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câmara de lobos

Câmara de Lobos apresenta uma ligação muito evidente com a família do primeiro capitão do Funchal e com o início da ocupação do arquipélago. O nome da baía e do lugar terá sido inspirado pela abundância de lobos-marinhos (monachus monachus) que os navegadores, acompanhantes de João Gonçalves, teriam visto numa furna. Este primeiro encontro marcou o nome do lugar, que passou a chamar-se Câmara de Lobos, em homenagem a este grupo de lobos-marinhos e à sua atitude de repouso. Depois, o Cap. João Gonçalves, também conhecido pelo apelido de Zarco, que alguns identificam como “zarolho”, quando recebeu carta de armas de 4 de julho de 1460, assumiu o apelido de “Câmara de Lobos”, embora, depois, tenha usado apenas o de “Câmara”. Diz o cronista Gaspar Frutuoso que “em uma rocha delgada à maneira de ponta baixa, que entra muito no mar; e entre esta rocha e outra fica um braço de mar em remanso, onde a natureza fez uma grande lapa, ao modo de câmara de pedra e rocha viva. Aqui se meterem com os batéis e acharam tantos lobos marinhos, que era um espanto; e não foi pequeno refresco,  e  passatempo  para  a gente;  porque  mataram  muitos  deles,  e tiveram  na matança  muito  prazer  e  festa.  Pelo  que  o  Cap. João  Gonçalves  deu  nome a  este  remanso  Câmara  de  Lobos,  donde  tomou  o  apelido,  por  ser a derradeira  parte,  que  descobria  deste  giro  e  caminho,  que  fez:  e deste  Jogar  tomou  suas  armas,  que  El-Rei  lhe  deu,  tornando  ao  reino” (FRUTUOSO, 2008, 39-40). Para além deste episódio, deve-se considerar que o território deste concelho foi marcado pela imponência do Cabo Girão, uma referência no turismo madeirense. A designação resultou do fato de os navegadores, no séc. xv, ao chegarem à Ilha na primeira viagem de reconhecimento, terem feito o retorno ou giro ao ponto de partida. Um dos testemunhos mais importantes foi dado em 1854, por Isabella de França: “É impressionante olhar para tamanha altura, com os  penhascos vermelhos a brilhar a luz, como se fossem os limites de um céu que pendesse sobre outro mundo para lá do nosso. Sucedia-se uma longa fila de rochas sobranceiras ao mar, de altitude variável e aqui e ali aplanadas em manchas de vinhedos e outras culturas.  Havia camponeses a trabalhar em sítios onde parecia não existir espaço para assentar um pé; dir-se-ia que estavam colados à rocha. Na verdade, só os poderia comparar a moscas deslocando-se num espelho, e, no entanto, moviam-se cá e lá e andavam acima e abaixo como se tivessem o poder de sustentar-se no ar, independentes de todas as leis da locomoção humana” (FRANÇA, 1970, 90-91). A proximidade deste território ao Funchal sempre impediu que ganhasse a importância devida em termos administrativos, mantendo-se como uma periferia agrícola distante do município funchalense até 1835, altura em que assumiu autonomia municipal. Em 1817, Paulo Dias de Almeida referiu que, embora sendo “um  dos  lugares  mais  bem  povoados  e  o  mais  próximo da  cidade,  está  inteiramente sem defesa e muito  sujeito a ser saqueado por qualquer corsário de pequena força” (CARITA, 1982, 60), provando a pouca atenção e a situação de abandono que persistiam em princípios do séc. XIX. Porém, a criação do município, em 1835, seria um caminho para a sua valorização e rápida afirmação.   O concelho de Câmara de Lobos A separação do Funchal é uma das mais antigas, mas tardou muito a acontecer. O Funchal era muito distante e acarretava danos aos interesses dos seus moradores; o facto de “haverem de ir pelas coisas da  justiça  cada  dia  tão  longe  lhes  é  grande  opressão  e perdimento de suas fazendas”, daí o terem querido “fazer jurisdição sobre si”, mas o infante D. Fernando, em sentença de 6 de agosto de 1468, determinou que o lugar de Câmara de Lobos deveria continuar a ser “termo e jurisdição da vila do Funchal” (SILVA, 1995, I, 661). A pretensão das populações de Câmara de Lobos a um estatuto concelhio só veio a ser concretizada pela portaria de 25 de maio de 1835, que estabeleceu uma reestruturação à estrutura municipal madeirense. Até então, os funcionários com jurisdição para atuar naquele território  limitavam-se a um juiz e a um alcaide do lugar, documentados a partir de princípios do séc. XVI. É com a alteração da situação do poder local que foram criados os novos municípios de Câmara de Lobos: Santana e Porto Moniz. De acordo com o Elucidário Madeirense (1978), a instalação do concelho ocorreu a 16 de outubro, mas as investigações de Manuel Pedro de Freitas conduziram à retificação desta data, estabelecendo, como fundador, o dia 4 de outubro, data de registo da primeira ata das eleições e de juramento dos oficiais eleitos. Esta sessão decorreu na sacristia da igreja de S. Sebastião, em Câmara de Lobos, sendo a mesa eleitoral presidida por João Crisóstomo Urel, vereador da Câmara do Funchal. Por força desta circunstância, o dia do concelho, que, desde 1977, era assinalado a 16 de outubro, passou a ser celebrado no dia 4 de outubro. Com o tempo, a sua jurisdição territorial foi sendo alterada. A 6 de maio de 1914, a freguesia do Campanário passou para a jurisdição do concelho da Ribeira Brava, entretanto criado. A 15 de setembro de 1994, a sede da freguesia do Estreito de Câmara de Lobos foi elevada à categoria de vila, e, a 3 de agosto de 1996, a sede do concelho passou à categoria de cidade. O município foi constituído pela freguesia do Jardim da Serra (5 de julho de 1996) e pelas paróquias, depois também transformadas em freguesias, de Câmara de Lobos (1430?), do Estreito de Câmara de Lobos (1509?), do Curral das Freiras (17 de março de 1790), e da Quinta Grande (24 de julho de 1848). As freguesias/paróquias estavam integradas no concelho do Funchal, sendo desanexadas à medida da sua valorização social e das reclamações dos fregueses. Há um dilema sobre a atribuição do estatuto de vila à sede do concelho de Câmara de Lobos. Fernando Augusto da Silva, a propósito de Câmara de Lobos, escreveu: “Apesar de comummente se chamar vila de Câmara de Lobos ao agrupamento de casas que constitui a parte mais central e importante da freguesia, a verdade é que a capital deste concelho nunca foi vila, mas simplesmente lugar, que era noutro tempo designação dada à povoação intermediária entre vila e paróquia”. E, mais adiante, ao referir a criação do concelho, que considera ter acontecido em 1832, revela que “as repartições concelhias estão instaladas no sítio chamado da vila” (SILVA, 1978, I, 213). Noutro passo sobre os concelhos, o autor reafirma o já dito: “As antigas denominações de vila, município ou concelho, eram sinónimos da nossa antiga legislação, ao menos na sua aplicação à Madeira, mas o mesmo se não dá no direito moderno do período constitucional em que vila e concelho ou município representam coisas muito distintas. E, assim temos que Câmara de Lobos, Santana e Porto Moniz são apenas concelhos ou municípios e não vilas, pois não existe nenhuma lei ou decreto especial que os tivesse elevado a esta categoria, havendo entretanto no continente várias vilas que não são cabeças ou sedes de concelho” (Id., Ibid., 296). Desta forma, pode-se afirmar que esta situação contradiz aquilo que o código administrativo afirma, aprovado pelo dec.-lei n.º 31.095, de 31 de dezembro de 1940, sobre as sedes dos concelhos. Assim, no seu parágrafo n.º 1, do n.º 3 do art. 12, diz-se: “Têm a categoria de vila todas as povoações que forem sedes de concelho”. Esta é a última referência direta a uma relação entre a vila e o concelho, pois, a partir daqui, o divórcio foi total, sendo a sua consumação institucional estabelecida pela lei de 1982. A criação do concelho é uma reivindicação muito antiga, pelo que, no momento em que aconteceu, surgiu uma elite local que assumiu as rédeas do poder municipal e que viu com bons olhos esta descentralização que aconteceu no séc. XIX, retirando o território da alçada do Funchal. A valorização económica do espaço e a consciência política dessa elite favoreceram esta nova realidade e a afirmação do município. Assim, de acordo com recolha de Manuel Pedro de Freitas (1999), a galeria de todos aqueles que exerceram o cargo de presidente é maioritariamente originária das freguesias de Câmara de Lobos e do Estreito de Câmara de Lobos. Por outro lado, a tardia valorização dos elementos heráldicos não resultou de qualquer desinteresse, mas da pouca valorização que os mesmos assumiam em termos práticos no quotidiano. Daí que o seu aparecimento e a sua exibição resultassem de uma exigência ou necessidade sentida num momento especial. Embora se tenha documentado o brasão de armas do concelho desde 1921, num dos tetos pintados do antigo salão do Seminário da Encarnação no Funchal, só em 1940, por ocasião da exposição Mundo Português, se sentiu a necessidade de dispor da heráldica do concelho, que foi aprovada em sessão camarária de 6 de setembro de 1944, e do estandarte, em março de 1949. Mas o brasão de armas só foi publicado no Diário do Governo n.º 3, série II, de 4 de janeiro de 1957. A última alteração foi de 9 de janeiro de 1997, por força da elevação do lugar de Câmara de Lobos à categoria de cidade, surgindo as quatro torres acasteladas. Destas armas, são emblemáticos os dois lobos-marinhos, a testemunhar o primeiro encontro dos portugueses com esta baía.   De lugares a paróquias e freguesias Nos princípios do séc. XXI, o município foi constituído pelas freguesias de Câmara de Lobos (1430?), do Estreito de Câmara de Lobos (1509?), do Curral das Freiras (17 de março de 1790), da Quinta Grande (24 de julho de 1848), e do Jardim da Serra (5 de julho de 1996). O arciprestado de Câmara de Lobos apresentou 9 paróquias, resultantes da reforma de 24 de novembro de 1960, por iniciativa de D. David de Sousa (1957-1965), bispo da Diocese do Funchal (Sousa, D. David de). Assim, das quatro paróquias existentes (paróquia de Câmara de Lobos, orago de S. Sebastião; paróquia do Estreito de Câmara de Lobos, com invocação a N.ª Sr.ª da Graça; paróquia do Curral das Freiras, com invocação a N.ª Sr.a do Livramento; e paróquia da Quinta Grande, com invocação a N.ª Sr.ª  dos Remédios) surgiram, em 1960, outras cinco, sendo a de Câmara de Lobos dividida em três novas (paróquia de Câmara de Lobos, com invocação a S. Sebastião; paróquia do Carmo, com invocação a N.ª Sr.ª do Carmo; paróquia de S.ta Cecília, com invocação a S.ta Cecília), a do Estreito de Câmara de Lobos em quatro (paróquia do Estreito de Câmara de Lobos, com invocação a N.ª Sr.ª da Graça; paróquia da Encarnação, com invocação a N.ª Sr.ª da Encarnação; paróquia do Garachico, com invocação a N.ª Sr.ª do Bom Sucesso; e paróquia de S. Tiago). Quanto à paróquia da Quinta Grande, ela só viria a ser alvo de alterações em termos de área geográfica. Câmara de Lobos demarca-se por uma importante baía, por um ilhéu e pela desembocadura de uma ribeira, tendo assinalado, em termos geográficos, um sítio adequado à fixação dos primeiros povoadores. Certamente, estas condições levaram a família do capitão a considerar a hipótese de nela estabelecer a sua primeira morada, sendo, depois, preteridas em favor do Funchal. Diz o cronista: “Chegando a  um  alto  sobre a Câmara de  Lobos, traçou ali  onde  se fizesse  uma  igreja  do  Espírito  Santo;  passando mais  abaixo  a  umas  serras  muito  altas,  ali  traçou  outra igreja  da  Vera  Cruz. E todos estes altos tomou para seus herdeiros”. A proximidade e o crescimento do Funchal conduziu à dependência de Câmara de Lobos, cuja zona urbanizada se caracterizava, segundo  Gaspar Frutuoso, como pequena, tendo “duzentos  fogos e  uma  só  rua  principal  e muito comprida, e, no  cabo  dela, a  igreja,  muito  boa e  bem consertada” (FRUTUOSO, 1968, 87 e 122). O processo de povoamento começou a partir da baía e foi, com o tempo, subindo a encosta e alargando-se para poente. Assim, o lugar do Estreito de Câmara de Lobos deverá ter começado em 1440, com o eremitério dos Franciscanos, tendo rapidamente ganhado importância, pois, em 1460, já existia uma capelania, e a paróquia terá sido criada por volta de 1515. A freguesia da Quinta Grande foi criada a 24 de julho de 1848, definindo-se o seu território por áreas desanexadas às freguesias de Câmara de Lobos e do Campanário. A 8 de fevereiro de 1820, havia sido elevada à categoria de curato. A designação de “Quinta Grande” é anterior aos Jesuítas, pois, em 1501, a área era já referida como a Quinta do Cabo Girão, sendo propriedade de João Gonçalves da Câmara, filho de Zarco, que a passou ao seu filho Manuel de Noronha. Sobre esta quinta, refere o cronista: “Tem  esta  quinta  boas  terras  de  canas e  de  trigo  e centeio,  mas  vinhas  poucas,  por ser a  terra  alta,  ainda  que ao longo do mar tem o mesmo Luís de Noronha uma fajã de grande pomar e  vinhas de muito preço, e passatempo, que dá cada ano 40, 50 pipas de malvasias. E está a  ribeira dos Melões, que parece que os há naquela parte muitos e, sobretudo, estremados, que dá também muitas canas e,  em  parte,  algumas  vinhas”(Id., Ibid., 123). A capela da Vera Cruz é atribuída à família dos capitães do Funchal. Mas, certamente, o facto de a área ter sido toda uma propriedade dos Jesuítas, entre os sécs. XVI e XVIII, não deverá ser alheio à perpetuação do seu nome de “Quinta dos Jesuítas”. Esta foi-lhes vendida a 27 de abril de 1595, por Fernão Gonçalves da Câmara. Diz-se que o sítio da quinta era onde estava situada a casa e capela dos Jesuítas. Todavia, em 1770, depois do confisco dos bens daqueles, passou ao domínio privado, por venda em hasta pública. O Curral das Freiras foi buscar o nome ao facto de a propriedade ter integrado o dote de freiras da família Câmara, quando do seu ingresso no recém-fundado convento de S.ta Clara.  O sítio estava dedicado a pastagens de gado, donde as freiras do convento passaram a tirar um elevado benefício em carne e manteiga para o seu consumo diário. A tradição aponta que, em 1566, aquando do assalto de B. de Montluc ao Funchal, as freiras se teriam escondido nesta sua quinta. Diz o cronista: “As freiras e o Curado, com alguns frades e o homem que  as  defendeu,  enquanto  isto  do  baluarte  passou,  saíram por entre  os  canaviais  e  se  acolheram  e  não  pararam  até  o seu  Curral,  que  dista  bom  pedaço  da  cidade,  e,  assim,  se foram,  deixando  tudo  no  mosteiro,  sem  salvar nenhum  ornamento;  salvo  a  custódia  do  Santíssimo  Sacramento,  que um  padre  comungou,  e  alguns  cálices,  que  puderam  levar nas  mangas,  tudo  o  mais  foi  roubado” (Id., Ibid., 345). As terras do Curral haviam sido doadas por João Gonçalves Zarco a João Ferreira, mas, em 1480, passaram, por venda, para a posse do Cap. donatário João Gonçalves da Câmara, que as  entregou ao convento, como dote das filhas Elvira e Joana, dando assim início à posse pelo convento. Em termos de jurisdição paroquial, pertencia à freguesia de Santo António, mas, em 17 de março de 1790, assumiu o estatuto de paróquia independente. O Jardim da Serra deve o nome à Qt. do Jardim da Serra, propriedade de Henry Veitch, que este fizera erguer, de forma imponente, para a sua última morada após a morte, sendo o único caso de um mausoléu fora do recinto de uma igreja ou cemitério justificado pelo facto de ser protestante. A freguesia só foi criada a 5 de julho de 1996, no local da paróquia de S. Tiago, criada em 1961.   Sociedade O lugar de Câmara de Lobos começou o povoamento em torno da figura do capitão do Funchal e manteria esta ligação, fazendo com que alguns criados ou apaniguados do mesmo assumissem, com o tempo, uma posição de destaque. Foram diversas as famílias que estabeleceram um vínculo a este lugar e que ganharam importância social. Através dos livros de manifesto da produção do  vinho  e  da receita  do  subsídio  literário, que recaía sobre o mesmo, é possível rastrear esta realidade e estabelecer uma ideia da elite fundiária. Recorde-se que a área que vai do  Funchal ao Campanário, que inclui a área de Câmara de Lobos, foi dominada por terras de morgadio. Assim, num registo para 1819-1834, estabeleceram-se 12 morgados em Câmara de Lobos, que representaram metade dos existentes. Podemos destacar os mais importantes: o visconde de Torre Bela, João de Carvalhal, Ayres de Ornellas de Vasconcellos, João da Câmara Leme, José Ferreira,  António  Ferreira,  Carlos  Vicente,  Henrique  Fernandes, e Fernando  da Câmara. Nestas terras, predominou o  contrato  de  colonia, sendo de assinalar que, em 1829, o número de senhorios era superior a 30, com especial realce para Pedro Santana, o visconde de Torre Bela, e João da Câmara. O crescimento demográfico da área do concelho foi atestado em diversos momentos por múltiplos testemunhos, desde que Frutuoso a descrevera como tendo duzentos fogos. Em 1598, o “recenseamento dos fogos” diz que: “No  Lugar de  Câmara  de  Lobos  há  a  igreja principal de  S.  Sebastião  e  duas  ermidas:  N.ª Sr.ª  da  Conceição,  que  foi  a  segunda igreja  que  nesta  se fez,  e  a  do  Espírito  Santo.  Tem  logo  fora  do  lugar um  mosteiro  de  S.  Bernardino,  com  10  a  12  religiosos.  Daqui  tomaram  os  capitães, os  Câmaras,  os  lobos  por  armas,  por  acharem  lobos marinhos  metidos  numa furna,  quando  aqui  desembarcaram. Tem este lugar 134 fogos e 510 almas de  sacramento […]. No  Estreito  sobre  Câmara  de  Lobos  está  a  freguesia  de  Nossa Senhora  da  Graça,  que  tem  97 fogos  e  404 pessoas  de  confissão” (CARITA, 1991, II, 235 e 239). Em 1722, Henrique Henriques de Noronha, natural do lugar, descreveu assim Câmara de Lobos: “No  seu  porto  faz  este  lugar  uma baía,  acompanhada  por  uma e outra parte de rocha, com 170 passos de largo, a tiro de mosquete pelo  mar dentro,  compõem-se  de  uma só,  mas  grande rua,  que  principia no desembarcadoiro,  onde  está uma boa  Igreja de  N.ª  Sr.ª  da  Conceição,  e  se termina  na  da  Paróquia  da  invocação  de  S.  Sebastião,  Igreja  colegiada hoje  de  moderno  reedificada.  Tem  Vigário,  Cura,  quatro  Beneficiados, Tesoureiro,  e  organista;  compreende 390 fogos, com 1820 almas […] Por cima  deste  lugar  fica outra  freguesia que chamam do Estreito de Câmara de Lobos, mais para o sertão;  cuja  paróquia  é  da  invocação  de N.ª Sr.ª da Graça; tem  um Vigário, e Cura; que administram os Sacramentos a 1048 almas, em 288 casas dispersas; no seu distrito estão as ermidas de S. António, de N.ª  Sr.ª da Encarnação, e do Socorro” (NORONHA, 1996, 223-224). Paulo Dias de Almeida, em princípios do séc. XIX, referiu o lugar de Câmara de Lobos como: “Sendo  este  um  dos  lugares  mais  bem  povoados  e  o  mais  próximo da  cidade […] Compreende  duas  freguesias  com  6550  habitantes, 1348  fogos,  1642  pipas  de  vinho  e  92  moios  de  trigo  e  centeio” (CARITA, 1982, 60 e 79).   Economia e riqueza dos recursos Câmara de Lobos é um concelho que se divide entre o mar e a terra. As populações ribeirinhas, aproveitando as condições da baía, têm-se dedicado à pesca, nomeadamente do peixe-espada. É tradição do local a indústria da secagem da gata, um peixe que vem com a captura do principal. No princípio, porém, era um local agrícola, dizendo-se mesmo que aqui se plantaram as primeiras videiras, a que se seguiram os canaviais. A maior valorização agrícola do território aconteceu, de forma particular, a partir de 1952, com a abertura da Levada do Norte, que possibilitou o desenvolvimento de culturas de regadio. Daí que o ato de inauguração da levada tivesse sido muito celebrado pela população da Quinta Grande, do Estreito, e de Câmara de Lobos. Refere, assim, Gaspar Frutuoso: “Tem  mais  dois  engenhos  de  açúcar,  um,  que  foi de  António  Correia,  e  outro  de  Duarte  Mendes,  e  muitas canas  e  vinhas  de  boas  malvasias,  e  muitas  frutas  de toda sorte,  e  muita  água”. E, encosta acima, assinala “os pomares do Estreito, que  têm muita castanha e noz, e peros de toda sorte muito doces, e vinhas e criações” (FRUTUOSO, 1968, 120 e 122). A concorrência do açúcar das restantes áreas produtoras do Atlântico, bem como a peste de 1526 e a falta de mão-de-obra apenas vieram a agravar a situação de queda. A tudo isto acresceu, em finais do século, os efeitos do bicho sobre os canaviais, como foi testemunhado para os anos de 1593 e  1602. O último quartel do século foi o momento de viragem para culturas de maior rendibilidade, como a vinha. A documentação testemunha a mudança. Assim, em 1571, Jorge Vaz, de Câmara de Lobos, declarou, em testamento, um chão que “sempre andou de canas e agora  mando que se ponha de malvasia para  dar  mais proveito” (ABM, Juízo dos Resíduos e Capelas,  fls. 499v.-500v.). Há, mesmo assim, uma continuidade da cultura açucareira nas centúrias seguintes. Em Câmara de Lobos, verificou-se a presença de vários engenhos, de que não restam vestígios. Um dos mais  antigos estava no sítio da Palmeira, erguido em 1847, por ação de Manuel Martins e João da Silva. Na vila, mais propriamente na Rua da Carreira, havia, em 1854, o segundo  engenho de  Tibúrcio Justino Henriques, preparado para aguardente e melaço. Na déc. de 50, assinalaram-se ainda outros dois. Em 1857, João Figueira Quintal construiu um no sítio do Ribeiro Real, e, no ano imediato, Joaquim Figueira & Co. construiu o do sítio de Jesus Maria José.  Na linha de fronteira,  na  margem  da  Ribeira  dos  Socorridos, que  separa o  município do  Funchal  do  de Câmara de Lobos, construiu-se  o  engenho dos Socorridos, o único que se manteve em atividade no decurso do  séc. XVIII, demonstrativo  da persistência da  cana nas  proximidades.  De entre os inúmeros proprietários, assinala-se a figura de Guiomar Madalena de Sá Vilhena. Da estrutura, persistiu apenas a capela. No princípio do séc. XXI, a agricultura continuou a assumir um papel destacado na economia do concelho. Assim, na freguesia de Câmara de Lobos, dominou a banana, mas, na freguesia do Estreito, tornou-se evidente a viticultura, tal como a horticultura na Quinta Grande, no Jardim da Serra e no Curral das Freiras. Em 1854, Andrade Corvo afirmou que “o  concelho  de Câmara  de Lobos  é um  dos concelhos,  em  que  se produz  mais  vinho  e  de  melhor  qualidade.” No enunciado das castas disponíveis na área, refere a sercial, a tinta negra mole e a malvasia que dá “um  vinho muito precioso, e estimado” (CORVO, 1855, 23). Em 1884, Henri Vizetelly considerou que a melhor área para a produção de vinho na Ilha se situava na Torre, em Câmara de Lobos. Há uma ideia muito divulgada da excelência dos vinhos do concelho que está divulgada entre os nacionais e estrangeiros. Deste modo, Eward Harcourt, em 1851, afirmou que “os melhores vinhos da Madeira são produzidos nas freguesias de Câmara de Lobos, São Martinho e São Pedro, nas partes mais baixas de Santo António, no Estreito de Câmara de Lobos, no Campanário, em São Roque e em São Gonçalo. As partes mais altas das últimas cinco freguesias produziam apenas vinhos de segunda e terceira qualidade. Os melhores Malvasia e Sercial são da Fajã dos Padres no sopé do Cabo Girão e do Paul e Jardim do Mar. As parras de malvasia são as melhores para suportar um enxerto. A melhor vinha para plantar no sul é a verdelho, obtida tanto do norte como do Curral das Freiras” (VIEIRA, 1993, 362). Uma memória sobre o vinho, publicada em 1851 por José Silvestre Ribeiro, reafirma a importância da área do concelho de Câmara de Lobos na produção de muitos e bons vinhos: “O melhor vinho que a Madeira produz é a malvasia e sercial da Fajã dos Padres. Na freguesia de Campanário, concelho de Câmara de Lobos [...] Dizem que o bual e o verdelho de Campanário são os melhores vinhos da Madeira; há preferência ao de Câmara de Lobos. Câmara de Lobos é a freguesia que produz o melhor vinho da Madeira, exceto malvazia e sercial. A freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, do sítio do Salão para baixo, dá vinho igual, ou quase igual, ao de Câmara de Lobos” (Id., Ibid., 170). Henri Vizetelly, em 1880, traçou o quadro da Ilha após a filoxera, dizendo que Câmara de Lobos, terra de produção de mais de 3000 pipas de vinho, agora só produzia 100, porque “quase todas as vinhas deterioraram-se e plantou-se cana de açúcar no seu lugar” (Id., Ibid., 382), mas, por certo mantiveram-se as vinhas nas terras mais altas do Estreito. Esta situação marcou uma viragem que conduziu à valorização e ao retorno da antiga cultura da cana-de-açúcar e, depois, no séc. XV, da bananeira. A recuperação definitiva de muitos dos vinhedos só aconteceu de forma clara a partir dos anos 80 do séc. XX, por incentivo do Governo regional. A ligação do concelho ao vinho é muito evidente. Primeiro, com os vinhedos que dominam a paisagem; depois, com as instalações de apoio da firma Barbeito de Vasconcelos e os armazéns da firma Henriques Henriques. No Estreito de Câmara de Lobos, existiu, ainda, desde 17 de agosto de 1990, um armazém de vinhos Madeira, propriedade da empresa Silva Vinhos Lda., que foi desativado, e apenas se regista um outro armazém da empresa Henriques e Henriques. A família Henriques está ligada aos primórdios da ocupação e ao cultivo da vinha no arquipélago. Até à década de 70 do séc. XX, foi detentora de importantes terras de colonia, ocupadas com vinha, nos sítios da Torre e da Quinta Grande. A partir de 1850, João Joaquim Gonçalves Henriques, com base nas propriedades de família em Belém (Câmara de Lobos), instalou-se como partidista do vinho Madeira, fornecendo as principais casas. Em 1913, surgiu a atual empresa, resultado da fusão da Casa de Vinhos da Madeira Lda., Belém’s Madeira Lda., Carmo Vinhos Lda., António Eduardo Henriques Sucrs. Lda., e António Filipe Vinhos Lda. Em 1960, foi a vez de Freitas Martins Caldeira & Cia. Se juntar ao grupo. A  firma  esteve, no princípio do séc. XXI, em  mãos  dos  sócios  A.  N.  Jardim,  Peter  Cossart  e  Nunes Pereira. Em 1992, iniciou um processo de modernização, transferindo-se do Funchal para o concelho de Câmara de Lobos. Na vila, junto à ribeira do Vigário, ficaram as instalações de vinhos, as lojas de vendas e o escritório, enquanto na Quinta Grande ficavam 10 ha de vinha das diversas castas nobres e as instalações de receção da uva, vinificação e estufa. Na época das vindimas, o Estreito era um local de grande atividade e animação. Neste contexto, assinala-se a primeira festa das vindimas realizada em 1963, que foi realizada de novo em 1979,  com grande animação e continuidade até aos princípios do séc. XXI. Os Jesuítas  foram  detentores  de  extensas  áreas  de  vinha no Funchal e na Quinta Grande. No séc. XIX, a Quinta Grande foi uma das freguesias que não foi molestada pelos efeitos nefastos da filoxera, persistindo, inclusive, na Fajã dos Padres, os bacelos da primitiva casta de malvasia. A Companhia de Jesus está ligada à Fajã dos Padres e à malvasia aí produzido. Entre todos os tipos de vinho, o mais celebrado foi o malvasia. A malvasia cândida manteve-se, por muito  tempo, a rainha das videiras, quer no  Mediterrâneo, quer no Atlântico, tendo, por assento, e.g. a Madeira e as Canárias. Na Europa do séc. XV, este vinho foi celebrado por poetas e dramaturgos, e.g. Shakespeare. A fama condicionou  a  opção  do  infante D. Henrique em  recomendar  aos  povoadores  as  videiras  de malvasia de cândida. O senhor da Ilha pretendia cultivar o vinho no novo espaço. Todavia, nunca previu que havia de se tornar no mais afamado da Madeira, levando o seu nome aos quatro cantos do mundo. Em meados do séc. XV, o veneziano Cadamosto fazia fé dessa realidade. Aliás, em 1530, outro italiano, Giulio Landi, proclamava que o malvasia madeirense era reputado melhor do que o vinho de cândida. A fama persistiu até ao presente, sendo o malvasia o mais considerado de todos os vinhos da Ilha. A produção foi sempre reduzida, mas a procura foi sempre elevada. Em 1757, a produção foi de apenas 50 pipas, muito disputadas pelos mercadores funchalenses. Ali, incluíam-se algumas pipas da Fajã dos Padres. A Fajã confunde-se com o malvasia, que foi o mais cobiçado vinho entre todos os mercadores. Os Jesuítas destacaram-se na produção de vinho, sendo acusados, em 1689, por John Ovington, de quase monopólio da malvasia: “Eles asseguram aqui o monopólio do malvasia do que existe em toda a Ilha apenas uma boa e grande vinha - na dita fajã - de que são os únicos possuidores” (ARAGÃO, 1993, 198). A malvasia foi plantada por iniciativa do P.e Sebastião de Lima. Foi dele a ordem de 1663 para  plantar  7000  bacelos  de  malvasia,  a maioria em latada. A  Fajã  deveria  ser  uma  referência  para  os estrangeiros,  pois,  em  1825,  Edward  Bowdich descreveu a viagem por barco à descoberta deste recanto. Por outro lado, para John Driver, aquilo que o entusiasmara, em 1834, tinha sido o malvasia, considerado o melhor entre todos. Em meados do séc. XIX, a fama da malvasia persistia ainda, como afirma Isabella de França: “há um sítio chamado Fajã dos Padres, por  ter  pertencido  antigamente  aos  jesuítas: cresce aqui a melhor malvasia, famosa em todo o mundo” (FRANÇA, 1970, 91). Em 1873, Henry Vizetelly referiu a celebridade do local em virtude das mesmas uvas, mas salienta que a família Neto, proprietária da Fajã, plantou aí verdelho. Os  Jesuítas,  desde  a  fixação  na  Ilha  na  2.ª metade do séc. XVI, foram detentores de fartas fazendas  onde  medravam  culturas  ricas, e.g. a cana de açúcar e a vinha. As suas quintas estendiam-se por toda a Ilha, ficando célebre a que se situava na freguesia de Campanário. Em  1759,  os  bens  da companhia  foram  confiscados  e  arrematados  em hasta  pública  por  João  Francisco  de  Freitas Esmeraldo, no ano de 1770. Na déc. de 70 do séc. XIX, a Fajã estava em poder do Cor. Manuel de França Dória, que a vendeu, em 1919, a Joaquim  Carlos de  Mendonça. A  Qt.  dos Jesuítas  de  Campanário,  definida  pela Quinta Grande, indiciava uma faixa de terreno que ia até ao mar, contemplando a ubérrima Fajã, isolada no litoral, cujo acesso se fazia apenas por mar. Não há muitas informações sobre a Fajã,  para  além  do  afamado  malvasia  que  aí  se  produziu. O isolamento do lugar e os vestígios sobre o  terreno  indiciam  a  presença  permanente  de colonos,  tendo-se  construído, para  o  efeito, uma capela  da  invocação  de  N.