnação destinava-se a “donzelas nobres”, havendo assim necessidade de outro, a que, em princípio, tivessem acesso as filhas das restantes famílias. Acrescia ainda que, com o tempo, a não obediência a algumas regras conventuais nesses conventos levantara algumas críticas e apontava também para a necessidade da fundação de um mosteiro de regras mais rígidas. No entanto, muito provavelmente para além de tudo isso teriam estado questões de prestígio social e de afirmação económica por parte da família dos fundadores. Neste quadro nasceu a fundação do que foi inicialmente recolhimento de N.ª Sr.ª das Mercês, em 1654, por Gaspar Berenguer de Andrada (1603-1691) e sua mulher Isabel de França Andrade (c. 1610-1659), senhores do morgado do Lombo do Doutor, fundado por Pedro Berenguer de Leminhana e ao qual se juntara a terça de Rodrigues Annes, “o coxo”, na Ponta do Sol. A ideia inicial era fundar uma capela e só depois se associou a ideia de um recolhimento religioso, dentro de uma regra mais rígida que a regra urbanista de S.ta Clara, e conseguindo-se, nessa sequência, alvará régio a 25 de agosto de 1661, confirmado em 17 de agosto de 1665 pelo Papa Alexandre VII, que elevou assim esta casa a mosteiro da primeira ordem de S.ta Clara, ou da Regra da Terceira Ordem de S. Francisco, de severa e estrita observância, as Capuchinhas, que deste modo se manteve através dos tempos até ao momento da sua extinção, mas prolongando-se depois nos novos mosteiros da mesma regra: o de S.to António do Lombo dos Aguiares e o da Piedade, na Caldeira de Câmara de Lobos, e inclusivamente para os Açores e para o Brasil. A família Berenguer distinguira-se francamente nas terras do Brasil, onde o fundador do Convento estivera na luta contra os Holandeses, encontrando-se esta família ligada, e.g., a João Fernandes Vieira (c. 1613-1681), que se casara com Maria César, filha de Francisco Berenguer de Andrade, tio do fundador do Convento e distinguindo-se igualmente naquelas terras outros membros, como o P.e Agostinho César e os seus irmãos Francisco Berenguer de Andrade e Luísa Berenguer, que se casou com o capitão-mor de Paraíba Manuel Pires Correia. Os instituidores encontravam-se ligados à família Lira e França e esta, por seu lado, também à família de Diogo Fernandes Branco (1583-1644), um dos mais destacados comerciantes da sua época e que se associou a João Fernandes Vieira. Não teriam sido, em princípio, os interesses económicos a presidirem decididamente à ideia de fundação do Convento das Mercês, pois que face à regra por que se optara, não podia possuir bens de raiz, pautando-se toda a sua vida económica por uma enorme austeridade. No entanto, também teriam pesado outros fatores de prestígio e afirmação social, patentes, e.g., nas dificuldades experimentadas logo nos primeiros tempos, inclusivamente, na legalização, pela autoridade eclesiástica, da capela inicial de N.ª Sr.ª das Mercês. As duas filhas de Gaspar de Berenguer e de Isabel de França, Maria e Margarida, e.g., haviam entrado para o Convento de S.ta Clara, onde haviam de professar e, se houvesse um recolhimento de que os Berenguer fossem patronos e instituidores, tal não só não acarretaria especiais encargos económicos, como configuraria outro protagonismo social. A doação do terreno para a capela teve a data de 4 de setembro de 1655 e, perante o projeto e o espaço da propriedade onde se deveria levantar, teria sido o P.e João Ribeiro da companhia de Jesus, primeiro confessor das freiras da Encarnação, a insistir com a doadora para o levantamento também, anexo à capela, de um recolhimento para “donzelas nobres” (NORONHA, 1996, 283). Os alicerces foram abertos a 12 de outubro de 1655, e a 20 do mesmo mês, com a assistência do governador general, Pedro da Silva da Cunha, do reitor do Colégio do Funchal, P.e Manuel Fernandes e demais nobreza local, foi celebrada missa, na qual pregou o cónego e escritor António Veloso de Lira (1616-1691), parente próximo de Gaspar Berenguer, altura em que se benzeu a primeira pedra e que foi colocada pelo governador, o qual mandou depois festejar o ato com salvas de artilharia da fortaleza de São João do Pico. Num curto espaço de tempo as obras iniciais encontravam-se em condições de receber as primeiras recolhidas, o que ocorreu no dia de Corpus Christi, a 15 de junho de 1656. Entraram “sete donzelas de exemplar virtude” (Id., Ibid.), entre as quais a irmã mais nova do fundador, sob o nome de Inês de Jesus, com Isabel da Cruz, Isabel de Jesus, Madalena do Sacramento, Catarina da Paixão, Maria da Encarnação e Isabel de São Francisco, que depois passou para o recolhimento do Bom Jesus da Ribeira. Nos meses seguintes ainda entrariam outras, perfazendo em pouco tempo o número de dezassete recolhidas. O recolhimento, entretanto, mesmo com o apoio, por certo, do Cón. Veloso de Lira, não tendo solicitado autorização ao vigário e provisor do bispado, o cónego e deão Pedro Moreira (c. 1600-1674), que aliás não havia estado no lançamento da primeira pedra, tal como parece não ter estado nenhum membro da comunidade franciscana, embora tenha estado presente o reitor do Colégio dos Jesuítas do Funchal, o que configurava, em princípio uma situação anómala, pelo que conheceu dificuldades de institucionalização pela autoridade eclesiástica. Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898) descreve, nos seus comentários à obra de Gaspar Frutuoso, as dificuldades de autorização levantadas pelo deão do Funchal na instituição do recolhimento da Mercês e na autorização da igreja ter sacrário, que só teriam sido ultrapassadas após um acidente ocorrido com o deão no Mar da Travessa, a caminho do Porto Santo. Segundo a lenda recolhida, provavelmente, nos escritos de um dos confessores do futuro Convento das Mercês, provavelmente o P.e Neto, a embarcação que transportava o Cón. Pedro Moreira ter-se-ia virado e, temendo o pior, o cónego teria evocado N.ª Sr.ª das Mercês, só então percebendo a reserva que estava a colocar à autorização canónica da capela e do recolhimento dos Berenguer. Regressado ao Funchal e aproveitando uma visita que efetuou à igreja matriz de S. Pedro, onde fora beneficiado, resolveu fazer uma visitação às Mercês, a 12 de fevereiro de 1658, autorizando a existência de sacrário na igreja. O deão e vigário geral Pedro Moreira teria ficado muito bem impressionado com o recolhimento, já organizado internamente com uma regente, auxiliada por uma vigária e uma escrivã, prometendo, inclusivamente, tomar as recolhidas “por filhas e súbditas em seu próprio nome e dos futuros bispos da diocese do Funchal” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, 268, 5v.), o que, em princípio era prometer demais, desde que se alcançasse licença do rei para se erigirem em mosteiro e com a regra depois determinada pela Santa Sé. Foi pedida licença a Lisboa para a instituição do mosteiro com o apoio do poderoso deão, o qual parece ter passado a uma grande proximidade da família Berenguer, vindo depois um dos irmãos do Cap. Berenguer a ser integrado no cabido da sé do Funchal, o futuro Cón. Bartolomeu César Berenguer. O pedido dos Berenguer, regente e recolhidas foi acompanhado de idêntico pedido do cabido, da câmara do Funchal, como “câmara da Ilha”, do governador e do provedor da fazenda. A partir de 1660, as recolhidas organizavam-se, inclusivamente, como instituídas em convento de capuchas e respeitando a mais rígida clausura, à semelhança do mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, dentro das normas da primeira regra reformada de S.ta Clara, embora sem terem ainda compromisso canónico. O nome de capuchinhas, quase de imediato, tornou-se uma referência e ficou como topónimo na travessa que passava a norte do futuro convento. O alvará régio emitido a 25 de agosto de 1661, embora só enviado de Lisboa a 20 de dezembro de 1663, fazendo referência ao pedido da Madeira, “por ser obra tão do serviço de Deus, Nosso Senhor e pia devoção dos moradores da Ilha”, ficando o mosteiro como professo na primeira regra de S.ta Clara, “assim como é o mosteiro da Madre de Deus desta cidade de Lisboa”, que também patrocinara a instituição (NORONHA, 1996, 284). Fica por padroeiro e fundador o Cap. Gaspar Berenguer de Andrade, pois, entretanto, já havia falecido Isabel de França. Ao mesmo padroeiro, para si e seus sucessores no padroado, ficavam “dois lugares de freiras para sempre”, estabelecendo-se um quantitativo de vinte e um membros para a comunidade capuchinha, que seria governada pelos prelados do Funchal e, na sua ausência, pelo deão “que ora é” e pelos vigários gerais que se seguirem e, faltando esses, pelas dignidades que se seguirem (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fls. 5v.-6). Em face da chegada do mesmo alvará, a 5 de julho de 1664, o Cap. Berenguer, a regente e as recolhidas solicitavam ao deão Pedro Moreira nova visita ao futuro mosteiro para autorização canónica. A visitação ocorreu a 21 de julho de 1664, depois de consultado o comissário do Convento de S. Francisco, indo o deão acompanhado pelo vigário de S. Pedro, freguesia de quem o futuro convento dependia, e pelo escrivão eclesiástico e de visitações, P.e Francisco da Fonseca. Entraram na igreja de N.ª Sr.ª das Mercês, “a qual achou muito ornada e decente”, por haver nela sacrário “como há, por sua licença”, onde se encerrava o Santíssimo, e no interior do recolhimento, referindo os dormitórios, o coro superior, o parlatório, o refeitório, a cozinha e a cerca, e “as mais partes altas e concernes à clausura das religiosas”. O experiente deão percebeu de imediato as limitações do local para um futuro convento de estrita observância, assunto que atravessará toda a história da instituição, determinando levantar o muro que corria até ao Convento de S.ta Clara, “seis a oito palmos” (cerca de 1,30 m a 1,75 m) e o que ia até às casas do Cap. Cristóvão de Atouguia da Costa, “oito a dez palmos” (entre 2,00 m 2,20 m), “por razão da rocha que está fronteira à cerca” donde se devassava “o serrado” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fls. 5v.