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jardins

Desde o início da ocupação, a ilha da Madeira tem sido celebrada como um jardim; Cadamosto, em meados do séc. XV não hesitou em afirmar: “ela é toda um jardim e tudo o que nela se aproveita é ouro” (VIEIRA, 2014, 9). Depois os cronistas, como Gaspar Frutuoso ou António Cordeiro, valorizaram esta ideia de jardim, tendo em consideração as flores que se encontravam em quase toda a Ilha. Foi, afinal, a partir desta ideia de jardim do Éden que a Madeira começou a divulgar-se pela Europa, numa dimensão que se tem perpetuado. A todos os que chegavam do mar, a Ilha oferecia um perfume especial, resultado desta profusão de flores e árvores de fruto. Esta ideia estava já patente no séc. XVI e foi documentada por Gaspar Frutuoso, que afirmou: “cria muitas alfaces e boas, e outras muitas maneiras de hortaliça, toda regada com água, como as canas, afora os muitos pomares que tem de fruta de espinho e ricos jardins de ervas cheirosas, em tanto que dizem os mareantes que, mais de dez léguas ao mar, deita esta Ilha de si uma fragrância e um confortativo e suave cheiro, que parece cheirar a flor de laranja. Em muitas partes desta Ilha, há muitas nogueiras e castanheiros, que dão muita noz e castanha, em tanta maneira, que vale o alqueire a três e quatro vinténs e se afirma que se colhe em toda ela de ambas estas frutas de noz e castanha, juntamente cada ano, passante de cem moios; também dão amêndoas, e de tudo carregam bem as árvores” (Id., Ibid., 192). As ideias de paraíso e riqueza estão associadas às ilhas atlânticas, desde a Antiguidade Clássica. Não se sabe o momento em que os povos da bacia mediterrânica se confrontaram com este mundo insular, mas, a partir do séc. VI. A.C., diversos testemunhos evidenciaram a presença de Cartagineses e árabes, que, certamente, antes dos Portugueses, tiveram a oportunidade de descobrir estas riquezas e este paraíso. Esta visão das ilhas atlânticas como paraíso e mansão dos deuses estava ainda presente na memória dos Portugueses que se tinham lançado, em princípios do séc. XV, à descoberta do Atlântico. E continuaria por muito tempo na memória coletiva da metrópole. Desta forma, não será difícil entender a razão desses entusiasmos que acompanharam o encontro da Madeira e de outras ilhas atlânticas. Mas, de todas as ilhas que os Portugueses encontraram, a que mais extasiou os descobridores foi, sem dúvida, a Madeira. A ilha paraíso e a ilha jardim   A Europa partiu, no séc. XV, à procura do Éden bíblico ou descrito na literatura clássica greco-romana. Foi este um dos motivos não só do empenho de Colombo, mas também dos navegadores portugueses. O seu reencontro era encarado como uma conciliação com Deus, o apagar do pecado original de Adão e Eva. Esta imagem perseguiu quase todos os navegadores quinhentistas e deveria estar por detrás do esforço dos que aportaram à Madeira. A recuperação desta imagem aconteceria mais tarde, no séc. XVIII, em que a ilha da Madeira se apresentou como o paraíso redescoberto para o viajante ou tísico ingleses, recuperado e revelado ao cientista, através das recolhas ou da recriação através dos jardins botânicos. A literatura ocidental celebrou a beleza da ilha da Madeira, sendo esta sinónimo de jardim, sob a forma de múltiplos epítetos: “flor do oceano”, “flor das águas”, “ninfa florida”, “primavera imortal”, “pérola do atlântico”, “recanto do paraíso”, “açafate de flores a boiar no atlântico”, “maravilha do mundo”. Não só poetas e escritores, mas também políticos e cientistas não se cansaram de celebrar as flores e os jardins da Ilha. A insistência desta ideia é reveladora da imagem que a Madeira conquistou no Ocidente e do impacto que provocavam os jardins floridos sobre os visitantes estrangeiros que por lá passavam. A presença de forasteiros conduziu a um maior cuidado e a uma valorização do meio. Em 1864, F. T. Valdez afirmava: “São deitadas abaixo fortes e muralhas que para nada servem ao estado e os espaços são transformados em jardins. São tantas as maravilhas que encerra a Madeira, que em verdade quem a vê acreditará por momentos que os jardins de Armida e os Campos Elísios da fábula deveriam ser como esta formosa ilha, chamada por excelência a flor do Oceano” (Id., Ibid., 41). O médico austríaco Karl Scherzer (1821-1903), na narrativa da sua viagem de circum-navegação, descreveu a sua aproximação à Ilha assim: “Deleite e surpresa são as primeiras impressões do Funchal, os seus jardins luxuriantes sorrindo com flores bonitas, e as montanhas cultivadas desde o sopé até ao cume” (FARIA, 2014, 76). Isabella de França, atentando também à beleza, escreveu no seu diário: “Passámos pelo Palheiro do Ferreiro, domínio esplêndido, construído e plantado pelo defunto Conde de Carvalhal [...] agora é um extenso parque, cortado em todas as direções por estradas, entre alamedas viçosas e muitas espécies de árvores [...]. A casa é pequena em comparação com o parque, mas tem à frente jardins com muitas plantas curiosas e grandes tanques com cascatas artificiais, cuja água vem dos montes mais altos em resultado de obras que custaram muito dinheiro” (FRANÇA, 1970, 76). O pintor inglês William B. E. Ranken, ao visitar, em 1936, a Madeira, afirmou: “As flores são outro encanto. Quem vem de Inglaterra encontra aqui flores de extraordinária beleza de perfume e colorido incomparáveis. Os jardins da Madeira têm fama em Inglaterra, mas quem chega aqui recebe sempre uma agradável surpresa” (PEREIRA, 1989, 394). Recorde-se que, em 1931, com a Revolta da Madeira, esta ideia teve repercussão nas diversas notícias que correram os países da Europa, nomeadamente a Inglaterra e França. A 13 de abril de 1933, o diário parisiense Temps anunciava, em primeira página, “a revolução no paraíso”. Desde muito cedo, os jardins madeirenses cativaram a atenção dos visitantes. Aquilo que mais admirava os forasteiros era o facto de a