ª  Sr.ª  da  Conceição. Apenas sabemos da sua existência em 1626, quando foi  profanada  por  corsários,  mas  a  construção deverá  ser  de  inícios  da  centúria, se tivermos em consideração a data da aquisição pelos Jesuítas, em 1595. A  ermida  foi  referida,  em  1722,  por  Henrique Henriques  de  Noronha,  sendo deixada, 40 anos depois, ao abandono, com a expulsão e o sequestro dos bens dos Jesuítas na Ilha. A memória material da presença quase se apagou no tempo, tendo restado, numa das habitações, a pia para a água benta. Aí, deveria existir uma pequena comunidade de Jesuítas e colonos, que tratavam do amanho da terra, sendo certamente um local de veraneio dos frades, como sucedia na Qt.  do  Cardo, no  Funchal. As  construções  existentes  são  testemunho  disso. Certamente que os piratas argelinos não assaltariam um lugar ermo, sem vivalma e sem interesse económico e religioso. O assalto provocou uma devassa, pelo facto de as gentes de Câmara de  Lobos,  nomeadamente  os  pescadores,  não  terem  acudido  ao  rebate dos sinos. Saíram os Jesuítas, mas ficou o nome na designação do local, Fajã dos Padres, e o interesse pelo vinho aí produzido continuou até 1920, altura em que a Fajã logrou o último afamado malvasia, sobrevivendo apenas algumas parreiras. Em 1940, encontrou-se uma donde se retiraram bacelos que foram plantados em Câmara de Lobos, nas terras de Dermot  Francis  Bolger. Em  1979,  a  operação  foi  repetida  pelo  então proprietário, Mário Jardim Fernandes, que enviou um exemplar ao Instituto Gulbenkian para proceder à clonagem e para o plantar no local. Nos princípios do séc. XXI, a Fajã estava rejuvenescida, e os largos e dourados cachos de uvas regressaram ao recanto junto ao precipício. Recuperou-se a memória e a técnica do afamado malvasia, ao mesmo tempo que se  redescobriu  um  recanto  paradisíaco,  refúgio  de  locais  e  estrangeiros. Desta forma, a cultura da vinha tornou-se um importante recurso para o concelho, como atestam os números de produção em hectolitros: 6838 hl em 1787, 8850 hl em 1813, 11.960 hl em 1837, 8208 hl em 1851, 1455 hl em 1852, e 53.891 hl em 1986. Note-se, ainda, que, em 1863, o concelho dispunha de 23 lagares. A importância agrícola do concelho não se resumia à vinha e a esta localidade, pois também se expandiu a outras localidades, atividades e produções.  A construção da Levada do Norte, inaugurada no dia 1 de junho de 1952, foi um fator importante no maior aproveitamento dos solos, permitindo culturas de regadio. Também na sequência da existência desta infraestrutura, houve a inauguração da iluminação em 14 de dezembro de 1956. Destaca-se a importância que assumiu a cultura da banana, que conviveu com a vinha, com produtos hortícolas e com outras atividades, e.g. a pesca. Na verdade, o concelho de Câmara Lobos, demarcou duas áreas diferenciadas de atividade, a zona baixa, definida pela vila, e o antigo ilhéu, onde dominou a atividade piscatória. Por outro lado, no âmbito do aproveitamento dos recursos do meio, merece referência o aproveitamento da cereja do Jardim da Serra e da castanha, ginja e cidra do Curral das Freiras. De notar as festividades alusivas a estes recursos, e.g. a festa da Cereja e a da Castanha, destacando-se a primeira, por se realizar desde 1953. O Curral das Freiras, dadas as suas condições orográficas, gerou uma realidade económica separada que, por tradição, sempre esteve ligada ao Funchal, por pertencer ao património do Convento de S.ta Clara desde finais do séc. XV. Considere-se que, aqui, como em outras áreas, ainda existem lagariças cavadas na pedra que, no passado, foram usadas para fazer o vinho. A riqueza da área do concelho era diversificada e muito importante para a economia da Ilha. Do mar, vinha o peixe que se vendia para o Funchal, nomeadamente para os conventos. Em terra, verificavam-se as disponibilidades de lenhas e madeiras das zonas altas, das pedreiras do Estreito e do Cabo Girão para a construção de edifícios no Funchal. Acoplado a estas atividades, existia um forno de cal em laboração, que se abastecia de matéria-prima no Porto Santo ou em S. Vicente. A pedra explorada nas diversas pedreiras do concelho (Covão, Gimbreiros, Laurencinha, Palmeira, Cabo Girão) era muito usada na construção dos edifícios da cidade. Desde o séc. xv que a exploração das pedreiras foi um recurso importante para o concelho. Assim, desde finais desse século, as obras da construção da Sé do Funchal alimentaram-se da exploração da cantaria em pedra mole do Cabo Girão. Da pedreira no Estreito, certamente do Sítio do Covão, nos sécs. XVI e XVII “se  arrancou  grande  quantidade  de pedra  de  cantaria  fina, a  qual  se  acarretou  até  Câmara  de  Lobos  e  de  Câmara de  Lobos  até ao  Colégio,  com grande trabalho e extraordinário dispêndio,  e muitas e  grandes  pedras  e  colunas,  que  estavam  em  Câmara de  Lobos  há  muitos  anos, e  parecia  a  todos  impossível  acarretar-se  em  barco” (CARITA, 1987, 50). Note-se que a construção da igreja de S. João  Evangelista  do  Colégio  dos  Jesuítas  do Funchal começou em 1624 e, em 1664, ainda não estavam concluídas as obras. A indústria piscatória foi importante nesta área, abastecendo muitas vezes os conventos do Funchal, como o da Encarnação. Na freguesia de Câmara de Lobos, por força da proximidade do mar e da baía que a serve, criou-se um núcleo muito importante de homens ligados ao mar, que atuaram como barqueiros ou pescadores. E, segundo Maria Lamas, “os  pescadores  de  Câmara  de  Lobos [eram] considerados, desde os tempos do Descobrimento, os principais abastecedores  da  Madeira, especializados, além  disso, na pesca  do  espada” (LAMAS, 1956, 146). Por toda a Ilha, estes barqueiros e pescadores estavam na mira dos oficiais do contrabando, pois eram os interlocutores diretos e ativos deste processo. Desde o Caniçal ao Paul do Mar, as comunidades piscatórias faziam desta sua participação uma compensação lucrativa à sua ação. Na primeira metade do séc. XIX, era evidente este conluio dos pescadores  de  Câmara  de Lobos  com  esta  atividade,  fazendo  da  baía  do  lugar  um  destacado centro de contrabando. Deste modo, em 1838, o diretor da Alfândega apelava ao governador civil, no sentido de se estabelecer uma vigilância  permanente nesta baía com oito praças. Na verdade, os terços auxiliares e as tropas regulares de artilharia, cumpriam também esta função de vigilância auxiliar à Alfândega. Por outro lado, é manifesta a imagem que o lugar sempre transmitiu da sua ligação à pesca e ao mar. Santelmo sempre foi a invocação óbvia em momentos de tempestade. A ele se associava as  centelhas luminosas que apareciam nas extremidades dos mastros dos navios, provocadas pela eletricidade atmosférica. Este fenómeno ficou conhecido como fogo de santelmo. A devoção ao santo ocorria com particular incidência no Funchal, junto ao cabo do Calhau, e em  Câmara de  Lobos. Em  ambos os  portos piscatórios, existiu uma  capela da  sua  invocação, cujo culto  era assegurado por  uma confraria da responsabilidade dos mesmos pescadores. Todavia, a  confraria em questão apostava mais no auxílio mútuo aos pescadores e familiares. Cada barco deveria entregar uma cotização à confraria, para a possibilidade de auxílio em caso de naufrágio ou de morte. Assim sucedeu no Funchal, em Câmara de Lobos e na Calheta, onde funcionou esta confraria. Todo esse apoio passou a estar, desde 1939, centralizado na Casa dos Pescadores. O quotidiano do ilhéu e da vila marcou, durante muitos anos, a imagem de Câmara de Lobos. Maria Lamas descreve assim esse mundo: “Lá do seu bairro, construído sobre o Ilhéu e nas ruelas onde as suas habitações se comprimem,  constituíam uma colónia fechada. Pouco expansivos, mas solidários nas grandes ocasiões, como na desafronta de ofensas que atingem alguns da sua classe, casam sempre dentro do seu meio, têm o seu dialeto, o seu código e o seu conceito de honra, que lhes dita as atitudes. Pena é o hábito de esbanjar nas tabernas o ganho de dias e dias de trabalho, de que resulta tanta miséria. Vêm do mar com os membros lassos, o cérebro entorpecido, a boca a saber a sal; e a excitante poncha de aguardente aquece-lhes o sangue e dá-lhes a sensação de se libertarem, momentaneamente, dos barcos, das redes, das maresias e da penúria” (Id., Ibid., 149). No entanto, nem sempre a proximidade do mar e a presença de uma comunidade de pescadores significavam uma disponibilidade de pescado, e um pescador de Câmara de Lobos, certamente  atraído pelo melhor preço do pescado no mercado do Funchal, foi “condenado por não vender metade do seu peixe ao povo do lugar” (SILVA, 1995, 298). Nesta ligação ao mundo do mar e aos pescadores, aparece-nos associada a “poncha” como a bebida favorita dentro deste universo de pescadores, que acabou por adquirir um estatuto de bebida regional, servida em toda a Ilha. Segundo Maria Lamas, em meados do séc. XX, a situação do consumo e a fama da ponha já era conhecida: “Aguardente de cana, sumo de limão, água e açúcar, tudo batido  com um pauzinho apropriado  que  se  faz  rolar  rapidamente,  entre  as  palmas  das  mãos – é  a  receita  da bebida  cem  por  cento  madeirense  a  que  chamam  ‘poncha’  ou  ‘ponchinha’, um  diminutivo  popular  de  muito  apreço.  Bebem-na  especialmente os  pescadores,  é  certo,  mas grande  consumo  lhe  dão  também  pastores e  outros  homens  da  montanha – nem  há  nada melhor  para  dar  calor  e  levantar  o  ânimo,  sobretudo  nas  friagens  do  Inverno […] A de Câmara de  Lobos  tem  fama – em  nenhuma  outra  freguesia  há  quem  saiba prepará-la como  ali” (LAMAS, 1956, 149). Outro recurso eram as madeiras e as lenhas que tinham uma utilização diversa no concelho e no Funchal. Até meados do séc. XIX, a floresta foi um  meio indispensável à sobrevivência e às comodidades humanas, com o fornecimento de lenhas e madeiras.  Em todos os tempos,  a  riqueza  de  uma região dependeu da reserva que delimitava a fronteira do espaço agrícola e humanizado. As  madeiras da  ilha  da  Madeira  foram  muito apreciadas no séc. XV na construção naval, no reino e na Ilha. O seu uso imoderado nestas e noutras atividades  conduziu  à  paulatina  desarborização da Ilha, pelo que as autoridades concelhias atuaram no sentido  da  defesa  do  parque  florestal  madeirense, restringindo o uso das madeiras a sectores essenciais da vida local. Por outro lado, deve-se ter em consideração as necessidades de lenhas para o fabrico do açúcar. Na ribeira dos Socorridos, os dois engenhos geravam uma atividade constante ao longo da Ribeira, assim descrita por Gaspar Frutuoso:  “toda  a  lenha  que  se  gasta  nos  dois  engenhos que  estão  nela e  em  outros dois, que tem  Câmara  de Lobos,  que  está  perto, trazem  por ela abaixo,  que  podem ser 80.000 cárregas de azémola cada ano, antes mais que menos.  E tem esta ordem para  trazer  esta  lenha:  tendo-a cortada  nos  montes, a põem em  lanços  perto  das  rochas  da ribeira,  e  cada  senhorio  da lenha,  que  a  mandou  cortar,  tem posto sua marca em  cada  rolo,  que,  pela  maior parte,  é  toda lenha grossa,  pondo  uma  mossa,  outras  duas, outros  três ou quatro,  e  tanto  que chove se ajuntam como 100 homens das fazendas,  indo-se  aos  montes  e  serranias,  onde  têm  suas rumas  de lenha  posta,  e  lançam-na  à  ribeira  pelas  rochas abaixo,  que  são  muito  altas;  a  água,  como  é  muita,  traz aquela multidão  de  lenha  e  muitos  daqueles homens  trazem uns  ganchos  de  ferro  metidos  em  umas  hastes  de  pau compridas,  com  os  quais desembarram e desembaraçam a lenha, que vem toda pela  ribeira  abaixo,  e, se (como acontece muitas  vezes)  acerta de  cair  algum  deles  na  ribeira,  com  aqueles ganchos  apegam  dele  por  onde  se acerta, ainda  que  o firam;  com  que,  ou  morto  ou  vivo,  o  tiram  fora  da  água, e acontece  algumas  vezes  morrerem  alguns  homens  neste grande  trabalho.  Vindo  com  esta  lenha  pela  ribeira  abaixo com grande arruído  e  pressa,  e  comidas e bebidas,  que  para este  efeito  ajuntam  e  o trabalho  requer,  quando chegam junto  dos engenhos,  onde a  ribeira  espraia  e  faz  maior largura, espalha-se  a  água,  por  ser a  ribeira  muito chã,  e,  ficando quase  em  seco,  dali a tiram com  os mesmos ganchos, e cada um  dos  senhorios,  por sua marca,  aparta  a  sua,  pondo-a  em rumas  muito  grandes  para  o  tempo  da  açafra  do  açúcar. Mas acontece algumas vezes, chovendo em demasia na serra, que enche a  ribeira  muito  e  leva muita  cópia desta lenha  ao mar,  em  que  se perde  grande  parte do  custo  que têm  feito” (FRUTUOSO, 1968, 119-120). Apenas mais uma referência: no Estreito de Câmara Lobos, houve, em princípios do séc. XX uma fábrica de manteiga, propriedade do médico José  Sabino  de Abreu (1874-1954).   Património Em Câmara de Lobos, Isabella de França, em 1854, visitou a igreja matriz e exaltou o contraste da pobreza do meio com a riqueza do interior do tempo: “A  igreja  de  Câmara  de Lobos  fica no  extremo da  vila,  e, como a porta estivesse aberta, nós entrámos, em parte para ver o  templo  e  em parte para  escapar  aos mendigos.  Neste  local tão bravio,  incivilizado, de aspeto primitivo,  onde se diria  só passar  gente  rude,  é  curioso  deparar-se-nos uma  igreja  adornada de magníficas  colunas de ouro e prata, pinturas de cores brilhantes,  embora  sem  arte  no  desenho,  lampadários,  obra de  talha,  toda  a  espécie  de  coisas  inadequadas  a  semelhante lugarejo.  Faz-me confusão pensar como é que veio ter a Câmara de  Lobos  tanto  ouro e tanta prata!” (FRANÇA, 1970, 197). O Estreito possui três igrejas, que correspondem às sedes das três paróquias existentes: igreja de N.ª Sr.ª da Graça (1753-1814), igreja de N.ª Sr.ª da Encarnação (1966-67), no Covão, e igreja do Garachico ou de N.ª Sr.ª do Bom Sucesso (1963). Como capelas, regista-se a capela de N.ª Sr.ª da Encarnação (1671), a capela das Almas (1767), e a capela de S.to António (1780). Na Quinta Grande, existe a capela de N.ª Sr.a dos Remédios, a capela da Vera Cruz (séc. XV?), a capela de S.to António (1883), e a capela de N.ª Sr.a de Fátima (déc. de 70 do séc. XX?). O Curral das Freiras possui apenas a igreja matriz, da invocação de S.to António (1784). No Jardim da Serra, há a igreja paroquial de S. Tiago e a capela de N.ª Sr.a da Consolação (1684). Nas diversas freguesias, houve instituições culturais e desportivas que desenvolveram um papel relevante no concelho. No Estreito de Câmara de Lobos, houve a Casa do Povo desde 1970 e, depois dos anos 80 do séc. XX, diversas instituições: o Grupo Desportivo do Estreito, fundado em 24 de julho de 1980, proprietário da rádio local Girão, de 2 de setembro de 1989 a 30 de setembro de 1997, que teve o mesmo nome que a revista Girão, publicada a partir de 1988. Na freguesia, surgiu ainda o Grupo Coral do Estreito de Câmara de Lobos, fundado a 3 de julho de 1989, e, desde 15 de abril de 1997, a Associação Cultural e Recreativa do Estreito. Na Quinta Grande, merece destaque a criação da  Casa do Povo, em 1995, com o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Quinta Grande, desde 1996, que havia sido fundado em 12 de setembro de 1988, por João de Carvalho; no Curral das Freiras, a Casa do Povo, criada em 1973, e o Grupo de Folclore da Casa do Povo do Curral das Freiras, fundado no dia 1 de novembro de 1986. Foi criado ainda o Clube Desportivo do Curral das Freiras e a associação Refúgio da Freira. O Jardim da Serra apresenta uma Associação Cultural e Recreativa do Jardim da Serra, criada a 10 de setembro de 1990, que tinha, desde 1993, um Grupo de Cantares e Tocares, integrado na Casa do Povo, que surgiu em 29 de janeiro de 1997.   Personalidades Na lista de gente ilustrada do concelho, deve-se destacar primeiro a figura de João Gonçalves,  ligada a esta localidade pelo nome e pela extensão de propriedades que vinculou aos seus familiares. Próximo dele está João Afonso, seu companheiro de viagem de reconhecimento da Ilha, que teve terras em Câmara de Lobos, onde instituiu uma capela do Espírito  Santo. Está na origem da casa Torre Bela, uma das mais importantes do concelho e da Ilha. Exerceu nesta o cargo de almoxarife do infante D. Henrique, arrecadando as receitas e os impostos que lhe eram destinados. Na mesma linha, podemos apontar a figura de Fr. Pedro da Guarda (1435-1505), que, em  1485, se retirou para a Ilha, criando em Câmara de Lobos o eremitério de S. Bernardino. Era conhecido como o santo servo de Deus, sendo muito venerado pelas populações devido às suas virtudes e aos seus milagres. Em princípios do séc. XVIII, a memória do lugar e do frade ainda estava muito ativa: “Convento  da  invocação de S. Bernardino, em  que residem 20 Religiosos, aonde se veneram as relíquias de um  servo  de  Deus.  Fr.  Pedro  da  Guarda, natural  daquela Cidade, floresceu  em maravilhosas virtudes naquele Convento, aonde  continuamente recorrem  os  moradores desta  Ilha com romarias, e deprecações, voltando quase sempre a suas casas remediados nas suas vexações;  o  que  mais  difusamente trata o P. Mestre Fr. Fernando da  Soledade na  terceira parte da sua Crónica” (COSTA, 1945, 66). De entre as várias personalidades deste concelho, destacam-se: Jaime  César  de Abreu (1899-1967), da freguesia  do Estreito  de  Câmara  de  Lobos; Luiz Vicente de Afonseca (1803-1878), médico do Estreito de Câmara de Lobos; António  Rodrigues de Aguiar (1932-1981), de Câmara de Lobos, emigrante na Venezuela desde 1947, onde criou a cadeira de lojas TIA; João  Crisóstomo de Aguiar (n. 1935), economista,  nascido  no Sítio  da  Torre; P.e José  Gonçalves de Aguiar (n. 1831), doutor  em  Teologia,  nascido na Vila  de  Câmara  de Lobos; D. Manuel Joaquim Gonçalves Andrade (1767), da Quinta Grande,  bispo na cidade de São Paulo no Brasil; António Joaquim Gonçalves de Andrade (1795-1865), da Quinta Grande; João  Isidoro  de Araújo Figueira (1859-1934), comerciante do Estreito de  Câmara de Lobos; Francisco Vieira  da Silva Barradas (1821-1897), bacharel  formado  em  Direito, pela Universidade  de  Coimbra,  e proprietário, nascido no concelho de Câmara  de  Lobos; João Higino de Barros (1883-1941), nascido  na  freguesia  de Câmara  de  Lobos ; José  de Barros Sousa (1859-1930), magistrado, nascido na freguesia  de  Câmara  de  Lobos;  José  Lino  da Costa (1891-1945), sacerdote, nascido no Estreito de Lobos; João  Pedro  de  Freitas Drummond (1760-1825), advogado  e  escritor,  nascido em  Câmara de  Lobos; Agostinho  Figueira Faria (1923-1980), cónego da Sé do Funchal e orador; Francisco  Figueira Ferraz (1861-1948), proprietário e comerciante, nascido no Estreito de Câmara de Lobos, sócio-gerente  da firma  F.  F.  Ferraz & Ca.; Francisco  de  Araújo Figueira (m. 1914), comerciante e proprietário, nascido na freguesia de Câmara  de Lobos, diretor da Companhia do Caminho-de-Ferro  do  Monte e  diretor  da  Companhia  da  Luz Eléctrica  da  Madeira; Alfredo  Isidoro Gonçalves (1882-1965), comerciante, sobrinho de António  Isidoro  Gonçalves, fundador  da  Companhia  Vinícola  da Madeira; João  Isidoro Gonçalves (m. 1909), médico  pela  Escola  Medico-Cirúrgica  do  Funchal; João Joaquim Henriques (1879-1968), proprietário  e  comerciante, conhecido por João de  Belém, fundou a firma exportadora de vinhos Henriques & Henriques; João de  Sousa Henriques Júnior (m. 1959), licenciado em Matemática, nascido em Câmara de Lobos; Luís  Soares  de Sousa Henriques Júnior (m. 1939), médico  pela  Escola  Médico-Cirúrgica  do  Funchal,  nascido  em Câmara  de  Lobos; João  Evangelista Lopes (1909-1967), sacerdote  católico,  nascido  na freguesia  de  Câmara  de  Lobos; António  José  de Macedo (1840-1912), advogado,  nascido  no  Estreito  de Câmara de Lobos; Eduardo  Clemente  Nunes Pereira (1887-1976), sacerdote,  professor e  jornalista da vila; D. Mateus de Abreu Pereira (1742-1824) da Quinta Grande, bispo na cidade de São Paulo, no Brasil; Eduardo  Antonino Pestana (1891-1963), professor,  advogado,  publicista  e  jornalista; Henrique  Augusto Rodrigues (1856-1934), proprietário  e  comerciante da freguesia de  Câmara  de Lobos, coproprietário do Bazar  do Povo, no Funchal; Anselmo  Baptista de  Freitas Serrão (1846-1922)  de  Câmara  de Lobos,  regente  da  filarmónica  dos Artistas  Funchalenses; Ernesto Baptista Serrão (1893-1937), nascido  na  freguesia  de Câmara  de  Lobos,  segundo-sargento,  músico que deixou um legado de composições musicais. Merece menção separada Henrique Henriques de  Noronha, que nasceu  a  1  de  março  de  1667,  filho  de  Pedro  Bettencourt  Henriques e de Maria de Meneses. Casou-se a 27 de abril de 1697, na freguesia da Sé, com Francisca Maria de Vasconcelos, de que nasceu uma só filha,  Antónia Joana Francisca Henriques de Noronha. Fez  estudos  de  cânones  em  Coimbra,  nos  anos  de  1682  a  1684. Foi  uma personalidade  de  destaque  na  sociedade  madeirense,  participando  ativamente  na  vida da cidade.  Assim,  entre 1706 e 1707, foi provedor  da  confraria  da  Misericórdia  do  Funchal.  Faleceu a  27  de  abril de 1730,  sendo sepultado na capela-mor da igreja do Colégio no túmulo dos Brandões,  cujo  morgadio  administrava  desde  a  morte  do  seu  tio  Inácio Bettencourt da Câmara. Deixou inédita a obra Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal, que foi publicada em 1996. Câmara de Lobos é conhecida nos princípios do séc. XXI pela sua atividade piscatória e pelo facto de ter, na sua área, alguns dos acidentes geográficos mais emblemáticos da Ilha que, com o desenvolvimento do turismo no séc. XX, ganharam importância e atenção: o Cabo Girão e o miradouro da Eira do Serrado. O nome terá sido atribuído por João Gonçalves Zarco e pelos navegadores que o acompanhavam no reconhecimento da costa sul da Ilha, ficando a marcar o fim da primeira fase e o retorno à base, como diz Gaspar Frutuoso: “Deste lugar de Câmara de Lobos não passaram mais para baixo, assim porque lhe ficavam os navios longe, como porque daqui não puderam ver bem para  baixo a costa com o  muito  arvoredo. Contudo, quando se saíam desta câmara e remanso, da ponta do mar viram uma  rocha muito alta, logo aí apegado e arrebentar no mar em uma ponta que ela abaixo fazia, a qual lhe ficou por  meta e fim  do seu descobrimento, e lhe deram nome o Cabo de Girão por ser daquela vez  a  derradeira  parte e cabo do  giro  de seu caminho. Daqui tornaram outra  vez dormir aquele  dia ao  ilhéu  da  noite passada,  onde  dormiram nos batéis  a  ele abrigados” (FRUTUOSO, 1968, 49). A valorização deste espaço como um eixo importante dos roteiros turísticos da Madeira só começou no séc. XX, por iniciativa da Delegação de Turismo da Madeira, sob a presidência de João Abel de Freitas. A partir de outubro de 1938, este seria um ponto de visita obrigatória. Novas obras aconteceram no espaço em 1953 e 2012. Na literatura de viagens e turismo sobre a Madeira, o Cabo Girão é uma referência que se perpetua no tempo. Assim, em meados do séc. XIX, Isabella de França afirmou, como se verificou acima, o seu deslumbramento. Já o miradouro da Eira do Serrado, embora tenha o miradouro desde 1852, mandado construir por José Silvestre Ribeiro, só adquiriu importância relativamente ao turismo em 1962. Depois, no ano imediato, foi aberto ao público, fazendo a ligação ao sítio do Curral. A vista deste miradouro foi celebrada por muitos visitantes, podendo referenciar-se o deslumbramento de A. Samler Brown, em 1890, de O. Hanstein, em 1925, de J. Hutcheon, em 1929, e de Claude Dervenn, em 1959. Note-se ainda a importância da base do Cabo Girão na extração de cantaria mole, que foi utilizada em muitas construções de fachadas de edifícios, e.g. na Sé Catedral do Funchal, no convento de S.ta Clara, no forte de S. Tiago, no museu da Qt. das Cruzes, no museu Frederico de Freitas, no museu de Arte Sacra, no palácio de S. Lourenço, no palácio dos Cônsules, no palácio dos Ornelas, na capela do parque de S.ta Catarina, na capela da Boa Viagem, e na Torre do Capitão.      Alberto Vieira (atualizado a 25.01.2017)  

História Económica e Social História Política e Institucional

biologia marinha

Biologia marinha é a parte da biologia que estuda os organismos que vivem nos ecossistemas de água salgada, a relação entre eles e a sua relação com o ambiente. Quase 71 % da Terra está coberta por oceanos. Estes funcionam como reguladores da temperatura no planeta e as suas características e alterações físicas afetam, direta ou indiretamente, as populações (Oceanografia). O fenómeno do El Niño, e.g., que provoca alterações no clima de muitas regiões do mundo, tem origem no oceano Pacífico. Da mesma forma, os níveis das ondas e marés afetam diretamente os contornos dos continentes e as populações costeiras. Além disto, os organismos marinhos são uma importante fonte de alimentação e produtos naturais para o mundo. Por isso, entender a relação e a interdependência entre os organismos marinhos entre si e com o ambiente é muito importante. História da biologia marinha Os primeiros estudos sobre organismos marinhos remontam à Grécia e Roma antigas. Aristóteles, e.g., descreveu cerca de 500 espécies, 1/3 das quais são marinhas, e interessou-se especialmente por entender o funcionamento das brânquias. Plínio, o Velho, um naturalista romano, incluiu diversas espécies de peixes, moluscos e mexilhões na sua História Natural. Foi, porém, nos sécs. XVIII e XIX que o estudo dos organismos marinhos cresceu exponencialmente com os avanços da tecnologia, nomeadamente com a construção de melhores barcos e instrumentos de navegação. A investigação das costas portuguesas foi alvo de numerosos estudos a partir do séc. XIX, sendo tal região nordeste do Atlântico denominada Província Lusitana. Nesta altura, colecionaram-se inúmeros exemplares de organismos marinhos, escreveram-se inventários de espécies e descreveram-se muitas espécies novas para a ciência. Neste período, a maior parte das amostras eram disponibilizadas por pescadores locais ou encontradas nos mercados. Algumas expedições oceanográficas, e.g. as organizadas por D. Carlos I (1863-1908), contribuíram significativamente para o avanço da biologia marinha em Portugal. Foi também o penúltimo rei de Portugal quem concebeu e impulsionou a fundação do Aquário Vasco da Gama, inaugurado em maio de 1898. Em meados do séc. XX, a publicação de Peixes do Portugal e Ilhas Adjacentes em 1956, por R. Albuquerque, foi um marco na biologia marinha em Portugal, constituindo-se na principal referência desta área durante mais de 30 anos. Esta obra incluía uma lista completa da ictiofauna (espécies de peixes) conhecida na época, assim como uma chave para a sua identificação. Durante a segunda metade do séc. XX, um dos grandes impulsionadores da biologia marinha em Portugal foi Luiz Saldanha (1937-1997), professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que publicou inúmeros estudos nesta disciplina, desde invertebrados e algas até à fauna das profundezas oceânicas, e impulsionou a proteção de áreas naturais marinhas. O desenvolvimento e melhoramento das técnicas de mergulho, no princípio do séc. XXI, assim como outros avanços tecnológicos, deram um novo impulso ao conhecimento da ictiofauna e dos habitats marinhos. É possível, e.g., aos cientistas irem até ao chão marinho com submergíveis de águas profundas ou enviarem robots com câmaras para estudarem os habitats mais profundos e os organismos que neles habitam. Zonas ou regiões oceânicas O lugar específico onde os organismos vivem é chamado habitat. Alguns exemplos de habitats marinhos são: costas rochosas, praias de areia, recifes de coral, mar profundo, entre outros. Os habitats e as suas condições dependem muito da zona ou região oceânica onde se encontram. Domínio bentónico: É a área mais próxima do fundo oceânico e pode ser subdividida em várias zonas. A zona litoral é o conjunto de habitats que estão sob a influência das marés, e a parte que fica exposta durante a maré baixa é denominada de zona entremarés. Estes habitats estão sujeitos à força mecânica das ondas, à alternância entre submersão e exposição ao ar, à água salgada (ondas), à água doce (chuvas), e a uma grande variação de temperatura, luz solar, salinidade, etc. Em virtude de tudo isto, os organismos que habitam nestas zonas têm de ter uma grande capacidade de adaptação. As zonas mais profundas do domínio bentónico são similares às zonas do domínio pelágico: a zona batial, situada no declive ou talude continental até aproximadamente aos 4000 m de profundidade; a zona abissal, com profundidades até aos 6000 m; e a zona hadal, que compreende o fundo das fossas oceânicas. Os organismos que habitam no domínio bentónico são denominados de bentos e vivem no substrato, sobre o sedimento ou enterrados nele, fixos ou não. Domínio pelágico: É a zona de mar aberto que começa a seguir à zona litoral e continua até ao alto mar. A sua profundidade vai desde os 10 m até quase aos 6000 m. A camada de água que cobre a plataforma continental é conhecida como província nerítica e é adjacente à zona litoral. A área por cima do oceano mais profundo é denominada de província oceânica. O domínio pelágico pode ser dividido em presença de luz solar em zona eufótica, até aproximadamente aos 200 m de profundidade, e em zona afótica, a parte do oceano que se mantém na escuridão. Este domínio também pode ser dividido segundo as diferentes profundidades: zona epipelágica, até aos 200 m de profundidade; zona mesopelágica, entre os 200 e os 1000 m; zona batipelágica, entre os 1000 e aos 4000 m; zona abisopelágica, dos 4000 aos 6000 m, incluindo as planícies abissais; zona hadopelágica, abaixo dos 6000 m, incluindo as fossas abissais (a fossa mais profunda conhecida é a fossa das Marianas que se encontra no oceano Pacífico e atinge 11.034 m de profundidade). Os organismos que vivem no domínio pelágico são de dois tipos: plâncton, organismos que ficam à deriva dos movimentos da água, e nécton, organismos capazes de nadar. Fig. 1 – Desenho com os diferentes domínios e as zonas oceânicas. Por P. Puppo.     