-6). Na altura da visitação de junho de 1664, eram superioras do recolhimento a regente M.e Maria dos Prazeres, a vigária da casa, M.e Isabel da Cruz, e a escrivã, M.e Madalena do Sacramento. Nessa altura, assentou-se na necessidade de um confessor, um capelão, um feitor e um servente de fora. Os bens do convento foram determinados concretamente para a manutenção do futuro mosteiro, dotando-o o fundador e seus filhos, o ainda P.e Bartolomeu César Berenguer, José de França Berenguer (1638-1719), futuro patrono e o P.e Gaspar Berenguer de Andrade, dado o falecimento dos três filhos mais velhos, a 1 de julho de 1665, feita na nota do tabelião Manuel Fernandes Silva, perante o deão e as recolhidas, com 14 moios de trigo das suas propriedades na Ponta do Sol, Calheta, Estreito da Calheta e Porto do Moniz. Avaliando-se cada moio em 18$000 réis, dava um total de 252$000 réis, o que correspondia a 630 cruzados anuais, soma bastante avultada para a época. Igualmente se assentou que a sustentação de cada freira seria anualmente de 25 cruzados; do sacerdote-confessor, 40; o capelão e feitor, 40 cada; e o servente de fora, 25. A dotação inicial de instituição da capela havia sido de três moios de trigo anuais, no morgado da Ponta do Sol, a que se somaram depois mais onze para o mosteiro em outras propriedades de várias freguesias, importância bastante significativa para a época e o que viria a criar inúmeros problemas aos descendentes. No testamento do herdeiro, José de França Berenguer, aprovado a 29 de março de 1719, refere-se que o dote feito “a que se obrigava todos os nossos bens quanto bastassem para renderem cento e trinta mil réis” (Ibid., Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 85), pelo que se deduz ter havido posterior alteração à inicial dotação de 250$000 réis, do que se haveriam de queixar depois as freiras. Tal não deixou, no entanto, de motivar futuras disputas entre os herdeiros, tal como entre o deão e o cabido pela superintendência sobre o Convento. Com a chegada do breve apostólico de 17 de agosto de 1665 ao Funchal, a 20 de dezembro do seguinte ano de 1666, comunicado às religiosas o seu conteúdo pelo deão, novamente se procedeu a auto de vistoria, então a 6 de junho de 1667, tendo comparecido a madre regente, Inês de Jesus; a vigária do coro, Catarina da Paixão; as M.es Maria do Sacramento e Isabel de Jesus, porteiras; a M.e Isabel da Cruz, vigária da casa; e a M.e Francisca do Espírito Santo, sacristã. O recolhimento tinha na altura 18 freiras e as preocupações dos visitadores foram para a segurança da clausura: se todas as portas tinham “bons ferrolhos e boas fechaduras”, se as várias grades eram de ferro e “bem fortes para a segurança da clausura interior”, etc. Foram vistos os dois dormitórios, com um total de vinte celas e mais três, da enfermaria, consideradas bastantes (Ibid., Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 14). Face à vistoria positiva do deão Pedro Moreira e do escrivão da câmara eclesiástica Francisco da Fonseca, foi dada autorização para a passagem à fundação do convento, tendo sido escolhida pelo deão em S.ta Clara a nova madre do Convento de N.ª Sr.ª das Mercês, a Ir. Branca de Jesus, filha de João Bettencourt de Freitas e de Isabel Moniz, que ali professara em 1636. Para a fundação foi escolhido o dia de S.to António, 13 de julho de 1666. Estando nesse dia a M.e Ana do Evangelista à porta do Convento de S.ta Clara, da parte de dentro inúmeras freiras e, na de fora, o deão e vigário geral, acompanhado de Fr. Domingos da Assunção, comissário do Convento de S. Francisco e do de S.ta Clara, libertada dos seus votos de obediência à abadessa, “fechada numa cadeira (que são as carroças desta Ilha)”, a mesma frase utilizada anteriormente na fundação do Convento da Encarnação, deslocou-se a nova madre “acompanhada de muito povo” para o Convento das Mercês (Ibid., liv. 14). A nova prelada era esperada à porta do mosteiro, na parte de dentro, pela regente M.e Inês de Jesus e demais irmãs, e entrando o deão na clausura, apresentou-lhes a nova madre “eleita e confirmada por ele”. Após algumas exortações retirou-se, sendo fechada a clausura e levando as irmãs a sua prelada para dentro do Convento, entoando o hino Te Deum Laudamus e “dando graças a Nosso Senhor pela grande mercê que lhes fez”, deu-se início à canónica fundação do mosteiro (APE, cx. 26, doc. 1). A fundação e a construção do Convento das Mercês encontram-se ligadas a várias lendas piedosas. A primeira refere o aparecimento de N.ª Sr.ª das Mercês a Isabel de França ou a “certo religioso, grande servo de Deus” (NORONHA, 1996, 283), a ser assediada por um “esquadrão de demónios, disparando flechas contra ela”, prodígio depois representado num medalhão pintado no teto da igreja (FRUTUOSO, 1873, 592-593) e que estaria na base da fundação da primeira capela. A segunda refere as dificuldades económicas da construção do recolhimento, tendo aparecido a Virgem em sonhos a Isabel de França, dizendo-lhe que fosse ao seu jardim, onde estava uma “pedra de moinho e, junto da mesma outra pedra branca” debaixo da qual tiraria o dinheiro, quanto bastasse para acabar a obra. Assim, teria acontecido e voltando segunda vez, foi pressentida pelo marido, que quando chegou junto da mesma, querendo também continuar a retirar dinheiro “achou carvão” (Id., Ibid.). Outra lenda vinculada ao Mosteiro e propagada pelos cronistas religiosos tenta colar as questões que opuseram o Gov. Francisco de Mascarenhas (c. 1632-c. 1695) a vários nobres e religiosos, e que levaram à grave sedição que depôs o governador, ao facto de – entre outras razões - o mesmo ter tentado parar as obras do Convento das Mercês (Sedição de 1668). A sedição ocorreu a 18 de setembro de 1668 e foi planeada, em princípio, pelo deão Pedro Moreira, envolvendo de início os dois padres Agostinho César Berenguer e Bartolomeu César Berenguer, tio e sobrinho, aos quais aderiu de imediato o Cap. Gaspar César Berenguer, que aproveitou o levantamento e a colaboração do padre para libertar o filho José de França Berenguer, que estava preso em São Lourenço. À sedição associaram-se os frades de S. Francisco, mas não os padres do Colégio do Funchal, até porque a prisão do governador ocorrera quando o mesmo ia visitar a quinta do Pico, contando depois para Roma que teriam ficado incomunicáveis vários meses, por não quererem assinar a representação contra o governador. O Cap. Gaspar Berenguer seria o elemento eleito no Funchal para ir a Lisboa apresentar as razões dos revoltosos e, regressado, informou que as mesmas tinham sido aceites, o que não era verdade. Algum tempo depois apresentava-se no Funchal um novo governador e um juiz desembargador para averiguação do sucedido, arrastando-se o processo por anos, mas não havendo qualquer referência às obras do Convento das Mercês e, ao que parece, praticamente ninguém cumpriu as penas por que foi condenado. A situação económica do Convento nunca foi folgada, embora logo em 1661, tenham as freiras conseguido a isenção da contribuição para as despesas de guerra, constituída por uma maquia de cada alqueire de trigo. Nos anos seguintes queixavam-se ao príncipe regente D. Pedro, da grande pobreza em que viviam pela falta de esmolas dos moradores e dado serem os donativos o seu único património. Com essa exposição obtiveram, em 1676, uma esmola anual de dezasseis mil réis, paga pelos sobejos da alfândega do Funchal, tal como alguns anos depois, em 1715, recebiam nova mercê anual de quarenta mil réis para pagamento do confessor “que lhe ministre o pasto espiritual” (BNP, Reservados, fl. 75v.). A Coroa e os devotos financiavam a manutenção da sacristia, tal como os “hábitos e túnicas”, acrescentando o cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) que, para além do confessor, a Fazenda real também pagava o capelão “que apresenta o ordinário” (NORONHA, 1996, 284), verba que, contudo, não foi possível detetar nos registos da Alfândega. A coroa concedia: em janeiro de 1752, a mercê anual de uma arroba de cera para a festa de S. José, com vencimento de 3 de novembro do ano anterior ano de 1751 e, em de janeiro de 1784, a de mais duas arrobas de cera, com o mesmo vencimento de 3 de novembro, para a festa do Santíssimo e “outras da dita igreja” (BNP, Reservados, fls. 75v.-76). Nos inícios do séc. xix a coroa continuou a apoiar o serviço da sacristia com donativos, instituídos em 1803 e 1819. A sucessão da administração e padroado do Convento foi regulada pelo fundador, pela anterior escritura de 1 de julho de 1665 e por testamento feito em 21 de dezembro de 1686. No entanto, nos finais do séc. XVII, nos inícios de fevereiro de 1697, com mais uma situação de sé vacante, o cabido extrapolava os seus direitos e apoderava-se do controlo e superintendência sobre o Convento, que taxativamente e, segundo se encontrava estabelecido, era do bispo e, na sua ausência, do vigário geral, ou de quem o substituía, citando-se mesmo, que “não ao dito cabido”, mas ao “vigário geral dariam obediência e aceitariam de suas mãos as leis de seu governo”. O pleito subiu à coroa e, enquanto não havia resposta, o cabido acordou em resolução de 5 de fevereiro desse ano de 1697, que as capuchas reconhecessem “a ele Reverendo Cabido por seu prelado” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 3, 61v.-62). Nos anos seguintes foi a vez de se desentender a família dos padroeiros. O neto do padroeiro José de França Berenguer (1638-1720) casara-se com Maria de Castelo Branco, da qual tivera seis filhos. Ao falecer, já o seu filho mais velho, João de Andrade Berenguer (1671-1716), havia falecido, pelo que o pai deixou em testamento o segundo filho, Agostinho César Berenguer e Atouguia, como seu herdeiro, acrescentando: “e a quem nomeio na administração do padroado do Convento de Nossa Senhora das Mercês” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fl. 84). Acontece que o irmão mais velho, João de Andrade Berenguer havia casado com Tomásia de França e Andrade, com a qual teve dois filhos, João de Andrade Berenguer, entretanto falecido em 1716 e Antónia Josefa (1697-1743), casada com Jorge Correia Bettencourt, filho do Ten.