Madeira se apresentar como um paraíso natural de flores, de forma que o odor inebriante das flores se espalhava pelo mar fora e ia ao encontro dos viajantes. Na verdade, a literatura da expansão mostrou a Ilha da Madeira como o paraíso, onde se fundiu o espaço económico da abundância com o espaço bíblico: “O Paraíso que a Bíblia citava devia ser assim”. Segundo Carlos Martins (1909-1985): “A Madeira é a Ilha Afortunada, dos Amores, o Éden”. Para o alemão Johann Baptist von Spix (1781-1826): “Nada é mais encantador que a visão desta Ilha que parece flutuar como um jardim no coração do oceano. São tantas as maravilhas que encerra a Madeira, que, em verdade, quem a vê acreditará por momentos que os jardins de Armida e os Campos Elísios da fábula deveriam ser como esta formosa Ilha, chamada por excelência a flor do Oceano”. Tudo isto, porque, segundo Álvaro Valente (1909-1985): “a Madeira é uma ilha formosíssima, uma terra cheia de prendas e de bênçãos de toda a ordem, uma inestimável joia de alto valor, o paraíso perdido no oceano” (FARIA, 2014, 324 e 328). O séc. XIX foi o momento de maior valorização dos jardins, tendo referido Isabella de França, em 1854, que “há vinte e cinco anos não se via coisa que se parecesse com um jardim, no Funchal, apesar de muitas casas terem um bocado de terra com esse nome [...]. Mas agora os jardins são geralmente cultivados e contêm em profusão as flores mais belas, assim como plantas extraordinárias. de aparência tropical” (Id., 1970, 147). Também a influência britânica foi visível nestes jardins, referindo a autora, e.g., que a Qt. Holway, na Camacha, apresentava um “jardim tratado à inglesa” (Id., 1970, 191). Os jardins, da Europa à Madeira Para os navegadores do séc. XV, aquilo que mais comoveu foi o denso arvoredo; já para os cientistas, escritores e demais visitantes da Ilha, a partir do séc. XVIII, o que mais chamou a atenção foi, sem dúvida, o aspeto exótico dos jardins e das quintas que povoavam a cidade, nomeadamente as Qts. Vigia, Palmeira, Deão, e do Palheiro Ferreiro. O Funchal, em pouco tempo, transformou-se num verdadeiro jardim botânico, num repositório da flora mundial, alvo do deslumbramento dos visitantes e da atenção dos botânicos europeus. Aqui confluíram, de diversas partes do planeta, uma profusão de espécies botânicas que, depois da fase de aclimatação, se expandiram ao velho continente. Os primeiros jardins botânicos começaram a surgir na Europa, a partir do séc. XVI. Em 1545, temos o de Pádua, seguindo-se o de Oxford, em 1621. Em 1662, a arte de Versalhes. Em todos, foi patente a intenção de fazer recuar a vista aos primórdios da criação bíblica do paraíso. As ilhas, porém, não tinham necessidade disso, pois já tinham tais qualidades por natureza. A atitude do homem do séc. XVIII foi diferente em relação ao quadro natural e às plantas. Aliás, desde a segunda metade do séc. XVII, a atitude perante as plantas havia mudado. Em 1669, Robert Morison publicou a obra Praeludia Botanica, considerada como o princípio do sistema de classificação das plantas, que teve em Carl Von Linné (1707-1778) um dos grandes obreiros do seu estudo e da sua classificação. O conde de Buffon foi contemporâneo daquele e publicou, entre 1749 e 1804, Histoire Naturelle, Générale et Particulière, em 44 volumes. Desta forma, com a publicação de Genera Plantarum (1737) e, depois, de Spectes Pfantarum (1753) e Systema Naturae (1778), a visão do mundo das plantas tornou-se diferente. Os jardins botânicos do séc. XVIII deixaram de ser uma recriação do paraíso e transformaram-se em espaços de investigação botânica. O Kew Gardens, em 1759, foi a verdadeira expressão disso. Em 1757, o inglês Ricardo Carlos Smith fundou no Funchal um destes jardins, onde reuniu várias espécies com valor comercial. Em 1797, Domingos Vandelli (1735-1816) e João Francisco de Oliveira apresentaram um projeto para um viveiro de plantas. O viveiro foi criado no Monte e manteve-se até 1828. O naturalista francês Jean Joseph d’Orquigny, que, em 1789, se fixou no Funchal, foi o principal mentor da criação da Sociedade Patriótica, Económica, de Comércio, Agricultura, Ciências e Artes. Em 1850, surgiu a proposta de Frederico Welwistsch para a criação de um jardim de aclimatação, no Funchal e em Luanda. A Madeira cumpriria o papel de ligação das colónias aos jardins de Lisboa, de Coimbra e do Porto. Este botânico alemão, que fez alguns estudos em Portugal, passou, em 1853, pelo Funchal, com destino a Angola. A presença na Madeira do P.e Ernesto João Schmitz, professor do seminário diocesano, levou à criação, em 1882, de um Museu de História Natural, que se integrou no Jardim Botânico. As quintas madeirenses são um dos traços mais peculiares da dinâmica socioeconómica e urbanística da cidade. A elas estão associados momentos inolvidáveis da história da Madeira. Foram palco de importantes acontecimentos e decisões políticas, acolheram ilustres visitantes, enriqueceram a cidade de flores e plantas exóticas e recriaram os hábitos da convivência aristocrática inglesa. Podem, por isso, ser consideradas a principal sala de visitas da Ilha. Estes espaços subdividem-se em área agrícola, casas de moradia, jardins e, por vezes, capela e cercados de muro, sendo a entrada franqueada por um grande portão de ferro. As fortunas acumuladas com o seu comércio foram usadas pelos britânicos na compra das tradicionais vivendas vinculadas, abandonadas pelos morgados. Foi o Inglês quem recheou as quintas com um riquíssimo mobiliário, rodeando-as de parques, jardins, lagos e riachos. Na área do Funchal, encontrava-se o maior número de quintas, com especial relevo para o Monte e para a Camacha. De entre todas as quintas, destacaram-se a Qt. Vigia e a Qt. do Palheiro. A primeira integrava-se num conjunto de quintas geminadas sobranceiras ao mar (Qts. das Angústias, Vigia, Pavão e Bianchi) e foi a morada de alguma aristocracia europeia: a Rainha