Fatores ambientais Cada um dos habitats marinhos possui um conjunto de características físicas que, juntamente com a capacidade dos organismos para se adaptarem a elas, determina a distribuição de espécies. Cada espécie tem requisitos diferentes para cada um destes fatores e a sua capacidade de adaptação às mudanças pode alterar a sua distribuição ou mesmo levar a que uma espécie não se reproduza ou morra. É este conjunto de fatores, e.g. luz solar, temperatura, salinidade, pressão, nutrientes, que determina a distribuição das espécies. Luz solar: Este é um dos fatores mais importantes nos habitats marinhos. A luz solar penetra até diferentes profundidades, dependendo da qualidade da água. Em zonas onde a água é mais turva, a luz solar pode chegar a um metro de profundidade, enquanto, em zonas onde a água é mais transparente, a luz solar pode chegar aos dois metros de profundidade. A luz solar é essencial para os processos de fotossíntese de muitos organismos, e.g. plantas marinhas, algas e fitoplâncton. Também é necessária para a visão, já que muitos animais dependem deste sentido para caçar, fugir aos predadores ou para comunicar entre si. Os animais das profundezas, onde a luz solar é escassa ou não chega, dependem de outros sentidos, como o cheiro e o gosto, ou desenvolvem formas de produzir luz (bioluminescência). Temperatura: Da mesma forma que a luz solar, a temperatura também varia consoante a profundidade. A maior parte dos animais marinhos são ectotérmicos, ou seja, a sua temperatura corporal depende da temperatura do exterior e, por isso, são mais ativos quando a água fica mais quente. Os mamíferos e aves, por outro lado, são endotérmicos, produzem o seu próprio calor, e possuem uma temperatura interior normalmente maior que a temperatura da água. Os animais endotérmicos precisam de adaptações especiais que lhes permitam isolar a temperatura do seu corpo da temperatura exterior. Salinidade: Salinidade é a concentração de sais orgânicos dissolvidos na água. Os organismos possuem membranas semipermeáveis que deixam passar a água, mas não os sais (osmose) e, por isso, é muito importante conseguirem manter o equilibro dos níveis de água nos seus corpos. Se os organismos deixarem sair água a mais, podem-se desidratar ou mesmo morrer. Pressão: A pressão do mar mede-se em atmosferas (atm), sendo 1 atm equivalente a 101.325 Pa (pascais, a medida padrão de pressão). A pressão que a atmosfera exerce sobre o nível do mar é de 1 atm e vai aumentando consoante a profundidade, à razão de 1 atm por cada 10 metros de profundidade. Assim, e.g., a uma profundidade de 4000 m, a pressão é de 400 atm. Com esta diferença em pressão, os animais que normalmente habitam na superfície do mar não conseguem sobreviver às profundezas oceânicas. Organismos como as baleias, que conseguem nadar tanto na superfície do mar como nas profundezas, possuem adaptações especiais que lhes permitem tolerar estas diferenças em pressão. Nutrientes: Os organismos também precisam de uma série de compostos orgânicos e inorgânicos para crescerem e se reproduzirem. O cálcio, que é abundante no mar, é necessário para que organismos como os crustáceos, caracóis, ostras, corais, etc., se possam desenvolver. Da mesma maneira, compostos como o nitrogénio e o fósforo são essenciais para os organismos que produzem fotossíntese, e.g. o fitoplâncton, as algas e as plantas marinhas. O oxigénio, por seu turno, é indispensável a muitos organismos, como as plantas, os animais e muitos micróbios. O excesso de nutrientes, por outro lado, também pode levar a problemas sérios, como a sobrepopulação de fitoplâncton, conhecida vulgarmente como explosão de algas – que, ao morrerem, se decompõem, consumindo todo o oxigénio e matando outros organismos. Normalmente, as zonas de águas rasas e as zonas intermareais apresentam uma maior variação em luz solar, temperatura, salinidade e nutrientes, e os organismos que nelas habitam necessitam de se adaptar a estas variações. Pelo contrário, as zonas de águas mais profundas apresentam níveis de temperatura, sal, pressão e nutrientes mais constantes, pelo que os organismos destas áreas são muito mais intolerantes a alterações abruptas nestes fatores. Ecossistemas e cadeias alimentares A interação entre as comunidades de organismos e o efeito que o meio (os fatores ambientais) tem sobre elas é designada por ecossistema. Uma das principais interações entre as comunidades bióticas é a cadeia alimentar, em que umas comunidades se alimentam de outras e, por isso, dependem delas para sobreviver. Estas cadeias alimentares são um ciclo que começa com os produtores, organismos capazes de produzir o seu próprio alimento e que servem de alimento a outros organismos, os consumidores, e que acaba com os decompositores, organismos que transformam cadáveres e excrementos em nutrientes, que podem ser reutilizados pelos produtores. Frequentemente, os consumidores alimentam-se de diferentes organismos, o que torna estas interações muito mais complexas. Produtores: Os produtores são organismos autótrofos, ou seja, são capazes de produzir o seu próprio alimento. A maior parte dos produtores faz isto através de um processo conhecido como fotossíntese, em que os organismos usam luz solar, dióxido de carbono e água para produzir glucose, libertando oxigénio. Consumidores: Os consumidores são todos os organismos incapazes de produzir o seu próprio alimento e que, por isso, se alimentam de outros organismos. Os consumidores podem ser herbívoros, que se alimentam dos produtores; carnívoros, que se alimentam de outros consumidores; ou omnívoros, que se alimentam tanto de produtores como de outros consumidores. Decompositores: São organismos que se alimentam de cadáveres ou de qualquer outro resto orgânico, transformando-os em compostos ou moléculas mais simples, que podem ser reaproveitadas pelos produtores. Microrganismos marinhos Os microrganismos são os organismos mais abundantes no oceano e, embora não sejam visíveis a olho nu, cumprem funções importantíssimas nos ecossistemas marinhos: são a base das cadeias alimentares, decompõem organismos mortos e reciclam nutrientes. Existem vários tipos de microrganismos marinhos: vírus, bactérias, fungos, diatomáceas, etc. Os mais significativos são mencionados com mais detalhe a seguir. Vírus marinhos: Os vírus não são considerados organismos, mas parasitas, já que só se podem reproduzir usando uma célula hóspede. Fora de um hóspede, os vírus são inertes e são chamados vírions. Uma vez dentro de uma célula, podem-se reproduzir rapidamente, produzindo milhares de novos vírus. As células infetadas morrem e, por isso, os vírus podem reduzir significativamente populações de bactérias e outros microrganismos, libertando nutrientes no mar. Bactérias marinhas: As bactérias são organismos unicelulares procariontes (que carecem de membrana no núcleo e organelos). As cianobactérias, também conhecidas como algas azuis ou algas verde-azuladas, são organismos capazes de produzir o seu próprio alimento através da fotossíntese. Grandes quantidades de cianobactérias podem formar tapetes que dão uma cor característica à água, e.g. o caso do mar Vermelho. As bactérias incapazes de produzir o seu próprio alimento alimentam-se de outros organismos e decompõem matéria orgânica, libertando compostos inorgânicos no mar. Algumas bactérias associam-se a outros organismos (simbiose), tal como acontece com alguns peixes dos abismos oceânicos que produzem luz (bioluminescência) por meio de uma simbiose com bactérias produtoras de luz. Arqueias: Estes organismos são procariontes e muito parecidos com as bactérias, mas as suas membranas celulares são muito resistentes e, por isso, conseguem habitar áreas extremas com temperaturas muito baixas ou muito elevadas (acima dos 100 ºC) ou com uma alta concentração de sais, alta pressão, ambientes muito ácidos, etc. Algumas arqueias não precisam de oxigénio para viver e libertam metano. Fungos marinhos: Os fungos são organismos eucariotas (as suas células têm um núcleo delimitado por uma membrana e por organelos) cuja membrana celular é composta de quitina, o mesmo composto que se encontra nas carapaças de animais como os crustáceos. Os fungos são organismos que precisam de oxigénio para viver e são incapazes de produzir o seu próprio alimento. Não são muito abundantes no mar e, de facto, menos de 1 % dos fungos são marinhos. Liquens: Estes organismos são uma simbiose entre um fungo e uma bactéria, o que lhes permite viver em zonas inóspitas para outros organismos como, e.g., zonas intermareais altas. Diatomáceas: As diatomáceas pertencem ao grupo das Straminopiles, um grupo variado de algas que inclui as algas castanhas. As diatomáceas são organismos protistas (grupo de organismos eucariotas), unicelulares e fotossintéticos caracterizados por possuir a membrana exterior à maneira de carapaça (conhecida por frústula), rica em dióxido de silício. Como a sílica é indissolúvel, quando estes organismos morrem, as suas frústulas depositam-se no fundo marinho, formando sedimentos de sílica que podem ser depois colhidos e usados como filtros ou abrasivos para usos comerciais. São um grupo numeroso de organismos, estimando-se que existem mais de 100.000 espécies de diatomáceas, e são o principal componente do fitoplâncton. Cocolitóforos: Parecidos com as diatomáceas, estes microrganismos fotossintéticos possuem, em vez de uma carapaça de sílica, escamas de carbonato de cálcio (conhecidas como cocólitos). Após a morte do organismo, estes cocólitos formam importantes depósitos de cálcio no chão marinho. Na Madeira, Kaufmann registou, em 2004, cerca de 37 espécies de cocolitóforos. Dinoflagelados: São organismos protistas, unicelulares cobertos por placas de celulose. Muitas espécies são autótrofas, outras são heterótrofas (alimentam-se de outros organismos), algumas são parasitas e outras vivem em simbiose com outros organismos. Algumas espécies produzem luz (são bioluminescentes) e outras produzem toxinas que podem matar outros animais. Estas toxinas podem-se acumular em alguns organismos (e.g. peixes) que se alimentam de dinoflagelados, e também afetar a saúde dos seres humanos. Em todos os verões, desde 2007, se têm registado casos, na Madeira e nas Selvagens, de pessoas intoxicadas por dinoflagelados. Um outro fenómeno originado por estes organismos são as marés vermelhas, uma concentração de dinoflagelados que aparece quando as condições são favoráveis e estes organismos se reproduzem rapidamente. As espécies autótrofas de dinoflagelados são o segundo componente mais importante do fitoplâncton, após as diatomáceas. Fig. 2 – Desenhos de dois microrganismos marinhos: cocolitóforo (esquerda) e dinoflagelado (direita). Por P. Puppo.   Protozoários ameboides: São organismos protistas e heterótrofos que se alimentam de bactérias e outros microrganismos. Possuem extensões no citoplasma, denominadas de pseudópodos, que usam para locomoção ou para apanhar presas. Pertencem a dois grupos: os foraminíferos, que possuem uma concha calcária, que, muitas vezes, é responsável pela tonalidade cor-de-rosa da areia em algumas praias, e os radiolários, que possuem uma cápsula porosa que deixa passar os pseudópodos e formam uma carapaça interna de sílica. Após a morte destes organismos, as conchas e carapaças formam depósitos importantes no fundo marinho. Fitoplâncton: é o conjunto de microrganismos marinhos capazes de realizar fotossíntese, e.g. as cianobactérias, diatomáceas, cocolitóforos, algumas espécies de dinoflagelados e algumas espécies de algas castanhas. Pertencem ao grupo dos produtores e são os principais responsáveis pela transformação de dióxido de carbono (CO2) em oxigénio, não só nos oceanos, mas também na atmosfera. Um estudo realizado em 2015 por Kaufmann, no oceano Atlântico ao redor da Madeira, concluiu que o fitoplâncton é composto de mais de 470 espécies, das quais 55 % são diatomáceas e 33 % são dinoflagelados.   Algas e plantas marinhas Embora os principais produtores marinhos sejam os microrganismos conhecidos como fitoplâncton, as algas e plantas marinhas também estão incluídas no grupo dos produtores. Na sua maioria, estes organismos não flutuam com as correntes marinhas, mas estão fixos no substrato. A exceção a esta regra é um grupo de algas castanhas conhecidas como sargaço, que formam tapetes flutuantes no oceano. Além da sua função como produtores, as algas e plantas marinhas proporcionam habitats para outros organismos e, por outro lado, as raízes das plantas são importantes para fixar o substrato marinho. Algas marinhas: Existem três grupos de algas: as verdes, as vermelhas e as castanhas. As algas verdes e as algas vermelhas são parecidas com as plantas, enquanto as algas castanhas estão mais relacionadas com as diatomáceas. O seu nome deriva dos diferentes pigmentos que cada um destes grupos de algas possui. Estes pigmentos ajudam estes organismos a absorver diferentes comprimentos de onda da luz e, assim, a adaptar-se às diferentes zonas do oceano. Também protegem as algas em caso de excesso de exposição à luz solar. As algas verdes, e.g., absorvem ondas de luz vermelha e, por isso, estas algas encontram-se mais perto da superfície. As algas vermelhas, por seu lado, absorvem ondas de luz azul (que penetram mais no oceano) e, por isso, encontram-se a maiores profundidades, enquanto as algas castanhas se distribuem tipicamente por profundidades intermédias. A temperatura também afeta a distribuição e abundância das algas, sendo que estes organismos são geralmente mais abundantes perto dos trópicos. As algas não têm folhas, caules, nem raízes como as plantas. O seu corpo é denominado talo, a parte plana é a lâmina, o estipe é a parte parecida com o caule das plantas, mas sem tecidos vasculares, e a zona parecida com uma raiz, que fixa o organismo ao substrato, chama-se rizoide. Algumas algas formam vesículas cheias de ar nas lâminas que ajudam os organismos a flutuar e, assim, a ficar mais perto da superfície e a captar mais luz solar. Muitas espécies de algas são exploradas pelo homem para consumo direto, e outras são usadas como fonte de alguns compostos usados na indústria farmacêutica e alimentícia, e.g. substitutos da gelatina (ágar) para produzir cápsulas, supositórios, anticoagulantes, cremes, geleias, etc. Plantas marinhas: As plantas que vivem em águas salgadas são plantas com flores que se adaptaram a estes ecossistemas. Diferentemente das algas, as plantas marinhas possuem folhas, caules e raízes pelas quais absorvem nutrientes do substrato. Vivem em zonas de pouca profundidade, formando prados marinhos, oferecem refúgio a muitos animais bentónicos e servem de alimento a algumas espécies de peixe-papagaio, ouriço-do-mar e tartarugas marinhas. Estas plantas, conhecidas também como ervas marinhas, fixam o sedimento marinho com as suas raízes, diminuindo a turbidez da água, e diminuem a velocidade da água com as suas folhas. A lista mais recente de algas e plantas marinhas do arquipélago da Madeira, publicada em 2001 por Neto e colaboradores, inclui uma espécie de planta marinha e 359 espécies de algas marinhas, das quais 231 são algas vermelhas, 64 são algas verdes e 64 são algas castanhas.   Fig. 3 – Desenho das partes de uma alga castanha. Por P. Puppo.      Invertebrados marinhos Os invertebrados são aqueles animais que carecem de coluna vertebral, ao contrário dos vertebrados (peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos), que possuem esta estrutura. Os invertebrados são muito mais numerosos que os vertebrados e, entre os invertebrados marinhos, encontram-se as esponjas, cnidários, ctenóforos, vermes marinhos, moluscos, crustáceos, etc. Esponjas: As esponjas são os animais mais simples, pois não têm tecidos, órgãos ou sistema nervoso. O seu corpo apresenta uma forma de tubo, um dos seus extremos é fechado, por estar preso ao substrato, e o outro extremo, denominado ósculo, por onde sai a água, é aberto. O interior do corpo é chamado espongiocele. Alimentam-se de pequenas partículas (bactérias, plâncton, detritos) que apanham, filtrando a água que entra por vários pequenos orifícios – os óstios – no corpo. As esponjas são um componente importante de águas pouco profundas e ajudam na reciclagem de cálcio no oceano. Até 2012, foram registadas por Xavier e Van Soest 95 espécies de esponjas de águas rasas na região oceânica em redor das ilhas Canárias e da Madeira. Cnidários: Os cnidários são animais cujo corpo está organizado em redor de um único buraco (ou boca) rodeado de tentáculos urticantes que injetam uma toxina. A toxina de algumas espécies pode ser mortal, embora alguns animais, e.g. o peixe-palhaço, lhe sejam imunes. Os cnidários apresentam duas formas de vida, pólipo ou medusa, e estão subdivididos em quatro classes principais. Os Hydrozoa apresentam duas fases no seu ciclo de vida (pólipo ou medusa) e incluem as hidras e a caravela-portuguesa ou garrafa azul. Os Scyphozoa são sobretudo medusas, mexem-se, mas são incapazes de ir contra a corrente e são as comummente chamadas medusas, águas-vivas ou alforrecas. Os Cubozoa são medusas em forma de cubo, também conhecidas como cubozoários, e são predadores ativos que matam a sua presa, injetando-a com toxinas; alimentam-se sobretudo de peixe. Os Anthozoa são pólipos, vivem fixos no substrato marinho e incluem as anémonas, que apanham as suas presas com os seus tentáculos, e os corais, que segregam um esqueleto externo de cálcio e formam colónias de inumeráveis indivíduos (recifes). Os cnidários alimentam-se por filtração (Hydrozoa e corais) ou apanhando pequenos peixes e invertebrados com os seus tentáculos (Scyphozoa, Cubozoa e anémonas). A comida é digerida no interior oco dos organismos, na cavidade central ou gastrovascular, e os restos são expulsos para o exterior pelo único buraco que estes organismos possuem. Muitos cnidários também servem de alimento a outros animais, e.g. tartarugas marinhas e várias espécies de peixe, que comem medusas, e uma espécie de estrela-do-mar, que come corais. Os recifes de corais são as colónias de organismos maiores do mundo e são importantes em muitos aspetos: constituem o habitat de muitos outros seres vivos, servem de substrato para várias espécies do domínio bentónico e atenuam o impacto das ondas marinhas. Os cnidários são muito abundantes na Madeira e no Porto Santo; e.g., só para os Hydrozoa, Wirtz registou em 2007 a ocorrência de 53 espécies. Ctenóforos: conhecidos vulgarmente como carambolas-do-mar ou águas-vivas-de-pentes, estes organismos caracterizam-se pela presença de filas de cílios (à maneira de pentes), que utilizam para nadar, e por produzirem luz (são bioluminescentes). São parecidos com as medusas, mas normalmente não têm tentáculos ao redor da boca; poucas espécies possuem só dois tentáculos, que não produzem toxinas e que usam para apanharem as suas presas. Os ctenóforos são predadores e alimentam-se principalmente de plâncton, embora algumas espécies comam medusas. Vermes marinhos: Os vermes marinhos são muito numerosos e estão subdivididos em muitos grupos. Só alguns serão mencionados seguidamente com mais pormenor. Os platelmintos são vermes-planos, têm olhos rudimentares, que lhes permitem distinguir as diferentes intensidades de luz, têm um só buraco por onde entra o alimento e saem os resíduos, e são carnívoros, alimentando-se de pequenos invertebrados. Algumas espécies destes vermes-planos, os turbelários, medem entre alguns milímetros e 50 cm e vivem livremente no domínio bentónico; outras espécies são parasitas de outros animais e, em alguns casos, como as ténias das baleias, podem medir até 30 m de comprimento. Os nemátodos são vermes redondos cujo corpo é cilíndrico e alongado e possui uma boca e um ânus. Os seus hábitos alimentares são muito variados, desde varredores, parasitas e predadores, consumindo, alguns, bactérias e algas. Estes vermes são muito abundantes e, embora normalmente sejam pequenos (menos de 5 cm), algumas espécies podem atingir mais de um metro de comprimento. Os anelídeos são vermes segmentados cujo corpo é composto de muitos segmentos iguais entre si, o que lhes permite uma maior mobilidade. Os anelídeos marinhos mais comuns pertencem ao grupo dos poliquetas, que têm o corpo coberto de cerdas e são de vida livre (pelágicos) ou sedentários. Os vermes marinhos cumprem muitas funções importantes nos ecossistemas. As espécies que vivem enterradas no substrato ajudam na reciclagem de nutrientes, pois, ao cavar no sedimento, trazem à superfície nutrientes que podem ser reaproveitados por outros organismos. Outras espécies alimentam-se de pequenos organismos ou detritos ou servem de comida para animais maiores. Briozoários: Também conhecidos como animais-musgo, pertencem ao grupo dos lofoforados, já que possuem um círculo de tentáculos ciliados ao redor da boca. O seu aparelho digestivo tem a forma de um U, sendo que o ânus está muito próximo da boca. Os briozoários são animais que vivem formando colónias sésseis e se alimentam por filtração. Moluscos: É um grupo de organismos muito variado que inclui animais como lulas, polvos, mexilhões, etc. O seu corpo é mole e é composto de uma cabeça, onde estão os órgãos sensoriais, um pé, usado para a locomoção, e um manto, que protege a maior parte do corpo e que muitas vezes segrega uma concha. Os moluscos apresentam um sistema digestivo completo (boca-ânus) e, com exceção dos bivalves, possuem uma estrutura conhecida como rádula, um tecido que contém dentes usados para raspar, rasgar ou cortar os alimentos. Os moluscos são uma importante fonte de alimento para animais e seres humanos e constituem uma importante fonte de cálcio para algumas aves marinhas. Os moluscos estão subdivididos em várias classes, algumas delas extintas (só se conhecem por fósseis). As espécies marinhas encontram-se, sobretudo, em quatro classes: Polyplacophora (cerca de 1200 espécies), Gastropoda (40.000-50.000 espécies), Bivalvia (cerca de 800 espécies), e Cephalopoda (cerca de 790 espécies). Os Polyplacophora são organismos exclusivamente marinhos que habitam sobretudo na zona entremarés, o seu corpo é plano, estando coberto por oito placas calcárias, e alimentam-se de algas e plantas que raspam do substrato com a rádula. Os quítons pertencem a este grupo. Os gastrópodes mexem-se deslizando pelo substrato com o pé musculado; a maioria das espécies possui uma concha, enroscada (caracóis) ou mais ou menos lisa (lapas), e outras espécies, como os nudibrânquios, carecem de concha. A sua alimentação é igualmente variada: algumas espécies são herbívoras e alimentam-se de algas ou plantas marinhas, outras são carnívoras e comem cnidários, equinodermos e bivalves, e outras espécies alimentam-se por filtração. Os bivalves são moluscos que têm o corpo protegido por uma concha carbonatada dividida em duas valvas que se abrem e fecham pela contração de um músculo. Não têm cabeça, nem rádula, usam o pé para se enterrarem no substrato e para se movimentarem, e alimentam-se por filtração. Os cefalópodes são moluscos carnívoros; caracterizam-se por ter o pé modificado à maneira de cabeça e por uma boca rodeada de tentáculos que usam para capturar presas, defender-se de predadores e mover-se. Os cefalópodes são um grupo numeroso e variado que inclui: os nautilus, que têm concha e de 60 a 90 tentáculos; os chocos e lulas, que têm uma pequena concha interna e 10 tentáculos (tendo 2 mais compridos que os outros), e os polvos, que carecem de concha e têm 8 tentáculos. Os chocos, lulas e polvos têm o sistema nervoso mais complexo de todos os invertebrados, possuem olhos bem desenvolvidos, libertam uma nuvem de tinta para distrair os predadores, e conseguem mudar de cor e textura. O grupo dos moluscos é muito abundante na Madeira, sendo que, em 2009, Segers e colaboradores registaram a ocorrência de cerca de 850 espécies destes organismos no arquipélago da Madeira. Artrópodes: Os artrópodes são um grupo muito numeroso de invertebrados que inclui os insetos e constituem cerca de 75 % de todas as espécies de animais. Caracterizam-se por um exosqueleto feito de quitina, corpo segmentado e apêndices articulados especializados para a locomoção, alimentação ou perceção sensorial. Os artrópodes marinhos pertencem sobretudo a dois grupos, os Chelicerata (grupo onde também estão incluídos as aranhas, ácaros e escorpiões) e os Crustacea ou crustáceos. Os Chelicerata carecem de mandíbulas e, por isso, digerem a comida antes de a ingerirem; o representante aquático deste grupo é o límulo ou caranguejo-ferradura-do-atlântico, que vive em zonas de águas rasas e se alimenta de pequenos invertebrados e algas. Os crustáceos possuem mandíbulas, que usam para esmagar e mastigar os alimentos, duas antenas e, dependendo da espécie, patas modificadas para caminhar e para nadar, ou apresentam pinças para caçar ou para defender-se. Os crustáceos são muito numerosos, cerca de 50.000 espécies, e incluem as lagostas, caranguejos e camarões, que possuem duas pinças e quatro pares de patas, sendo, na sua maioria, predadores (embora alguns sejam varredores ou filtradores), e também percebes e cracas, os únicos crustáceos sésseis, além de outros organismos como os krill, anfípodes e copépodes, que são importantes componentes do zooplâncton. Na Madeira, Wirtz e colaboradores registaram, em 2006, a ocorrência de 27 espécies de percebes, e Araújo e Wirtz, em 2015, registaram cerca de 215 espécies de lagostas, caranguejos e camarões. Equinodermes: São um grupo de organismos marinhos e bentónicos, particularmente abundantes no oceano profundo, mas também se encontram em águas rasas. Possuem um esqueleto interno (endoesqueleto) formado por placas calcárias e um grande poder regenerativo, podendo originar um novo organismo a partir de uma parte do corpo. Este grupo inclui: as estrelas-do-mar, cujo corpo é constituído por um disco central e cinco braços; os ofiúros ou estrelas-serpente, semelhantes às estrelas-do-mar, nos quais o disco central inclui todos os órgãos vitais e os braços são finos e compridos; os ouriços-do-mar e bolachas-da-praia, organismos redondos com espinhos; os pepinos-do-mar, que têm um corpo alongado; e os lírios-do-mar ou crinóides, que se fixam ao substrato e estendem os braços para se alimentarem. Os equinodermes são importantes herbívoros ou predadores e servem de alimento a uma variedade de espécies, e.g. moluscos, caranguejos, peixes, lontras marinhas e até seres humanos. Estes organismos são muito diversos na Madeira, sendo que De Jesus e Abreu registaram, em 1998, 52 espécies de equinodermes na Madeira, das quais 27 são espécies de percebes (segundo o estudo de Wirtz e colaboradores publicado em 2006) e 6 são ouriços-do-mar (segundo o estudo de Alves e colaboradores feito em 2001). Destas espécies, vale a pena mencionar Diadema antillarum, uma espécie dominante de ouriço-do-mar que se alimenta das extensas zonas de algas. Tunicados: Estes organismos são os mais parecidos com os vertebrados; estão incluídos no grupo dos cordados, mas, em vez de uma coluna vertebral, apresentam uma notocorda (corda dorsal) que surge só no seu desenvolvimento embrionário. Os adultos carecem desta estrutura. Os tunicados são organismos marinhos que se alimentam por filtração: algumas espécies são sésseis e outras vivem livremente no mar aberto; enquanto algumas são solitárias, outras formam colónias. Peixes marinhos Os peixes pertencem ao grupo dos animais vertebrados, pois possuem uma série de ossos ou cartilagens que dão suporte à medula espinal e proporcionam um lugar de fixação para os músculos do corpo. Os peixes marinhos são os animais vertebrados mais abundantes nos oceanos, distribuindo-se desde as zonas costeiras até ao mar aberto e desde zonas pouco profundas até zonas abissais. Muitas espécies de peixes têm adaptações para eliminar o excesso de sal dos seus corpos. Os tubarões, e.g., têm glândulas de sal localizadas no reto, enquanto outras espécies de peixes ósseos segregam o sal através de células especializadas nas brânquias. Os peixes estão subdivididos em três grandes grupos: os peixes sem mandíbulas (cerca de 80 espécies), que incluem as lampreias e as mixinas; os peixes cartilaginosos (cerca de 1000 espécies), que incluem os tubarões e as raias; e os peixes ósseos (cerca de 25.000 espécies), que incluem todos os peixes com esqueleto ósseo, e.g. as sardinhas, o bacalhau, o atum, etc. Peixes sem mandíbulas: Os animais neste grupo não têm mandíbulas, pares de barbatanas ou escamas, e os seus esqueletos são compostos só de cartilagem. As mixinas ou enguias-de-muco são animais parecidos com as lampreias, mas têm dois pares de tentáculos na boca que usam na alimentação, vivem no substrato a profundidades inferiores a 600 m, alimentando-se de pequenos invertebrados ou animais mortos, e produzem grandes quantidades de muco para afastar os predadores. As lampreias vivem tanto em água doce como em água salgada, têm uma boca à maneira de ventosa circular, com a qual raspam ou sugam o seu alimento, sendo muitas espécies consumidas pelo homem como alimento. Peixes cartilaginosos: Estes peixes têm mandíbula, barbatanas e o seu esqueleto é composto de cartilagem e coberto com sais de cálcio. A este grupo pertencem os tubarões, animais carnívoros que se alimentam de uma variedade de presas, desde os leões-marinhos ao fitoplâncton. As raias também pertencem a este grupo e caracterizam-se pelos seus corpos achatados, fendas branquiais localizadas por baixo do corpo, e um estilo de vida bentónico, alimentando-se de pequenos invertebrados, e.g. moluscos e crustáceos, ou de plâncton. As quimeras também são peixes cartilaginosos que, na sua maioria, habitam nas profundezas e se alimentam de peixes, crustáceos e moluscos. Os peixes cartilaginosos têm várias estratégias reprodutivas: algumas espécies são ovíparas (os embriões desenvolvem-se dentro de um ovo, fora do corpo da mãe), outras são vivíparas (o