-Gen. Inácio de Bettencourt de Vasconcelos (c. 1700-1720) (Tenente-general). Antónia Josefa e Jorge Correia Bettencourt disputaram o padroado do Convento das Mercês com o tio e, tomando posse da Diocese o bispo jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742), a 22 de julho de 1725, ao ter conhecimento da disputa, dentro do seu estilo pessoal mandou recolher toda a documentação do Convento no paço episcopal, afastando do padroado os vários herdeiros do Cap. Gaspar Berenguer e assumindo o controlo de toda a administração. Todos os herdeiros se queixaram do bispo em Lisboa e em Roma, mas o bispo mostrou-se inflexível. Não foi por acaso que um dos grandes opositores ao episcopado de D. Manuel Coutinho tenha sido o Cón. Bartolomeu César de Andrade, que pagou por isso longos períodos de prisão na torre da sé do Funchal. O assunto percorreu todo o séc. XVIII e ainda em 1788, o bispo D. José da Costa Torres (1741-1813) dava conhecimento ao ministro Martinho de Melo e Castro da situação, que muito afetava a vida das religiosas. O assunto só veio a ter desfecho já nos inícios do séc. XIX, por sentença de 19 de abril de 1807, a favor dos descendentes de Antónia Josefa Correia Bettencourt, então Ana Cândida Berenguer de Atouguia Neto casada com Henrique Correia de Vilhena (1769-c. 1830), representante da casa Torre Bela. Quase 100 anos depois, seriam igualmente os Torre Bela a apoiarem os núcleos das freiras do Convento das Mercês, quando em 1910 tiveram de abandonar o edifício e fixarem-se no Sítio da Palmeira e da Torre em Câmara de Lobos. Nos inícios do séc. XVIII, o cronista Henrique Henriques de Noronha descrevia o Convento, começando por elogiar a primeira madre abadessa, M.e Branca de Jesus, que, tendo professado em S.ta Clara na segunda regra, “instruiu na primeira as novas religiosas, de sorte que parecia a aprendera por muitos anos”, numa “destreza e agilidade” que era de admirar. A primeira abadessa recebera “as instruções do seu governo” do mosteiro da Madre de Deus, “daquela observância”, tendo-se tornado uma insigne prelada e nas suas mãos haviam professado 26 noviças, retirando-se no fim da vida para S.ta Clara “para lograr no fim das ações da sua vida a que merecia eterna pelas suas virtudes” (NORONHA, 1996, 284). O edifício do mosteiro tinha então suficientes “cómodos para capuchas”, com todas as oficinas necessárias e alguma extensão de cerca interior, com uma levada de água. A igreja era bem proporcionada e a capela-mor tinha “comungatório” e era dotada com um “vistoso retábulo” de N.ª Sr.ª das Mercês, “obra de Martim Conrado, insigne pintor estrangeiro”, única informação documental que se possui na Ilha sobre este pintor que executou perto de uma dezena de retábulos para a Madeira. O corpo da igreja tinha ainda dois altares colaterais, dedicados a S.ta Maria Madalena e S.ta Catarina de Alexandria, que o cronista apelida de “Santa Catarina Maior”, pinturas hoje na sacristia da matriz de S. Pedro do Funchal, atribuíveis, provavelmente a última, à oficina de António de Oliveira Bernardes (c. 1650-c. 1732). Havia ainda um altar de N.ª Sr.ª da Conceição, com uma “nobre” confraria de sacerdotes, o que era uma originalidade, pois que se encontravam proibidas as confrarias masculinas em conventos femininos. No pavimento da capela-mor estavam sepultados os padroeiros, referindo o cronista Henrique Henriques de Noronha que Isabel de França “cuja vida foi exemplar de virtudes”, acrescentando que “se afirma que apareceu resplandecente” à madre soror Isabel de Jesus, uma das primeiras recolhidas do futuro Convento, “certificando-a que por essa fundação, a aliviara Deus das penas do Purgatório, reduzindo-as a cinco anos somente”. Refere o cronista que se venerava na igreja uma relíquia do mártir S. Faustino, “uma canobla de um braço” (pedaço oco de osso), que fora enviada em 1725 pelo marquês Otaviano Acciauoli, que pertencera à marquesa sua mulher e que lhe foi dada pelo papa Inocêncio XIII, seu tio. Noronha ocupa ainda vários capítulos do seu trabalho com “as virtudes de algumas religiosas deste mosteiro” (Id., Ibid., 285-299), mas que serão eclipsadas posteriormente com as figuras das madres Brites da Paixão (c. 1632-1733) e Virgínia Brites da Paixão (1870-1929), a última, inclusivamente, foi obreira da resistência, manutenção e renascimento desta instituição religiosa na Madeira, de onde viria a irradiar para os Açores e para o Brasil. A vida interna espiritual do Convento das Mercês era muito rígida e não poucas vezes as candidatas não “passavam” no noviciado. Se alguma candidata entrasse sem vocação, as abadessas não descansavam enquanto a mesma não regressasse à família. Conta Henriques de Noronha que logo nos primeiros anos, sendo abadessa a M.e Inês de Jesus, irmã do fundador, sucedeu que entraram sem vocação “certas moças a quem seus parentes quiseram dar aquele estado” (Id., Ibid., 287). A madre, mesmo incorrendo no desagrado do prelado que facilitara a entrada das jovens, procurou convencê-las a sair do mosteiro, tendo conseguido que o deixassem “por sua vontade”. O bispo, segundo o cronista, acabou por pedir desculpa à abadessa. O cronista, no entanto, escrevia de acordo com o pensamento da sua época e foram muitos, com certeza, os casos de vocação perfeitamente forçada. O caso da M.e Isabel Filipa de Santo António, registado no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa de onde dependia o bispado é digno de registo. A freira em questão era filha de uma das mais nobres famílias do Funchal, os Câmara Leme, tendo-se chamado Isabel Filipa Telo de Meneses e Sá e, antes de entrar para o Convento das Mercês, segundo depois declarou ao Cón. Hugo Maguiére, de origem irlandesa, ter-se-ia apaixonado, ainda adolescente, por um indivíduo de condição inferior. Falecidos os pais, a tutela da jovem passou ao irmão mais velho, Jacinto da Câmara Leme que, perante a hipótese de um casamento desigual, negociou com o Convento a sua entrada nas Mercês, onde viria a professar, em princípio obrigada. A M.e Isabel Filipa de Santo António com a revolta que experimentava, praticou os mais desvairados desacatos no Convento, blasfémias, gritos, e até a uma tentativa de homicídio a todas as irmãs em religião, esmagando vidros num almofariz para misturar com a comida, uma sopa de favas, como veio a especificar. Chegadas as coisas a este ponto, entendeu a madre superiora não poder manter a situação nas paredes da instituição, denunciando o caso ao comissário do Santo Oficio, o Cón. Hugo Maguiere, que ouviu a madre em questão que, sem especiais remorsos, se assumiu como responsável pela morte de dois dos seus irmãos, que envenenara. Como, entretanto, na realização do processo tinham disponibilizado à madre os serviços de um advogado, ela decidiu usá-lo para o que verdadeiramente pretendia, e que mais não era que sair do Convento. Nas diligências para satisfazer os desejos da sua cliente, o causídico apelou para o Papa a pedir a dispensa dos votos da M.e Isabel Filipa, alegando que, apesar de já terem decorrido os cinco anos que a lei permitia para a revogação dos votos, a infeliz religiosa nunca dispusera, dentro desse tempo, dos recursos necessários à realização dos trâmites, pelo que tentava, agora, atingir aquele desígnio. Após endosso do papa, o bispo da Diocese, na altura D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), viu-se encarregado de encontrar uma solução para o caso e, apesar de já muito doente, ainda decidiu que a anulação dos votos não seria possível, condenando a freira a pedir à comunidade perdão de joelhos e a ser transferida para outra casa religiosa. Consultando os arquivos do Convento das Mercês, a M.e Isabel Filipa não consta. No entanto, consta a entrada de uma sobrinha sua, Vicência Juliana Câmara Leme Meneses Sá e Acciauoli, em 1760, com 13 anos de idade, poucos anos depois deste processo, filha de Francisco Aurélio da Câmara Leme e de Antónia Maria de Meneses Sá e Acciauoli. O mosteiro de N.ª Sr.ª das Mercês sofreu importantes obras de reconstrução nos meados do séc. XVIII, essencialmente a cargo da fazenda régia, dadas as complexas disputas entre os descendentes dos iniciais padroeiros. Por mandado do conselho da fazenda de 20 de julho de 1746 foi feita mercê de oitocentos mil réis, a favor do dito Convento, “por uma só vez” e pelas sobras das dívidas dos almoxarifes, para se efetuar o conserto dos muros da cerca, do dormitório, casa do noviciado e do coro da igreja (ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 19, fl. 177 v.), ainda havendo, com data de 9 de agosto de 1752, novo mandado do conselho da fazenda de mais quatrocentos mil réis para se acabarem as obras. No final do séc. XVIII e quando as instituições anteriores se tornavam menos rígidas, continuavam as freiras capuchinhas a lutar pelo seu completo isolamento, tendo sempre como principal preocupação, o muro que cercava o Convento. No início de 1782, e.g., o governador determinou uma rigorosa vistoria à cerca do Convento, “a pedido da madre abadessa e demais religiosas”, pois que as grades e a cerca eram devassadas em vários sítios e, o que era pior, “muitas pessoas têm a temerária ousadia de abrir buracos e encostarem escadas e outros instrumentos aos muros da dita casa; para assim poderem ver as procissões e outros atos religiosos em que as mesmas clausuradas se entretêm”. Ora tudo isso era “diametralmente oposto à modéstia e recolhimento daquela clausura” (ABM, Governo Civil, 535, liv. 11), pelo que o Cap. Eng.º José António Vila Vicêncio (c. 1720-1794) procedeu a uma completa inspeção a toda a cerca do Convento, de que elaborou relatório, procedendo-se, de novo a obras pontuais nos muros. O exemplo mais notável de profundo recolhimento e da total entrega a uma vida interior e espiritual foi, muito provavelmente, o da vida da M.e Brites da Paixão (c. 1632-1733). Filha natural do 6.º morgado do Caniço, Aires de Ornelas e Vasconcelos (1620-1689), foi o pai que lhe ofereceu a célebre imagem do Senhor da Paciência com quem a irmã falava como se fosse viva – segundo a tradição dos mosteiros das Mercês, depois de S.to António do Lombo dos Aguiares, para onde a imagem foi transferida –, que levou consigo para a casa paterna, no Lombo dos Aguiares, ao ser expulsa do mosteiro com as suas irmãs, em 1910. Foram-lhe atribuídas inúmeras graças, quer em vida, quer depois da morte, ocorrida em 1929, dedicando-lhe o povo um certo e especial culto, que levou o P.e Fernando Augusto da Silva (1863-1949) a iniciar o seu processo de beatificação, que abriu oficialmente em 2006 e em 2016 ainda corria. Foi com naturalidade que, algumas décadas depois, entrou para o Convento uma humilde rapariga de 17 anos, natural do Lombo dos Aguiares, que haveria de assumir o nome de Virgínia Brites da Paixão (1870-1929), devido ao facto de ser uma grande admiradora das virtudes da madre que ostentara aquele nome, existindo entre ambas muitos factos em comum. Foi com base na sua devoção e na da sua orientadora espiritual que surgiu depois o Convento de S.to António do Lombo dos Aguiares. Em 1834, com a implantação das diretivas do novo governo liberal e no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado, Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecida por “mata frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas, ficando as de religiosas, sujeitas aos respetivos bispos, até à morte da última freira, data do encerramento definitivo. Se para os conventos urbanistas o controlo das entradas e, inclusivamente, de saídas, fora mais ou menos fácil, para os conventos de capuchinhas, no entanto, tal não era fácil, dada a completa clausura ali praticada. Pelo que, embora proibidas de admitir noviças