Adelaide de Inglaterra (1847-1848), o duque Leuchtenberg (1849-1850), e a Imperatriz do Brasil, D. Amélia (1852). A segunda foi construída pelo primeiro conde de Carvalhal, que preservou e enriqueceu os arvoredos. O seu recinto serviu de palco para grandes receções. Destes momentos, destacaram-se: em 1817, a Imperatriz Leopoldina do Brasil; em 1858, o infante D. Luís; e, em 1901, o Rei D. Carlos e a Rainha D. Amélia. A abordagem do europeu aos novos espaços atlânticos fez-se por um duplo objetivo. Primeiro, procurou-se revelar os resquícios do paraíso perdido, tão celebrado na Antiguidade Clássica, e, depois, tentou-se a possibilidade de apropriação do espaço numa dinâmica voraz de apropriação da riqueza. Do primeiro, ficou apenas a lembrança e, do segundo, a plena expressão da humanização do espaço de forma desenfreada, que conduziu a diversos problemas, que se materializaram, nas Canárias, com o processo de desertificação e, na Madeira, com o efeito catastrófico das aluviões. Só muito mais tarde, o europeu se conciliou com a natureza, certamente por influência de outras culturas que teve oportunidade de contactar. Do Oriente, e de forma especial da China, da Índia e do Japão, as culturas milenares deram importantes lições ao europeu quanto a um relacionamento harmónico com a natureza. Certamente que as correntes religiosas imanentes do Taoismo permitiram uma visão diferente da relação do homem europeu com o quadro natural envolvente. Considere-se que, no séc. XVI, o Feng-Shui, que pretendia estabelecer a harmonia com a energia que flui do céu e da Terra, estava presente na China, sendo uma aposta da dinastia Ming. Esta ambiência chegou à Ilha através dos mesmos súbditos de Sua Majestade. Uma situação, aliás, evidenciada por muitos visitantes britânicos que destacaram esta forte influência britânica na arquitetura dos jardins madeirenses. As inúmeras alterações que os Ingleses, fixados na Ilha, imprimiram às diversas quintas, estão relacionadas com esta realidade. Por outro lado, o jardim chinês não se constrói, mas emerge do quadro natural com uma profusão de montanhas, vales, morros, rios, lagos, etc. Não só se copiaram os modelos dos jardins chineses, como a organização do espaço obedeceu a uma determinada ordem, e a combinação destes elementos fez-se de uma forma harmónica e de acordo com regras. É neste contexto que se pode situar o aparecimento dos lagos e das pontes como elementos essenciais na estrutura dos jardins. Não serão por acaso, também, as formas, as linhas, os espaços, a forma e os locais da disposição das plantas, nomeadamente os buxos em forma de labirintos ou em construções geométricas, que parecem lembrar mandalas, ou outras, de carácter esotérico cujo significado escapa-se, porque nunca receberam atenção sob estas perspetivas e de acordo com os conhecimentos orientais, apenas considerou-se as suas funções decorativas. As “casas de prazeres” encontram similitudes na China com os pavilhões abertos, locais de contemplação da lua ou de deleite, onde se pode beber vinho, namorar e escrever poesia. Acontece que, durante muito tempo, o garrido, a variedade e o exotismo das flores e plantas iludiu, ignorando-se que a sua presença não é alheia àquela finalidade. Além do mais, é precisamente aqui, no recato, no sossego e na harmonia energética das quintas que os doentes europeus procuraram a cura para a tísica pulmonar, a partir do séc. XVIII. Os médicos europeus recomendavam a procura destas quintas. Falava-se do clima ameno, mas também das condições relaxantes do meio, através da natureza envolvente da Ilha, de forma especial na vertente norte e nas quintas que polvilhavam a encosta funchalense até ao Monte. Desde o séc. XVII, a Madeira era conhecida pelas condições aprazíveis do seu meio e aconselhada pelos seus efeitos curativos. Aliás, no plano de sanatórios delineado para a Madeira, em princípios do séc. XX, referiu-se a necessidade de existirem jardins e parques, considerados como lugares para “cura de ar”, não obstante esta visão de uma natureza benfazeja ter surgido já no séc. XVII e se ter afirmado nas centúrias seguintes.   Madeira, a ilha jardim A partir de meados do séc. XX, ganhou importância a ideia da Ilha como um jardim, apostando-se na promoção de condições que levassem esta arte a desenvolver-se em todas as casas dos madeirenses. Por outro lado, as condições difíceis da agricultura e a necessidade de aproveitar ao máximo o espaço de cultivo levaram a que, através da construção de poios, se transformasse quase toda a Ilha num jardim, podendo definir-se a agricultura madeirense como uma técnica de jardinagem. Pelo dec.-lei de 22 de fevereiro de 1951, que estabeleceu o repovoamento florestal da Ilha, coube à Junta Geral, através da Circunscrição Florestal, proceder à “assistência técnica nos trabalhos de conservação e melhoramento das zonas de interesse turístico e dos jardins públicos e de arborização e embelezamento das bermas e taludes das estradas” (PEREIRA, 1989, 338). A exaltação da flor madeirense e dos seus jardins teve o seu momento alto no Cortejo Alegórico da Flor, uma celebração que se iniciou em 1979. Em 2007, surgiu, acoplada a esta iniciativa, a Exposição e Mercado das Flores. Tudo isto começou com A Exposição da Flor, realizada pelo Ateneu Comercial do Funchal, que teve um lugar em pavilhão próprio junto ao Palácio de S. Lourenço, na Praça da Restauração. A iniciativa começou em 1954, com a Festa da Rosa, que, no ano seguinte, se transformou na Festa da Flor. Neste contexto, devemos destacar o Jardim de Rosas, propriedade e iniciativa de Miguel Albuquerque, na Qt. do Arco, no Sítio da Lagoa – Arco de S. Jorge, onde se manifestava uma profusão de rosas de 17.000 variedades de espécies. Além do mais, no Jardim Tropical Monte Palace, no Monte, de Joe Berardo, a cultura oriental misturava-se com uma profusão de árvores e flores.   Alberto Vieira (atualizado a 18.12.2017)