embrião desenvolve-se dentro do útero materno alimentado por uma placenta), e outras são ovovivíparas (o embrião desenvolve-se dentro de um ovo, alimentando-se das substâncias nutritivas do mesmo, mas o ovo fica dentro do corpo da mãe, proporcionando-lhe proteção). Peixes ósseos: São o grupo mais numeroso de peixes e caracterizam-se por ter esqueleto ósseo, escamas ósseas e uma bexiga-natatória, que ajuda o animal a manter uma certa profundidade. A forma do corpo varia muito consoante o estilo de vida das espécies; a forma típica é a fusiforme, que os ajuda a nadar, mas há espécies que têm um corpo globoso (e.g. o peixe-balão), ou achatado (e.g. o linguado), ou alongado (e.g. a enguia), ou com a cauda enroscada (e.g. o cavalo-marinho). O estilo de vida destes peixes também é muito variado: pelágicos (mar aberto), e.g. as sardinhas, atuns, etc.; mesopelágicos, que percorrem grandes distâncias verticais no oceano, porque vivem nas profundezas durante o dia e sobem à superfície à noite para se alimentarem; bentónicos, que vivem mais perto do substrato, enterrados nele, e.g. o linguado, ou escondidos entre as rochas, e.g. as enguias; batipelágicos e abissais, que vivem na zona batial ou abissal (de grandes profundidades). A sua alimentação também é muito variada: muitos são carnívoros e alimentam-se de pequenos invertebrados, muitos outros são herbívoros e comem plantas e algas, e outros, ainda, são filtradores e alimentam-se sobretudo de plâncton. A maior parte dos peixes ósseos é ovípara. Na Madeira, estima-se que existam cerca de 550 espécies de peixes. Entre estas, 226 são espécies costeiras e 133 são de peixes associados a recifes. Não há espécies de peixes marinhos endémicos só à Madeira (ou seja, que só ocorram no oceano ao redor da Ilha), mas há 11 espécies endémicas pertencentes aos arquipélagos da Madeira, dos Açores e das Canárias, uma espécie, Mauligobius maderensis, endémica à Madeira e às ilhas Canárias, e outra, Paraconger macrops, endémica aos Açores e à Madeira. As espécies que ocorrem na Ilha são muito variadas: raias, enguias, peixes-agulha, peixes-trombetas, cavalos-marinhos, arenques, barracudas, garoupas, sargos, peixes-papagaios, atuns, peixes-escorpião, linguados, peixes-balão, etc. Ocasionalmente, são avistadas na Madeira espécies do mar aberto, e.g. a caravela-portuguesa (Cnidário, Hydrozoa), e várias espécies de tubarões: tubarão caneja, tubarão branco, tubarão azul, tubarão martelo, tubarão baleia, entre outros. Os peixes oceânicos que ocorrem na Madeira são uma mistura de espécies similares às que ocorrem na região mediterrâneo-atlântica (espécies de águas temperadas) e de espécies tropicais que atingem o limite norte da sua distribuição nesta área, e.g.: Aluterus scriptus, Canthidermis sufflamen, Caranx crysos, Gnatholepis thompsoni, Heteroconger longissimus, entre outras. Alguns autores sugerem que há um aumento no número de espécies tropicais no mar da Madeira, presumivelmente devido ao aumento da temperatura da água ocasionado pelo aquecimento global (ver, e.g., o artigo publicado por Wirtz e colaboradores em 2008). Répteis marinhos Os répteis são um grupo de animais adaptados à vida terrestre, embora algumas espécies também habitem ecossistemas aquáticos. São animais de sangue frio, ou ectotérmicos, já que a sua temperatura corporal depende da temperatura do exterior; por isso, a maior parte destes organismos vive em zonas temperadas e quentes. Estes animais têm o corpo coberto de escamas, alimentam-se de diversos organismos, têm muito poucos predadores, e reproduzem-se colocando ovos amnióticos, onde o embrião está rodeado por uma série de membranas, tendo o ovo uma casca dura. Os répteis marinhos bebem água salgada e eliminam o excesso de sal através de umas glândulas especializadas localizadas na cabeça. Estes animais vão sempre a terra para depositar os seus ovos. As espécies de répteis adaptadas à vida marinha são poucas. A iguana-marinha é a única espécie de lagarto que vive em águas salgadas e só ocorre nas ilhas Galápagos; tem a glândula de sal no nariz. Existem cerca de 50 espécies de serpentes marinhas e todas ocorrem nos oceanos Pacífico e Índico. Só existem três espécies de crocodilos adaptadas à vida em águas salgadas: o crocodilo-marinho distribuído pela Ásia (Crocodylus porosus), o crocodilo americano (C. acutus), e o crocodilo do Nilo (C. niloticus). Estes crocodilos têm as glândulas de sal na língua. Das tartarugas, só sete são marinhas e têm uma ampla distribuição por águas tropicais e subtropicais, mas só uma espécie, a tartaruga-de-couro, consegue tolerar águas mais frias, tendo sido avistada em zonas como o Canadá e Alasca. Estas tartarugas são carnívoras, com exceção da tartaruga-verde, que é herbívora; têm as glândulas de sal localizadas por cima dos olhos. Seis das sete espécies de tartarugas marinhas estão em perigo de extinção devido ao impacto humano: o desenvolvimento do turismo nas praias afasta as tartarugas que vão até à areia depositar os seus ovos; muitas tartarugas ficam presas nas redes de pesca ou em lixo; outras comem sacos de plástico que encontram no mar, confundindo-os com medusas, e muitas espécies são também caçadas pelo seu couro. Os únicos répteis marinhos que ocorrem na Madeira são cinco espécies de tartarugas: a tartaruga-boba (Caretta caretta), que é a mais comum, a tartaruga-verde (Chelonia midas), a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea), a tartaruga-de-Kemp (Lepidochelys kempii), e a tartaruga-de-escama (Eretmochelys imbricata). Aves marinhas As aves são animais endotérmicos ou de sangue quente, já que conseguem manter a sua temperatura corporal constante, apesar da temperatura exterior, devido à sua elevada taxa metabólica. Por isso, conseguem habitar zonas muito mais frias, como o Ártico e o Antártico. Além disto, os seus corpos estão cobertos de penas, o que lhes dá um maior isolamento. As aves também põem ovos amnióticos como os répteis e têm glândulas de sal sobre os olhos que as ajudam a libertar o excesso de sal através do nariz. Das quase 8000 espécies de aves que existem, cerca de 250 estão adaptadas a ambientes marinhos; estas aves alimentam-se no oceano, mas retornam a terra, onde se reproduzem e formam colónias de ninhos que as protegem de predadores. Aves costeiras: Estas aves não são propriamente aves marinhas, no sentido em que não nadam muito e não têm as patas palmadas (especiais para nadar); têm patas compridas e um bico longo e fino e alimentam-se sobretudo na zona entremarés. A este grupo pertencem espécies como as garças, ostraceiros, etc., e estão incluídas em várias famílias da ordem Ciconiiformes. Gaivotas, gaivinas e afins: Este grupo de aves é muito diverso e inclui espécies como a gaivota, gaivina, torda-comum, papagaio-do-mar, etc. Estas espécies estão incluídas em várias famílias da ordem Charadriiformes. Estas aves têm patas palmadas e glândulas de óleo para impermeabilizar as suas penas. Vivem perto do mar, formam grandes colónias na terra e têm distribuição a nível mundial. Pelicanos e afins: Este grupo inclui espécies como o pelicano, alcatraz, fragata, etc. São aves aquáticas que, na sua maioria, têm um saco extensível pendurado na sua mandíbula inferior e alimentam-se mergulhando na água e capturando peixes, cefalópodes e crustáceos. Estas espécies pertencem à ordem Pelecaniformes. Aves pelágicas: A este grupo pertencem espécies como as cagarras, albatrozes, petréis, e outras, todas incluídas na ordem Procellariiformes. Estas aves têm as narinas em forma de tubo e vivem em mar aberto, podendo passar vários meses no oceano. Alimentam-se de peixes e cefalópodes e, como as outras aves marinhas, nidificam em terra formando grandes colónias. Pinguins: São o grupo de aves mais bem adaptado à vida marinha: não voam, as suas asas estão modificadas à maneira de barbatanas para nadar e possuem uma camada de gordura por baixo da pele para isolar o corpo do frio exterior. Todas as espécies de pinguins, com exceção de uma (o pinguim-das-galápagos), vivem em zonas frias no hemisfério sul e alimentam-se de peixes, lulas e krill. Os pinguins pertencem à ordem Sphenisciformes. Na Madeira, os diferentes habitats e ilhas que compõem o arquipélago constituem importantes zonas de nidificação para numerosas aves marinhas. Os penhascos, assim como a ocorrência de pequenas ilhas e ilhotas como as Desertas, os ilhotes de Porto Santo e as ilhas Selvagens, são especialmente importantes para a reprodução de numerosas espécies, e.g. a freira-do-bugio, ave endémica da Macaronésia (Madeira, Selvagens, Canárias, Açores, Cabo Verde), que se reproduz em Bugio, uma das ilhas das Desertas. A própria ilha da Madeira, pela sua localização no meio do oceano, constitui um sítio ideal para a nidificação de muitas aves pelágicas, e.g. a freira-da-madeira, ave endémica desta Ilha. Outras aves pelágicas (ordem Procellariiformes) que ocorrem nestas ilhas são: alma-negra, roque-de-castro e pintainho, que nidificam nas Selvagens e Desertas; a cagarra, que nidifica na Madeira, Selvagens e Desertas; e o calcamar, que nidifica nas Selvagens. Outras aves marinhas, da ordem Charadriiformes (gaivotas e afins), que ocorrem nas ilhas são: gaivota-de-patas-amarelas, borrelho-de-coleira-interrompida, garajau-rosado e garajau-comum. Mamíferos marinhos Os mamíferos são animais endotérmicos, capazes de manter a sua temperatura corporal, e dão à luz crias que são alimentadas com leite materno produzido em glândulas mamárias. Os mamíferos marinhos vivem a maior parte da sua vida na água e, por isso, possuem adaptações especiais, como barbatanas; têm uma camada de pelos ou uma camada grossa de gordura por baixo da pele que os ajuda a isolá-los das temperaturas exteriores e, por isso, podem viver em águas geladas como a dos polos. Os mamíferos marinhos estão agrupados em seis grupos pertencentes a três ordens: Carnivora (lontras, ursos polares, focas), Sirenia (peixe-boi), e Cetacea (baleia, golfinho, etc.). Lontra-marinha: Estes animais têm uma camada grossa de pelagem que os protege do frio, as patas traseiras têm os dedos unidos à maneira de barbatanas e alimentam-se de ouriços-do-mar, crustáceos, moluscos e peixes que apanham no fundo do mar e, depois, levam até à superfície para comer, enquanto flutuam sobre as suas costas. As lontras-marinhas estão distribuídas pelo Norte do oceano Pacífico. Ursos polares: Os ursos polares habitam na região ártica, onde são os maiores predadores, alimentando-se sobretudo de focas. Estão em perigo de extinção, porque são caçados pelo homem e porque o seu habitat (o gelo do Ártico) está a diminuir drasticamente em virtude do aquecimento global. Estes animais têm uma camada de gordura debaixo da pele e uma pelagem densa que prende o ar, mantendo o corpo quente, mesmo quando o animal está dentro de água. Pinípedes: Os pinípedes são um conjunto de três famílias de mamíferos marinhos: Otariidae, que inclui lobos-marinhos e leões-marinhos; Phocidae, onde estão as focas e os elefantes-marinhos; e Odobenidae, que inclui as morsas. Estes animais passam a maior parte do tempo na água; só vão a terra (ou gelo) para se reproduzirem, dar à luz e amamentar as crias. Possuem uma grossa camada de gordura debaixo da pele e pelo que os ajuda a isolar o frio exterior, e têm patas modificadas em forma de aletas; alimentam-se de peixes e invertebrados, sendo que só o leopardo-marinho se alimenta de outras focas, pinguins e aves marinhas. Sirenia: Os sirénios são animais estritamente herbívoros que passam a totalidade da sua vida na água. Não têm pelo, apresentam só duas patas (à frente), à maneira de aletas, e uma cauda achatada que usam como remo. Existem duas famílias na ordem Sirenia: Dugongidae, que inclui os dugongos, animais estritamente marinhos distribuídos pelo oceano Índico, e os Trichechidae, a família dos peixe-bois, animais que habitam zonas de água salgada ou água doce no Oeste de África e no centro e Sul da América. Cetáceos: De forma semelhante aos sirénios, os cetáceos não têm pelo, têm uma camada grossa de gordura debaixo da pele para isolamento, só possuem duas patas (embora os embriões destes animais apresentem as quatro patas, perdendo depois as patas traseiras) e têm a narina (espiráculo) na parte superior da cabeça. Os cetáceos estão divididos em dois grandes grupos: as baleias sem dentes ou baleias com barbas (subordem Mysticeti) têm, em vez de dentes, cerdas feitas de queratina com as quais filtram a água para se alimentarem de plâncton e pequenos invertebrados, e.g. krill. Este grupo inclui os maiores mamíferos que existem na Terra, como a baleia-azul (até 27 m de comprimento), a baleia-comum (25 m) e a baleia-franca (20 m). As baleias com dentes (subordem Odontoceti) incluem animais como os cachalotes, as orcas, os golfinhos e os narvais. À exceção do cachalote (20 m), as espécies deste grupo são muito mais pequenas que as baleias sem dentes e alimentam-se de peixe, lulas e outros cefalópodes, sendo que as orcas também consomem focas, tartarugas e tubarões. No oceano em redor da Madeira, foram registadas 19 espécies de mamíferos marinhos: uma espécie de foca e 18 espécies de cetáceos. A foca-monge-do-mediterrâneo é a única espécie de foca que se encontra no arquipélago, tendo uma população residente nas ilhas Desertas, embora alguns indivíduos sejam avistados na Madeira. As espécies de grandes baleias (baleias com barbas), e.g. a baleia comum, passam nesta região durante as grandes migrações que realizam anualmente. Espécies de baleias com dentes, e.g. cachalote ou golfinhos, usam o oceano da Madeira para se alimentarem, para se reproduzirem ou como área de residência. Algumas das espécies de baleias com dentes (subordem Odontoceti) frequentemente avistadas na Madeira são: o cachalote, a baleia-piloto-tropical, o roaz e o golfinho-comum. Fig. 4 – Fotografia de golfinhos na Madeira. Por P. Puppo.   Os habitats marinhos da Madeira e os organismos que neles habitam A Madeira é uma ilha de origem vulcânica; este tipo de ilhas aparece primeiro debaixo da superfície do mar como um monte que se forma no fundo marinho e depois cresce por atividade vulcânica até emergir (topografia marinha). Assim, quando uma ilha emerge (é visível por cima do nível do mar), está vazia e é colonizada por elementos da flora e fauna de regiões circundantes. No caso dos organismos marinhos da Madeira, estes têm diferentes origens e, na sua maioria, provêm da região atlântico-mediterrânica. Várias espécies do Atlântico colonizaram a Madeira e também o Mediterrâneo, daí que estas regiões tenham organismos semelhantes. Espécies do Norte do Atlântico e espécies provenientes de outras ilhas do Nordeste do Atlântico também colonizaram a Ilha. Afinidades das espécies marinhas da Madeira com outras de regiões mais longínquas também têm sido observadas, e.g. espécies provenientes de regiões tropicais e subtropicais do Atlântico, que atingiram o limite norte da sua distribuição na Madeira, juntamente com espécies do Norte de África, como Marrocos, encontrando-se também, na Madeira, espécies cosmopolitas, que habitam a maioria das regiões marítimas da Terra. A diversidade de espécies marinhas na Madeira também depende das diferentes zonas ou regiões oceânicas, como se verá em seguida. Domínio bentónico: O mar à volta da Madeira é geralmente frio devido às correntes que vêm do Nordeste, atingindo 22 ºC durante o verão. É frio demais para a construção de recifes de corais e, por isso, os corais que existem na Madeira vivem isoladamente (não formam recifes). A diversidade de peixes é grande, cerca de 550 espécies são conhecidas na Madeira, coincidindo a maior parte com as da zona do Mediterrâneo. Algumas espécies são de origem tropical e atingem na Madeira o limite norte da sua distribuição, como, e.g., o peixe-globo Diodon hystrix ou o peixe-trombeta Aulostomus strigosus. Algumas espécies de peixes, e.g. os sargos, são muito comuns nas costas da Madeira, nadando no substrato rochoso e alimentando-se das algas que crescem nele. Zona costeira: Na Madeira, a costa é caracterizada por penhascos abruptos. Estes penhascos, sobretudo os do lado Norte da Ilha, servem de habitat a muitas espécies de aves marinhas que nidificam nestas zonas. Por outro lado, as extensões de areia das outras ilhas, que compõem os arquipélagos da Madeira e Selvagens, também servem como lugares de nidificação para espécies de aves importantes, e.g. o calcamar, que ocorre no ilhéu de Fora e Selvagem Grande, ou o borrelho-de-coleira-interrompida, em Porto Santo. Nas Desertas, a foca-monge-do-mediterrâneo Monachus monachus, a única espécie de foca que vive em águas temperadas, tem nestas ilhas um importante refúgio, já que a espécie se encontra em perigo de extinção. Poças de maré: Estas poças formam-se quando uma depressão na rocha fica inundada com água do mar, durante a maré-baixa. Na Madeira, estas poças de maré constituem o habitat de uma série de espécies de invertebrados: e.g. o camarão Palaemon elegans, os caranguejos Percnon gibbesi e Eriphia verrucosa, estrelas-do-mar, ouriços-do-mar, anémonas, caracóis marinhos, como Monodonta edulis, espécie endémica da Macaronésia, entre outros. Entre as algas comuns nestas zonas, encontramos algas castanhas como Padina pavonica, uma alga em forma de funil, ou espécies do género Cystoseira, algas com lâminas ramificadas que criam uma aparência frondosa. Algumas destas poças de maré podem ser observadas em Porto Moniz e em Seixal. Zona entremarés: A zona entremarés é a zona que fica coberta de água quando a maré é mais alta e que fica a descoberto quando a maré é mais baixa. É uma zona onde a exposição ao ar, à humidade, à luz solar, à temperatura, à salinidade, etc. muda constantemente. Na Madeira, esta zona é frequentemente habitada por algas vermelhas dos géneros Lithophyllum e Corallina. Nesta zona, também são comuns as lapas, moluscos que permanecem fixos no substrato durante o dia e saem à noite para comer as algas que raspam com a sua rádula, sobretudo as espécies do género Patella, e.g. P. candei, que é endémica da Macaronésia. As lapas são muito apreciadas na gastronomia local. Outros organismos abundantes desta zona são os percebes ou cracas, caranguejos, caracóis marinhos (e.g. as litorinas Tectarius striatus (=Littorina striata), espécie endémica da Macaronésia), a barata-do-mar, a Ligia oceanica (espécie de crustáceo da ordem Isopoda), entre outros. Muitas espécies de aves também se encontram nestas zonas, e.g.: a rola-do-mar, a gaivota-de-patas-amarelas, o garajau, o guincho-comum, maçaricos, borrelhos, entre muitas outras. Domínio pelágico: O facto de a Madeira estar tão longe da costa continental faz com que o alto mar seja o sítio ideal para que muitas espécies se alimentem e reproduzam, e.g. cachalotes, golfinhos e também muitas aves pelágicas. Outras espécies, que também se encontram algumas vezes no alto mar da Madeira, são o tubarão branco e muitas outras espécies de tubarões e baleias, e.g. a baleia azul, etc. Uma espécie muito conhecida e apreciada na culinária madeirense é o peixe-espada-preto, Aphanopus carbo, espécie de peixe batipelágica, comum nas profundezas oceânicas, que habita a profundidades entre os 200 e os 1600 m. Conservação das espécies marinhas da Madeira A conservação na Madeira foi sempre levada a sério. Nenhuma árvore, e.g., na Madeira pode ser cortada sem autorização desde 1515. A 10 de novembro de 1982 foi fundado o Parque Natural da Madeira (PNM), pelo dec. regional n.º 14/82/M. O PNM abrange cerca de 67 % da superfície da ilha da Madeira e está subdividido em zonas com diferentes estatutos de proteção. Algumas destas zonas, onde estão protegidas espécies marinhas de interesse, encontram-se descritas em baixo. Reserva da Ponta de São Lourenço: A ponta de São Lourenço é uma pequena península de 9 km de comprimento e 2 km de largura, localizada a leste da ilha da Madeira, e tem um clima muito diferente do resto da Ilha, sendo muito mais seca. Esta região não só tem uma série de espécies de plantas e animais terrestres endémicas, como também é o local de nidificação de muitas espécies importantes de aves pelágicas, e.g. a alma-negra (Bulweria bulwerii), a cagarra (Calonectris borealis), o garajau-comum (Sterna hirundo), ou o roque-de-castro Hydrobates castro. Num dos ilhéus adjacentes a esta região, o ilhéu do Desembarcadouro, encontra-se o local de nidificação de uma das maiores colónias da gaivota-de-patas-amarelas (Larus cachinnans atlantis), espécie endémica da Macaronésia. Na ponta de São Lourenço, também se podem observar cachalotes, golfinhos, focas-monge-do-mediterrâneo e tartarugas marinhas. A ponta de São Lourenço pertence ao PNM desde que este foi criado e, a partir de 2001, esta península, juntamente com o mar adjacente até à batimétrica de 50 m, foram incluídos na Rede Natura 2000 da União Europeia como Zona Especial de Conservação. Os ilhéus do Desembarcadouro e do Farol são Áreas de Proteção Total, sendo que quaisquer atividades humanas, fora da investigação científica, assim como ações de conservação e de educação ambiental, estão proibidas. A península da ponta de São Lourenço é Área de Proteção Parcial, onde qualquer atividade humana deve ser primeiro autorizada, e as zonas de praias e miradouros são Áreas de Proteção Complementar, em que as atividades humanas são permitidas sempre que não ponham em risco o equilíbrio ambiental. A região da ponta de São Lourenço, juntamente com os ilhéus adjacentes, está classificada como Important Bird Area (IBA) pela Birdlife International, em virtude de ser o local de nidificação de várias espécies de aves pelágicas protegidas. Reserva Natural Parcial do Garajau: Esta reserva foi estabelecida em 1986 e compreende uma área aproximada de 3,76 km2, contando com uma extensão de 6 km ao largo da costa sul da Madeira entre a ponta do Lazareto e a ponta da Oliveira, e chegando até os 50 m de profundidade. Esta área é caracterizada pelas suas águas transparentes e a sua rica biodiversidade. Nesta Reserva, está proibida a pesca e recoleção de organismos vivos, assim como chegar à costa num barco a motor; o mergulho é permitido, mas é necessária uma autorização do PNM. Algumas das espécies mais frequentes da zona entremarés da Reserva são: litorinas, líquens, cracas, lapas, caranguejos, algas, esponjas, anémonas, estrelas-do-mar, etc. Nos bentos, o ouriço-de-espinhos-longos, Diadema antillarum, é bastante frequente. No domínio pelágico, ocorrem numerosas espécies de peixes: a garoupa ou mero Epinephelus marginatus, que chega a medir 150 cm, a raia ou manta-diabo Mobula mobular, moreias como Muraena helena, e enguias como Heteroconger longissimus, e outras espécies de peixes, e.g. o sargo, a salema, o bodião, o boga, a dobrada, a tainha, o peixe-verde, a castanheta, etc. Também é possível observar nesta reserva tartarugas-marinhas, golfinhos e focas-monge-do-mediterrâneo. O Miradouro do Pináculo, na parte elevada da reserva, também está incluído na Rede Natura 2000, pois é importante para aves como a cagarra e o garajau. Fig. 5 – Fotografia da ponta de São Lourenço. Por P. Puppo.     Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio: Esta Reserva foi criada em 1997 e estende-se desde a ponta de São Jorge até à ponta de Clérigo, no Norte da Madeira, no concelho de Santana, contando com uma área aproximada de 1700 ha e incluindo a linha batimétrica dos 100 m, o ilhéu da Rocha das Vinhas ou ilhéu de São Jorge, e o ilhéu da Viúva ou ilhéu da Rocha do Navio. Esta Reserva também faz parte da Rede Natura 2000, sobretudo porque constitui uma representação da flora típica do litoral madeirense. Esta Reserva também é um local importante de nidificação para algumas espécies de aves marinhas, e.g. a cagarra, a alma-negra, o garajau-comum, o roque-de-castro e a gaivota-de-patas-amarelas. A diversidade da ictiofauna (peixes) também é considerável, contando, e.g., com espécies como o mero, sargo, peixe-cão, bodião, badejo, peixe-verde, a castanheta, a moreia, entre outros. Nesta Reserva, também se encontram lapas, caramujos, golfinhos, tartarugas-marinhas e focas-monge-do-mediterrâneo. São permitidos, além do mais, o mergulho amador e a pesca, mas não o uso de redes ou de barcos motorizados. Rede de Áreas Marinhas protegidas do Porto Santo: Esta Rede foi criada em 2008 e inclui a ilha de Porto Santo e os seis ilhéus circundantes: ilhéu das Cenouras; ilhéu de Baixo ou da Cal; ilhéu de Cima, dos Dragoeiros ou do Farol; ilhéu de Fora ou Rocha do Nordeste; ilhéu da Fonte da Areia; e o mar circundante aos ilhéus de Cal e de Cima, incluindo a zona onde o barco O Madeirense se afundou, até à linha batimétrica dos 50 m. Os ilhéus estão também incluídos na Rede Natura 2000 e três deles (ilhéu de Cal, de Cima e de Ferro) têm sido designados como IBA, por serem locais de nidificação de aves importantes, e.g. a cagarra, o pintainho, o roque-de-castro e a alma-negra, e outras espécies como a gaivota-de-patas-amarelas e o garajau. O Porto Santo e os ilhéus também são importantes pela quantidade de fósseis que se encontram neles. Os ilhéus de Fora, de Ferro, das Cenouras e da Fonte da Areia são considerados Áreas de Proteção Total, enquanto os ilhéus de Baixo e de Cima, assim como a parte marinha da Rede, são considerados Áreas de Proteção Parcial. Reserva Natural das Ilhas Desertas: As ilhas Desertas estão localizadas a cerca de 20 km da ponta de São Lourenço e têm um clima muito semelhante ao da região da Madeira. Estas ilhas estão desabitadas, possuindo uma estação de vigilância localizada na Deserta Grande, onde vivem guardas do Corpo de Vigilantes da Natureza. As Desertas estão protegidas por lei, desde 1990, como Área de Proteção Especial, sobretudo para proteger a colónia de foca-monge-do-mediterrâneo que nelas se encontra. Em 1992, foram reconhecidas pelo Conselho de Europa como Reserva Biogenética e, em 1995, como Reserva Natural. Estas ilhas integram a Rede Natura 2000 como Zona de Proteção Especial e Zona Especial de Conservação, e também são consideradas como uma IBA. Esta Reserva tem uma área total de cerca de 82,5 km2 e é formada por: Deserta Grande, Bugio, ilhéu Chão, e os ilhéus adjacentes, incluindo o mar até à linha batimétrica dos 100 m. As Desertas são importantes, porque são um dos últimos refúgios no Atlântico, juntamente com a Mauritânia, da foca-monge-do-mediterrâneo. Estas ilhas também são relevantes por serem locais de nidificação de espécies importantes de aves, e.g. a freira-do-bugio, que só nidifica em Bugio, a alma-negra, que forma na Deserta Grande a maior colónia do Atlântico, a gaivota-de-patas-amarelas, que nidifica em Chão, e outras espécies, e.g. a cagarra e o roque-de-castro. Nas Desertas, também se encontram inúmeras espécies de peixes, e.g. tainha, boga, castanhetas, sargo, bodião, garoupa, peixe-cão, cavaco, peixe-verde, e várias espécies de tartarugas-marinhas e cetáceos. As ilhas e os ilhéus, juntamente com o mar adjacente a elas até aos 100 m de profundidade, estão classificados como Áreas de Proteção Total. A zona marinha circundante é considerada como Área de Proteção Parcial. Reserva Natural das Ilhas Selvagens: As ilhas Selvagens são um conjunto de ilhas inabitadas, sobretudo pela carência de água doce, e, embora estejam localizadas a cerca de 250 km da Madeira, pertencem politicamente a esta região autónoma. As Selvagens são formadas por: Selvagem Grande, Selvagem Pequena, ilhéu de Fora, e outros ilhéus adjacentes. A Reserva inclui estas ilhas e ilhéus e todo o mar circundante até uma profundidade de 200 m, tendo uma área total de cerca de 94,5 km2. Estas ilhas estão legalmente protegidas desde 1971, ano em que foram compradas pelo Governo português a um particular, constituindo-se na primeira reserva de Portugal. Esta zona foi protegida, sobretudo, pela diminuição na população de cagarras, após terem sido durante anos exploradas pela sua penugem e a sua carne ter sido salgada e vendida como petisco nos mercados madeirenses. Esta Reserva começou a ter uma vigilância permanente desde 1976 e, a partir de 1991, passou a ser da responsabilidade do PNM. Em 1992, recebeu o Diploma do Conselho Europeu para Áreas Protegidas e, em 2001, integrou a Rede Natura 2000 como Zona Especial de Conservação e Zona de Proteção Especial, sendo também considerada uma IBA. Esta Reserva foi criada, sobretudo, para a proteção das aves marinhas que nidificam nestas ilhas: a cagarra, que tem a população mais densa do mundo nesta área, o calcamar, a ave mais abundante nas ilhas, o pintainho, o roque-de-crasto e a alma-negra. No total, estima-se que, nas Selvagens, haja perto de 39.000 pares reprodutores de aves marinhas, o que, no seu conjunto, é um número superior ao que ocorre na Madeira, Porto Santo e Desertas em conjunto (dados publicados por Peter Sziemer em 2010). O mar adjacente às Selvagens é de águas transparentes e possui uma variada biodiversidade: gastrópodes como os caramujos, lapas, cracas e litorinas são abundantes nas zonas rochosas, assim como as esponjas, anémonas, ouriços-de-espinhos-compridos e estrelas-do-mar. A ictiofauna é também muito variada: sargo, tainha, castanheta, boga, bodião, garoupa, peixe-verde, peixe-cão, tartarugas-marinhas, e espécies de cetáceos, entre outras, podem ser observados nestas águas. Toda a Reserva é Área de Proteção Total, sendo as visitas permitidas, com prévia autorização do PNM.   Pamela Puppo (atualizado a 24.01.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

bancos e casas bancárias