e, igualmente, de efetuarem profissões de fé pela lei de 5 de agosto de 1833, com a complacência, senão aquiescência das autoridades religiosas, continuaram a fazê-lo. As instruções de 31 de janeiro de 1862 determinaram a altura em que oficialmente o Convento passou à posse do Estado, já vindo a ser feitos inventários desde 1858. As autoridades civis, no entanto, ao longo do liberalismo foram mudando a sua posição inicial e perante o respeito popular de que gozava o Convento das Mercês, o mesmo manteve-se ao longo do séc. XIX. A M.e Ana Joaquina das Mercês morre em 26 de março de 1895 e, com a morte da última religiosa professa à data dos decretos de 28 e 30 de maio de 1834, o Convento foi oficialmente extinto. Os bens foram incorporados nos próprios da Fazenda Nacional, procedendo-se de novo à inventariação do Convento da Mercês, em setembro e outubro 1895, data da única planta do extinto convento que se conhece, levantada e desenhada por Joaquim António de Carvalho (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, cx. 2076). Em 2010, Nélson Veríssimo localizou uma aguarela do Convento das Mercês, feita no Funchal, a 18 de setembro de 1877, pelo pintor Edward John Poynter (1836-1919), muito provavelmente da varanda do Reid’s Santa Clara Hotel (Arquitetura do Turismo de Lazer), cujo paradeiro se desconhece. Na data da extinção do Convento, não havia arquivo e somente foi localizada uma pequena caixa de madeira com documentos por classificar. Os arquivos do Convento teriam sido assim já retirados pela Fazenda do Funchal, entre 1858 e 1862, integrando depois o acervo do governo civil e tendo sido, posteriormente, incorporados no arquivo regional. Só depois, a citada caixa, seguiu para Lisboa, para a Torre do Tombo. Dos vários inventários também não consta a célebre imagem do Senhor da Paciência, provavelmente já retirada do Convento pelas irmãs, pois acompanhou a M.e Virgínia da Paixão para o Lombo dos Aguiares e foi entregue ao Convento de S.to António ali instituído. Restavam no Convento da Mercês, à data da morte da M.e Joaquina, 19 professas, todas entradas posteriormente à legislação do primeiro liberalismo, que progressivamente foram requerendo autorização para continuar no Convento, pedido para o qual foram contando com o apoio das autoridades religiosas e civis insulares. A forma mais ou menos legal para a situação foi dada pela lei de 11 de abril de 1901, que autorizou as religiosas a organizarem-se numa Associação de N.ª Sr.ª das Mercês e, embora o Convento se encontrasse extinto, podiam as “associadas” permanecer no antigo edifício. A extinção efetiva do Convento veio a ocorrer com a implantação da República. De forma irrevogável, as pobres freiras foram, na noite de 13 de outubro de 1910, recolhidas em carro fechado e levadas para o andar térreo do Palácio de S. Lourenço, onde “aguardavam ser reclamadas pelas respetivas famílias” como noticiou o Diário de Notícias do dia seguinte (FONTOURA, 2000, 284). A Câmara Municipal do Funchal, logo em novembro desse ano, solicitava a cedência do imóvel para instalação da cadeia civil, sendo elaborado um termo de entrega do mobiliário e da igreja do Convento, algumas alfaias, livros, e outros objetos, ao Mons. João Luís Monteiro (1850-1923), mas os objetos mais valiosos, como eram as pratas da igreja, não fizeram parte da entrega. Parte do espólio de caráter religioso do suprimido Convento foi transferido para o Convento de S.ta Clara, e daí para a igreja matriz de S. Pedro. A transferência da cadeia civil da comarca não se chegou a efetuar e, em 1911, a câmara solicitou a demolição da igreja, sacristia e adro para ampliação da Trav. das Capuchinhas e da R. das Mercês. Em 1915, por pedido do presidente do Instituto de Beneficência Auxílio Maternal do Funchal, Henrique Augusto Rodrigues (1856-1934), coproprietário e fundador do Bazar do Povo e membro destacado do partido republicano, e com a concordância do governador civil, José Vicente de Freitas (1892-1952), foi entregue a este Instituto o que restava do velho e arruinado edifício, pouco depois totalmente demolido. No final do séc. XX, mais precisamente a 8 de setembro de 1998, no seguimento de uma sugestão das irmãs clarissas ao Governo Regional, foi descerrada junto àquela artéria uma pequena peça escultórica, da autoria de Ricardo Velosa, que pretendia evocar o antigo mosteiro de N.ª Sr.ª das Mercês que ali existiu entre 1667 e 1910, com dois baixos-relevos em bronze. Se o edifício do velho Convento das Mercês desapareceu totalmente, o espírito corporizado pelas irmãs manteve-se, mais ou menos recatadamente, como era timbre nestas freiras, que mantiveram, inclusivamente, o hábito nas suas residências de família. Serviu de elo de ligação entre as irmãs a M.e Virgínia Brites da Paixão que, embora residente no Lombo dos Aguiares, passava longos períodos nos vários núcleos residenciais. A madre faleceria em 1929, na residência de família do Lombo dos Aguiares e já não veria renascer o seu convento, desta feita junto da antiga capela de N.ª Sr.ª da Piedade, em Câmara de Lobos, instituído oficialmente em 13 de abril de 1931.     Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

Religiões Sociedade e Comunicação Social

convento de santa clara

A necessidade da instituição de um convento feminino no Funchal foi logo sentida com a consolidação do povoamento, tendo cabido a João Gonçalves da Câmara (1414-1501), segundo capitão donatário do Funchal, a iniciativa da fundação de um Mosteiro de S.ta Clara, não só para recolhimento das suas filhas, como de outras pessoas que desejassem seguir a vida monástica, o que então não se podia fazer no Funchal, por falta de casa destinada a esse fim. A família do 2.º capitão do Funchal assumia-se como a primeira família da Madeira, o que dificultava o casamento dos seus membros na Ilha, pelo que quatro das suas filhas se encontravam por casar. A dificuldade já havia ocorrido com as filhas de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), tendo o Rei D. Afonso V (1432-1481) enviado quatro moços fidalgos do reino para as desposarem. O Convento de S.ta Clara foi autorizado por bula de Sisto IV, Eximiae devotionis affectus, datada de 4 de maio de 1476, que concedia o padroado do futuro convento, ainda não construído, a João Gonçalves da Câmara, a sua mulher Maria de Noronha e aos descendentes. A autorização para ser construído o Mosteiro de S.ta Clara com base na igreja de S.ta Maria de Cima, onde a família Câmara estabelecera o seu panteão, foi recebida na Ilha através de uma carta do duque D. Manuel (1469-1521), datada de 17 de julho de 1488, de acordo com a carta que recebera do Papa. Como, até então, a missa dominical se realizava ora em Conceição de Cima ora em S.ta Maria do Calhau, que era sede única da paróquia da capitania do Funchal, determina o duque na carta de 1488 que, dado que a igreja da Conceição de Cima ia ser integrada no futuro convento, a alternância da missa passasse para a capela camarária de São Sebastião até se construir a “igreja grande” (Arquivo Histórico da Madeira, XVI, 1973, 212-213), que haveria de ser acabada para Sé. As obras do convento ter-se-ão iniciado logo nos anos seguintes, estando o edifício pronto por 1495. Havendo já, para a fundação do convento, nova bula do Papa Alexandre VI, Ex Muinto Nobis, de 29 de março de 1495, transmitida por D. Manuel a 13 de junho de 1496, aguardava-se a ocupação no Natal desse ano. Visto que tanto o capitão como as novas freiras ainda se encontravam no continente, a ocupação do convento ocorreu no domingo de 8 de novembro de 1497, depois da chegada das fundadoras, como escreve Henrique Henriques de Noronha. O 2.º capitão tinha enviado para o convento da Conceição de Beja duas filhas, mas uma faleceu ali, pelo que só regressou D. Isabel de Noronha, a primeira abadessa, cargo que ficou na família. No Funchal, tinha ficado D. Constança de Noronha, encarregada das obras, pois o pai estava fora, que recebeu no Funchal o pai e a irmã, assim como Joana de Albuquerque, Maria de Melo, Maria Passanha e Ana Travaços, freiras vindas do reino, e algumas educandas, que entraram no novo convento, tal como a irmã mais nova, D. Elvira de Noronha, que ficara no Funchal. Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de) deve ter seguido o texto de Gaspar Frutuoso (1522-1591), pois cita a entrada de D. Elvira e de D. Joana, o mesmo fazendo na sua genealogia. Não segue assim o texto de Jerónimo Dias Leite (c. 1537; c. 1593), que refere o falecimento de uma das filhas do capitão do Funchal enviadas para Beja, embora não enuncie o nome, que é confirmado pelo testamento do 2.º capitão do Funchal, de 1499, onde o mesmo refere ter falecido D. Joana de Noronha em Beja e ali se encontrar sepultada. O protagonismo teria sido sempre de D. Constança, que ficara a dirigir as obras e que, por breve do Papa Leão X, Exponi Nobis, de 25 de novembro de 1513, teve autorização de entrar como secular para o convento, vindo a sepultar-se na mesma campa que a irmã, D. Isabel de Noronha, cuja laje se encontra no corredor junto do coro de baixo, e tem a seguinte inscrição: “Aqui jaz Dona Constança de Noronha, que fundou este mosteiro e sua irmã, Dona Isabel, primeira abadessa, filhas do segundo capitão desta ilha”. Esta situação é confirmada em carta do corregedor D. Gaspar Vaz, escrita no Funchal em 20 de maio de 1542, em que comenta que o cargo de abadessa terá sido ocupado, durante as primeiras décadas, por familiares de João Gonçalves da Câmara, visto que a D. Isabel de Noronha terá sucedido a sobrinha, D. Brites de Ataíde, filha de Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530) e da segunda mulher, D. Isabel da Silva. Refere Gaspar Vaz que até então andaram “as abacias de parenta em parenta, todas Noronhas” e que, nesse ano, frei Nuno, visitador e guardião do convento de São Francisco, tinha ordenado nova eleição “e, com suas pregações e bom Regimento”, tinham eleito as freiras uma abadessa, também dessa “linha”, que viera de Portugal, “por nome Aparícia, virtuosa pessoa e para muito” (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 72, doc. 9). Foi devido ao seu prestígio que o padroado dos Câmaras se tornou significativo e se manteve, inclusivamente com os condes e marqueses de Castelo Melhor, pois o direito do padroeiro já não tinha a intensidade que atingira na Idade Média. Este assunto tinha já sido exposto a D. Manuel antes de 1489, respondendo o então duque de Beja a 11 de junho desse ano que, para o futuro convento, “não deveriam entrar estrangeiras, mas filhas e parentes dos principais da terra” (Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVI, 220). Assim, com D. Brites de Ataíde, também tinham entrado as irmãs D. Isabel e D. Maria de Noronha, todas filhas do 3.