Arquitetura Património

haeckel, ernst heinrich philipp august

Ernst Haeckel é uma figura incontornável da biologia do séc. XIX, na medida que produziu uma vastíssima obra e tocou uma multitude de questões centrais para a biologia moderna. Nasceu na Alemanha (então Prússia), em Potsdam, uma cidade que faz fronteira com Berlim, sendo o pai advogado e funcionário público. Estudou medicina em Berlim, Wurtzburgo e Viena e obteve a licença médica em 1858. Interessa-se por invertebrados marinhos e obtém o doutoramento em 1857 com um estudo sobre a histologia de lagostins de rio. Com apenas 28 anos, em 1862, é nomeado professor na Universidade de Jena, na Turíngia, na qual permanecerá toda a sua vida, embora transite da faculdade de Medicina para a de Filosofia por se centrar mais em estudos zoológicos que médicos. As primeiras viagens de Haeckel puseram-no em contacto com a biologia marinha e estabeleceram o seu amor aos organismos planctónicos; refira-se nomeadamente a viagem à ilha alemã de Helgoland, em 1854, como estudante, e, em 1859-1860, a Itália, no seguimento da qual descreve quase 150 espécies de radiolários (protozoários marinhos). Deste género de estudos nasceram várias monografias e, mais tarde, em 1904, dando renome à sua capacidade artística, uma coletânea das 100 melhores gravuras biológicas. Foi ele que identificou e classificou mais de 3500 espécies de Radiolários recolhidos pela expedição do Challenger, a primeira expedição oceanográfica mundial, que também passou pela Madeira. Haeckel foi o principal promotor e popularizador das ideias de Darwin na Alemanha, tendo lido a 1.ª edição traduzida da Origem das espécies poucos meses depois de aparecer. Já em 1866, antes da sua visita à Madeira e às Canárias, se avistou em Inglaterra com Charles Darwin. Viria a visitá-lo de novo em 1876. O pensamento de Darwin influenciou todo o seu trabalho posterior de estruturação do conhecimento biológico, sendo a sua Morfologia Geral a obra em que tentou aplicar os princípios evolutivos à diversidade morfológica dos organismos e que popularizou com o seu livro A História da Criação. Disto, nasceram as primeiras árvores filogenéticas e a disciplina da Ecologia, como ciência das relações dos organismos com o meio ambiente. A famosa e controversa teoria da recapitulação é outra das consequências desta linha de pensamento, a qual propõe que a ontogenia (neste caso o desenvolvimento embrionário) recapitula a filogenia (a relação evolutiva entre os organismos). Também se antecipou a Darwin na aplicação específica da teoria da evolução ao Homem, pois o capítulo 19 da sua História da Criação propunha que o Homem tinha origem em antepassados comuns ao ser humano e aos Hominídeos (ele usava o termo Pithecanthropi) ou grandes primatas (HAECKEL, 1868, 507). Estas ideias foram mais desenvolvidas no tratado Evolução do Homem, no qual descreve a ontogenia e a filogenia humana em maior detalhe. Em 1866, com apenas 32 anos, empreendeu uma viagem zoológica privada à Madeira e às Canárias, tendo passado antes pelo Reino Unido, onde esteve durante duas semanas e onde se encontrou pela primeira vez com Charles Darwin. Em Londres, juntou-se a um colega de Bona, Richard Greeff, que publicaria um relato da viagem e uma descrição da Natureza da Madeira e das Canárias. Ambos embarcaram para Lisboa, onde se juntaram aos estudantes assistentes Hermann Fol e Nikolai Miklucho. Devido a um surto de cólera, foram obrigados a permanecer em Lisboa em quarentena durante duas semanas, embarcando a 15 de novembro no Lusitania em direção à Madeira, com a intenção de aí permanecerem várias semanas a fim de estudarem a fauna pelágica e litoral. Haeckel comenta que a orografia madeirense era pouco propícia a uma colheita abundante de amostras, e Greeff explica as razões em detalhe: a Madeira tinha arribas íngremes, somente praias de calhau, e as escassas baías eram pouco recortadas e protegidas, pelo que a costa estava continuamente exposta à força da ondulação; esse facto dificultava a fixação de organismos na zona intertidal para amostragem direta. Acrescia que as profundidades elevadas encontradas não longe da costa também não permitiam o uso das pequenas redes de arrasto dos fundos que os investigadores tinham levado consigo. Mesmo a amostragem pelágica de organismos na coluna de água parecia muito dificultada devido a o mar estar quase sempre revolto. Foi assim que decidiram aproveitar a boleia que lhes foi proposta pela fragata de guerra prussiana Niobe, ancorada no Funchal, um veleiro escola que zarparia para as Canárias e Cabo Verde dois dias após a chegada do grupo expedicionário. Permaneceram na Madeira de 16 a 19 de novembro, aproveitando a tarde do dia 18 para uma excursão a Câmara de Lobos. Haeckel foi uma personagem polémica, sendo muitas das suas generalizações especulativas, embora incentivadoras de investigação posterior. No séc. XIX e inícios de XX, era tão conhecido como o próprio Darwin. No entanto, a sua versão e interpretação da teoria de evolução não coincidia completamente com a de Darwin, já que Haeckel defendia uma doutrina unitária da natureza (orgânico e inorgânico) sob as leis da teoria da evolução, o monismo, e mesmo ideias lamarckistas. Por outro lado, a sua classificação das raças humanas em termos de superioridade ou inferioridade de desenvolvimento e a sua defesa da eugenia e da eutanásia foram, no mínimo, polémicas, tendo sido posteriormente deturpadas pelos teóricos das ideias social-darwinistas nazis.   Obras de Ernst Haeckel: Die Radiolarien (Rhizopoda Radiaria): eine Monographie (1862); Generelle Morphologie der Organismen. Allgemeine Grundzüge der organischen Formen-Wissenschaft, mechanisch begründet durch die von Charles Darwin reformirte Descendenz-Theorie, 2 vols. (1866); “Eine zoologische Exkursion nach den canarischen Inseln” (1867); Natürliche Schöpfungsgeschichte: Gemeinverständliche wissenschaftliche Vorträge über die Entwicklungslehre ... über die Anwendung derselben auf den Ursprung des Menschen und andere damit zusammenhängende Grundfragen der Naturwissenschaft (1868); Anthropogenie oder Entwickelungsgeschichte des Menschen: gemeinverständliche wissenschaftliche Vorträge über die Grundzüge der menschlichen Keimes- und Stammes-Geschichte (1874); “Report on the Radiolaria Collected by H.M.S. Challenger during the Years 1873-76” (1887); “Report on the Siphonophorae Collected by H.M.S. Challenger during the Years 1873-1876” (1888); Kunstformen der Natur (1904).   Thomas Dellinger (atualizado a 20.12.2017)