No séc. XVI, convergiram para a Madeira as atenções das sociedades comerciais e bancárias, que trouxeram consigo as novas práticas bancárias europeias, fazendo do Funchal uma praça financeira importante. A partir do séc. XIX, a comunidade britânica radicada na Madeira conferiu uma outra dinâmica àquelas operações. Data de 1824, a primeira proposta de criação de um banco na Madeira. Palavras-chave: bancos; casa bancária; falência; Banco Figueira; Banco Sardinha.   O facto de a Madeira, por força da importância do açúcar, ter assumido uma grande preponderância no comércio mediterrâneo-europeu, a partir do último quartel do séc. XV, e de ter atraído as atenções das sociedades comerciais conduziu a que as práticas bancárias chegassem cedo à Ilha. As dificuldades do sistema monetário, uma situação comum na Madeira, não implicaram apenas o recurso à troca produto a produto, mas, de igual modo, à procura de outras formas de pagamento substitutivas da moeda, então em voga na Europa: a carta ou letra de câmbio e o trespasse de dívidas em dinheiro ou em produtos. O Funchal ou Las Palmas surgiram, no séc. XVI, como importantes praças bancárias, situando-se ao nível das de Medina del Campo e de Valência. Os genoveses detinham aí a maior parte do movimento de cédulas. A letra de câmbio teve uma importância igual nas transações comerciais com o exterior. Este meio de pagamento ativou o trato do açúcar, sendo usual nas trocas com o reino, nomeadamente com Lisboa. A existência de uma importante comunidade de italianos e de flamengos, ligada ao comércio do açúcar com as principais praças europeias, contribuiu para a generalização desta forma de pagamento. Os florentinos, experientes nas transações financeiras, surgiram também com grande evidência, sendo particularmente importantes as ações de Feducho Lamoroto e de Francisco Lape. Neste contexto, verificou-se a presença de destacadas sociedades comerciais europeias, que substabeleciam as tarefas a desempenhar em familiares ou concidadãos com o estatuto de societários, de agentes ou de procuradores. Os Welsers, e.g., tinham um feitor em Lisboa (Lucas Rem) e vários agentes substabelecidos no Funchal e em La Palma. A forma mais divulgada de associação e de alargamento da rede de negócios foi a companhia ou sociedade comercial, nas suas diversas modalidades. Estas definiam-se, de um modo geral, pelo seu carácter familiar, pela eventualidade da sua ação e por uma composição variada de intervenientes, que investiam o seu capital ou o seu trabalho. Tratava-se, geralmente, de empresas familiares, que se serviam dos laços de parentesco para assegurar a permanência da sua ação, a solidariedade e a comunhão de interesses. Quando tal se tomava impossível, recorria-se aos compatrícios avizinhados nas principais praças. Esta última forma surgiu, com frequência, na Madeira. O relacionamento dos intervenientes nestas sociedades fazia-se de acordo com o investimento na empresa: capital e trabalho. Quando um dos societários apenas intervinha com o seu trabalho, poderia ser definido como agente ou feitor. Quando esses laços eram de menor dimensão, surgia o procurador, que, mediante um documento notarial, atuava sobre a fazenda do seu parceiro no mercado local, cobrando, por isso, uma determinada percentagem. Ambas as situações apareceram com grande evidência na praça funchalense, enquanto nas Canárias se afirmou, com muita acuidade, a segunda. A rede de negócios funchalense, em tomo do trato do açúcar, foi criada e incentivada pelo mercador estrangeiro, alemão ou italiano, que aí apartou depois da reconfortante e vantajosa escala em Lisboa; ele dominou as principais sociedades intervenientes no comércio açucareiro, não obstante ter morada fixa em Lisboa, Flandres ou Génova; o seu domínio atingiu não só as sociedades criadas no exterior com intervenção na Ilha, mas também o grupo de agentes ou feitores e procuradores substabelecidos no Funchal. A escolha destes é criteriosa; primeiro os familiares, depois os compatrícios enraizados na sociedade e, só depois, os madeirenses ou nacionais. Entre as principais casas intervenientes no trato açucareiro madeirense sob esta forma, houve Baptista Morelli, B. Marchioni, Welser, Claaes, Charles Correa, Pero de Ayala, e Pero de Mimença. Na déc. de 90 do séc. XV, o açúcar madeirense sofreu uma quebra nos preços, não por falta de procura, mas por excesso de oferta da praça funchalense. Os madeirenses reclamaram em vários sentidos e clamaram por medidas da Coroa. A 12 de outubro de 1496, D. Manuel respondeu “vimos uma carta com certos capítulos e apontamentos que nos enviastes em que nos declaras os danos e perdas que tendes recebidas por razão dos contratos e demprestidos e vendas dante mão que se em essa Ilha fazem nos quais entram muitas onzenas donde se seguem grandes demandas de maneira que essa Ilha está em caminho para se perder pedindo-nos por mercê que defendêssemos que tais contratos se não fizessem e que não houvesse um estrangeiro” (MELO, 1973, 350). Foram dadas várias orientações no sentido de atalhar as situações e de procurar estabelecer a regularidade das operações comerciais, dos empréstimos e das vendas, sem dano para os intervenientes. A moeda e os usuais meios de pagamento são um fator importante e ativador do movimento de troca. Aliás, o progresso da atividade comercial depende, em última instância, da situação monetária e das condições de crédito. No caso concreto da Madeira, onde se afirmaria uma economia colonial, o instrumento de troca teria uma ação primordial na estrutura económica insular. A moeda e os seus substitutos foram, ainda, necessários para a compra de manufaturas de importação e aquisição dos bens essenciais de que a sociedade insular carecia, pois os produtos dominantes não perfaziam nem contrabalançavam essa entrada. A situação monetária das ilhas não se apresentava diferente, pois em todas era dominante a falta do metal amoedável e da sua circulação. Esta foi, assim, a característica dominante da sociedade insular, que condicionou, de modo vincado, as operações financeiras e contribuiu para o entorpecimento das relações de troca. Esta questão tornou necessária a criação de novas formas de pagamento e condicionou o aparecimento de novos instrumentos de troca. Assim, ter-se-ia generalizado, nestas ilhas, o pagamento em géneros, a troca produto a produto e, em circuitos mais amplos, o crédito, a letra de câmbio e o trespasse de dívidas. Embora não haja factos que corroborem e documentos que atestem a importância da praça financeira madeirense, é necessário considerar o volume das operações comerciais em jogo nesta altura e a circunstância de, na Madeira, atuarem alguns dos mercadores e algumas das sociedades europeias mais importantes, que fizeram com que as suas práticas bancárias atingissem a Ilha. Mais tarde, a partir de meados da centúria seiscentista, com a formação da feitoria britânica, a atividade bancária assumiu uma nova dimensão, com o predomínio da letra de crédito, como se constata na correspondência comercial de Diogo Fernandes Branco ou de William Bolton. Nesta época, a presença da comunidade britânica conferiu outra perspetiva às operações comerciais e bancárias. A Madeira beneficiaria, deste modo, pelo facto de os britânicos terem criado na Ilha uma importante praça bancária, que, muitas vezes, se entrelaçava com as demais operações do império, de forma especial do Brasil. Apenas no séc. XIX surgiram notícias dos primeiros bancos, tal como hoje se entende. Até então, não se divisava semelhante situação e as operações bancárias eram oferecidas, no caso dos empréstimos, pelas confrarias, pelas misericórdias e por alguns particulares, mas sempre numa postura de medo, tendo em conta a posição declarada da Igreja, que fazia guerra à usura e às onzenas. Assinale-se que, nas constituições sinodais do Funchal, de 1578, 1597, 1615 e 1695, não há qualquer condenação a estas. Mas, já em 1725, o bispo afirmava que “achei [...] muitas usuras e onzenas que são transcendentes por toda a Ilha” (TRINDADE, 2012, 17). Esta atividade foi, assim, denunciada nas visitações de S. Jorge, em 1727, como nas de Ponta Delgada, em 1733. A sua denúncia foi insistente por parte da Igreja. Pela insistência dos prelados nas visitações ao espaço rural contra esta prática, pode-se afirmar que esta foi generalizada em todo o arquipélago, apontando-se assiduamente como alvos desta prática os senhorios e os ingleses. A situação do Porto Santo levaria a coroa a intervir, em 1770, apesar de não ter como controlar a posição e postura inglesa, que assumiu um protagonismo desusado nos sécs. XVIII e XIX, de tal forma que, em 1873, Álvaro Rodrigues de Azevedo referia a “leonina usura”. E assim era, pois, em 1791, o ajudante Manuel Figueira de Ornelas cobrava juros de 20 %. Desta forma, o Alf. Nicolau da Ponte foi condenado “visto ser pouco liso nos seus contratos, e querer enriquecer-se à custa e chupando o sangue dos pobres” (TRINDADE, 1999, 154). A usura, tão generalizada em toda a Ilha, levou a Igreja a assumir uma posição protecionista até ao séc. XIX, através das confrarias, das misericórdias, dos colégios (o caso dos Jesuítas do Funchal), e dos conventos, como o de S.ta Clara, intervindo com uma política de empréstimos, a juros adequados. As misericórdias faziam empréstimos a todos os que delas se socorressem, menos aqueles que fossem irmãos, embora tenham existido casos que demonstram o não cumprimento desta orientação do compromisso. A Misericórdia recebia dinheiro, ao qual pagava 5 % de juros ao ano e, com este, fazia empréstimo no valor de 6,4 %. O referido dinheiro era entregue com condicionantes quanto ao empréstimo, que raramente eram tidas em conta. Assim, Joseph Ferreira Pazes entregou o seu dinheiro, mediante condições a juro: “doa aos ditos pobres deste Hospital a quantia de duzentos e sessenta e cinco mil réis, os quais logo entregou em moedas de prata corrente nesta Ilha que eles administradores contaram e lhe deram quitação; cuja doação faz com tal condição e declaração que serão obrigados os ditos pobres por seus administradores a porem logo a sobredita quantia a juro, em mão de pessoas da segunda condição que bem pagam os juros, e para isso sejam pessoas ricas e abonadas, por nenhum modo se darão os ditos duzentos e sessenta e cinco mil réis a juro a outras qualquer pessoas e também se não dará a clérigo algum; e que dos juros dos ditos duzentos e sessenta e cinco mil réis serão obrigados os ditos pobres por seus administradores pagarem a ele doador, durante a sua vida, o juro de cinco por cento da sobredita quantia, pagos aos quartéis juntamente com os oito mil cruzados, que ele tem doado na primeira doação, abatendo-se e tirando-se dez tostões” (AMORIM, 2011, 240). A entrada do Convento de S.ta Clara deve-se ao facto de a instituição ter sido obrigada, a partir de 1660, a assegurar a sua manutenção, procurando, assim, todos os meios ao seu alcance para o conseguir. Deste modo, houve, a partir de 1673, empréstimos a juros de 5 % e mesmo de 6,25 %. De 1874, encontra-se uma referência à usura de 12 a 24 %. Na segurança das dívidas, os devedores hipotecavam propriedades rústicas e urbanas, objetos de ouro e prata, ou, então, apresentavam fiador. Os ingleses foram os principais agiotas da usura na Ilha, de forma que ficou testemunho disso no livro A Arte de Furtar, publicado em 1625, e que tem sido atribuído a Francisco Manuel de Melo. Aí se relata o caso de um madeirense que, pretendendo emigrar para o Brasil, pedira emprestado 50$00 réis a um comerciante inglês, que, em vez do dinheiro, lhe entregou um lote de tecidos, que, vendidos, dariam de lucro o dinheiro que queria. Como não vendeu, apelou ao dito mercador que os consignara, que aceitou recebê-los aos preços que comprara em Londres. Conclusão: o madeirense acabou por gastar 200$00, mesmo sem sair da Ilha. No séc. XVIII, insistiu-se na usura dos adelos de Gaula e Santa Cruz, que percorriam toda a Ilha, inclusive o Porto Santo, e acabavam por estabelecer muitas dívidas com os agricultores. Na mesma época, insistiu-se também, acima de tudo, no hábito comum da troca direta e dos adiantamentos da venda dos mercadores britânicos na compra do vinho na Ilha. Por outro lado, a abertura que a comunidade britânica fazia ao mercado financeiro e aos bancos londrinos fazia com que esse fosse o meio mais usual, afirmando o deputado Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira (conhecido como o Giraldes) que eram os “richaços” (ricaços) que guardavam o seu dinheiro nos bancos em Londres. Certamente, por conta disso, as instituições que serviam de bancos atuavam junto das populações, como forma de combater a usura de alguns usurários locais. Estava neste grupo João de Carvalhal Esmeraldo. A primeira proposta, no sentido de criação de um banco local, data de 1824. Em ofício para Joaquim José Monteiro Torres, ministro da Marinha, José Joaquim de Almeida e Araújo Corrêa de Lacerda apresentaram a necessidade da criação de um banco local de “desconto e depósito”, como solução para a crise da agricultura. Também uma representação dos Proprietários e Negociantes da Madeira, de 9 de julho de 1824, insistiu na ideia, afirmando que pretendiam “um Banco, não usurário, mas patriótico e benéfico ocorrerá à maior parte dos males que sofremos. Ele ministrará fundos ao negociante cauteloso, ao especulador prudente, ao ativo e inteligente proprietário para o melhor aumento de suas terras, para promover prados artificiais e o plantio de arvoredos para a construção d’ edifícios e navios; para se afrontar aos estabelecimentos custosos e indispensáveis à criação e conservação dos gados; à abertura d’ estradas; e construção de pontes e canais ou levadas; autorizando ou regulando V. Ex.ª o que deverão pagar os que para eles ou d’ eles se servirem, e finalmente aos empreendedores espertos e hábeis para estabelecerem fábricas e manufaturas. Um Banco promovendo a indústria e assistindo à atividade individual em todas as classes, sexos e idade aumentará de necessidade o valor das propriedades rurais e urbanas e cortará pela raiz a insaciável usura, os excessivos criminosos lucros, arrancados ao cidadão oprimido, que à custa de pesados sacrifícios quer remir a sua opinião ou sacrifício. Um Banco, finalmente, que distribuindo com igual prudência e segurança capitais moderados pelos cidadãos industriosos, evitará o cúmulo das riquezas em poucos capitalistas e felicitará cento de famílias procurando-lhes uma decente mediocridade, que só faz a base da independência, da moral e da harmonia das famílias e dos povos” (ALMEIDA, 1907, 208, nº. 9783). Em 1834, o jornal Imparcial apresentou uma nova proposta de projeto de regulamento para uma instituição bancária, seguindo-se outra, em A Ordem, (no n.º 145), de 1854. No entanto, só no último quartel se começou a desenhar a importância da instituição bancária na Madeira. E este período inicial, tal como, depois, na déc. de 30 do séc. XX, foi marcado pelas piores razões, e.g., pela falência de algumas instituições, o que causaria, na sociedade madeirense, uma suspeita sobre os bancos e as casas bancárias. As dificuldades sentidas por muitas famílias e empresas nessa fatídica déc. de 30 perduraram no tempo e foi perpetuada por algumas gerações. Em 1875, começou a funcionar o Banco de Portugal no Funchal, sob a gerência do negociante João José Rodrigues Leitão. A agência do Banco de Portugal, no Funchal, enfrentou dificuldades, com a falência do seu responsável, o comerciante João José Rodrigues Leitão, em 1878, recebendo os credores apenas 50 % dos créditos. Entretanto, em 1873, a comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal mantinha empenho na criação de um banco de crédito agrícola, de forma a oficializar uma situação que já existia nesta instituição através da Caixa dos Órfãos, que emprestava dinheiro ao juro de 5 %. Entretanto, surgiu o Banco Comercial do Funchal, no dia 1 de junho de 1874, com estatutos de 25 de abril deste ano a que estavam associados António Caetano Aragão, Carlos de Bianchi, João de Salles Caldeira, José Paulo dos Santos, Manuel Figueira de Chaves, Manuel Inísio da Costa Lira, Severiano Alberto de Freitas Ferraz, e William Hinton. Porém, não foi fácil a atividade desta instituição, acabando por falir em 1887. Em 1879, João da Câmara Leme defendeu a ideia de um banco de crédito agrícola como solução para os problemas que envolviam a agricultura, atuando com mecanismo financeiro da sua reabilitação. Em 1922, Fernando Augusto da Silva retratava assim o panorama bancário na região: “As casas bancárias estabelecidas agora no Funchal são as de Blandy Brothers & C.ª, Henrique Figueira da Silva, Reid Castro & C.ª, Rocha Machado & C.ª, e Sardinha & C.ª. Estas casas que realizam as operações bancarias exigidas pelo comércio do Funchal, e ainda outras, estão todas em estado bastante próspero, devido à sua excelente administração e à confiança de que gozam no mercado, como para os elevados juros, que eram de 12 a 15 %, podendo mesmo chegar aos 24 % ao ano” (SILVA e MENESES, 1978, I, 116-117). Já para a déc. de 30, houve notícias de diversas instituições bancárias locais e nacionais com intervenção no crédito. Assim, são conhecidas 4 agências de bancos nacionais – Bancos de Portugal (1878) e Nacional Ultramarino (1919), Companhia de Credito Predial Português, Banco Espírito Santo – e 11 casas bancárias com sede no Funchal – Reid, Castro & Co., Rocha Machado & Co., Teixeira Machado & Co., Rodrigues Simão & Co., Sardinha & Co., Henrique Figueira da Silva, Blandy & Co., Banco Madeira (1920), A. Adida & Co., Rodrigues & Irmão Co., Teixeira & Machado C.ª. De entre estas, destacava-se a casa bancária com o nome do seu proprietário, Henrique Figueira Sardinha (1868-1945), mais conhecida por Banco Sardinha, que se havia popularizado, tendo uma importante carteira de depósitos e de empréstimos, no valor de um milhão de libras esterlinas, a um grupo significativo de empresas madeirenses. A Casa Bancária de Henrique Figueira da Silva, ou Banco Figueira, surgiu em 1898, com instalações na R. dos Murças. Esta casa dominava os financiamentos ao comércio e à indústria da Ilha, sendo de destacar a sua ação nos sectores das moagens e dos engenhos de açúcar e de aguardente com a Fábrica de S. Filipe. Normalmente, aponta-se a situação ocorrida em 20 de novembro de 1930 como um efeito retardatário da quinta-feira negra de Nova Iorque, de 24 de outubro de 1929. Mas, ao nível da sociedade madeirense, a maioria dos testemunhos apontam para um turbilhão de boatos lançados anonimamente na cidade que apontavam a falta de liquidez desta casa e que levaram a uma corrida desenfreada dos populares ao levantamento das suas economias. Os boatos eram anónimos, mas facilmente identificáveis, sabendo-se do interesse de algumas famílias estrangeiras, com interesses na atividade bancária e em sectores industriais financiados por esta casa. Por outro lado, se se tiver em conta que os dois principais beneficiários da venda em hasta pública do património do banco foram as famílias Blandy e Hinton, não se estará longe de fazer sair do anonimato os principais orquestradores da situação que levou à falência do Banco Figueira e do Banco Sardinha e que teve um efeito negativo na atividade bancária da Ilha, nos anos imediatos, tendo a maioria da população perdido as suas economias por não aceitar os bancos públicos e por preferir a esteira das camas ou um outro sítio que considerava mais seguro. Para esta situação, também se apontam culpas ao Governo (sendo então ministro das Finanças Oliveira Salazar) por não ter tomado qualquer medida para evitar esta situação de falência, pois, em 1929, havia assumido uma atitude diferente com a casa bancária de Henrique Tota. Mas, se tivermos em conta as facilidades que algumas destas famílias inglesas, beneficiadas com as falências, tinham junto do Governo da República, não será difícil de adivinhar o porquê desta atitude. A falência destas duas casas bancárias, Sardinha e Figueira, abalou a economia madeirense da déc. de 30, uma vez que ambas representavam 75 % dos depósitos e empréstimos da Ilha. Com a ida do património destas casas bancárias à praça pública, a família Hinton arrematou o seu rival, a Fábrica de S. Filipe, e a família Blandy, as moagens e muitos dos prédios do Funchal. Por outro lado, a casa bancária desta última família foi uma das mais favorecidas com a situação do sistema de depósitos e créditos bancários. A solução da crise bancária madeirense, mais apregoada na altura, era a da fusão. Esta ideia colhia a concordância dos responsáveis dos bancos da Madeira, Sardinha e Henriques e Irmão e C.ª, e foi aceite pelo Gov. Artur Almeida Cabaço, que, por sua vez, fez a proposta a Salazar, contando com a participação do Governo, no capital social do banco fundido, com o montante de 15.000 contos. O ministro das Finanças, porém, recusou liminarmente, propondo a constituição de um banco regional “que absorva os estabelecimentos existentes de feição local” (FREITAS, 2014, 68). Este autor falou num grupo de personalidades madeirenses que, porventura, teriam influenciado a posição de Salazar, mas sem as enumerar. Esta ideia da constituição de um banco regional vem de longa data, pelo menos do início do séc. XIX, quando o Governo recomendou ao Gov. e Cap.-Gen. da Madeira José Manuel da Câmara “a criação duma Caixa de Crédito na Madeira”, não existindo, nesta altura, qualquer banco formalmente constituído em Portugal. Só em 1920, surgiu o Banco da Madeira, que faliu com a depressão económica de 1929 e que foi reconstituído e fundido com a casa bancária Sardinha e C.ª e Rodrigues, Irmão e C.ª, em 1933. O Banco da Madeira, fundado em abril de 1920, só viu os seus estatutos aprovados no ano seguinte, tendo como sócios algumas sociedades comerciais como a Viúva de Romano Gomes e Filhos, Luís Gomes da Conceição e F. F. Ferraz e Companhia Ld.ª, e também algumas personalidades madeirenses de renome. Arrancou com o capital social de 2000 contos e criou uma filial em Lisboa, a 17 de fevereiro de 1923, tendo, em janeiro do ano seguinte, aumentado o capital social de 4000 para 6000 contos. A filial de Lisboa prosperou numa fase inicial mas, a certa altura, sofreu denúncias na Inspeção do Comércio Bancário, por má gestão e uso fraudulento de dinheiros, por parte dos gestores aí colocados (Manuel Jorge Pinto Correia e Carlos da Silva Barros) e negócios feitos sem conhecimento da Assembleia do Banco. No entanto, uma inspeção levada a cabo por peritos do Comércio Bancário não chegou a qualquer conclusão, tendo os visados se mantido nos cargos que ocupavam e alguns deles transitado para o novo Banco da Madeira depois da fusão. A crise económica de finais da déc. de 20, na Madeira, agravada com a suspensão de pagamentos das casas bancárias, Henrique F. da Silva e Sardinha e C.ª, e o encerramento da Reid, Castro e C.ª juntamente com a Revolução da Farinha, seguida da Revolta da Madeira, geraram preocupação em alguns políticos madeirenses que se movimentaram nos meios nacional e local, no sentido de encontrar uma solução para a crise bancária: e a solução apontada era a liquidação da casa Henrique F. da Silva e a fusão dos outros três bancos. No entanto, os depositantes da Casa Sardinha continuaram sem poder aceder aos seus depósitos, devido à continuada falta de liquidez do banco fundido, e só o Estado poderia ajudar, intervindo, porque a reconstituição dos bancos feita sem este apoio poderia gerar uma crise maior. Contudo, Salazar apenas incentivou a fusão dos três bancos, sem intervenção do Estado. Assim, a 12 de setembro de 1933, por dec.-lei n.º 23.026, foi instituído o novo Banco da Madeira, mercê da fusão dos três bancos referidos, com o capital social de 10.000.000$00 “e constituído pelo excedente do ativo de cada um dos bancos alvo de fusão e do que ainda for necessário para completá-lo, deduzido proporcionalmente de depósitos e débitos comuns do atual Banco da Madeira e do Banco Sardinha” (Id., Ibid., 107). O decreto autorizou o Banco da Madeira a emitir, logo após a sua constituição definitiva, até 15.000.000$00 de obrigações, preferenciais de 500$00 cada, de forma a prover as dificuldades que surgiriam com a falta ou a fraca liquidez do banco. Os valores apurados pela comissão de avaliação aos bancos fundidos foram os seguintes: como excedente do ativo do Banco da Madeira, 1.672.800$00; Casa Sardinha, 333.300$00; e Rodrigues e Irmão, 420.220$00. As ações da Casa Sardinha de 500$00 foram reavaliadas a 33$00, e as do Banco da Madeira de 100$00 foram revalidadas a 20$00. O conselho de administração do banco ficou constituído por um elemento indicado por cada banco falido: Leonel G. Luís (Banco da Madeira), António Bettencourt Sardinha (Banco Sardinha) e Juvenal Araújo (Rodrigues e Irmão e C.ª) e presidido pelo comissário do Governo, Eduardo Paquete. Nos primeiros anos da sua existência, este banco continuou com as mesmas dificuldades, tendo-se pensado também na sua liquidação. Para esta situação, contribuiu o facto da excessiva avaliação dos ativos dos bancos fundidos; só com os apoios concedidos pelo Estado o banco foi-se equilibrando até à sua total revitalização, que aconteceu após a Segunda Guerra Mundial. Na déc. de 1960, o movimento bancário fusionista levou a que este se incorporasse no Banco Lisboa e Açores, rentabilizando o negócio. A casa bancária Blandy Brothers constituiu-se no dia 29 de novembro de 1920, com o capital social de 550.000 libras esterlinas, através de uma família inglesa radicada na Madeira, desde o início do séc. XIX. A firma Blandy tinha ligações económicas a quase todos os sectores comerciais da Ilha e ainda mantinha ligações com o exterior, em termos de exportação e importação, designadamente com o mercado inglês que lhe trouxe proventos económicos importantes para se abalançar no negócio bancário, trazendo-lhe maior sustentabilidade e marcando uma posição de realce no financiamento económico e no mercado cambial, no qual apostou grandemente. Os sócios eram John Ernest Blandy, Charles Maurice Blandy, Richard Rober Faber e Dudley Oliveira Davies. Só o primeiro e o último residiam na Madeira e a sociedade tinha, por objeto, o comércio em geral. A 29 de novembro de 1924, alteraram os seus estatutos, com o objetivo de reduzir o capital social em 50.000 libras e de especificar a distribuição do capital, ficando ao primeiro sócio 39 %, ao segundo, 28 %, ao terceiro 22 %, e ao quarto 11 % do capital. No dia 4 de junho de 1925, foi dissolvida a sociedade Blandy Brothers e C.ª, de nome coletivo, e transformada em sociedade limitada por quotas. A casa Blandy resistiu à crise de 1929, que levou à falência das outras casas bancárias na Madeira, a par da Rodrigues e Irmão, possivelmente devido às suas raízes e à forte ligação ao exterior, beneficiando da compra de cambiais que viriam a ser importantes para o investimento no comércio e na indústria madeirense. Para o seu êxito, contribuiu, ainda, a compra em hasta pública da moagem de cereais da Fábrica de S. Filipe, pertencente a Henrique Figueira da Silva, ampliando a sua influência no mercado da moagem local, arrematando muitos outros prédios provenientes de falências e comprando lotes de vinho Madeira. Diz-nos J. A. Freitas que este grupo “cresceu e fortificou-se no meio da turbulência da praça do Funchal, porque dispunha de liquidez e, assim, a foi aplicando nos negócios que, nas condições existentes, podia fazer, segundo opções por si definidas no sentido de consolidar os negócios do grupo” (Id., Ibid., 121). A casa Blandy ocupava a terceira posição, em termos de depósitos existentes, com 9344 contos, em 1931, e 8199, em 1932. O dec.-lei n.º 41.403, de 27 de novembro de 1957, que pretendia regular o sistema bancário português, obrigou os estabelecimentos especiais de crédito a praticar, em exclusivo, o exercício da atividade bancária. O grupo Blandy, reunido em assembleia-geral, a 26 de maio de 1958, decidiu constituir uma nova sociedade por quotas, transitando para a nova sociedade o ativo bancário, incluindo os bens imóveis. A nova empresa assumiu a designação de Blandy Brothers (Banqueiros) Ld.ª, com o capital de 10.000.000$00, dividido em quatro quotas, sendo 8.700.000$00 pertença de Blandy Brothers (Banqueiros) Ld.ª, 100.000$00 de Blandy Brothers e Companhia Limited de Londres, 100.000$00 de Peter Graham Blandy, e os restantes 100.000$00 de John Reeder Blandy. Em 1968, esta sociedade incorporou-se no Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa. A casa bancária Henrique Figueira da Silva foi coletada como cambista em 1902 e como banqueiro, em 1910, não se sabendo ao certo a data da sua fundação. Foi uma casa próspera até a deflação económica de 1929, tendo detido um grande prestígio e irradiado confiança nos seus depositantes. No final de 1930, tinha 71.678 contos de depósitos que correspondiam a 9.403 depositantes. Foi a maior casa bancária da Madeira nesta época. Até mesmo as caixas económicas faziam aqui os seus depósitos para usufruírem dos altos juros que esta casa praticava, assim como os emigrantes madeirenses. Esta casa suspendeu os pagamentos no dia 19 de novembro de 1930, sendo nomeado, dois dias depois, como comissário do Governo no banco, o madeirense Eduardo Paquete. Pouco tempo depois, transitava para a casa Sardinha e C.ª, sucedendo-lhe Óscar Baltasar Gonçalves, logo em janeiro de 1931, que exerceu as funções até 4 de maio de 1931. Os presidentes das comissões liquidatárias deste banco também tiveram a mesma sorte e foram sendo nomeados e substituídos com frequência. Em outubro de 1933, já eram cinco: Juvenal Araújo, Brás Alves, Martins Costa, Gonçalves da Silva, e o juiz Carlos Henriques da Silva e Sousa, o que provocou grande instabilidade nos cargos, dificultando a sua gestão. Diz-nos J. A. Freitas que “o desmantelamento de Henrique Figueira da Silva tornou-se um acontecimento sem retorno e de efeitos muito nefastos na economia da Madeira e dos seus depositantes, de longe a maior casa bancária” (Id., Ibid., 126). Este autor apresenta, como exemplo, o montante do valor dos seus depósitos que correspondiam, ao tempo da falência, ao dobro de todos os outros bancos a trabalhar na Madeira. O banco foi liquidado por via administrativa através do dec. n.