º capitão do Funchal, em cumprimento das diretivas régias. Com a eleição da madre Aparícia, a situação mantinha-se. A direção das obras deve ter continuado, nos anos seguintes, a cargo de D. Constança, que se manteve como administradora do convento até 1526, ano em que renunciou a favor de sua irmã, a abadessa D. Isabel e devem ter sido dirigidas pelo mestre João Gonçalves, que, até junho de 1503, data em que foi enviado a Lisboa, esteve à frente das obras da nova igreja, cuja coordenação tinha sido do 2.º capitão do Funchal. Não temos quaisquer informações sobre a estruturação do convento nesses anos, limitando-se a planta de Mateus Fernandes (III) (c.1520 – 1597), de 1570, arquivada no Rio de Janeiro, a mencionar: “Mosteiro de freiras posto sobre a ponta duma rocha” (BNB, cart. 1090203) - embora pareça ocupar, nesta representação, um espaço maior que o dos anos seguintes. Gaspar Frutuoso não vai muito mais longe na sua descrição do Funchal, de cerca de 1590: “mosteiro de freiras da observância, de grandes rendas e maiores virtudes”, dando a indicação de que teria 70 religiosas, das quais eram “sessenta de véu preto”, ou seja, professas, voltando a referir estar “sobre uma rocha muito forte, muito murado”, com boas vistas para o mar e poucas para terra, por os muros serem altos e de pedra e cal, “ainda que não é muito grande cerca” (FRUTUOSO, 1968, 115). Pelos edifícios existentes no início do séc. XXI, tudo leva a crer que a igreja já tinha avantajadas dimensões, tendo-se aproveitado a anterior pequena capela da Conceição de Cima para capela-mor da futura igreja, local onde foram enterrados os dois primeiros capitães. Terá sido deslocada, provavelmente, a porta da capela inicial, o elemento mais antigo de todo o conjunto, cujo portal de mármore é datável entre 1450 e 1460, e foi do continente, provavelmente das oficinas da área de Sintra ou Pero Pinheiro. Também deve ter sido deslocado o túmulo de Martim Mendes de Vasconcelos (c. 1420-1493), genro de Zarco, que será provavelmente anterior às obras do convento, tendo sido adossado na parede dos dois coros do futuro convento. Os chãos de ambos os coros possuem azulejos mudéjares de Sevilha, datáveis dos finais do séc. XV aos inícios do XVI, e, não parecendo obra facilmente desmontável, teriam sido dos primeiros do futuro convento. Das obras de 1490 a 1495, são também a arcaria dos claustros, de um gótico algo arcaico, mas elegante, uma série de pequenas portas de arco apontado, de acesso ao coro de baixo e à torre, e o piso inferior dos claustros e o superior, de acesso ao bloco de dormitórios para nascente que foi reformulado nos séculos seguintes. Contemporânea dessa fase das obras foi também a torre do convento, dos sécs. XVII e XVIII, tendo sobrevivido apenas a base da mesma, com portas góticas e larga estrutura de pedra aparelhada, com várias marcas de canteiro. Alguns anos depois, temos referência a alguma imponência ou altura desta construção, pois que, segundo escreve Gaspar Frutuoso, tendo os corsários franceses cercado o convento, a 3 de outubro de 1566, o defendeu Sebastião Mendes que ali tinha uma filha, tendo inclusivamente, a partir do campanário, derrubado com um tiro de arcabuz um francês que tentara subir o muro do edifício. Julgando estar o convento guarnecido por “gente de guerra”, os franceses afastaram-se para atacarem a fortaleza do Funchal, permitindo a saída das freiras para o Curral, “com cruz alevantada, sem impedimento de pessoa alguma” e levando consigo o guardião franciscano frei Baltazar Curado (Id., Ibid., 329-330). Dos primeiros anos de funcionamento do convento, se não de mesmo antes, será o cadeiral do coro de cima, dotado de um conjunto de cadeiras muito simples e austeras, separadas por colunelos oitavados, com pequenos capitéis e bases ressalvadas e trabalhadas (Cadeirais). As cadeiras são dotadas de misericórdias, para aliviar os longos tempos de oração e canto de pé, com pequeno espaldar e remate ressalvado sobre as costas, assentes no que deve ser o estrado original e com o chão revestido a azulejos mudéjares de base relevada, a chacota, com vidrado de óxido de cobre. A decoração do chão do coro de baixo é mais variada, utilizando já azulejos de aresta e corda seca, provavelmente nem todos de Sevilha, mas de outras oficinas mudéjares da Andaluzia, com várias cores de vidrado, pequenas losetas e tijoleira (Azulejaria). O Cap. João Gonçalves da Câmara, por escritura de 11 de setembro de 1480, comprara a Rui Teixeira e Branca Ferreira, moradores no Campanário, a propriedade do Curral, pela importância de 23$500 réis “de cinco ceitis ao real” e 50 cruzados de oiro, cuja área era desde o Passo da Cruz e Ribeira dos Socorridos “até onde ela nasce, de arrife a arrife, de uma a outra banda” (ANTT, Convento de S.ta Clara…, liv. 11, 63, liv. 18, 173). Como o convento foi fundado dentro da regra urbanista, ou segunda regra de S.ta Clara, que previa a existência de propriedades, foi com este prédio rústico, o mais vasto e importante que este convento chegou a possuir, que o fundador dotou o Mosteiro por ocasião de nele serem admitidas as suas filhas como religiosas. Pouco depois, toda esta área deixava de ser somente o Curral, para passar a ser o Curral das Freiras, especialmente depois da célebre fuga das religiosas em outubro de 1566. Pela edificação e proteção económica do Mosteiro também se interessou D. Manuel que, em alvará de 13 de julho de 1496, concedeu às freiras autorização para terem bens de raiz até ao valor de 200.000 réis, tanto em terras compradas, como provenientes de doações. O Convento de S.ta Clara obteve ainda dispensa de pagamento de foro das suas propriedades, ao qual, na altura, todos os conventos estavam obrigados durante um ano, e, por outro alvará de 4 de janeiro de 1512, o privilégio de poder ter uma pessoa leiga de fora com poderes para penhorar, executar e constranger os seus caseiros. As freiras voltaram a ter privilégio para possuir bens de raiz por alvará de D. Sebastião, de 7 de março de 1566. O convento gozava ainda de privilégios gerais, concedidos por D. Afonso V em 2 de abril de 1459, em que se isentava os Franciscanos do pagamento de fintas, taxas e tributos, como era a sisa e a dízima, “portagem costumada de peão”, nem de vinho, carne e pescado. O longo documento de isenção refere ainda tudo o que comprassem para seus mantimentos, “para seus vestidos e necessidades”, materiais que comprassem para reparação de seus mosteiros e casas, assim como pedra, cal, areia, madeira, pregadura, tabuado, cavalgaduras e animais de carga, “com seus aparelhos, que para servidão comprarem”, “posto que os tornem a vender”, etc. O mesmo se passava na área da alimentação “e coisas que sejam dadas, deixadas, que eles possuir não possam, e quaisquer joias e ornamentos”, que também comprassem ou lhes vendessem para os serviços divinos, assim como vestimentas, capas, livros, imagens e quaisquer outras coisas “que para isso pertencerem” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Avulsos, mç. 1, doc. 4). Desde os finais do séc. XV que as propriedades do convento foram crescendo, espalhando-se por toda a Ilha, especialmente na capitania do Funchal: arredores da cidade, Câmara de Lobos, Estreito de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Campanário, etc. Dada a diversidade de dimensões e os contratos que implicavam a sua exploração, houve que constituir um cartório próprio para fazer face aos problemas de organização e administração com os contratos e o pagamento de rendas, que iam desde dinheiro a géneros, pagos por centenas de foreiros, colonos ou simples arrendatários. O arquivo e cartório do Convento de S.ta Clara do Funchal é testemunho da grande empresa económica e agrícola que as freiras constituíram, tendo sido organizado, a partir dos meados do século XVII, por Sebastião de Teive. Ao longo do séc. XVII, as freiras negociaram em propriedades, vendendo, e.g., parte das propriedades que possuíam em São Vicente numa tentativa de concentrar os seus bens no sul da Ilha. Possuíam então prédios urbanos, moinhos e engenhos, mas também quintas e serrados, serras de água, etc. Funcionando como uma verdadeira empresa, chegaram a armar navios para o Brasil e a emprestar dinheiro a juros de 5 %. Um dos problemas com que se debateram nos inícios do séc. XVI foi o da água, rapidamente resolvido. O Convento herdara uma propriedade na Fundoa em São Roque, que pertencera a D. João de Noronha, com duas fontes, de que tomou posse a 13 de agosto de 1524. A 3 de janeiro de 1527, as freiras assinaram um contrato com o mestre Gomes Annes, da Ponta do Sol, e com o bacharel Lopo Dias, para a construção de um aqueduto no Pico dos Frias - “um cano de pedra e cal com alcatruzes” -, cedendo, em contrapartida, dois lugares no convento para as filhas do bacharel e outros dois para as do mestre. A 25 de outubro de 1578, haveriam de vender 2/3 da água do aqueduto aos irmãos Francisco, Gaspar e Diogo Frias, coproprietários da quinta com esse nome na base do pico que ficou, algum tempo depois, como Pico dos Frias, tendo sido com essa serventia que, por novo contrato, os irmãos Frias venderam aos padres da companhia de Jesus (Colégio dos Jesuítas), a 30 de julho de 1600, a quinta em questão. A partir de 1600, os padres ampliaram o aqueduto, onde quase podia passar um homem acocorado, trazendo a água de nova captação na Fundoa e levando-a até ao Colégio, no centro do Funchal. Embora o contrato salvaguardasse a água do convento, várias vezes houve interrupções do fornecimento, chegando as freiras a queixar-se, em 1664, de se encontrarem muito prejudicadas “nos lucros cessantes” dos doces e conservas que deixaram de fabricar por falta de água, e no que tinham “as suas negociações” (ANTT, Convento de S.ta Clara…, avulsos, livs. 11 e 16). Os cortes de água chegaram a levar as freiras a abandonar a clausura para se irem queixar ao Funchal, que era o desvio mais grave de disciplina de uma casa monástica. O insólito foi registado em versos gongóricos por António de Carvalhal Esmeraldo de Atouguia e Câmara (1662-1731), na Cítara de Aónio, e levou à intervenção régia, em 1712 e 1721, atribuindo-se a sua fiscalização ao provedor da Fazenda, através da nomeação de olheiros “para semanalmente visitarem o dito cano” (BNP, reservados, cód. 8391, 1775, 75-75v.). Os problemas da água, no entanto, manter-se-iam no século seguinte, especialmente quando o aqueduto passou para a administração régia, com o confisco dos bens dos Jesuítas. Este aqueduto encontra-se