Biologia Terrestre

grupo de folclore da casa do povo de gaula

O Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula foi fundado a 16 de setembro de 1978 e tem por objetivo principal divulgar e preservar as tradições da sua terra, através das danças, dos cantares, dos trajes, da reconstituição de costumes e de atividades culturais. Conta com uma intensa atividade, com atuações diversas em festas tradicionais, arraiais e vários eventos culturais, e com a participação em festivais e encontros de folclore. Dos seus registos musicais fazem parte a edição de dois CD (2009 e 2015) e a participação, com o tema “Chama-Rita de Gaula”, no DVD O Melhor do Folclore da Madeira (2014). Palavras-chave: folclore; trajes; música; dança; tradições populares.   O Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula foi fundado a 16 de setembro de 1978, por alturas da festa de N.ª Sr.ª da Luz, padroeira da freguesia de Gaula. A iniciativa de formar um grupo de folclore partiu de um conjunto de jovens, com o apoio do P.e Alfredo Aires de Freitas. Chamava-se “Grupo de Folclore de Gaula”. Em 1987, passa a denominar-se “Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula”, ao integrar a Casa do Povo de Gaula, recentemente constituída. De 1987 até 2013, o Grupo foi dirigido por M.a de Fátima Vieira Quintal, substituída depois por Manuel Sena, que assume a liderança em 2014. Na sua formação inicial, contava com cerca de 25 elementos, número que foi aumentando ao longo dos anos, até chegar a cerca de 40 elementos em fevereiro de 2016. As suas idades variam entre os 4 e os 64 anos, predominando a faixa etária dos 15 aos 30 anos. O Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula tem como principal objetivo divulgar e preservar as tradições locais, através das danças, dos cantares, dos trajes e da reconstituição de costumes. Gaula é uma freguesia pertencente ao concelho de Santa Cruz e foi fundada a 13 de setembro de 1509. Supõe-se que a origem do seu nome possa estar associada às novelas de cavalaria que têm como protagonista a figura de Amadis de Gaula. Gaula é conhecida por ser a freguesia dos adelos e das amoras. Antigamente, existiam muitos homens, conhecidos por “adelos”, que se dedicavam ao comércio ambulante, vendendo a crédito pelas freguesias da Madeira, e que eram provenientes de Gaula. Os adelos vendiam, principalmente, tecidos (a metro), mercadoria que já se comercializava na Ilha nos princípios do séc. XVII. Eram tidos como homens bem-educados, bem-falantes e bem vestidos. O seu traje típico é constituído por camisa branca, casaco e chapéu escuros e botas chãs. Além da figura do adelo, característica da freguesia, o Grupo Folclórico da Casa do Povo de Gaula procura representar, na sua indumentária, a variedade cultural típica da sua terra, e testemunhar a vivência dos seus antigos habitantes. Assim, apresenta o “traje de trabalho”, o “traje de cote” (quotidiano), o “traje de romaria” e o “traje domingueiro”, em uso desde o séc. XVIII até princípios do séc. XX, algo que resulta de investigações em livros e gravuras e de recolhas orais junto dos residentes mais idosos da localidade. No traje feminino, sobressaem as saias compridas, listadas ou de cor única. As saias listadas apresentam várias cores: fundo vermelho, com listas de cor verde, amarela e azul (o típico padrão madeirense); verde e branca; castanha e laranja; preta e branca; branca e castanha. As saias compridas de cor única apresentam também cores variadas, podendo ser de tonalidade castanha, vermelha, cor de vinho, branca, rosa, amarela ou ainda preta. Algumas saias lisas têm um ornamento de outra cor na roda, como a saia de cor castanha, debruada a vermelho, ou a saia vermelha, com um apontamento branco. As saias compridas, listadas ou de cor única, são acompanhadas por blusas brancas, abotoadas à frente, junto ao pescoço, com botões dourados, e por coletes, vermelhos ou pretos, bordados. Alguns elementos femininos usam uma capa, que pode ser vermelha, preta ou amarela. A indumentária complementa-se com um ornamento para a cabeça, a carapuça feita em lã, de cor azul, forrada a vermelho, ou vermelha, debruada a azul. Algumas mulheres também usam um lenço branco, por baixo da carapuça, designado popularmente por “cobre nuca” ou “toalha de cabeça”, sendo este o acessório que diferenciava as casadas das solteiras. Os trajes femininos mais simples são compostos de saias compridas de cor única, acompanhadas de blusas com motivos florais e um lenço na cabeça. No traje masculino, imperam as cores escuras ou o branco (em fatos de linho ou de seriguilha). Os homens vestem: calças pretas e colete preto; calção e colete preto; calças brancas e colete preto ou casaco preto; e ainda calção branco largo, com franzido sobre o joelho. A indumentária masculina completa-se com camisa branca em todas as variantes do traje. Na cabeça, os homens usam carapuça azul, chapéu preto ou barrete de orelhas feito com lã de ovelha. Homens e mulheres usam a tradicional bota chã, confecionada com pele de cabra e sola em pele de vaca, nos modelos masculino e feminino (com uma tira vermelha à volta do cano, no caso das mulheres). Como adereços, o grupo ostenta um cesto de bordado, uma cesta de almoço, um garrafão de cinco litros, uma banheira da lavadeira, um aguador e uma foice. A atividade do Grupo Folclórico da Casa do Povo de Gaula tem sido profícua e variada. Na Madeira, regista-se a sua presença em arraiais e em festas tradicionais e religiosas, como nos cantares dos Reis, nas visitas do Espírito Santo, nas missas do parto, nos cantares de Natal, nas festas de Santo Amaro, em Santa Cruz, e nas festas de Natal e fim de ano, no Funchal. Tem participado em diversos eventos culturais realizados na Ilha, como a Festa da Castanha e o Arraial da Ginja, no Curral das Freiras, a Feira das Sopas do Campo, em Boaventura, a Festa da Cebola, no Caniço, a Expo Madeira, no Funchal, entre muitas outras comemorações e festas populares. O Grupo conta também com atuações em unidades hoteleiras e em restaurantes madeirenses, onde usa, sobretudo, o traje típico madeirense, mais conhecido pelo turista. A participação em festivais e encontros de folclore, regionais e nacionais, tem sido uma constante na dinâmica do Grupo, proporcionando-se intercâmbios culturais com outros agrupamentos de folclore e etnográficos. Na Madeira, além da presença regular no Festival Regional de Folclore, destaca-se, em agosto de 2004, a atuação na IV Gala Internacional de Etnografia e Folclore Manuel Ferreira Pio, realizada no Monte, Funchal, que contou também com a participação de grupos de fora da Ilha, v.g., o Grupo Amigos de Punta Rasca (Canárias) e o Grupo Dr. Gonçalo Sampaio (Braga). No âmbito nacional, destacam-se as suas representações em intercâmbios culturais, com os seguintes grupos: Grupo Folclórico e Etnográfico de Fermentelos, em Aveiro (1995 e 2001); Rancho Folclórico “Podas e Vindimas”, em Arruda dos Vinhos (1996); Rancho Folclórico “Os Rurais”, de Água Derramada, no concelho de Grândola, distrito de Setúbal (1997); Grupo Folclórico e Etnográfico de Corredoura, em Guimarães (1998); Grupo de Folclore da Relva, em São Miguel, Açores (1999); e Grupo Folclórico de Fajarda, em Santarém (2002). O Grupo Folclórico da Casa do Povo de Gaula, em colaboração com iniciativas da Junta de Freguesia de Gaula, recriou antigas tradições da freguesia, e.g., em 2011, a representação “Levar Comer aos Hômes”, uma tarefa do quotidiano de Gaula, dos anos 50 e 60 do séc. XX, e, em 2013, a “Reconstituição Histórica de Lavar Roupa nos Lavadouros dos Anos 60 do Século XX”, ambas integradas nas festas da freguesia de Gaula. Do seu repertório musical fazem parte bailados e canções recolhidos na localidade – destacando-se o “Chama-Rita de Gaula”, um dos bailados mais antigos da freguesia, executado em roda, e que apresenta características mouriscas –, bem como temas comuns à ilha da Madeira. Os instrumentos musicais do Grupo incluem os cordofones tradicionais madeirenses (viola de arame, braguinha e rajão), tréculas, ferrinhos, brinquinho, bombo, reco-reco, pandeireta, violino e acordeão. Em 2009, contribuíram para o engrandecimento do acervo musical do folclore madeirense, com a edição do seu primeiro CD, composto de 14 peças musicais, nomeadamente “Brinco de Oito”, “ABC do Amor”, “Chama-Rita”, “Pum-pum, Dá-lhe, Dá-lhe”, “Cantiga dos Reis”, “Bate Viradinho ao Chão”, “Mourisca”, “Os Dez Mandamentos”, “Homenagem ao Sr. Marino Marujo (Mourisca)”, “O Paspalhão”, “Dona Alberta”, “Menina Que Sabe Ler”, “Vamos Saltar ao Pau” e “Minha Terra é a Madeira”. Em setembro de 2015, lançaram o segundo CD (no âmbito das comemorações do seu 37.º aniversário e do arraial de N.ª Sr.ª da Luz), composto de 14 temas, alguns dos quais já editados no primeiro. A título coletivo participam, em 2014, com o tema “Chama-Rita de Gaula”, no DVD O Melhor do Folclore da Madeira, um projeto da Secretaria Regional da Cultura, Turismo e Transportes, que juntou 14 grupos folclóricos madeirenses.   Sílvia Gomes (atualizado a 13.12.2017)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social Madeira Cultural