º 20.316, de 16 de setembro de 1931, sem prerrogativas ou a possibilidade de poder reconstituir-se, mesmo após o relatório da comissão liquidatária de 31 de dezembro de 1931, onde se refere um ativo de 87.033.509$00, superior ao passivo de 77.861.344$00. A comissão liquidatária requereu a falência desta casa bancária a 19 de novembro de 1931, no tribunal judicial do Funchal. A falência foi decretada por uma votação de 2 votos contra 1. O banqueiro recorreu da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, em março de 1935, o qual revogou a sentença do tribunal do Funchal, com o argumento de que, para a declaração de falência, não bastava a suspensão de pagamentos: “a falência decorre da relação ativo/passivo do estabelecimento e, neste caso, o ativo é superior” (Id., Ibid., 128). A comissão liquidatária voltaria a recorrer para o Supremo Tribunal que confirmou a decisão da Relação, indicando que, quando esta casa bancária suspendeu os pagamentos, não se encontrava em situação de falência. No entanto, apesar destes reveses, a comissão liquidatária continuava a desfazer-se dos bens do banco em hasta pública e em vendas diretas. João Abel de Freitas diz que esta falência foi “um grande imbróglio de consequências nefastas para a economia da Madeira que serviu determinados interesses e com largos prejuízos para os depositantes” (Id., Ibid., 128). Este autor insinuou que esta falência fora incentivada por terceiros e por forças e interesses que apostaram na sua liquidação e que contou com jogos de influência junto de Salazar para que o fim fosse este. Havia ainda outra tese que defendia a falência, apontando “para uma certa maquilhagem da escrita como argumento para a falência” (Id., Ibid., 130). Opinou o autor referido que esta era, então, uma forma corrente em todas as casas bancárias e perguntou porque se deveria então penalizar apenas esta com a falência e recuperar as outras. Parece ter havido muitos interesses apostados no desmantelamento desta casa bancária, o que, ligado à má gestão do banco, facilitou a vida dos pretendentes, cometendo-se um gravíssimo erro com consequências nefastas para a economia da Madeira, pois não fazia sentido reorganizar a banca madeirense, deixando de fora o maior banco da época. Lembre-se ainda que, na Madeira, a situação bancária era muito frágil, com exceção para a casa Blandy, ficando no ar muitas suspeições. A casa bancária Reid, Castro e C.ª foi fundada por Henrique Vieira de Castro, oriundo do Porto e colocado, no Funchal, como delegado do Banco de Portugal, fixando residência na Madeira, a partir de 1893. Tendo enriquecido, fundou a casa bancária com esse nome entre outras empresas ligadas aos vários ramos económicos da Ilha. A casa bancária foi constituída como sociedade por quotas, no ano de 1905, sob o nome de Reid, Castro e Companhia Ld.ª, com o capital de 60.000$00 réis e com os sócios William James Reid, Alfred Eduard Reid, Henrique Vieira de Castro, Abraham Adida, visconde de Cacongo, Alfred L. Jones, e Eduardo A. Cunha. A 29 de maio de 1912, a empresa foi vendida a William James Reid, Alfred Eduard Reid, Henrique Vieira de Castro e Abraham Adida, e transformada em sociedade comercial em nome coletivo, de responsabilidade ilimitada. A 17 de junho do mesmo ano, o capital social foi aumentado para 100.000$00 réis, distribuídos entre eles da seguinte forma: William e Alfred Reid com 25 contos cada, Henrique Vieira de Castro com 40 contos, e Abraham Adida com 10 contos, tendo Henrique Vieira de Castro sido nomeado gerente, com o vencimento anual de 1.080.000$00 réis e 10 % nos lucros líquidos quando superiores a 8 % do capital social da sociedade. Era um vencimento simbólico. A partir daqui, surgiu a casa bancária propriamente dita, já que a sociedade passou a ter por objetivo as transações bancárias. Em junho de 1925, com a morte de Abraham Adida e, em 1927, com a de Henrique Vieira de Castro, o pacto social foi alterado para registo das quotas em nome dos herdeiros, em virtude do dec. n.º 10.634, de 20 de março de 1925, o que fez com que esta casa bancária solicitasse, a 10 de junho desse ano, a sua inscrição no registo das instituições de crédito. Este processo demorou, por não corresponder a todas as regras do referido diploma, ficando apenas concluído em 1930, com o depósito obrigatório na Caixa Geral de Depósitos e com a apresentação da guia do pagamento do registo no valor de 523$00. Depois da morte de Henrique Vieira de Castro, o banco perdeu algum fulgor, devido à falta de experiência empresarial dos herdeiros, acusando um atraso, a partir de janeiro de 1931, e originando muitas queixas junto da Inspeção do Comércio Bancário e do Comissário do Governo, na fase de liquidação. A partir de 7 de dezembro de 1931, foi comunicada à Inspeção do Comércio Bancário e ao ministro das Finanças a suspensão de pagamentos, aguardando-se a nomeação do comissário do Governo, o que aconteceu no dia 15 de dezembro desse ano, tendo recaído a escolha em Nuno de Vasconcelos Porto, a quem foi retirada a autorização para o exercício da indústria bancária, por portaria de 18 de maio de 1932, com a sua imediata liquidação. A comissão liquidatária, nomeada a 13 de junho desse ano, foi constituída por Juvenal Raimundo de Vasconcelos, que representava os sócios, e José Quirino de Castro, que representava os credores, tomando posse no dia 23 desse mês. Esta comissão não conseguiu cumprir o seu trabalho dentro do prazo previsto, em especial devido à situação de grave crise financeira da praça do Funchal, sendo prorrogado o seu prazo até ao dia 20 de janeiro de 1934. No entanto, o processo de liquidação desta sociedade só se encerrou a 12 de agosto de 1944, após a aprovação das contas de liquidação, sendo apresentado um relatório à Inspeção do Comércio Bancário e resultando daqui elevados prejuízos para os credores comuns, cerca de 324, que perderam tudo, no valor de 14.990.137$00. Sardinha e C.ª, com um crédito de 1.760.714$00, recuperou 1.045.900$00, e Luís da Rocha Machado, com um crédito de 650.072$00, recuperou 200.000$00. A realização da venda do património imobiliário (15 prédios rústicos e urbanos) pouco rendeu e a venda em hasta pública das águas foi pouco transparente, tendo garantido um valor muito abaixo de real. A casa bancária Rocha Machado teve em Luís da Rocha Machado, um açoriano, emigrante no Brasil e radicado na Madeira, como funcionário da casa Blandy, o seu proprietário. A partir de 1890, deixou a casa Blandy e dedicou-se a vários negócios. Não há muita informação disponível sobre esta casa bancária, sabendo-se que ela se antecipou aos acontecimentos económicos dos finais da déc. de 1920, na Madeira, fundindo-se, a 10 de outubro de 1928, com Cupertino de Miranda e Irmão, Ld.ª e com o Banco Económico Português, dando origem ao Banco do Comércio e do Ultramar, que também sofreu um processo de liquidação, realizado em setembro de 1932. No capital social deste banco, participaram algumas casas de crédito como a Bernardino Correia e C.ª, Marques Seixas e C.ª, Sá Leitão e C.ª, Matos Vaz e C.ª, Martins Lourenço Aparício, e José Simões Coelho. A casa bancária Rodrigues, Irmão e C.ª foi constituída no dia 19 de abril de 1922, no Funchal, e teve, como sócios fundadores, Henrique Augusto Rodrigues, Alfredo Guilherme Rodrigues, João Anacleto Rodrigues, Francisco Roberto Câmara, Juvenal de Araújo, e Francisco Leão de Faria. Era quase uma sociedade familiar, composta por pessoas que detinham outros interesses económicos na praça financeira do Funchal, entre eles o comercial, como era o caso do Bazar do Povo. Tinha um capital social de 750.000$00, repartido entre os irmãos Rodrigues, com uma quota igual a cada um de 200.000$00 e de 50.000$00 aos restantes três. Esta sociedade requereu à Inspeção do Comércio Bancário o seu registo como banqueiros, no dia 9 de junho de 1925. Em 1926, entrou um novo sócio, Alfredo Campanella, em substituição de Francisco Leão de Faria. O ativo desta casa bancária, a 31 de dezembro de 1932, ascendia a 6.662.635$00; os depósitos à ordem e a prazo, nesta data, totalizavam cerca de 2117 contos e os credores cerca de 2200 contos. O capital próprio era inferior a 800 contos. Juntamente com a casa bancária Blandy Brothers, ela constituiu uma das exceções à crise bancária ocorrida na Madeira, após a queda da Bolsa de Nova Iorque de 1929; foi cumprindo a legislação em vigor, nunca necessitando de intervenção estatal. Devido à influência política de alguns dos seus sócios, nomeadamente Juvenal de Araújo, conseguiu posicionar-se estrategicamente para integrar a fusão bancária, ocorrida com a falência dos outros bancos, integrando o novo Banco da Madeira, constituído com o apoio do Estado. Juvenal de Araújo ocuparia uma posição de destaque dentro do novo banco, sendo nomeado membro efetivo do conselho de administração. Com a constituição do novo Banco da Madeira, encerrou-se a atividade da casa bancária Rodrigues, Irmão e C.ª, sendo o único dos três incorporados que tinha cessado pagamentos. A casa bancária Sardinha e C.ª foi constituída no dia 29 de dezembro de 1920, no Funchal. Os seus sócios constituintes foram Manuel Bettencourt Sardinha e Leonardo Bettencourt Sardinha; este último fora emigrante em Demerara e detinha uma avultada fortuna que, depois, investiu na Madeira em vários negócios, entre eles o bancário. Esta casa bancária assumiu a forma jurídica de sociedade comercial em nome coletivo, com o objeto de realizar operações bancárias e outro tipo de negócios. A sociedade tinha um capital social de 400.000$00, entre esse capital 80.000$00 do ativo líquido da sociedade Sardinha e Companhia, entretanto dissolvida, e o restante subscrito pelos dois sócios. Com a morte de Manuel Bettencourt Sardinha, que era o gerente, a gestão foi assegurada por Leonardo Bettencourt Sardinha, que passou a ser o único sócio e gerente, pelo conteúdo de uma das cláusulas da escritura de constituição da sociedade que determinava que, aquando da morte de um dos sócios, o outro continuaria no negócio, pagando aos herdeiros do sócio falecido a parte correspondente, em prestações semestrais de igual valor, cada uma com um juro de 6 % ao ano, no prazo de 6 anos a contar do dia do óbito. A crise de 1929 e o número exagerado de casas bancárias fizeram com que o sector estagnasse; a instabilidade instalou-se nas casas bancárias e algumas abriram falência. A casa bancária Sardinha e C.ª suspendeu os pagamentos a 21 de novembro de 1931. A 3 de janeiro de 1932, Eduardo Paquete foi nomeado comissário do Governo junto deste banco. A casa bancária Sardinha e C.ª reconstituiu-se sob o nome de Banco Sardinha, por dec. de 30 de abril de 1931, com o apoio do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Depósitos, contando com uma grande tolerância por parte de Salazar na sua reconstituição. Esta passou a sociedade anónima, a 21 de maio de 1931, sob a designação de Banco Sardinha “sendo os primeiros outorgantes da escritura de mudança os sócios da casa Sardinha e Companhia e os segundos outorgantes, todas as pessoas, na generalidade credores, que subscreveram o aumento de capital em 3.000 contos” (Id., Ibid., 173). Neste aumento de capital, 7 pessoas subscreveram 50.000$00 e 23 outras subscreveram ações entre 45.000$00 e 10.000$00; no entanto, a desconfiança face à reconstituição das casas bancárias era muito grande e levou a uma corrida aos levantamentos e à exigência de reembolsos dos créditos por completo, havendo necessidade de recorrer a novas moratórias. Prorrogaram-se os prazos, mesmo após a sua transformação em banco, e a suspensão de pagamentos foi-se consolidando com indemnizações tardias, com muitos processos judiciários e com sucessivas prorrogações. Esta era a segunda maior casa bancária da Madeira da época, em número de depósitos. No seu processo de liquidação, ela foi alvo de alguns processos polémicos e judiciais com alguns dos devedores, entre eles, Tiago Matias de Aguiar, F. F. Ferraz e C.ª Ld.ª que mostraram discordância quanto à forma de liquidação dos seus créditos. Entretanto, com o cimentar da sustentabilidade económica e financeira do Estado Novo, filiais de outros bancos nacionais foram aparecendo na praça financeira do Funchal, como a Caixa Geral de Depósitos, o Banco Espírito Santo, o Banco Pinto e Sotto Mayor, o Banco Fonsecas e Burnay, o Montepio Geral, o Banco Português do Atlântico, o Banco Português de Investimento, o Banco BIC, e a Caixa Económica do Funchal (este foi um banco de raiz madeirense, que passou por algumas dificuldades, após o 25 de Abril, tendo-se transformado no Banco Internacional do Funchal). Com a expansão económica e financeira proporcionada pelas novas condições económicas saídas da Revolução de 1974, proliferam novas filiais de bancos nacionais e estrangeiros. Tendo em consideração as publicações do Instituto Nacional de Estatística e da Direção Regional de Estatística da Madeira (DREM), é possível verificar o comportamento mais recente de um conjunto de variáveis relacionadas com a atividade da Banca. Desde o ano 1998, o número de estabelecimentos bancários demonstrou uma evolução como que a dois ritmos, sendo que foi verificado um período inicial favorável e, posteriormente, um outro no qual as variáveis apresentavam um certo ressentimento no sector, seguramente pela própria crise financeira que assolou o mundo e provocou efeitos colaterais na Região. Para o ano 1998, o número de estabelecimentos de bancos e de caixas económicas na RAM era de 133, representando cerca de 2,6 % do total de estabelecimentos a nível nacional. No ano 2000, o número de estabelecimentos ascendia a 150 na Região, com uma proporção de 3,0 % comparativamente ao número de estabelecimentos em Portugal continental. Esta proporção foi tendencialmente aumentando, embora o valor mais elevado tenha sido o de 3,2 %, que se constatou nos anos 2001, 2002 e 2007, onde o número de estabelecimentos na Madeira era de 156, 156 e 171, respetivamente. Todavia, foi no ano 2009 que se verificou o número mais elevado de estabelecimentos na Região, com 182, quando Portugal tinha 5877 estabelecimentos bancários e caixas económicas. De notar que, a partir do ano 2010, inclusive, verificou-se uma queda no número daqueles. Queda essa que não foi um fenómeno único da Região, mas também de todo o território nacional, embora seja de interesse ressaltar que a diminuição do número de estabelecimentos foi mais acentuada na Madeira, pois, ao se verificar a proporção do número de estabelecimentos bancários regionais no número de estabelecimentos bancários nacionais para o ano 2013, o valor ficou pelos 2,8 %, um valor percentual inferior ao verificado em anos anteriores, comparável com aqueles que se verificavam nos últimos anos da déc. de 90 do séc. XX. No ano 2010, o número de estabelecimentos passou para os 178, diminuindo no ano seguinte para 169. No ano 2012, verificou-se uma nova queda para 157, sendo que, no ano 2013, foram encerrados 10 estabelecimentos bancários, passando a RAM a contar com apenas 147. Outra forma de se analisar a evolução do sector é através do número de pessoas ao serviço nesses mesmos estabelecimentos. No ano 1998, o número de funcionários do sector bancário cifrava-se nos 946, sendo que a partir desse ano verificou-se uma diminuição que faria com que, no ano 2001, o número fosse de 851 pessoas. No entanto, a partir do ano 2002 e até o ano 2004, constatou-se um crescimento, no qual, no ano 2002, o sector bancário contava com 922 colaboradores, passando para 945, no ano seguinte, e para 1098, em 2004. A partir do ano 2005, voltou a verificar-se uma tendência caracterizada pela diminuição do pessoal ao serviço, muito embora, no triénio 2008-2010, o número tenha superado o milhar de pessoas. A partir do ano 2011, o número decaiu, fazendo com que os dados referentes ao ano 2013 apresentassem um número de funcionários novamente inferior ao ano imediatamente anterior, fixando-se em 842. Os dados apresentados anteriormente podem ser analisados efetuando induções sobre os motivos que provocaram esta diminuição de pessoal ao serviço, apoiadas, eventualmente, no argumento da melhor utilização e otimização dos serviços. Todavia, cabe destacar que, a partir do ano 2008, o sistema bancário se ressentiu, fundamentalmente, pela crise financeira despoletada. Este fenómeno não se fez sentir unicamente em território regional, mas também no espaço nacional, porque, se se comparar a proporção do pessoal ao serviço em bancos e em caixas económicas na RAM relativamente ao pessoal ao serviço nas instituições de todo o país, verifica-se que, apesar de ter havido algumas alterações pontuais, o valor percentual se manteve nos 1,6 %. Uma publicação de 2014 do periódico Económico constatava o encerramento de um número elevado de agências bancárias nesse mesmo ano. Segundo a mesma, os bancos com maior presença em Portugal fecharam 200 balcões em território nacional no ano 2014. Na publicação, o encerramento de balcões e o despedimento de colaboradores são explicados não só pelas exigências efetuadas pelas autoridades europeias, após ter-se intervencionado um conjunto de instituições bancárias, mas também pelos prejuízos verificados no sector que obrigaram a elaborar planos de reestruturação assentes parcialmente nestas medidas. Outro dado de elevado interesse, relacionado com o número de terminais multibanco na Região, permite-nos concluir que foi verificado um crescimento importante daqueles entre o ano 1997 e o ano 2013. Enquanto, no ano 1997, o número de terminais na RAM era de 98, no ano 2013 o número ascendia aos 327. Neste intervalo de tempo, apenas foram verificadas diminuições anuais no ano 2011, momento em que o número caiu para 344, quando em 2010 o número de terminais era de 347, e no ano 2013, altura em que se verificou uma diminuição de 18 terminais multibanco. Relativamente a esta variável, é possível verificar, de igual forma, que, entre o ano 1997 e o ano 2013, a distribuição concelhia desses mesmos terminais sofreu alterações, destacando-se a descentralização dos terminais no concelho do Funchal: no ano 1997, localizavam-se ali 61,2 % do número total, um valor que diminuiu para 55,7 % no ano 2013. Não obstante, apesar de ter havido um aumento da proporção de terminais nos restantes concelhos que não a capital da RAM, verificou-se uma diminuição da mesma em concelhos como: a Calheta, onde a relação passou de 6,1 % para 3,1 %, entre o ano 1997 e 2013; o Porto Moniz, onde, no ano 1997, os terminais multibanco representavam 2,0 % do total regional, e, no ano 2013, um valor inferior situado nos 1,8 %; a Ribeira Brava e São Vicente, que, no ano 1997, representavam 5,1 % e 4,1 %, e, no ano 2013, 4,0 % e 1,8 %, respetivamente. O número de operações efetuadas em terminais multibanco também aumentou significativamente, quase que quadruplicando entre o ano 1997, ano no qual o número de operações foi de 5411 milhões. No ano 2013, foram registadas 21.010 milhões de operações em território regional. Os números alteraram-se de tal forma que uma análise à caracterização desses mesmos movimentos permite constatar a dinâmica verificada. Tome-se, por exemplo, o ano 1997, no concelho de Porto Moniz, onde o número de operações efetuadas foi de 23.000, sendo apenas de 19.000 no concelho da Ponta do Sol. Sendo uma das principais funções das instituições bancárias a concessão de crédito à economia, determinados dados da DREM revelam que, a 31 de dezembro de 2013, a percentagem de devedores face ao total da população adulta residente na RAM era de 51,1 %, valor inferior ao verificado no território nacional (52,9 %). Cabe destacar de igual forma que cerca de 1 em cada 4 adultos residentes na RAM tinha um empréstimo à habitação, e para 43,2 % foi concedido um empréstimo para consumo e para outros fins, empréstimo esse que, a 31 de dezembro de 2013, ainda estava em dívida.   Alberto Vieira Emanuel Janes Sérgio Rodrigues (atualizado a 23.01.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social

aquário municipal do funchal

  O Aquário Municipal do Funchal encontra-se localizado no rés do chão do Palácio de São Pedro, uma das mais significativas obras da arquitetura civil portuguesa, de meados do séc. XVIII, mandado construir pela família Carvalhal e adquirido pela Câmara Municipal do Funchal a 19 de setembro de 1929, quando se deu início às obras de reformulação do Palácio com o propósito de aí se instalar um museu. Inicialmente designado Museu Regional da Madeira, este foi oficialmente inaugurado a 5 de outubro de 1933, e mais tarde deu origem ao Museu de História Natural do Funchal. A primeira vez que se falou na criação de um aquário público no arquipélago da Madeira foi em 1937, através de uma deliberação do município do Funchal, ficando esta sem efeito até 1951. Foi devido em grande parte a Charles L. Rolland, industrial norte-americano de bordados na Madeira e grande admirador da fauna ictiológica da ilha, que em 1951 a sua construção teve lugar. Este filantropo ofereceu à Câmara Municipal do Funchal 30.000 escudos (cerca de 150€) e o material necessário para que as obras tivessem o seu início. Sob a orientação, técnica e científica, de Günther Maul, conservador do Museu, inaugurou-se a primeira fase do Aquário, em dezembro de 1953, com três grandes tanques, sendo parte do material necessário para a construção do Aquário obtida graças à generosidade de vários entusiastas, de entre os quais se destacou o importador E. Brendle. Na segunda fase, concluída em 1957, o Aquário passou a ter 15 tanques de exposição de diversos tamanhos, nos quais passaram a estar representados alguns dos mais importantes elementos da fauna marinha costeira da Madeira, tais como meros, moreias, sargos, castanhetas, cabozes, caranguejos, lagostas, camarões, polvos, búzios, estrelas, ouriços do mar, etc. A captura de organismos para serem colocados nos tanques de exposição deveu-se à generosidade e dedicação de um grupo de pescadores amadores, Américo Durão, A. Correia da Silva, David Teixeira e João de Freitas, entre outros. A renovação regular dos exemplares vivos em exposição nos tanques é assegurada essencialmente através de dois métodos de captura, dependendo do tipo de organismo: alguns invertebrados marinhos são colhidos, à mão, nas poças de maré (zona do intertidal) ou no subtidal, através de mergulho com escafandro autónomo ou de mergulho em apneia; quanto à maioria das espécies piscícolas, bem como de outros invertebrados, a captura é feita recorrendo a diferentes tipos de artes de pesca, sendo muitas vezes necessária a utilização de uma embarcação para o lançamento e a recolha dos respetivos aparelhos de pesca. Durante muitos anos o Aquário dispôs de uma pequena embarcação de apoio, a Ianthina, para a captura de espécimes; através desta eram utilizados essencialmente dois métodos tradicionais de pesca: pesca à linha e covos. Posteriormente, deixou de ser utilizada qualquer embarcação de apoio, o que condicionou muito não só a própria renovação dos exemplares do Aquário, como a diversidade de espécies. O sistema de circulação de água do mar existente funciona em circuito fechado, tendo um volume total de cerca de 200.000 l, que estão distribuídos pelos tanques de reserva (cerca de 150.000 l) e pelos tanques de exibição (cerca de 50.000 l). A qualidade da água do mar é mantida não só através de sistemas de filtração de natureza biológica e mecânica, como também de um sistema de arejamento, pelo qual é introduzido ar em cada um dos tanques de exposição. A água do circuito é renovada uma vez por ano, sendo colhida diretamente no mar e transportada em autotanque para o Aquário. Toda a iluminação nos tanques é de natureza artificial; são utilizadas as lâmpadas mais adequadas para que as cores dos organismos expostos se aproximem o mais possível das que podem ser observadas quando estes se encontram no seu meio natural. A alimentação dos organismos é baseada essencialmente em cavalas, chicharros e espada preto, adquirido na praça e administrado três vezes por semana. Aquando da existência da embarcação Ianthina, para além das espécies anteriormente referidas, era adicionado à dieta dos espécimes do Aquário um crustáceo, conhecido vulgarmente como camarão comestível (Plesionika narval), que era capturado através da utilização de covos apropriados, sendo depois armazenado em arcas congeladoras e administrado de acordo com as necessidades e as características alimentares das espécies existentes. A manutenção diária do Aquário Municipal do Funchal é realizada por uma equipa técnica constituída por três funcionários com formação adequada às exigências de uma estrutura desta natureza: um técnico superior (biólogo) e dois assistentes técnicos. O Aquário Municipal do Funchal é uma das principais atrações da visita ao Museu de História Natural do Funchal, recebendo em média cerca de 11.000 visitantes por ano, 3500 dos quais são alunos provenientes dos vários níveis de escolaridade do ensino básico e secundário da Região Autónoma da Madeira.   Ricardo Araújo (atualizado a  23.01.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

tetos de alfarge

Os tetos de alfarge ou de laçaria existentes na RAM constituem uma incontornável persistência do que terá sido uma rara e inovadora expressão artística de âmbito arquitetónico com forte componente estrutural experimentada em Portugal. O seu tempo áureo estará de forma muito particular ligado ao curto reinado de D. Manuel I (1496-1521), e a sua permanência enquanto processo construtivo terá superado as questões de estilo, ditado pelo gosto particular deste rei, resistindo inclusivamente ao seu desvanecimento e readaptando-se sem perder a sua identidade tecnológica. Importará, contudo, reter de forma breve os antecedentes que consubstanciaram este ciclo artístico. Desde logo o surgimento, difusão e persistência da cultura islâmica em Portugal continental. No último quartel do séc. XX, esta foi divulgada e contextualizada através do contributo científico da arqueologia, da antropologia e da história, entre outras disciplinas. A sua ligação aos califados da Andaluzia inscreve-a numa faixa territorial do Sul da Península em estreita ligação com o Norte de África e o Médio Oriente, em termos de ancestrais ligações culturais e religiosas, pelo que se perceciona uma vasta unidade sociocultural cujas naturais diferenças são articuladas por fatores de comunicação. Seria com estes territórios que as Ilhas Atlânticas, em particular a Ilha da Madeira, viriam a estabelecer, a partir do séc. XV, uma estreita relação comercial, política e cultural, na senda das ancestrais navegações que ousaram vencer as colunas de Hércules e prospetar as costas Norte e Sul do vasto Atlântico. O início do séc. XV inicia-se praticamente com a conquista cristã de algumas praças do Norte de África por parte dos portugueses, configurando-se uma nova realidade geoestratégica. Neste contexto, as descobertas da Ilha da Madeira e, de seguida, do arquipélago dos Açores favoreceram a construção de uma ideia de expansão, surgindo novos centros geográficos readaptados a entrepostos estratégicos. Os estreitos contactos com a cultura islâmica são, a partir de então, uma realidade incontornável, tanto em tempo de paz como de guerra, e mesmo quando em pleno reinado de D. João III (1522-1578) se percebe a impossibilidade de permanência em tantas praças africanas as trocas culturais já se terão consolidado de forma estruturada. O investigador Rui Carita, que dedicou especial atenção aos tetos mudéjares da Madeira, refere três potenciais razões para o facto de existir um tão forte e coeso núcleo destes tetos na ilha. A primeira relaciona-se com os contactos que teriam tido lugar no espaço continental até à fundação da nacionalidade, com presença de árabes e moçárabes, ou seja, cristãos submetidos à lei islâmica. A segunda liga-se à conquista de pontos estratégicos no Norte de África nos inícios do séc. XV, cuja cultura elegante e refinada observada nos palácios e casas nobres teria encantado alguns portugueses. A terceira relaciona-se com a subida ao trono de D. Manuel I, duque de Beja, que praticamente impôs o desenvolvimento e intensificação deste tipo de gosto de tradição islâmica a todo o país. Existem registos da admiração dos portugueses aquando da sua entrada nas residências de Ceuta, descrevendo Gomes Eanes de Azurara, cronista-mor, a perplexidade dos portugueses perante as “grandes casas ladrilhadas com tijolos vidrados de desvairadas cores, e os tetos forrados de olival, com formosas açoteias cercadas de mármores muito alvos e polidos”. Acrescenta o cronista: “nós outros mesquinhos, que não temos outro repouso senão pobres casas que, em comparação destas, querem parecer choças de porcos.” (CARITA e CARDOSO, 1983, 23). O Arqt. Hélder Carita, na sua análise espaciotemporal de enquadramento da arquitetura portuguesa a propósito da Casa dos Bicos, sublinha a importância que os tetos de alfarge, conjuntamente com os azulejos, terão tido na distinção desta arquitetura quinhentista. Acompanhamos esta análise e interrogamo-nos se nesse período histórico de renovação e reabilitação da “arte” islâmica, agora numa prerrogativa mudéjar, não existiriam ainda vestígios significativos do palácio árabe, bem como de casas contíguas das famílias dominantes que terão sido apropriadas pela nova aristocracia católica sem procederem necessariamente ao seu desmonte. Coloca-se, assim, a questão de como terão sido esses interiores e, sobretudo, como terão enobrecido em função do enriquecimento dos seus proprietários. O processo acumulativo e/ou de ocultação é tradicionalmente uma constante, ao invés da demolição e integral substituição, pelo que consideramos a possibilidade de muitos dos tetos de alfarge terem permanecido até ao terramoto. Até 2015, não se conheciam testemunhos escritos sobre a existência desses tetos anteriores ou posteriores ao terramoto de 1755 e a outras calamidades. Apenas se conhecia a crónica de Fernão Silva, que terá contado com o testemunho do cruzado Osberno, na conquista de Lisboa: “Lanço estas regras ao papel já sob o teto mourisco de uma casa que pertenceu porventura a algum príncipe Sarraceno, ou onde um dia se albergou, recoberta de lhamas doiradas, a filha de qualquer capitão da Kssaba, ninho alto de pedras luminosas, esta hoje alcáçova cristã, onde, desde há horas, canta o imaginário Truão de Guimarães.” (ARAÚJO, 1993, 45). As identidades culturais ter-se-ão desenvolvido e apurado na continuidade de ciclos económicos estáveis, incorporando subtis inovações e mesmo eventuais ruturas que não apagaram necessariamente as anteriores, que persistiram em lentas transformações/adaptações. Os tetos de