na base de várias lendas locais, contando-se que por ele comunicavam ilicitamente os padres jesuítas com as freiras de S.ta Clara, lendas depois ampliadas também aos Franciscanos, não contando, claro, com a quase impossibilidade de vencer por túnel o desnível entre o centro do Funchal e a ponta alcantilada de rocha onde se construiu o convento das clarissas. A comunidade foi constituída inicialmente para um número reduzido de freiras, que foi aumentando, tendo chegado, nos fins do séc. XVI, a mais de 100 religiosas, como regista o “Recenseamento dos fogos, almas, etc.” tirado pelos “róis de confissões” de 1598 (BGUC, manuscritos, cód. 210, 1598). Entre 1602 e 1677, entraram 173 noviças, pelo que, por 1720, o número de professas tinha aumentado para bastante mais de 100. Acresce ainda a este número, pelo menos, igual número de noviças, recolhidas leigas, servas, escravas e pessoal externo, onde se incluía um almocreve, um tabelião e outro pessoal. Face ao aumento do número de religiosas, fruto da prosperidade atingida pelas famílias terra-tenentes com a exportação do vinho, conseguindo assim verbas para os avultados dotes de entrada no convento, as freiras abalançaram-se a importantes obras, reformulando toda a igreja, mandando fazer um monumental sacrário de prata (Sacrários) e construindo várias capelas. O dote de entrada era, no início do séc. XVII, de 200$000 réis, além de mais 1$000 para alimentos durante o noviciado e propinas, sendo aumentado, em 1703, para 600$000 réis. A vida de uma candidata começava por um contrato que definia as condições da sua entrada no convento, o valor do dote, etc., sendo ainda necessário um breve do Papa e uma patente do provincial. Após o noviciado, para o qual as candidatas respondiam a uma série de perguntas, de que se elaborava auto e que ficava registado no Livro de Auto de Perguntas, seguia-se o estágio e a profissão, cerimónia que se fazia junto à grade do coro baixo, na presença do bispo ou de um seu representante, do escrivão da câmara eclesiástica e outras testemunhas, como o capelão do convento e o confessor da futura professa. A vida interna do convento complicou-se de alguma forma na segunda metade do séc. XVII com o estabelecimento da custódia de São Tiago Menor, pois ficou na dependência da mesma e o seu provincial a presidir ao capítulo que efetuava a eleição das abadessas, quase todas dos vários ramos da família Câmara. Passou assim a haver continuamente queixas ao bispo da interferência dos padres de S. Francisco nas eleições do Convento de S.ta Clara. Depois da eleição da abadessa procedia-se à eleição dos diversos cargos do convento: vigária da casa, escrivã, porteira-mor, segunda e da campainha, escutas da roda e das grades, assistentes do médico e vigárias de coro. Havia ainda outros cargos não vinculados a eleição, como rodeira-mor e segunda, mestra de noviças, mestra das confissões, sacristã, enfermeira-mor, escrivã e ajudante da escrivã, administradora do serrado ou cerca do convento, regente, saleira, forneira, azeiteira, provisora e duas discretas, que assistiam aos contratos efetuados junto da roda. As chamadas religiosas de véu preto, i.e., as freiras professas eram semanalmente chamadas a capítulo, para se tomarem as decisões mais importantes, que implicavam os assuntos gerais de património do convento e que só podiam ser tomadas por esse órgão colegial. De três em três meses, a madre abadessa dava ainda conta ao capítulo dos gastos e das receitas internas, que eram anualmente presentes ao bispo, ou ao seu representante, para aprovação. Entre os finais do séc. XVI e os inícios do XVII, foram os coros dotados de altares, cujas tábuas pintadas e as esculturas vieram de Lisboa, revestindo-se as paredes do coro de cima com azulejos pseudoenxaquetados que, dada a sua existência em várias igrejas da região e não se conhecerem exemplares no continente, devem ter sido uma encomenda da Fazenda Régia do Funchal. Entre 1620 e 1630, as freiras encomendaram em Lisboa novos azulejos policromos. No entanto, aquando da sua chegada ao Funchal, as imagens de figuras seminuas de inspiração indiana (nagas ou najiras) não teriam recebido a melhor aceitação, acabando por ser colocados depois como barras e remates junto da sanca superior da nave da igreja, a cerca de 10 m de altura. Das mais de 10 capelas desta época, subsistiu a de S. Gonçalo de Amarante, montada entre 1640 e 1660, onde poderia ter havido uma capela anterior, pois restou no chão um pequeno painel de azulejos de majólica, em princípio de produção nacional e datáveis dos últimos anos do séc. XVI. O retábulo de S. Gonçalo foi pintado por Martim Conrado, sendo a talha da oficina talha de Manuel Pereira (c. 1600-1679) e os azulejos da parede de uma oficina de Lisboa, datáveis de 1640 a 1660. De capelas anteriores, restaram os retábulos da Natividade, depois remontado na portaria, com um conjunto heterogéneo de pinturas das primeiras décadas do séc. XVII, e de S.to António, com a pintura central de uma boa oficina portuguesa e o pormenor quase insólito de apresentar os panos laterais pintados, pelo que parece ser uma oficina luso-oriental. Nos claustros, subsistiu a capela da Ressurreição, montada entre os finais do séc. XVII e os inícios do XVIII, com as paredes totalmente revestidas a azulejos de padrão camélia, datáveis de 1680, sensivelmente, mas a enquadrarem uma tela de Nossa Senhora da Candelária, das oficinas de Tenerife, nas Canárias, muito provavelmente já dos meados do séc. XVIII. Pelos anos de 1660 a 1667, quando se fizeram obras nos coros, foram as paredes da igreja totalmente revestidas por azulejos das oficinas de Lisboa com os padrões em voga nos conventos das clarissas dessa época. Foram aplicados, assim, azulejos do chamado padrão de S.ta Clara, porque presente em inúmeras igrejas dos conventos de clarissas, com pequenas variantes, embora também apareçam noutras igrejas, e o padrão Marvila, o mais complexo padrão de azulejos de tapete da segunda metade do séc. XVII, constituído por 12 azulejos diferentes (padrão de 12 x 12), demonstrando bem as potencialidades económicas do Convento de S.ta Clara do Funchal nesses anos. Por esta altura, também iniciaram as freiras de S.ta Clara um peditório para a feitura de um monumental sacrário de prata. Tudo leva a crer que a primeira encomenda foi feita ao prateiro José Dias de Araújo, que recebeu idêntica encomenda da Confraria do Santíssimo da Sé do Funchal e que, nos inícios de 1658, fugiu para o Brasil com a prata, de que muito se queixaram as freiras e os confrades da Sé. As freiras voltaram a fazer um peditório, tendo o trabalho sido entregue, em 1666, ao já velho prateiro e ourives Simão Lopes (c. 1610-1669). Como o trabalho não avançava e temendo que pudesse acontecer outro desvio, optaram por entregar o trabalho a uma equipa constituída pelos ourives António Neto (c. 1630-1707), António Araújo Feio (c. 1630-1706) e António Soares (c. 1650-1725). O sacrário foi dado por terminado a 12 de agosto de 1671, altura em que se encontrava enquadrado por talha do imaginário Manuel Pereira, com o qual trabalhara um marceneiro francês não identificado. O montante de toda a obra orçou em mais de um conto de réis. Perto dos finais do séc. XVII, visitava o Convento de S.ta Clara o depois célebre médico e naturalista inglês Hans Sloane (1660-1753), que recolheria pelo mundo uma série de curiosidades que viriam a constituir o núcleo inicial do Museu Britânico, em Londres. Em viagem para as Índias Ocidentais, na companhia do duque de Albmarle, ancorou a 21 de outubro de 1687 no Funchal e, embora só estivesse na cidade três dias, como médico já conhecido e tendo, inclusivamente já estado na Madeira, foi convidado pelo cônsul a ir a terra e, pela madre abadessa de S.ta Clara para se deslocar ao convento para ver algumas freiras que estavam doentes. Escreveria este médico inglês que as freiras “sofriam de clorose, muitas delas devido à vida solitária, melancólica, sedentária e falta de exercício”, e que, depois de as consultar, se deliciara com uma bela refeição de frutas e compotas; e acrescenta então que “os doces e a mobília do quarto tinham sido feitos pelas próprias freiras. Até agora, quer as compotas, quer o mobiliário, nunca vi coisas tão boas” (ARAGÃO, 1981, 162-163). A opinião não deve ser levada à letra, salvo nas compotas, pois não cremos que as freiras executassem trabalhos de marcenaria e carpintaria. Mas tudo leva a crer que no Convento de S.ta Clara haveria uma oficina de marcenaria, onde por certo não trabalhariam as freiras, ainda que os arranjos finais, provavelmente de douramento e pintura, pudessem ser feitos por elas. Acresce que a opinião de um especialista e colecionador internacional como Hans Sloane, depois elevado a barão e membro da Royal Society, onde sucedeu como presidente a Isaac Newton (1643-1727), segundo a qual nunca vira “coisas tão boas”, é um elogio indubitavelmente a ter em linha de conta. Nos inícios do séc. XVIII, o número de religiosas subia para 170, sendo 70 supranumerárias, muitas das quais não eram professas nem tinham feito votos. A comunidade albergava ainda mais de 100 criadas, a que recorriam várias religiosas para seu serviço privativo, repartindo-se por 12 dormitórios, o que numa casa de vida apertada e austera, como deveria ser um mosteiro, constituía um abuso. Havia então em S.ta Clara 17 capelas, uma das quais exterior; eram elas: da Ascensão do Senhor (no claustro), da Porciúncula, da Ressureição do Bom Jesus, do Sacramento (que era no claustro e de que ficaram as portadas), da Assunção (coro de cima?), da Senhora, da Senhora do Rosário, de Belém, da Encarnação (na portaria), do Desterro, da Conceição da Senhora, de S. José (de que só ficou a imagem), de S. Francisco, de S.ta Clara, de S. João, de S.to António (cujo altar passou para o coro de baixo) e de S. Gonçalo de Amarante. Neste elenco, não parece entrar o altar do Calvário ou da Piedade, no coro de baixo, nem o do Ecce Homo, no coro de cima. Também não é referida por Henrique Henriques de Noronha a capela de Nossa Senhora da Piedade, levantada nos meados do séc. XVII por Duarte Pestana e onde foi sepultada sua filha Beatriz Pestana, na “ilharga da igreja da banda da rua” (ANTT, Convento de S.ta Clara…, liv. 18, p. 172), indicação de que só terá sido incluída no convento depois de 1720, constituindo a sacristia, mas mantendo a laje sepulcral de Beatriz Pestana. Henrique Henriques de Noronha descreve a igreja de S.ta Clara quase como era conhecida nos começos do séc. XXI, embora com mais altares. Existiam então na nave os altares dos Reis Magos, de S.ta Clara, de S.ta Ana, de Nossa Senhora da Piedade e de S.ta Quitéria, parecendo que na reforma de 1770 a 1790, altura em que ali teria trabalhado a equipa do mestre Estêvão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), alguns dos altares passaram a outra evocação, pois desapareceu o de S.ta Clara e o de S.ta Ana, passando a haver um de S. José e outro de S.to António. Sobre a capela-mor refere a “gradinhola para as comunhões, na forma em que dispõe o Cerimonial Romano”, e as lajes tumulares dos capitães do Funchal, referindo a não existência da laje do 4.