quinta das cruzes

João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471) e a família começaram por se instalar, precariamente, nos arrifes de Santa Catarina, entre cerca de 1421 e 1425; alguns anos depois, também de forma precária, fixaram-se na área do futuro convento de Santa Clara, mandado levantar pelo filho e segundo capitão-donatário do Funchal, João Gonçalves da Câmara (1414-1501). Tendo o primeiro capitão, Zarco, começado a registar, por escrituras públicas, na déc. de 50 do séc. XV, as propriedades dos seus descendentes e outras, nomeadamente a doação dos terrenos junto da capela de S. Paulo, a 25 de maio de 1454, para a edificação do primeiro hospital do Funchal, deverá datar da década seguinte a sua instalação na área da capela da Conceição de Cima, templo que mandara erguer para acolher a sua sepultura. As habitações dessa época eram, no entanto, ainda precárias, como nos informa o Cón. Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593), indicando que a primeira casa de pedra que se fez, depois de acabadas as igrejas, fora a de Constança Rodrigues, filha de Diogo Afonso de Aguiar e neta de Zarco, junto à atual capela de S. Paulo. Constança Rodrigues não casara e ficara a viver com os avós, pelo que a construção da dita casa deve datar de pouco depois de 1471, ano provável da morte de Zarco (Arquitetura). O segundo capitão terá ocupado a residência precária do pai, mas, ao assumir a construção do convento de Santa Clara, para o que cedeu terreno e outros meios, terá iniciado uma outra edificação, mais acima, para norte, que veio a dar origem às casas das Cruzes. O futuro capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530), casou-se por volta de 1488. Pelo menos desde 1 de julho de 1495, data em que compareceu na Câmara do Funchal como alcaide-mor, tinha residência no chamado altinho das fontes, onde depois se levantou a fortaleza (Palácio e fortaleza de S. Lourenço). Nesse quadro, o codicilo do testamento do pai, de 1501, determina que o filho “Pedro Gonçalves da Câmara, haja as casas em que eu moro com todo o seu assentamento” (ARM, Juízo..., cx. 82, n.º 1). Não existe aqui informação específica quanto às habitações em questão, mas, como mais tarde as mesmas foram vendidas pelo neto e homónimo Pedro Gonçalves da Câmara ao seu tio-avô Francisco Gonçalves da Câmara, sabemos que se tratam das casas das Cruzes. As casas das Cruzes aparecem representadas na planta de Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), realizada entre 1567 a 1570, na sequência do ataque dos corsários franceses ao Funchal, ocorrido no ano anterior, e com a indicação “casas de Luís de Noronha” (BNB, cart., 1090203), indivíduo que pensamos ser sobrinho de Pedro Gonçalves da Câmara. Essas casas, no entanto, não eram propriedade sua, pois uns anos mais tarde, a 16 de setembro de 1575, o sobrinho ou sobrinho-neto Pedro Gonçalves da Câmara, no Arco da Calheta, para resolver uma série de problemas pendentes do tempo do pai, António Gonçalves da Câmara (c. 1510-1567), teve de vender as casas das Cruzes. Com efeito, António Gonçalves da Câmara, que fora nomeado caçador-mor de D. João III, dissipara grande parte da fortuna. Assim, em 1575, o jovem Pedro Gonçalves de Abreu declarava que, “por ser já emancipado e ter licença do juiz para poder vender as terras baldias e as casas das Cruzes para suprimento das mais fazendas que tinha no Arco da Calheta, sem o que não podia fazer”, vendia ao tio-avô Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586) as mesmas. De facto, este veio a tomar posse das terras a 22 de setembro. Poucos anos depois, Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) relatava a residência de Francisco Gonçalves da Câmara como “uns paços mui grandes e sumptuosos” (FRUTUOSO, 1873, 115); note-se, contudo, que não se tratava ainda do edifício que chegou aos nossos dias, sucessivamente reconstruído. A avaliar pelo referido traçado de Mateus Fernandes, a residência possuía planta em L, com um corpo virado a sul não muito diferente, em planta, daquele que ainda possui, e um outro para poente, também como hoje se vê. É possível que, do edifício dos primeiros anos do séc. XVI, tenham ficado duas portas rematadas por lintel esculpido ao gosto manuelino, transformadas em janelas nas obras de reabilitação dos anos 50 do séc. XX (Arquitetura senhorial). As casas das Cruzes passaram depois a Joana de Noronha (c. 1550-1613), filha de Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586) e, em seguida, ao sobrinho António do Carvalhal Esmeraldo, falecido em 1648, sucedendo-o o morgado Francisco Esmeraldo Correia Henriques na casa das Cruzes. Provavelmente na posse deste último, por volta de 1660, o edifício foi dotado de um corpo novo, adossado à fachada para servir de entrada de aparato, constituindo-o um terraço, hoje coberto, assente sobre arcaria em cantaria vermelha do Cabo Girão e com acesso por poente. Nos finais de Seiscentos, aquele morgado mandou também levantar no local a capela de N.ª S.