Alfarge, apesar da rutura cultural que aparentemente terão introduzido nos finais do séc. XV, terão reencontrado em Portugal um novo ciclo após a morte de D. Manuel I, precisamente o de simplificação resultante de um eficaz processo tecnológico a que estão associados. Tal facto será resultado de um certo contraciclo cultural imposto por D. João III, no qual a exuberância dá lugar a uma grande contenção formal, retirando do espaço arquitetónico o esplendor luminoso da arte manuelina e, por inerência, as referências luxuriantes de pendor islâmico/oriental. A historiografia, de um modo geral, não terá aprofundado a forma como a cultura andaluza terá sido influente e integrada na arquitetura portuguesa, talvez por nunca a ter considerado suficientemente relevante para a sua formação, filiando-a apenas na superficialidade decorativa e não na configuração arquitetónica, em particular na identidade espácio-funcional, de que destacamos a arquitetura civil, tanto no continente como nas regiões autónomas da Madeira e Açores. Para melhor nos enquadrarmos neste específico tema, importará desde logo registar o que determina o termo “alfarge”. A sua definição difere significativamente entre Portugal e Espanha. No país vizinho, é praticamente consensual para os investigadores que a palavra se reporta a um teto plano de onde se destacam as vigas transversais planas, por vezes com incisões ou arestas sutadas, sob as quais pousa o tabuado. Entre essas vigas é comum observar-se uma decoração designada de laço. Al-farx, em árabe, significará “cobrir com ornato”. Em Portugal, terá sido Joaquim de Vasconcelos, no Guia de Portugal (1983), quem identificou e caracterizou esses tetos hispano-mouriscos, designando o alfarge numa perspetiva mais abrangente ao associá-lo a outras formas artísticas ditas de alfarge. Contudo, o mais corrente na época era referir-se esses tetos como hispano-mouriscos, de laço ou carpintaria de laçaria em aproximação à designação espanhola. Segundo Joaquim de Vasconcelos o “lavor do alfarge ou almoçarabe domina em Portugal em toda a arte decorativa no interior das habitações, desde a conquista árabe até ao primeiro terço do século XVIII” (VASCONCELOS, 1983, 38). Raul Proença, referindo-se a este autor, propôs: “que se nacionalize o termo técnico sob a expressão laço (em árabe, diz ele, ajaraca), laçaria, lavor alicutado. A etimologia que se dava à palavra alfarge (...) era al-farash, que alguns traduziam por assoalhado” (PROENÇA, 1983, 38-39). Pedro Dias, na sua obra Arquitetura Mudéjar Portuguesa: Tentativa de Sistematização, incorpora de forma inovadora o mudejarismo na historiografia nacional. A contextualização das diferentes expressões artísticas no ambiente arquitetónico são agora parte integrante do processo e não simples revestimento ou adorno. No caso dos tetos, este autor, tal como Rui Carita, procura salientar a sua relevância na fábrica da arquitetura, revelando inclusivamente o importante carpinteiro da obra-mestra dos Paços de Sintra: “O carpinteiro João Cordeiro era ‘...mestre das ditas obras dos paços nos ditos Serviços e em fazer rosas para a Capela e Estrelas e Rezimbros para a dita Capela.’". Prossegue o autor com uma nota da maior relevância por ter data: "um documento mais antigo, datado de 1450, referente a um crime cometido em Évora por um jovem, alude a que este era bom carpinteiro ‘... de obra de laço e coisas subtis de carpintaria...’, o que a nosso ver, é uma alusão aos tetos mudéjares” (DIAS, 1994, 55). Esta datação revelará sobretudo uma prática conhecida e em uso no período do reinado de D. Manuel I, época em que esta arte atingiu o seu maior esplendor. Dos diversos núcleos que este autor reporta, apoiando-se no trabalho da historiadora Luísa Clode e especialmente na incisiva investigação de Rui Carita, destacamos o Mudéjar Madeirense. Rui Carita procurou identificar os tetos madeirenses numa perspetiva integradora da história da arte no contexto alargado, ou seja, para além do fenómeno regional. Neste sentido, considera que "teremos de filiar o conjunto de tetos mudéjares da Madeira no conjunto geral de trabalhos provenientes da área e dos artifícios de Sevilha, como foi entre nós o caso das importações de azulejos para a Sé, Santa Clara, Santa Cruz”. Dada a qualidade impar dos tetos da Sé, “efetivamente bastante acima de todos os outros exemplares, ainda se poderá avançar com a hipótese de se ter deslocado ao Funchal uma equipa específica para esse trabalho, em princípio, a mando de D. Manuel I e que localmente terá formado e divulgado este tipo de gosto" (CARITA, 1989, 180). Esta possibilidade não só nos parece verosímil como terá pelo menos potenciado o interesse por parte do corpo eclesiástico e da elite local em aceder a tão elaborada e nobre arte. De outro modo, como explicar a profusão destes tetos em igrejas, capelas e casas nobres madeirenses? Também o arquipélago dos Açores acolhe um importante núcleo de tetos de alfarge, muito embora os sucessivos terramotos e tremores de terra tenham destruído a sua grande parte. Importa contudo salientar que consideramos a possibilidade de nos Açores se ter edificado, no período filipino, um segundo ciclo de tetos de Alfarge, reconstruções e construção de novos por via da instalação de famílias castelhanas associadas ao tráfego comercial com a América Latina, situação que terá tido menor importância na Madeira. Do mesmo modo que se dá conta da existência de tetos de alfarge no Continente, anteriores ao período Manuelino, também nos parece plausível ter sucedido o mesmo na Madeira, com a particularidade de se ter estabelecido um roteiro marítimo estratégico com as Praças Africanas. São diversos os testemunhos que dão conta de se terem transportado dessas Praças diversos elementos estruturais e artísticos para Portugal, mas também para a Madeira, e, se os homens da elite portuguesa se deixaram deslumbrar pelo requinte e conforto dos cómodos da aristocracia muçulmana, de que se destacariam os tetos pela sua exuberância e influência nas espacialidades, com alguma probabilidade os mestres e artesãos que trabalharam nesses lugares terão percecionado e, quiçá, aprendido essas técnicas e efeitos artísticos, independentemente da sua condição sociorreligiosa. Cidades como o Funchal e Angra do Heroísmo, entre outras, terão recorrido a técnicos de elevada qualidade e experiência, a título individual ou integrados em contratos integrais de empreitadas de obras reais, da Igreja ou mesmo privadas, da aristocracia local, originando porventura uma continuada prática iniciada no séc. XV. Tais técnicos provavelmente terão origem na Andaluzia, nas Praças Africanas ou nas Ilhas Canárias, e terão sido os primeiros mestres de carpinteiros portugueses da carpintaria de laçaria. O forte núcleo de tetos de alfarge existentes na Madeira, bem como a sua qualidade, sugere que esta arte terá sido muito apreciada durante um largo período de tempo, mesmo depois de, no Continente, já se ter iniciado outro ciclo estético de tetos, o terá permitido a fixação de um número considerável de artífices e respetivos aprendizes. A Sé e a Alfandega distinguem-se precisamente pela magnificência dos tetos de alfarge, com especial relevância para a primeira, de que se destaca o excelente programa pictórico que cobre pranchas de forro, bem como traves, frisos e tirantes. Também no teto do coro alto do Convento de Santa Clara podemos observar uma elaborada pintura, reforçando a tese de que a Madeira terá tido um ciclo de grande erudição na construção de tetos de alfarge. Admitimos que as principais igrejas matrizes construídas ou renovadas neste período terão integrado estes tetos, que seguramente terão procurado distinguir-se entre si, ainda que mantendo a base canónica, principalmente por via da pintura e dos motivos geométricos da carpintaria, alguns notáveis. São exemplos as matrizes da Ponta do Sol, da Calheta e do Loreto. Ter-se-ão perdido o de Santa Cruz e o de Machico, como provavelmente os de outras igrejas desta época. Esta realidade será em tudo semelhante à identidade das capelas públicas e privadas, bem como das que terão sido instituídas por famílias da aristocracia nas comunidades de sua influência, integradas nos solares ou isoladas nas propriedades dos morgados. O seu isolamento e as partilhas conflituosas terão dificultado a sua manutenção, sobretudo a do património integrado e dos tetos de alfarge. As Capelas que mantiveram o teto de alfarge resumem-se à dos Reis Magos, na Calheta, à Capela da Glória, no Campanário, e à de São Paulo, na rua da Carreira, no Funchal. Esta última terá sido mandada construir pelo 1.º capitão donatário em 1426, em madeira, sendo apenas alterada para pedra e cal algumas décadas depois. Este teto de alfarge denota um certo “arcaísmo”, ou seja, a sua expressão revela um inusitado “experimentalismo”, quiçá por via de uma deficiente interpretação das formas, medidas e proporções canónicas. Admitimos estar na presença de um teto executado por uma “interpretação de memória” de alguém com uma prática e um saber insuficientes face ao que esta arte exige, provavelmente um aprendiz. Presumimos que terão existido outras capelas com tetos de alfarge, alguns tardios, que terão introduzido a sua “simplificação”, tal como, em idêntico período e processo, terá ocorrido com a arquitetura tradicional solarenga, de que a capela constituía uma parte indissociável. As denominadas casas de Quinta da tradição madeirense (que antecederam o período da renovação introduzido pelos ingleses no séc. XVIII) constituíram, durante séculos, a expressão da erudição da arquitetura solarenga na região. Salões, câmaras e capelas incorporavam, provavelmente, tetos de linhagem na arte do alfarge. Os pequenos mirantes, nalguns casos, refletiam também a memória do alfarge, como é o caso particular do teto do mirante e da casa de Dona Guiomar, posterior Quinta da Vigia, que foi remontado em 1770, embora já figurasse na planta de Mateus Fernandes de 1567/70. Cidades e Vilas exibiam Capelas como a de São Luís de França, na rua do Bispo no Funchal, e a Capela da Glória, no Campanário (Ribeira Brava), com localizações distintas: uma urbana, de identidade erudita, e outra rural, isolada. Em ambas, podemos observar a “memória” do alfarge na armação simplificada, despojadas de ornamentos geométricos ou de pinturas. Contudo, podemos observar, no caso de São Luís, as incisões do graminho nas traves, bem como a meia-cana no tabuado e sobretudo a passagem do ângulo dos planos inclinados com o “espaço de espera”, de transição, para o plano central. A Capela da Glória será o paradigma de tetos simplificados nesta tipologia, tal como o Solar Welsh (1685) em relação à arquitetura tradicional solarenga. Este pequeno teto apresenta uma armação simplificada, mantendo contudo a proporção dada pelo ângulo dos planos inclinados e, naturalmente, pela transição para o plano central, direito. Curiosamente, e apesar da sua reduzida dimensão, integra cantoneiras com apoios em tudo semelhantes aos que observamos na Ilha do Pico, nos Açores, especialmente o da Casa do Ouvidor, na estrada da Ribeira Seca, em São Roque. Esta “simplificação” dos tetos de alfarge em espaços religiosos surge também em algumas sacristias e/ou espaços de apoio e transição, como será o caso da sacristia do Convento de Santa Clara no Funchal, entre outras de ambos os arquipélagos. Nos Açores, registámos, em diferentes Ilhas, tetos de alfarge implantados em distintos programas tipológicos e em diferentes estados de originalidade e conservação. Contudo, os sucessivos terramotos, de que se destacam o de 1614 e o de 1 de janeiro de 1980, para nomear os mais aparentemente devastadores, terão contribuído para o seu quase total desaparecimento. Este último terá inclusivamente destruído um conjunto de tetos de alfarge que ainda persistiam, apesar de muito alterados, localizados nos grandes edifícios religiosos, como os da Sé de Angra e também dos principais edifícios governamentais, de que é exemplo o Palácio dos Capitães Generais, igualmente em Angra. Mas também conventos e outros edifícios de menor porte, de que destacamos solares, capelas e igrejas paroquiais, tiveram o mesmo infortúnio. Porém, permanecem ainda “memórias” em vários edifícios do núcleo histórico de Angra, destacando-se também um significativo número de tetos de alfarge de média e grande qualidade integrados em alguns dos principais solares da aristocracia terceirense. Destacamos, na Ilha Terceira e na cidade de Angra, as casas das famílias Reis Leite, Pamplona do Couto, Anes do Canto e Cortes Reais, bem como a casa urbana de D. Violante do Canto, posterior Sport Clube, que, com o sismo de 1980, viu o seu último piso derrocar, perdendo-se o teto que teria sido de alfarge, embora o Museu de Angra tivesse recolhido dois escudos de armas de famílias provavelmente com ligações espanholas. Para além destas casas nobres, assinalamos os tetos das casas onde se veio a situar a delegação de turismo. Fora de Angra, registamos o notável teto no solar conhecido como Quinta do Carvão no Caminho de Baixo, datado de 1634, os tetos de pequena dimensão da Quinta da Estrela ou os de quintas dispersas, como a de Santo António e do Espanhol, cuja tipologia de casa quadrada se distingue por ser única. Na Ilha Graciosa, em Santa Cruz, registamos a casa da família Brum do Canto, que, durante as obras de reabilitação, ao se derrubarem os tetos de estuque dos princípios do séc. XX, deixou expostos seis tetos de alfarge praticamente intactos que corresponderão ao modelo generalizado de tetos de alfarge simplificados que se terão vulgarizado nas casas solarengas dos Açores e da Madeira. No piso térreo, no átrio de entrada, o teto é de alfarge de “estrado”, apresentando os barrotes estruturais um conjunto de linhas incisivas e formando uma composição geométrica. Os guarda-pós laterais, ligeiramente inclinados, as meias-canas, que cobrem as juntas do forro, e um friso esculpido no perímetro da parede reforçam o desenho de alfarge. Dos três arquipélagos, serão as Canárias o núcleo mais dominante em termos de tetos de alfarge, quer pela quantidade, quer sobretudo pela diversidade de tipos e execução excecional. A sua forte ligação à Andaluzia através do porto de Sevilha terá sido determinante para o seu surgimento e implementação, pois terá sido de lá que partiu o maior número de arquitetos, mestres e artistas, havendo ainda, porém, a assinalar uma forte ligação à cultura portuguesa e, em particular, à muito apreciada classe profissional dos carpinteiros, nos primórdios do povoamento. Desde praticamente a ocupação das ilhas Canárias que aí se fixaram portugueses, provavelmente os seus primeiros “ocupantes”, para além da misteriosa população local conhecida por Guanches. Já sob domínio castelhano por força do Tratado de Tordesilhas, estes terão continuado a afluir, sendo as profissões de canteiros e carpinteiros as predominantes. Deste facto nos dá conta Maria del Carmen Fraga González em La Arquitetura Mudéjar en Canárias, onde identifica pelo nome e assinala a proveniência e a data da estadia destes profissionais através do respetivo registo notarial. Destacamos, entre um número considerável: “Alvaro Fernández. – Portugués, ‘estante’ en la isla de Tenerife, en 1508 cede, el 17 de octubre de 1508, a su compañero, también lusitano, Diego Alvarez la parte que le corresponde de trabajo y cobro en las casas de Guillén Castellano, en La Laguna [Álvaro Fernández. – Português, ‘fixado’ na ilha de Tenerife, em 1508 cede, a 17 de outubro de 1508, a seu companheiro, também lusitano, Diego Alvarez a parte que lhe corresponde de trabalho e ganho nas casas de Guillén Castellano, em La Laguna]” (FRAGA GONZÁLEZ, 1980, 46). Curiosamente, alguns traços da cultura arquitetónica portuguesa ter-se-ão enraizado neste arquipélago, como deste terão partido para os Açores e a Madeira, fenómeno perfeitamente natural num circuito regional de “torna-viagem” e, consequentemente, “torna-cultura” entre arquipélagos que iam adquirindo especificidades. Maria del Carmen González ilustra estas influências no livro citado, reforçando que existe um tipo de casas nas Canárias que caracteriza como “viviendas urbanas de influência portuguesa”, que “abundaban en Santa Cruz de la Palma en la segunda mitad del siglo XVI [habitações urbanas de influência portuguesa que abundavam em Santa Cruz de la Palma na segunda metade do séc. XVI]” (Id., Ibid., 71). Esta autora refere ainda outras influências dos portugueses, dando o exemplo da construção da porta da antiga sacristia da Paroquial del Realejo Bajo (Tenerife) executada pelos portugueses Duarte Báez e seu filho Simón Gómez, e continua reportando-se a Pérez Embib, que, no seu livro El Mudejarismo en la Arquitetura Portuguesa de la Época Manuelina, assegura: “conjuntos onubense y canário seria la influencia del morisco lusitano, que halla cumplida representación, en este sentido, en la Torre del Castillo de Alvito, la Quinta ‘Sempre Noiva’ en Arraiolos, etc. [conjuntos onubense e canário seria influência do mourisco lusitano, que encontra representação definitiva, neste sentido, na Torre do Castelo de Alvito, na Quinta ‘Sempre Noiva’ de Arraiolos, etc.]” (Id., Ibid., 75). Fica-nos como reflexão que artistas, artífices e arquitetos transitavam entre países, bem como entre novas realidades geográficas que se iniciaram nos arquipélagos atlânticos, para continuarem por outras e longínquas paragens, com especial relevo para o mundo ibero-americano, onde se destacam o Brasil, Cuba, o México, a Colômbia, o Peru, a Bolívia e o Equador. Esta realidade vem sobretudo reforçar a tese de que a arte mudéjar é um fenómeno hispânico. Para Enrique Nuere Matauco, dever-se-ão investigar estas ligações: “El estudo de nuestra carpentería debería extenderse a todo lo realizado en América, fundamentalmente por carpinteros salidos de España. También será muy interesante estudar la carpintaría portuguesa, con sus similitudes y discrepancias [O estudo da nossa carpintaria deveria alargar-se a tudo o que foi feito na América, essencialmente por carpinteiros idos de Espanha. Também será muito interessante estudar a carpintaria portuguesa, com as suas semelhanças e discrepâncias]” (NUERE MATAUCO, 2000, 18). O caminho que Portugal traçou no Brasil, em África ou no Oriente não terá, pois, despertado o mesmo interesse que nos territórios hispânicos no que respeita aos tetos de alfarge, mantendo-se, no entanto, em algumas vilas e cidades, parte desta gramática mudéjar associada às carpintarias que atrás reportámos. Como já referimos, a maioria dos tetos de alfarge que identificámos em território português integra-se numa armação simples, abatida à “maneira portuguesa”, provocando um abatimento do ângulo de inclinação e baixando a zona central denominada, em Espanha, almizate (“plano sob as tesouras”). Supomos que esta realidade esteja associada a uma certa simplificação do alfarge em Portugal. Em Espanha, o ângulo de elevação da cobertura parece-nos maior, empinando um pouco mais a respetiva cobertura, em virtude do ângulo estabelecido pelos pares, como se pode verificar no exemplo da Igreja do Convento de São Francisco, em Ayamonte. Estes tetos seguem a tratadística da carpintaria de alfarge espanhola. Em Portugal, o alfarge corrente, associado à casa, parece ter sido assimilado pela proporção dos telhados abatidos portugueses, não se distinguindo de forma evidente dos de origem hispânica. No entanto, importa registar que alguns tetos, nomeadamente de alguns palácios e igrejas portugueses, aparentemente terão seguido regras distintas, aproximando-se de outros de possíveis origens filiadas nas coberturas quase verticais góticas, como as coberturas múltiplas das grandes mesquitas peninsulares ou, ainda, como as coberturas dos palácios compactos, com pátio-claustro, da Andaluzia. Serão casos específicos com essa linhagem os Paços Reais de Coimbra e Sintra e das grandes naves da Sé do Funchal e das Matrizes de Caminha, Ponta do Sol e Calheta, entre outros. De um modo geral, no caso dos solares e pequenos templos, os tetos de alfarge em Portugal, incluindo os da Ilha da Madeira e dos Açores, estarão relacionados com a métrica dos telhados abatidos. Naturalmente que a complexidade de um teto de alfarge, ou de um teto de um telhado de tesouro(a), nada terá de semelhante a uma armação comum. Contudo, se nos abstrairmos da complexidade do alfarge, sobretudo das figuras geométricas decorativas localizadas no núcleo central horizontal (almizate), constatamos que se suprimiram as peças de transição nos quatro ângulos e de descarga para o frechal, razão principal para confirmarmos a simplificação do sistema. Consideramos que estas armações se inscrevem na genealogia da arquitetura tradicional mudéjar portuguesa e que terão na sua filiação múltiplos “contágios” resultantes da continuidade de diversas práticas construtivas de armações comuns. Por vezes, o que verificamos é a separação da armação do telhado, enquanto suporte de telha da armação do teto de alfarge, embora nalguns casos, e inclusivamente no plano geométrico, sejam quase coincidentes, como podemos observar no Palácio de Valeflores, em Santa Iria da Azóia, onde as varas são toscas e o varedo sem forro suporta a telha-vã, enquanto a armação de alfarge apresenta o rigor do cânone tanto nas secções e acabamentos como nas assemblagens dos motivos geométricos. Podemos observar uma situação semelhante na ilha da Madeira, em construções torreadas como a armação do Solar dos Reis Magos, ou Casa do Agrela, no Caniço, ou a armação quadrangular do teto da pequena Capela do Claustro do Convento de Santa Clara, no Funchal. Numa seleção de exemplos mais eruditos, em termos de tetos de alfarge, anotamos também os mais simples, nos quais a armação do teto e do telhado é coincidente, como o da Capela dos Reis Magos, no Estreito da Calheta, o do Salão Nobre da Misericórdia de Santa Cruz ou ainda o da Capela da Glória no Campanário; e, no caso das casas, assinalamos o teto simplificado do Solar Welsh, na Madeira, e a Casa Brum do Canto, na Graciosa, nos Açores. Retomando os tetos de alfarge em Portugal, diríamos que estes terão evoluído para uma simplificação dos processos construtivos relacionados com a complexidade dos motivos geométricos, o que se denomina por laçaria, em associação com as armações de suporte do telhado. As nossas observações levam-nos a supor que as armações dos tetos de alfarge se terão assim simplificado, sem perder, contudo, as regras de proporção, ou seja, a base do “cânone” imposto pelo processo construtivo e tecnológico e pela “memória” do geometrismo dado pela laçaria, enquanto métrica construtiva, resumindo-se agora ao “troço de espera” entre o plano inclinado (pano) e o plano horizontal (almizate). Os tetos comuns da arquitetura tradicional madeirense que observámos, principalmente no âmbito da arquitetura tradicional, mas também erudita, são compostos por uma sucessão de vigas de secção quadrangular denominados correntemente “varas” (no alfarge, serão os nodilhos), dispostas a partir do frechal até à linha e sobre as quais se aplica o forro, completam-se com os tirantes altos, ou tesouras (no alfarge, serão os pares), e os triângulos, ou tirantes de canto (no alfarge, serão os quadrais). Simples incisões de linhas retas nos bordos das varas dos tirantes/tesouras e nos tirantes de canto serão ainda a memória da laçaria (linhas obtidas através do graminho). O guarda-pó entre varas é constituído por tábuas inclinadas e integradas por rasgos verticais nas faces laterais das varas. Junto ao frechal, ligeiramente elevado para formar uma linha de composição, instala-se o friso de madeira trabalhado em cordão ou simples, definindo este o fim da parede e o início do teto. Por vezes, e em alternativa, recorre-se a uma ripa de meia-cana pregada às juntas do forro entre as varas de construções mais correntes, quer urbanas quer rurais. Todos estes elementos são as “memórias” que permaneceram do alfarge “canónico”, numa nova simplificada identidade filiada nos padrões ancestrais. Alguns destes procedimentos de simplificação já teriam, em parte, sido subtilmente integrados em tetos completos que terão iniciado a transição para a simplificação através de uma “matriz portuguesa”. Entre diversos exemplos, destacamos o teto de alfarge do coro alto da Igreja do Convento de Santa Clara do Funchal. A carpintaria desenvolvida a partir dos tetos de alfarge, nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, onde se terá efetuado um último estágio de simplificação, ter-se-á “propagado” nas arquiteturas das cidades portuguesas do espaço ultramarino. A sua influência terá perdurado durante séculos, não só na sua expressão erudita, mas sobretudo no domínio completo de uma arte que também produzia mobiliário, portas, janelas, varandas, proteções de vãos conventuais em reixa e muxarabis. Uma continuada linhagem de famílias de carpinteiros terá assegurado o saber coevo que se escalonava em aprendiz, oficial e mestre, categorias que chegaram ainda ao séc. XX. Esta terá sido uma das profissões mais valorizadas ao longo dos séculos. A ilha da Madeira, detentora de uma densa floresta rica em madeiras de todo o tipo, cedo terá beneficiado de licenças régias, atribuídas pelos capitães donatários para a construção de serras de água, realidade também comum aos Açores. Nascia assim uma outra linhagem de artesãos, os serradores, que forneciam a madeira em prancha ou em viga, segundo medidas-padrão controladas pelo grémio dos carpinteiros e confirmadas administrativamente por posturas municipais com os respetivos «livros dos regimentos oficiais mecânicos». As medidas eram então em palmos, pés, varas, tosas, provavelmente em tudo idênticas às praticadas no arquipélago das Canárias, que acolheu diversos carpinteiros provenientes da ilha da Madeira, estabelecendo uma relação inter-arquipélagos. Observamos a constância das secções e dos comprimentos das madeiras que compõem as armações, denotando uma assinalável regularidade própria de um fornecimento padronizado de madeiramentos, que, talvez por conveniência de transporte e otimização de paus, no corte na floresta e na serração, se mantinham dentro de medidas padrão para todos os componentes de uma armação mas também por ser mais fácil comercializar e tributar um produto padronizado. Uma das particularidades das armações de alfarge é precisamente a regularidade e rigor das peças que formam um intrincado e eficaz sistema estrutural. A qualidade tecnológica constitui, para além da expressão artística, a sua identidade, a sua distinção, sobretudo por possibilitar superar grandes vãos, mantendo secções esbeltas dos madeiramentos. Desafortunadamente, as casas madeirenses que incorporaram tetos de alfarge terão sido as que menos resistiram ao passar dos séculos. Chegaram-nos fotografias do Solar de Dona Mécia e da casa nobre dos Herédia, e pouco mais, mas seguramente muitos outros terão acolhido salas e câmaras de solares e mesmo de pequenas casas solarengas, muitas delas denotando armações simplificadas de alfarge. António Aragão revelou a nobreza das casas das famílias nobres, nacionais e estrangeiras, que se estabeleceram na Rua dos Mercadores e que terão incorporado nos seus confortáveis aposentos a expressão cultural das famílias originárias de Génova, da Flandres, da Andaluzia e das vizinhas Canárias, entre outras. A casa conhecida como de Colombo, construída ainda no séc. XV, poderá ter sido um dos exemplos. Pela qualidade dos seus vãos de cantaria, denota ter sido uma casa de grande riqueza. As suas câmaras terão provavelmente tido um ou mais salões com armação de alfarge integrados, tal como outros motivos decorativos associados ao mudejarismo, como os tradicionais azulejos hispano-árabes e os pavimentos de tijoleira. Para além das casas urbanas, registamos também algumas casas nobres rurais, como os Solares do Esmeraldo, na Ponta do Sol, ou a Quinta do Morgado, no Arco da Calheta, bem como algumas casas solarengas da nobreza de S. Jorge, na costa Norte, que terão tido provavelmente alguns tetos que se filiavam nas técnicas construtivas dos tetos de alfarge, ainda que com uma grande probabilidade de serem simplificados. Nesse tempo histórico, quase todas estas casas teriam tido, direta ou indiretamente, uma intensa ligação ao comércio marítimo, estabelecendo-se, nesse sentido, relações culturais e político-económicas entre os arquipélagos atlânticos e a Andaluzia, bem como outros territórios. Formou-se, assim, uma comunidade recetora e difusora que, de Portugal e Espanha e respetivos arquipélagos atlânticos, alargou a sua geografia de influência para os territórios ibero-americanos. Através da sua observação in situ, e numa análise comparativa, compreenderemos melhor o fenómeno da sua dispersão e permanência nesses territórios, bem como o seu continuado trânsito em torna-viagem e respetivas transferências. Ao contrário das Ilhas Canárias e de uma parte significativa do mundo hispânico na América, em que esses tetos não só permaneceram como se manteve a arte e a técnica da sua construção durante séculos, na ilha da Madeira tal não ocorreu. A renovação do gosto e a perda da tradição desta carpintaria específica fizeram com que se tivesse perdido grande parte destes tetos. Nalguns casos, o fogo terá sido a sua principal causa de desaparecimento. Desse facto nos dá conta António Aragão, ao relatar o grande fogo ocorrido em 26 de julho de 1593, que terá consumido, em 4 h, 154 casas: “moradas de casas, as melhores e mais principais de toda a cidade” (ARAGÃO, 1979, 175). Infelizmente, assim sucedeu, em pleno séc. XX (1957), com o Solar de Dona Mécia, datado no lintel da porta exterior de 1606, mas aparecendo já na planta de 1567/70, pelo que deve ter sido levantado, dadas as armas que ostenta, por João de Ornelas de Magalhães, que, em 14 de maio de 1555, foi nomeado alcaide da fortaleza do Funchal. Um outro solar, este de grandes dimensões, terá igualmente perdido os seus tetos, com grande probabilidade, no séc. XX. Reportamo-nos ao Solar da Quinta da Lombada na Ponta do Sol, residência do fidalgo flamengo João Esmeraldo, que o ampliou e enobreceu em 1493, após aquisição a Rui Gonçalves da Câmara, filho do 1.º capitão donatário Gonçalves Zarco, e que, seguramente, teria tido tetos de alfarge. João Esmeraldo construiu quase em simultâneo, mais precisamente em 1495, uma casa no Funchal, a que já nos reportámos como sendo a Casa de Colombo, que foi demolida. O seu construtor foi identificado pelo historiador António Aragão (ARAGÃO, 1979, 114) como tendo sido Garcia Gomes, pedreiro. A sua qualidade arquitetónica e a condição social do seu proprietário levam-nos à possibilidade de aquela ter tido teto(s) de alfarge, tal como os teriam a do mercador castelhano João de Valdavesso e a de Francisco de Salamanca, ambas no Funchal, que eram, segundo António Aragão, “ricas casas e aposentos” (Id., Ibid., 114). Outras causas estarão relacionadas com a perda destas casas, em particular a grande mobilidade da sociedade madeirense e, sobretudo, os grandes aluviões, sendo de especial gravidade o que ocorreu em 1803. Estas calamidades cíclicas ocorreram em praticamente todas as cidades ribeirinhas, desde logo no Funchal, mas também em Santa Cruz, Machico, Ponta do Sol, Calheta ou mesmo São Jorge, e noutras localidades de menor dimensão na costa Norte. Estas levaram seguramente para o mar partes significativas destas urbanidades e com elas edifícios religiosos e da nobreza que ocupavam os melhores terrenos planos. Como exemplo, entre tantos, referimos o claustro e respetivas dependências do Convento de São Bernardinho em Câmara de Lobos. Registamos ainda o forte tremor de terra de 1748, que danificou muitas igrejas e terá destruído muitas construções. Parece-nos possível que esta arte se tenha prolongado durante todo o séc. XVI em ambos os arquipélagos (Madeira e Açores) e, apesar das calamidades e do abandono da sua reparação e conservação, um novo incremento terá ocorrido durante o séc. XVII devido, provavelmente, à ocupação filipina, particularmente nos Açores. Contudo, consideramos que as sucessivas simplificações se terão iniciado ainda em finais do séc. XVI, mantendo-se assim os indispensáveis conhecimentos para o seu (hipotético) recrudescimento no referido período filipino, com recurso a mestres locais, e reintroduzindo-se a arte com o reforço de artífices recrutados nas colónias espanholas e/ou nas Canárias, onde tal arte se terá mantido coerente até praticamente aos finais do séc. XIX. Registamos ainda a inesperada (re)construção de um conjunto de tetos de alfarge no Solar dos Herédia, erigido nos finais do século XVIII na Vila da Ribeira Brava, na Madeira, posteriores Paços do Concelho. Esta família, há muito radicada na região, provavelmente reconstruiu este solar recuperando os tetos de uma anterior casa. Fica, no entanto, a dúvida sobre se estes tetos serão integralmente originais do séc. XVI, altura em que esta família de origem castelhana se radicou na Madeira, e, naturalmente, se os seus autores teriam sido igualmente oriundos de Castela, tal como seria interessante saber se teriam sido os mesmos a integrarem uma potencial campanha de obras de melhoramentos da casa de Dona Mécia, no Funchal. A coerência das armações simples à vista que observámos na arquitetura tradicional rural e urbana (aldeias e vilas) em todo o território português, com particular incidência nas Ilhas Atlânticas, parece-nos resultar de uma prática ancestral, aplicada sobretudo nas casas de “transição” social, ou de tipologia de sobrado, ainda que por vezes de piso térreo, mas de “volume expressivo”. Parte significativa da identidade tipológica das casas a que nos reportamos será consequência da tradição do alfarge e da identidade mudéjar associada, introduzida no séc. XVI em Portugal, ainda que esta, na realidade, já se tivesse enraizado discretamente nos séculos anteriores.   Victor Mestre (atualizado a 05.01.2017)