º capitão, João Gonçalves da Câmara III (1489-1530), embora o Nobiliário Genealógico o dê como ali enterrado (NORONHA, 1948, 112). Nesta descrição, salvaguarda que, como faleceu de peste, “ou não se lhe assinalou a sepultura, ou se lhe deu em outra parte, como era costume fazer-se aos que faleciam deste mal” (Id., Ibid., 265). Regista que aos pés da sepultura do 3.º capitão se encontrava a de seu neto, o 1.º conde da Calheta (1512-1580), com o lapso de escrever que faleceu em Lisboa, quando de facto, faleceu no Funchal. O curioso é que, depois, o 1.º conde da Calheta teria passado para a sepultura do avô, ou vice-versa, como já regista o Elucidário. Esta obra informa que, em março de 1919, tendo-se levantado o tabuado, se descobriu, do lado da epístola, a laje em questão, referente à sepultura dos dois, com duas linhas intermédias da inscrição raspadas, acrescentando: “de cuja circunstância não sabemos dar cabal explicação” (SILVA e MENESES, 1998, I, 209). Em 1748, a cidade do Funchal sofreu um forte terramoto e, numa primeira fase, incrementou-se uma série de devoções incentivadas pelo bispo franciscano D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), de que resultou, em S.ta Clara, a fundação da Confraria das Escravas de Nossa Senhora do Monte, entre 1750 e 1751; esta parece não ter tido especial continuidade, não havendo referências à existência de confrarias no Convento de S.ta Clara, visto que, logicamente, o mesmo já funcionava como uma irmandade. Entre 1765 e 1769, as freiras possuíam um total de 105 propriedades, que rendiam entre 9 e 10 contos de réis. Recebiam, ainda, pelo aluguer de várias casas, quase mais 20 contos, bem como 130 foros, pagos em trigo, que rendiam 19 moios e 15 alqueires, no valor de mais 500 réis, e ainda outro tanto de foros pagos em dinheiro. Os juros, a 5 %, do capital que tinham emprestado ultrapassavam um conto de réis. Estes anos, no entanto, representaram uma nova fase de relação entre as instituições religiosas e o poder centralizador da Coroa e do bispado do Funchal, restringindo-se, a partir de 16 de julho 1764, as entradas de noviças nos conventos e passando a haver um completo controlo sobre os seus rendimentos. Periodicamente, passaram a ser enviados pelo governador mapas com a relação das religiosas, anotando o que se dava diariamente a cada uma, tal como o rendimento e as despesas da comunidade. Com a passagem dos bens dos Jesuítas para a Fazenda Real e algum vazio de poder no controlo dos mesmos bens, veio a apropriar-se da água do aqueduto o morgado António João Correia Bettencourt, que a desviou para a sua Qt. da Achada. A questão levou a queixas das freiras e à intervenção do corregedor Francisco Moreira de Matos, em 1770, a favor das mesmas, a quem de direito pertencia a propriedade de 1/3 das águas em questão. Dada a origem nobre da maior parte das freiras de S.ta Clara, a sua posição foi quase sempre levada em linha de conta, não se escusando, por exemplo, o governador a determinar ao juiz pedâneo de Câmara de Lobos, em 1781, que, sempre que houvesse peixe para vender, se deveria guardar uma parte para as irmãs de S.ta Clara. Com efeito, a vida da maior parte das instituições madeirenses debatia-se com dificuldades na aquisição de peixe, mas tal não parece acontecer com este Convento, embora poucas vezes fosse possível localizar a origem do pescado. As contas anuais do convento, repartidas por quartéis, abrem sempre com a indicação do número de dias e a descriminação dos “dias de peixe” e de carne, indicados como “de vaca”. No primeiro quartel da vigência da madre Antónia Caetana de Santa Teresa, e.g., de maio a agosto de 1783 – as eleições eram sempre a 19 de maio, pelo que a marcação da vigência de uma nova abadessa começava nesse mês –, “houve noventa e dois dias, trinta e três de peixe, sessenta e três de vaca e seis providos” (de jejum?). As freiras adquiriram então peixe fresco, incluindo bacalhau e arenques, sendo estes últimos essencialmente para as serviçais e os moços de recados. Ao longo do século, também aparece a aquisição de sardinha e salmão (fumado?), embora este último quase desapareça nos finais do séc. XVIII. Saliente-se que as aquisições de peixe são essencialmente para os dias normais, pois para os inúmeros dias de festa as aquisições não referem peixe, mas carne, enchidos, frutas e doces (ANTT, Convento de S.ta Clara…, liv. 53, fls. 7-8). Um dos aspetos mais interessantes dos conventos femininos do Funchal é a indicação da aquisição de tabaco em todos os quartéis do ano, à volta dos 30$000 a 40$000 réis. O tabaco destinava-se a ser “repartido pelas religiosas e demais obrigações” do convento, entendendo-se como tal ofertas aos padres que se deslocavam ao convento, a feitores e outras entidades. A 11 de abril de 1771, registam-se 26$000 réis da aquisição de tabaco, sendo 3 réis despendidos com os padres do enterro da madre Ana Vitória e com o padre diácono, no dia oitavo e na festa de S.ta Maria Madalena (Ibid., liv. 53, fl. 10). Quando havia jejum, paralelamente ao peixe, ou em sua substituição, comiam-se ovos. A par do trigo aparece igualmente o arroz e, em épocas especiais, o cuscuz. Não se encontraram referências ao consumo de inhame por parte dos inúmeros serventes e escravos, o que era normal na Madeira, sendo apenas referido nos finais do século, nem ao de milho pelas freiras. A única referência encontrada de aquisição de milho destinou-se à alimentação dos homens que trabalhavam na cerca do Convento. O centeio também não se destinava às freiras, mas à alimentação da criadagem, servindo para fazer pão de mistura. Entre os vegetais, os mais citados são o agrião, a couve, a fava, a ervilha, o feijão, a lentilha, o nabo e a abóbora, para além de uma série de grãos não especificados. Um dos aspetos mais interessante da cozinha das freiras de S.ta Clara, que por certo não se afastaria muito da cozinha das casas abastadas do Funchal, era a excecional variedade das especiarias, com cravo-da-índia e do Maranhão, pimenta, canela, erva-doce, açafrão, almíscar, cominhos e gengibre, entre outras. Por último, referimos um dos aspetos que celebrizaram os conventos portugueses e que seria mencionado por todos os viajantes estrangeiros, como já em 1687 referira o médico inglês Hans Sloane: os doces e, logicamente, a obesidade geral das freiras. As próprias Constituições e Estatutos recomendavam a distribuição de determinadas iguarias nos principais dias festivos, como Natal, Páscoa e festa da Madre (S.ta Clara), não só às freiras em geral, como aos principais doadores e benfeitores do convento, entre o que se designava por “obrigações da casa” e “obrigações de fora”, que também se encontra no similar convento da Encarnação do Funchal (GOMES, 1995, 130-135). Pela leitura dos livros de receita e despesa de S.ta Clara, apercebemo-nos de imediato de uma maior autonomia deste convento, com muito mais propriedades, logo necessitando de menos aquisições no mercado local. Assim, as freiras recebiam das suas propriedades uma série de “miudezas que vieram para o convento”, como, por exemplo, em 1783: 19 canadas de manteiga; 41 canadas de leite do Curral; 7 sacos de inhame da horta da Calçada, o que até esta data não havia aparecido; 200 peras do foro pago na Calheta; 4 sacos de marmelos da Caldeira; 12 sacos de batatas; 4 sacas de castanhas verdes; 45 alqueires das ditas, secas; 6 alqueires de nozes; 170 abóboras; 370 cabos de cebolas; 4 cestas de alhos; 4 feches de canas da horta da Calçada; e 80 canecas de melado “que se repartiram pelas freiras” (ANTT, Convento de S.ta Clara…, liv. 53, fl. 7), quantitativos e proveniências que se mantêm mais ou menos ao longo do século. As freiras, no entanto, adquiriam ainda muita coisa no mercado local, principalmente para as suas inúmeras festas, fora dos já citados dias de peixe e dias de vaca. Assim, encontramos aquisições de perus, leitões, cabritos e coelhos, para além de aquisições específicas em Lisboa, o que no Convento da Encarnação não acontecia. No citado ano de 1783, veio de Lisboa uma pipa de azeite “com trinta almudes e seis canadas, a dois mil e trezentos réis a canada”, havendo também referência a amêndoa “que se mandou vir de Lisboa”. Ao longo de todos os quadrimestres existem verbas para pão-de-leite e broa para a merenda. Havia ainda festas especiais com manjares específicos: “talhadas de cidra, na eleição da abadessa”, a 19 de maio; carne de porco e de carneiro, a 24 de dezembro; “argolinhas” pelo Natal; “bolo de mel a 6 de janeiro”; “broa pelo São Pedro”; “bolo na festa da Conceição”; “sonhos na entrada do Advento”; etc. Importava-se do Brasil, especificamente, e.g., mel de cana para a confeção do bolo de mel (15 canadas em 1783, a 250 réis cada) e açúcar, posteriormente “purificado” no convento. Com base nestes condimentos se faziam “as obrigações”, como uns “pratinhos de ovos reais, que se deram às freiras no dia de São João”, que também aparecem referidos como oferta para fora (Ibid., livs.36-82). Nos meados do séc. XVIII, o Convento de S.ta Clara ter-se-á fechado um pouco mais sobre si próprio, datando dessa época uma petição inédita: a remoção do carneiro com os despojos de João Gonçalves Zarco, que estava colocado no centro da capela-mor e que, alegaram as freiras, interferia com os seus ofícios religiosos. A petição enviada ao marquês de Castelo Melhor, como representante da família Câmara, instituidora e patrona do convento, teve a data de julho de 1768 e, sendo autorizada, foi a sepultura removida no ano seguinte para o coro de baixo num carneiro em madeira pintada, com a inscrição de ter sido removida a 22 de fevereiro de 1769. Com as restrições advindas da centralização dos meados do século, as freiras não baixaram nunca os braços e foram-se queixando, sucessivamente, da situação em que se encontrava o convento por terem sido extintos os seus bens de raiz, como em 1777, quando solicitaram a revogação da decisão conseguindo manter parte dos mesmos, pois eram o único rendimento que tinham para o seu sustento. Voltavam a escrever à Rainha em 1793, quando o número de religiosas baixara para 63, solicitando