ª da Piedade, com acesso público pelo Lg. das Cruzes ou Lg. da Bela Vista, obra realizada na altura em que a propriedade foi ampliada para sul. Na fachada da capela foi mandada gravar a data de 1692, embora a dotação da mesma seja de 25 de maio de 1695 e a vistoria eclesiástica para efeitos de autorização de culto date de 14 de junho seguinte. O morgado subsequente, António Correia Henriques Lomelino, casou com D. Guiomar Jacinta de Moura Acciauoli, a 21 de novembro de 1718; alguns anos depois, com a morte da sua mãe, Catarina Lomelino de Vasconcelos, o morgado ficou herdeiro dos vínculos dos Lomelino, onde estava incluído o convento da Piedade de Santa Cruz. Daquele casamento nasceu Ana Guiomar Acciauoli Lomelino, conhecida como morgada das Cruzes, que desposou, em 1745, Nuno de Freitas da Silva, sétimo administrador do vínculo dos Freitas da Madalena do Mar e que se dizia ser o homem mais rico da Madeira. Educado em Londres, a ele se devem, muito provavelmente, alguns dos melhoramentos realizados nas casas das Cruzes após o terramoto de 1748, período em que o edifício central adquiriu a forma que hoje conhecemos. Nos meados e finais do séc. XVIII, o jardim foi dotado de cascatas e fontes, parte em embrechados de tufo vulcânico e, inclusivamente, pinturas a fresco, como depois outras com aplicações de restos de porcelanas e faianças, sucessivamente melhoradas e ampliadas ao longo da centúria seguinte. A fonte e cascata com os frescos onde parecem figurar Vénus e Apolo, e.g., deve datar de cerca de 1770, podendo essas pinturas terem sido executadas pela oficina de António Vila Vicêncio (c. 1730-1796). Data dessa campanha de obras dos finais do séc. XVIII o conjunto representativo de quinta madeirense que chegou até nós, composto por um amplo parque demarcado por muros e rematado nos extremos por “casinhas de prazer” (Casinha de prazer), contendo ainda uma capela, neste caso, com acesso exterior e com o percurso interior percorrido por caminhos empedrados com elaborados desenhos, formados pela disposição de pequenos seixos; este parque tem espaços ajardinados e encontra-se dotado de vários tanques de água, além das fontes e cascatas mencionadas. Nos finais desse século, a planta de Agostinho José Marques Rosa que data de cerca de 1800 menciona, entre uns poucos palácios, o “de Nuno de Freitas” (BPMP, cota PP190/CE), ou seja, a quinta das Cruzes. Era então propriedade do herdeiro Nuno Martiniano de Freitas, passando depois ao seu filho, o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880), que casou com uma prima direita, D. Ana Welsh de Freitas Lomelino, figura notável da sociedade do seu tempo. A planta do Funchal do brigadeiro Reinaldo Oudinot (1747-1807), levantada na sequência da aluvião de 9 de outubro de 1803, tal como a planta seguinte, de 1805, do Ten. Paulo Dias de Almeida, registam o amplo parque, as casinhas de prazer, a capela e um corpo, que foi demolido perto dos finais do século seguinte, situado na área do atual roseiral da entrada do museu Quinta das Cruzes. Quinta das Cruzes. Foto: BF O conjunto que conhecemos hoje foi ainda alterado e melhorado ao longo dos meados do séc. XIX, quando os Lomelino conseguiram, e.g., reivindicar a propriedade do convento da Piedade de Santa Cruz. Com efeito, alguns morgados contestaram a lei de extinção das ordens religiosas de 30 de maio de 1834 e a posterior incorporação dos seus bens no Estado, nomeadamente Nuno de Freitas Lomelino (1813-1880), último padroeiro e morgado das Cruzes, em 1836, que veio a requerer os bens do antigo convento. A sentença do Tribunal da Relação de Lisboa, a favor de Nuno de Freitas Lomelino, tem a data de 1844; a 13 de julho de 1852, tomou posse das ruínas do antigo convento, transferindo algum desse património para as Cruzes, designadamente o túmulo do fundador, trasladado para a capela da Piedade; existem outros elementos arquitetónicos, pelo menos numa das casinhas de prazer, que parecem ser também provenientes desse convento. A quinta foi vendida, em 1863, a Tristão Vaz Teixeira de Bettencourt e Câmara (1848-1903), barão do Jardim do Mar. Com o seu falecimento, passou a outros proprietários e foi arrendada. Em 1916, a residência foi adaptada para servir de sede à casa bordados A. J. Froes & C.ª Suc.. Entre 1927 e 1931, funcionou ali o Quinta das Cruzes Hotel, cujos chás dançantes eram afamados, recolhendo nele o Gen. Adalberto de Sousa Dias (1865-1934) como deportado político, em fevereiro de 1931; envolvera-se na revolta do Porto, em 1927 e, em breve, interviria na Revolta da Madeira. Já desde 1929 que uma parte da quinta funcionava como sede da banda municipal Artistas Funchalenses, que organizava sessões de cinema ao ar livre no parque do hotel. Durante a Segunda Guerra Mundial, a propriedade serviu de residência a refugiados vindos de Gibraltar. Depois da guerra, residia numa parte do edifício o ourives e antiquário César Filipe Gomes (1875-c. 1949), que, em 1946, propôs doar a sua coleção de antiguidades ao governo da ilha da Madeira. Em sequência, em 1948, a Junta Geral adquiriu a quinta para instalar aí a dita coleção. A intervenção para a adaptação às novas funções iniciou-se em 1950, sendo o museu inaugurado a 28 de maio de 1953.   Rui Carita (atualizado a 16.12.2017)