a entrada de 17 noviças que assegurassem o prosseguimento da instituição, visto que, nessa data, as freiras eram “quase todas inábeis por idosas, e enfermas”, ficando apenas algumas que se ocupavam dos ofícios religiosos e existindo a necessidade de novas “para continuarem os ofícios divinos e substituírem aquelas”. Afirmaram ainda que o número, na altura da criação do mosteiro, seria de “cem religiosas professas” (o que não era verdade, pois fora de 60), acrescentando que as suas rendas bastavam “para o sustento de mais de oitenta”. A autorização foi concedida, mas a 22 de março de 1796 ainda se não tinha conseguido completar o número de 80 religiosas (Ibid., avulsos, mc. 25, fl. 33). No primeiro quartel do séc. XIX, estava este número reduzido a cerca de 70 e não estariam somente em causa as restrições governamentais, mas todo um outro enquadramento social e económico. O dote com que cada religiosa entrava por ocasião da sua admissão era de 800.000 réis, o dobro que fora no séc. XVII, para além de outras despesas, atingindo aproximadamente um conto de réis, não sendo fácil às pessoas pouco abonadas em meios de fortuna fazer parte desta comunidade religiosa. Neste primeiro quartel do século, voltaria a Madeira a ser ocupada por forças inglesas, face à invasão do território continental por forças francesas e espanholas, instalando-se as mesmas, a partir do dia 25 de dezembro de 1807, conforme fora previsto em Londres, nas fortalezas da baía da cidade, e depois no antigo Colégio dos Jesuítas. O número de forças inglesas, no entanto, era muito superior ao da ocupação de 1801-1802, pelo que houve que procurar outras alternativas, alvitrando-se a cedência do Convento da Encarnação, dadas as poucas freiras que ali viviam, tal como as que subsistiam no Convento de S.ta Clara, onde, entretanto, havia perfeitamente espaço para ambas a comunidades. A 7 de janeiro de 1808, as poucas freiras da Encarnação entraram em S.ta Clara e a abadessa elaborou uma relação das mesmas. Após a ocupação inglesa, em 1814, as freiras da Encarnação regressaram ao seu convento, que os prelados tentavam fechar desde os inícios do séc. XVIII, pois só dava problemas. As autoridades civis e eclesiásticas, tanto de Lisboa como do Funchal, tentaram, por várias vezes, reunir numa só as comunidades de S.ta Clara e da Encarnação, mas nunca conseguiram realizar a projetada reunião dos dois mosteiros, apesar de terem, inclusivamente, obtido um breve pontifício que a autorizava. Com a vigência do governo liberal, em 1834, no âmbito da Reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, e executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837) pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens, ficando as de religiosas sujeitas aos respetivos bispos até à morte da última freira, data do encerramento definitivo. Os bens dos conventos femininos foram sendo progressivamente incorporados na Fazenda Nacional, mas não imediatamente, pois só em 1890, no mês de novembro, por falecimento de Maria Amália do Patrocínio, última sobrevivente, encerrou o convento da ordem urbana de S.ta Clara, embora o edifício tivesse sobrevivido. Os bens do convento, entretanto, também se haviam depreciado. Em 1844, por exemplo, foi pedido ao vigário geral, bispo eleito de Castelo Branco e vigário capitular, o Con. Januário Vicente Camacho (1792-1872), autorização para as freiras de S.ta Clara utilizarem o dinheiro da arca do cabido, num quantitativo de dois contos de réis, dados os grandes atrasos causados em parte pela aluvião de outubro de 1842, que afetara as fazendas do convento, e os diminutos preços dos vinhos, achando-se a mesma comunidade sem meios de sustentar as “religiosas, criadas e mais pensões anexas” à mesma corporação. O vigário geral despachou favoravelmente a petição, “atendendo às circunstâncias extraordinárias” em que se achavam as “vendas do convento”. Existiam então já somente 10 freiras discretas em S.ta Clara: Jerónima do Céu, abadessa, Genoveva Rita do Céu, vigária da casa, Maria Júlia do Espírito Santo, mais digna, Ana Vicência de Santa Rita, madre da Ordem, Maria Eloro Assy, imediata, Margarida Jacinta de Cortona, Francisca Maria das Mercês, Ana Josefa da Natividade e Luzia Cândida das Mercês, discretas, e Carlota Matilde da Conceição, escrivã do convento (ABM, Arquivos particulares, Rui Carita, 1844). Nos anos seguintes, as religiosas do Convento de S.ta Clara, pressionadas pelo governador, José Silvestre Ribeiro, haveriam de participar na célebre grande exposição de Londres, de 1851, que daria origem às exposições universais, ganhando, com as suas “belas flores de penas”, a medalha de prémio na classe 29.ª. As freiras tinham-se especializado, desde os meados do século anterior, neste tipo de trabalhos, sendo registada pelos mais diversos visitantes, ao longo de todo o séc. XIX, a visita quase obrigatória a S.ta Clara e a aquisição desses trabalhos artesanais no chamado turismo romântico. Na ocasião, o periódico O Archivista noticiava que coubera à Madeira “a glória de colher uma palma no pacífico combate da indústria que acabava de pelejar-se no palácio de Cristal” de Londres, informando que haviam concorrido 17.000 expositores e só haviam sido atribuídos 2918 prémios. Registava assim “com a mais viva satisfação” o prémio atribuído às freiras de S.ta Clara “naquele brilhante teatro da indústria”, que fora a exposição realizada em Londres (FREITAS, 1852, 404-407). Os descendentes do fundador, que foram os capitães donatários do Funchal, e depois os condes e marqueses de Castelo Melhor, sempre se consideraram não só como padroeiros desta igreja e do convento, como também os “seus legítimos senhores e proprietários”, pelo que, em outubro de 1867, reivindicaram a posse e propriedade do convento, como também fizeram os Lomelino em relação ao Convento da Piedade de S.ta Cruz, mas o processo não teria sequência. Com o falecimento da última sobrevivente, a madre Maria Amália do Patrocínio, no mês de novembro de 1890, encerrou o convento da ordem urbana de S.ta Clara. Face ao novo ciclo político da época, fortemente dedicado ao novo projeto ultramarino português, por decreto de 12 de março de 1896, era o convento cedido à Congregação das Franciscanas Missionárias de Maria, a fim de ser ali estabelecido um instituto de preparação do pessoal feminino destinado às missões religiosas das antigas colónias portuguesas (SILVA e MENESES, 1998, I, 311), que começou a funcionar ainda nesse ano. Com a implantação da República e o espírito anticlerical desses primeiros anos, logo em finais de 1910 a concessão era cancelada e as irmãs franciscanas abandonavam o convento. Os decretos de 31 de outubro de 1912 e de 22 de setembro de 1913, entretanto, concediam os edifícios à Câmara Municipal do Funchal, à S.ta Casa da Misericórdia e à Associação do Auxílio Maternal, para a instalação de instalações hospitalares e assistenciais, mas cuja efetiva ocupação para esse efeito nunca chegou a acontecer. Entre outras hipóteses, chegou a ser alvitrada pelo então bibliotecário da Câmara do Funchal, Adolfo César de Noronha (1873-1963), nomeado em 11 de dezembro de 1914, a instalação no local de um museu de arte, aproveitando os bens artísticos ali depositados, inclusivamente provenientes do extinto Convento de São Francisco, iniciativa que não contou com o apoio das várias entidades regionais. Como os desígnios dos decretos de 1912 e 1913 não foram preenchidos, o Estado voltou a tomar posse do Mosteiro de S.ta Clara e, alterada a situação política, pelos decretos de 25 de janeiro de 1927 e 12 de junho do mesmo ano, o Ministério das Finanças autorizou a cedência ao Ministério das Colónias das diversas dependências do extinto mosteiro. A direção foi de novo entregue às Franciscanas Missionárias de Maria que, em 1928, voltaram com um objetivo bem determinado: estabelecer uma escola secundária para formar religiosas para enviar às missões do Ultramar e ainda um infantário e ensino primário, chegando a acolher cerca de 400 crianças. Embora encontrassem as instalações muito degradadas e em mau estado de conservação, souberam ultrapassar as dificuldades com a ajuda de vários quadros regionais, em especial de Romano de Santa Clara Gomes (1869-1949), então envolvido nas várias ações dos movimentos católicos insulares. O Convento de S.ta Clara voltara a ser ocupado por religiosas franciscanas, quase na sequência das iniciais ideias que haviam presidido à sua fundação, havia mais de 500 anos, numa adaptação a novas funções e realidades. Alguns anos depois, a 12 de dezembro de 1917, um submarino alemão bombardeou o Funchal, no quadro da Primeira Grande Guerra, em princípio para atingir o centro de comunicações do cabo submarino, na Calç. de S.ta Clara, mas atingindo a igreja, cuja capela-mor ficou parcialmente destruída, tendo ficado ferido o P.e Manuel da Silva Branco, que ali celebrava a Eucaristia, o sacristão e duas mulheres, uma das quais viria a falecer pouco depois. Nos anos seguintes, o retábulo seria restaurado, embora a pintura de Nossa Senhora da Conceição, de Alfredo Miguéis (1883-1943), só viesse a ser reposta em 1930, encontrando-se assinada com data de 1 de maio desse ano. A 26 de setembro de 1940, pelo decreto n.º 30.762, era publicada a classificação da igreja e todas as dependências existentes do antigo Mosteiro de S.ta Clara como monumento nacional. Em 1951, realizava-se nas salas do convento uma exposição de ourivesaria sacra e, em 1954, uma exposição de escultura religiosa; os conteúdos de ambas viriam a ser o acervo do Museu de Arte Sacra do Funchal, inaugurado a 1 de junho de 1955, no antigo paço episcopal. Em 1958, a antiga escola franciscana transformava-se no Colégio Missionário Ultramarino do Funchal, onde se formaram inúmeras religiosas que se deslocaram nos anos seguintes para as missões ultramarinas portuguesas. Na déc. de 50, o colégio missionário obtinha inclusivamente a cedência do forte de São João Batista do Desembarcadouro, em Machico, para colónia de férias. Em 1962, entretanto, um incêndio destruiu duas grandes salas na ala frente à Calç. de S.ta Clara e pátio interior, levando a nova e larga intervenção da Direção-Geral dos Monumentos Nacionais, iniciada nos finais da década de 1940 e inícios de 50. Na déc. de 90, as obras passaram à responsabilidade da Direção dos Assuntos Culturais e, em 1997, a zona envolvente e não construída para sul, incluída na antiga cerca do convento, foi cedida para instalação da secção de azulejos da Casa-Museu Dr. Frederico de Freitas.     Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

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