Arquitetura Património História Económica e Social

greef, richard

Médico e zoólogo, especializado na estrutura e reprodução dos seres unicelulares, particularmente dos rizópodes, Richard Greeff nasceu em Elberfeld, a 14 de março de 1829, e faleceu em Marburg, a 30 de agosto de 1892. Era filho de Peter Greef, fabricante em Elberfeld e em Nova Iorque, e de Sophie Greef. Casou-se com Maria Esch, nascida em 1806 e falecida em 1863. Estudou em Würzburg, Heidelberg e em Berlim, tendo concluído, em 1857, os estudos em Medicina. De seguida, trabalhou como médico assistente do Hospital Municipal de Danzig. Em 1859, voltou para Elberfeld, onde exerceu a função de médico de clínica geral. Pouco tempo depois, em 1863, abandonou a medicina e doutorou-se em Zoologia na Universidade de Bona, prosseguindo a sua carreira como professor. A partir de 1871, foi professor catedrático de Zoologia e de Anatomia Comparada, e diretor do Instituto Zoológico-Zootómico da Universidade de Marburgo. Enquanto investigador de Ciências Naturais, realizou diversas expedições desde 1866-1867, entre as quais se incluem as viagens pelas seguintes regiões: costa Adriática, África, Suíça, ilhas Canárias e Portugal. Greef esteve na Madeira por duas vezes. A primeira vez foi em 1866, chegando de Lisboa a bordo do vapor Lusitânia, integrado numa expedição científica com Ernst Haeckel (1834-1919) e outros companheiros. Após uma curta estadia, de 17 a 19 de novembro, instalado no Hotel de Paris, no Funchal, seguiu para as Canárias no Niobe, um navio de guerra prussiano. A segunda passagem pela Madeira foi em outubro de 1879, escalando o Funchal a bordo do navio português Zaire. Saliente-se que, a partir do séc. XVIII, numerosas expedições científicas escalaram o Funchal, atraídas pelo interesse que a Madeira despertava na comunidade científica europeia de então. O arquipélago madeirense tornou-se um destino exótico dos naturalistas europeus, nos sécs. XVIII-XIX, sobretudo após as publicações das viagens comandadas por James Cook (1728-1779), que passou pela Madeira por duas vezes, em 1768 e em 1772. Especialistas em diversas áreas das ciências naturais arrimaram o porto do Funchal e permaneceram na Ilha durante algum tempo, realizando investigações no domínio da geologia, botânica, flora e fauna. Os seus estudos foram depois divulgados em várias publicações e colocaram a Madeira na rota científica internacional. Richard Greeff também realizou, no âmbito das expedições científicas, na Ilha, investigações acerca de animais invertebrados. Greeff mencionou a sua primeira passagem pela Madeira no livro Reise nach den Canarischen Inseln (1868). Mais tarde, publica Madeira und die Canarischen Inseln em besonders Naturwissenschaftlicher Zoologischer Beziehung (1872), no qual refere aspetos zoológicos das ilhas da Madeira e das Canárias.   Obras de Richard Greef: Untersuchungen über den Bau und die Naturgeschichte von Echinorhynchus miliarius Zenker (E. polymorphus) (1864); Reise nach den Canarischen Inseln (1868); Madeira und die Canarischen Inseln em besonders Naturwissenschaftlicher Zoologischer Beziehung (1872); Ueber Pelagische Anneliden von der Küste der Canarischen Inseln (1879); Studien über Protozoen (1888).   Sílvia Gomes (atualizado a 13.12.2017)  

Biologia Terrestre Madeira Global

grabham, george walter

George Walter Grabham foi um cientista madeirense reconhecido internacionalmente. Nasceu na freguesia de Santa Luzia, no Funchal, a 28 de junho de 1882. Era filho do médico Michael Comport Grabham, autor de vários livros, entre os quais um sobre a Madeira, e de Mary Anne Blandy Grabham, que pertencia a uma família ligada à produção e exportação de uma reputada marca do vinho madeirense. Estudou Geologia no University College School e no Saint John’s University College de Cambridge. Trabalhou na Geological Survey of Great Britain, na Escócia (1903-1906), e foi para o Sudão anglo-egípcio como geólogo oficial (1906-1930). Tornou-se membro da Royal Society of Edinburgh e da Geographical Society e foi agraciado com a Ordem do Império Britânico. Colaborou no Geology of Edinburgh and East Lothian, com o artigo “The Geology of the Neighbourhood of Edinburgh” (1910), no The Geology of the Glasgow District, (1911), no The Journal of Geology, na Geological Magazine, com o artigo “The Geology of Knapdale, Jura, and North Kintyre” (1911), no The Geology of Ben Nevis and Glen Coe – Memoirs of the Geological Survey, Scotland (1916), e na revista Nature. Publicou o seu trabalho “Esboço da Formação Geológica da Madeira” no Boletim do Museu Municipal. O seu interesse pela botânica levou-o a estudar as árvores da serra da Encumeada, em S. Vicente, na ilha da Madeira, concluindo que a sua antiguidade excedia os cinco milhões de anos. Faleceu no Sudão, a 29 de janeiro de 1955, tendo merecido notícia nos obituários do Geographical Journal, publicado por The Royal Geographical Society (com o Institute of British Geographers), no Stanford, K. S. Obituary, Proceedings of the Geological Society e no Proceedings of the Geologists Association. Obras de George Walter Grabham: “The Geology of the Neighbourhood of Edinburgh” (1910); “The Geology of Knapdale, Jura, and North Kintyre” (1911); “Esboço da Formação Geológica da Madeira” (1948).   António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 13.12.2017)

Biologia Terrestre Geologia