Arquitetura Património

transportes

Na Madeira, o mar foi, durante mais de 500 anos, a via de contacto mais utilizada (e a mais vantajosa), estabelecendo a ponte entre o exterior e as diversas localidades, maioritariamente com assentamento ribeirinho. Em terra, as estradas e veredas estabeleciam as ligações entre os casais e as terras de cultura que subiam as encostas. No entanto, a própria Ilha não oferecia condições à implementação de qualquer meio de transporte, pelo que a circulação de pessoas e de mercadorias na Ilha era um problema: as vias de acesso aos portos costeiros ou de comunicação interna das freguesias eram muito complicadas e difíceis, dado que as condições orográficas tornavam difícil a construção de caminhos, fazendo depender a circulação das mercadorias da capacidade de carga de homens e de animais. Tardou, assim, a definição de uma rede viária adequada às necessidades das populações e à circulação dos produtos da terra, nomeadamente dos destinados à exportação, como o açúcar e o vinho.  De facto, só na segunda metade do séc. XX, com o delineamento de um plano de estradas e com o incremento da viação motorizada, se assiste à hegemonia das vias terrestres sobre as marítimas. O processo autonómico acelerou a afirmação da rede viária, esbatendo as distâncias e aproximando o mundo rural da cidade do Funchal. Foi também nessa altura que se construíram portos e desembarcadouros em Machico, Santa Cruz, Porto Novo, Caniço, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Porto Moniz, Calheta, Paul do Mar, Seixal, São Vicente, Ponta Delgada, São Jorge, Faial e Porto da Cruz. Em finais do séc. XIX, ocorreram mudanças significativas na navegação de cabotagem, com o aparecimento dos serviços da Casa Blandy Bros & C.º e da Empreza Funchalense de Cabotagem. Em 1777, George Forster registava as diversas formas de transporte existentes na Madeira, valorizando a destreza dos animais: “Os cavalos são pequenos mas seguros, subindo com agilidade as muitas veredas que são os únicos meios de comunicação no campo. Não existem carruagens, mas na cidade usam uma espécie de zorra ou trenó, formado por duas pranchas juntas por travessas de madeira que forma, à frente, um ângulo agudo; são puxadas por bois e usadas para o transporte de vasilhame para o vinho e outras mercadorias pesadas, destinadas ou provenientes de armazéns” (FORSTER, 1986, 75). Na Ilha existiram também carros de bois de rodados, certamente desde o início da sua ocupação, cuja utilização, embora limitada no espaço, está documentada, sendo conhecidos como carros chiões ou carros de vacas. Em 1813, o Gov. Luís Beltrão de Gouveia, em ofício ao conde das Galveias, referia que a falta de estradas tinha contribuído para o entorpecimento da política de relançamento agrícola e de desenvolvimento da Ilha; tornava-se premente o incremento da rede viária e a reparação das pontes e das estradas molestadas pelo único meio de transporte usado – a carroça –, financiada por meio de uma taxa imposta sobre os carreiros. No entanto, o problema não foi resolvido e a situação da rede viária perdurou, pelo que, em 1824, o Gov. D. Manuel de Portugal e Castro testemunhava, de novo, o estado miserável da viação madeirense, notando que sem estradas que comuniquem e facilitem as conduções não pode haver comércio. Em 1827, o deputado Lourenço José de Moniz, num discurso na sessão de 5 de março, lamentava que “a Madeira nada tem custado ao Tesouro da metrópole, nem mesmo nas mais extraordinárias ocasiões de calamidades, como em 1803, em que uma espantosa aluvião engoliu grande número de seus habitantes, e grande parte do Funchal, e destruiu as obras de encanamento das águas, com as pontes, estradas e outras de utilidade pública, cuja reedificação há de vir a montar a alguns milhões” (VIEIRA, 2014, 31). De facto, só no séc. XIX se nota algum interesse das autoridades pela realidade viária da Ilha. Recorde-se que, a partir de 1821, o binómio levadas-estradas é uma presença constante nos debates em torno da crise da agricultura madeirense, os quais se contam entre as páginas do Patriota Funchalense: reclamam-se obras e mais atenção à realidade madeirense (as respostas, porém, tardavam em chegar). A partir desse ano, a intervenção sobre a rede viária passa a estar a cargo da Inspeção de Agricultura e Estradas. Em 1823, José Maria da Fonseca, inspetor-geral de agricultura da Madeira, dá conta de que o segredo para o problema agrícola está na abertura de estradas convenientes e no aproveitamento das águas para o regadio (disso se ocuparam diversas autoridades). O ofício de mestre pedreiro das Obras Reais, Estradas e Caminhos, existente na Ilha, era acumulado pelo inspetor das estradas e caminhos. Em 1824, a Câmara do Funchal diz ter pedido um empréstimo à Junta Geral, no valor de 1600$000. Em 1836, é instalada, por iniciativa do governador civil, uma comissão encarregada das estradas da Madeira, com o intuito de coordenar os esforços dos madeirenses na reparação dos caminhos existentes e na definição de uma adequada rede viária. Um tributo sobre as estufas, cuja receita foi avaliada em quatro contos, foi aplicado à construção e à reparação de estradas. As condições da Ilha exigiam a tomada destas medidas: as aluviões tornavam intransitáveis os caminhos e as capacidades económicas dos madeirenses não permitiam acudir a tantas carências. A capacidade de intervenção da Junta Geral estava limitada por causa do seu orçamento: as únicas fontes de receita eram o imposto sobre as estufas de vinho, criado em 1806, e a contribuição anual de cinco dias de trabalho ou de 1000 réis para as obras de construção e reparo dos caminhos. A isto juntavam-se algumas dádivas particulares e o lançamento de fintas entre todos os moradores. Em reunião de 11 de agosto de 1840, a Junta Geral decidiu ampliar a obrigação da finta a todos os estrangeiros residentes na Ilha há mais de um ano. Para o efeito, uma comissão dos melhoramentos das estradas (Comissão Encarregada das Estradas e Caminhos), criada por alvará de 13 de maio de 1837, superintendia tanto as obras como o serviço braçal dos fregueses. Esta Comissão era eleita no início do biénio, tal como viria a preceituar a lei de 6 de junho de 1864. Segundo o relatório do ano de 1838, contou com uma verba de 9927$938 réis, sendo 67 % do montante proveniente do imposto sobre as estufas e o restante da contribuição de trabalho. Contudo, esta verba era insuficiente para acudir às diversas despesas envolvidas na reparação das estradas, nomeadamente em épocas de aluvião. Assim, em 1846, a dívida era superior a 3000 réis. Além disso, a partir de 1856, a Junta deixou de poder contar com o imposto das estufas, que entretanto fora extinto. Por outro lado, a Comissão quase só tinha capacidade de proceder a pequenas reparações, devendo socorrer-se de subscrições públicas para a realização de grandes obras, como a ponte do Ribeiro Seco e a estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos. As populações viviam isoladas e a ida ao Funchal era um acontecimento ocasional e de grande comemoração, tal como refere, em 1739, Acúrcio Garcia Ramos, que diz “de alguns camponeses nunca terem saído do vale onde nasceram”, e de outros regista “como um dia de felicidade jamais esquecido aquele em que fazem a primeira excursão à cidade do Funchal” (NEPOMUCENO, 2000, 47). Para muitos visitantes, o conhecimento da Ilha limitava-se ao Funchal, pois como afirmava, em 1869, Júlio Dinis, “passeios a pé são impraticáveis graças às pavorosas subidas que por toda a parte se encontram. A rede não é tão cómoda como parece; e os carros em rodas não podem vencer todos os caminhos” (Id., 2008, 28). Desde o primeiro quartel do séc. XIX que os madeirenses reclamam a intervenção do Estado na Madeira no domínio das obras públicas (abertura de caminhos, levadas e canalização das ribeiras). A crise agrícola e comercial faz despertar o olhar crítico de muitos madeirenses e amplia a imagem de uma terra abandonada à sua sorte, sem ninguém que a acuda. A este propósito, convém lembrar a intervenção do deputado madeirense Manuel José Vieira em 1884: “preciso que não se pense que, quando se fala em levadas, nós, madeirenses, estamos simplesmente á espera que o governo as faça; nós temos feito muitas levadas à nossa custa, que representam centenas e até milhares de contos de réis, e para as quais não solicitamos nem um real dos governos. Não estejamos por consequência a falar de leve em levadas, parecendo que nada temos feito” (VIEIRA, 1884, 138). Recorde-se que, para o ano económico de 1884-1885, o Ministério dos Negócios das Obras Públicas, Comércio e Indústria irá reservar, para a rubrica de obras públicas, um valor de 30.000$000, de um total de despesa em portos que ascende aos 1.026.000$000 (sendo que o porto de Leixões usufrui de 55 % desse montante). Em meados do séc. XIX, a necessidade de investimento torna-se cada vez mais premente, quer na metrópole, quer na Ilha; a solução para atender a esta necessidade passa por mais contribuições, tanto sob a forma de acrescento a impostos já instituídos (como a décima), como na modalidade de novas contribuições. A reforma tributária de 1843 já dava particular a atenção a este aspeto; de facto, durante as décs. de 40 e 50 da centúria oitocentista, o fomento das estradas passa por novas contribuições. A década de 40 do séc. XIX foi marcada pela fome, recebendo a Ilha auxílio do exterior (é de salientar a dádiva norte-americana de milho que, depois, foi distribuído pela população como moeda de troca). Da ajuda norte-americana resultou a construção da ponte no Ribeiro do Moinho, na Ponta do Pargo, que estabeleceu a ligação entre os sítios do Pedregal e de Salão. Como memória, ficou registada numa pedra a seguinte inscrição: “Esta Pedra é de Memória Por ser oferta estrangeira / América! Tens a Glória / de Socorrer a Madeira”. Será igualmente na déc. de 40 que o plano de obras públicas em torno da construção de pontes e estradas terá o seu arranque definitivo, mercê da intervenção do Gov. civil José Silvestre Ribeiro (1807-1891). Este governador teve um papel de destaque na valorização da Madeira nas décs. de 40 e 50. No período de 1846-1852 desenvolveu um conjunto de iniciativas em ordem à valorização socioeconómica da Ilha, com diversas obras de construção e reparação de pontes, de estradas, de edifícios e de muralhas de encanamento das ribeiras das principais vilas; reestabeleceu o velho contributo da roda de caminho (a partir de 1843, institucionalizou-se como taxa, que recaía sobre os madeirenses, em favor das obras públicas, das quais o Estado se demitiu). Efetivamente, por este tempo, os acessos ao interior da Ilha eram extremamente difíceis: qualquer povoação distava muito da cidade e as ligações, por via terrestre e mesmo marítima, eram difíceis e morosas (quando Isabella de França, casada com um aristocrata madeirense, foi à descoberta da Ilha, em 1850, ficou estupefacta com o facto de as populações se anicharem em sítios distantes do Funchal, como a Calheta, onde o marido tinha parentes e interesses fundiários). A ponte do Ribeiro Seco, com o custo de 5799$000 réis, foi construída em 1848 com subscrições populares e com diversos apoios. As dificuldades da Ilha, nos anos de 1852 e de 1853, levaram José Silvestre Ribeiro a solicitar os apoios da comunidade de mercadores do Funchal e de entidades estrangeiras, que prontamente responderam à iniciativa e constituíram, para o efeito, a Comissão de Socorros Públicos dos Países Estrangeiros, que recolheu a quantia de 37.482$324 réis. Parte desta receita foi usada nas obras de construção da chamada estrada Monumental, que ligará o Funchal a Câmara de Lobos. Em 1854, foram distribuídos 2410$973 réis para obras das estradas Monumental, do Monte e de Palheiro Ferreiro. Habitualmente, os governadores insistiam, nos seus relatórios, na necessidade de atenção ao sector agrícola, através do alargamento da área de regadio, com a construção de levadas e de caminhos de acesso, ou do melhoramento dos já existentes. Políticos e escribas de ocasião aproveitam as múltiplas tribunas de expressão do pensamento – sejam os jornais, seja a Câmara dos Deputados (no caso em que aí tenham assento) – para reivindicar. Em 1856, o Gov. civil António R. G. Couceiro refere que “são em grande abundância as águas que de muitos pontos da Ilha correm para o mar, sem utilidade alguma para a agricultura, ao passo que esta, por falta desse elemento indispensável, não pode desenvolver-se em grande escala, perdendo-se deste modo as grandes vantagens que oferece um terreno fértil e próprio para quase todas as culturas” (Relatórios sobre o Estado…, 1857, 379). A partir de meados do séc. XIX, o Estado intervém, de forma direta, na definição de uma rede de transportes e comunicações, com a construção de estradas, de caminho de ferro e de portos. Desta forma, em 1852 surge o Ministério dos Negócios das Obras Públicas, Comércio e Indústria, revelador da importância deste sector na estrutura institucional, o qual começara a ser definido em 1836, com as divisões de Obras Públicas do Ministério do Reino. Em 1868, com a reforma dos serviços do Ministério, subdividiu-se o serviço técnico das Obras Públicas em divisões de serviço, uma das quais no Funchal. Sobre estas divisões pendiam várias funções, entre as quais a fiscalização de estradas e de pontes. Na Madeira, a autonomia administrativa de 1901 transferiu estes serviços para a Junta Geral. Com a lei de 6 de junho de 1864, os encargos com as estradas e com os caminhos de terceira ordem passaram para a administração municipal, existindo uma comissão municipal de viação que superintendia e autorizava as obras. Em 1863, havia-se elaborado um plano para a rede de estradas reais da Ilha, de que constavam duas estradas litorais e duas transversais, que estabeleciam a ligação entre as duas primeiras. Esta situação foi considerada favorável ao desenvolvimento viário da Ilha. Em 1872, a superintendência do plano de viação estaria a cargo da Repartição Distrital de Obras Públicas, que funcionava no âmbito da Junta e era coordenada por um diretor de Obras Públicas. Em março de 1878, o Gov. civil Afonso de Castro afirmava: “Não tem o distrito caminhos de ferro, não tem estradas carroçáveis, não há aqui pontes monumentais, longos canais, soberbas construções urbanas, e, portanto, não é muito que peça, que inste por uma pequena doca no porto do Funchal, onde não há o mais pequeno melhoramento. Mas quem o ouvirá, para além dos delegados da Junta que aprovaram o seu relatório?” (VIEIRA, 2014, 501). Em 1902, a Junta Geral começou a empreender vários melhoramentos públicos. Com a implantação da República, redobra a capacidade de intervenção dos madeirenses, por intermédio do visconde da Ribeira Brava. Nesta altura, a política de apoio à construção das levadas é continuada. Para o ano económico de 1910-1911, a Madeira dispõe de 4276$540, num total de obras públicas orçamentadas no valor de 27.437$360. A Junta Geral intervém com apenas 1200$000, com a finalidade de abrir estradas de ligação entre o Funchal e Machico e São Vicente. A criação da Junta Agrícola, em 1911, foi importante na definição da política de desenvolvimento integrado do espaço rural: note-se que o art. 3.° da lei de 31 de agosto de 1915 passou para a Junta Agrícola a administração, a conservação e a reparação das levadas do Estado. O turismo será o grande impulsionador da aposta na rede viária, não as necessidades sentidas nos sectores agrícola e industrial. De facto, o plano de estradas andará sempre ligado ao turismo, inclusivamente em termos de estrutura administrativa. Por outro lado, o desenvolvimento do transporte automóvel irá obrigar à redefinição da política de estradas e caminhos. Em 1921, surge a Administração Geral das Estradas e Turismo que, em 1927, dá lugar à Junta Autónoma das Estradas (JAE) e à Direção Geral de Estradas. O madeirense Francisco Maria Henriques (1879-1942), que havia sido chefe de Gabinete de Sidónio Pais entre 1911-1912, foi vice-presidente da JAE. A construção da já mencionada ponte do Ribeiro Seco, a partir de 1848, foi o ponto de partida para o delineamento de uma adequada rede viária que diminuísse as distâncias e que aproximasse os diversos núcleos populacionais e os espaços agrícolas do Funchal, centro administrativo e de comércio de importação e de exportação. Subsistiam, no entanto, dúvidas sobre se as estradas seriam viáveis, designadamente porque o decreto de 31 de julho de 1928, o primeiro com a assinatura de Oliveira Salazar, veio sobrecarregar a Junta Geral com novos e pesados encargos, sem os necessários meios compensadores para a sua satisfação, asfixiando-a financeiramente (através deste decreto, procedeu-se à descentralização, para a Junta, de serviços de diversos ministérios). Além disso, do plano de construção de 936 km de estrada, apresentado em 1883, só foram realizados 10 km, nesse mesmo ano, e 166 km, no ano seguinte. As vozes em prol de um plano viário para a Madeira não esmorecem, na medida em que a qualidade da rede viária é tida como fundamental para a valorização da agricultura e para a animação do comércio. Nesse sentido, Manuel Teixeira Gomes escreve, em 1913, sobre a falta de obras públicas: “Nesta Ilha abençoada não há porto, não há estradas… e chamaremos infames aos ingleses se nos derem o que nos falta só a troco de uma substituição de bandeira?” (GOMES, 2010, 230). Além disso, vários governadores civis insistem na precariedade do sistema viário da Ilha e na necessidade do seu melhoramento; em 1856, o Gov. António R. G. Couceiro é claro, ao exprimir que “as estradas e caminhos que existem são quase todos de muito difícil trânsito, e nem um só deles permite o uso de carros nem de outros meios de transporte, sem o que a indústria prospere neste país” (Relatório sobre o Estado…, 1857, 379). O séc. XX será o momento da aposta na rede viária, prenunciado pela chegada do primeiro automóvel ao Funchal, em 1904. O automóvel viria a ser o meio de transporte mais importante, obrigando as autoridades a um esforço redobrado para abrir novas estradas e para alargar as estradas reais e as ruas da cidade. No entanto, o desenvolvimento de uma rede de circulação viária apropriada à circulação automóvel foi muito demorado. D. João da Câmara Leme apresentou um plano revolucionário para os transportes na Ilha, baseado na ideia dos cabos aéreos de transporte. Por decreto de 2 de setembro de 1915, foi permitido à Junta Agrícola contratar, com a Caixa Geral dos Depósitos, um empréstimo de 100.000$00 em ordem à construção de estradas e de hotéis. Através de uma sindicância feita em 1917, sabe-se que, até 1916, a Junta gastou a quantia de 97.301$93 em estudos para a realização de estradas e na sua concretização. Durante esta época, por impulso do visconde da Ribeira Brava e de Vasco Gonçalves Marques, presidente da Comissão Executiva da Junta Geral desde 1914, deu-se um impulso significativo na construção de estradas; assinalem-se os percursos Funchal-Machico, Câmara de Lobos-Ribeira Brava, e Encumeada-São Vicente (este último teve abertura oficial em 1916).  Em 1907, constitui-se a primeira empresa de transportes coletivos, a Empresa Madeirense de Automóveis. Em 1913, surge a Empresa Funchalense de Automóveis e, com ela, o agendamento de uma carreira de transporte para Câmara de Lobos. Em 1914, surge na Ribeira Brava uma companhia que estabelecia ligações regulares com o Funchal. A existência de uma estrada até Câmara de Lobos irá despertar o interesse pela exploração de carreiras regulares, para o que foi criada, em 1925, a Empresa Câmara-Lobense de Automóveis. Posteriormente, em 1933, é formada uma outra companhia de transportes, a qual virá a dar origem à transportadora Rodoeste, em 1967. No entanto, apesar do desenvolvimento das ligações viárias, a acessibilidade à totalidade do espaço geográfico da Ilha estaria reservada para uma época posterior. O mar, que poderia ter sido o meio mais fácil para a circulação dos madeirenses, tendo em conta a orografia da Ilha, não parecia ser senão um obstáculo. O Funchal não apresentava grandes condições de apoio à navegação. A cidade estava situada numa enseada pouco abrigada dos ventos que sopravam do quadrante sul, ficando os navios ancorados na baía constantemente sob o perigo de naufrágio (só em 1876 foram registados 10 naufrágios). Desde 1750 que se fazia sentir a necessidade de algumas obras na baía do Funchal, no sentido de facilitar a ancoragem de embarcações, mas só em 1755 se procedeu aos primeiros estudos, ficando assente a necessidade de estabelecer um molhe acostável até ao ilhéu onde estava implantado o forte de N.a Sr.a da Conceição. Do plano estabelecido, apenas foi possível concretizar a ligação ao ilhéu onde estava o forte de S. José. Paulatinamente, este espaço da Pontinha adquiriu o estatuto de ancoradouro principal do porto, tornando-se imprescindível assegurar as ligações entre ele e a Alfândega, pelo que a Coroa ordenou, em 1782, a construção de um caminho. A necessidade de construção de um porto de abrigo no Funchal era desde há muito sentida (sendo premente no último quartel do séc. XIX, altura da concorrência com o portos das ilhas Canárias); porque foram tardando os meios técnicos e financeiros, só na segunda metade do séc. XX é que veio a concretizar-se esse projeto, coincidindo com uma época em que a navegação aérea começava a afirmar-se (o que conduziria à paulatina desvalorização do transporte marítimo). Na realidade, já desde o séc. XVII era insistente a preocupação com a segurança de passageiros e de embarcações na baía do Funchal; em meados do séc. XVIII, a ideia de um porto artificial de abrigo começa a ganhar importância. Nos séculos seguintes, o desenvolvimento do turismo agudizou o problema das condições portuárias. Tendo em vista a construção deste porto de abrigo, equacionou-se a possibilidade de ligação à terra dos dois ilhéus da zona oeste da baía. Todavia, surgiu uma possibilidade alternativa de um porto de abrigo no extremo este, junto à fortaleza de S. Tiago. Em 1817, Paulo Dias de Almeida apresentou um projeto para um cais e molhe nesta área da baía, divergindo assim da ideia dominante (que defendia a construção do porto na zona oposta), devido ao impacto do entulho trazido pela ribeira de São Paulo. Para além disso, sugeria que o porto se situasse na praia Formosa ou na praia da Ribeira dos Socorridos. Mas acabaram por ser usados de forma distinta, surgindo na praia Formosa os depósitos da Shell e na Ribeira dos Socorridos os silos do grupo Cimentos Madeira (1984). O extremo oeste da baía foi tido pelos técnicos como o local mais apropriado à construção do porto, de acordo com a ideia surgida em meados do séc. XVIII. Vão neste sentido os projetos apresentados pelos Eng.os Francisco António Raposo (1823), Henrique Lima e Cunha (1880), Mariano Augusto Machado de Faria e Maia (1884) e Adriano Trigo (1910). As obras portuárias prosseguem a um ritmo lento; a conclusão do molhe até ao segundo ilhéu tardou muito (só em 1910 se apresentava em condições de servir de porto comercial). Entretanto, desde 1824 que se havia apontado a necessidade de construção de um cais em frente da cidade, nas proximidades da fortaleza de S. Lourenço, mas só em 1843 a Câmara do Funchal faz uma tentativa nesse sentido, de resto mal sucedida (a construção foi destruída pelo mar), em que se gastaram 20.390$000 réis. Além disso, o porto oceânico do Funchal, por se situar numa baía ampla, necessitava de obras que propiciassem as necessárias condições de apoio à navegação. Um dos principais problemas da Madeira, desde os inícios da sua ocupação, relacionava-se com as difíceis condições de abordagem da vertente sul, por estar sujeita, em algumas épocas do ano, aos perigosos ventos do Sul, do Leste e do Oeste. A vertente norte apresentava espaços abrigados do embate do mar e da influência dos ventos, sendo mais propícia às abordagens. Face a esta situação, houve sugestões no sentido de transferir o principal porto para a encosta norte. O conde Canavial avançou com o projeto de um porto em Porto Moniz, fazendo a ligação ao Funchal por cabo aéreo (em 1928, foi criada uma comissão para estudar esta proposta, de que se desconhecem os resultados). As reivindicações dos madeirenses, no decurso dos sécs. XIX e XX, insistiram na situação anteriormente descrita, de modo a fazer sentir às autoridades a necessidade de avançar com uma solução para o porto do Funchal. João de Ornellas, reportando-se à luta entre a Madeira e as Canárias pelo domínio da navegação atlântica, diz que o vapor Sakarah, da companhia Cosmos de Hamburgo, fizera experiências de atracagem na Madeira, nas Canárias e em Cabo Verde, de modo a definir o porto de escala, recaindo a escolha em Tenerife, “porque não tem o nosso porto condições de segurança para as embarcações, nem sequer se torna fácil a comunicação com a terra”. E remata: “O porto do Funchal é de levante, arriscado. Em vez de segurança encontram os navios na estação invernosa perigos certos, naufrágios, perdas de vida e de fazenda”. Na mesma linha se insere o discurso de Manuel José Vieira à Câmara dos Deputados, a 7 de maio de 1883, em resposta ao ministro das Obras Públicas: “Em construções marítimas, portos de mar, cais ou docas o nosso estado é o mais miserável que pode imaginar-se. […] O Funchal tem apenas um surgidouro duma costa pouco desenvolvida e aberta, em grande parte inacessível, exposta a todos os ventos do Sul, Leste e Oeste, e a tudo isso acresce não ter ela um lugar onde se possa saltar, não digo já comodamente, mas sem perigo de pessoa e de fazenda” (VIEIRA, 1884, 24). Ninguém consegue entender os constantes adiamentos da obra do porto do Funchal; segundo Adolpho Loureiro, “tudo está ainda por fazer. E, contudo, parece poder afirmar-se que os encargos destas obras serão largamente remunerados, tanto pecuniariamente, como em abono do bom nome da formosa Ilha e da comunidade dos seus visitantes” (LOUREIRO, 1910, 112). A necessidade de realizar obras na baía, no sentido de dotar o porto de um molhe de proteção e de um cais de acostagem, foi sentida desde o início do assentamento dos primeiros povoadores na encosta do Funchal, e sobretudo a partir de 1750. No entanto, durante muito tempo, a aspiração de um embarque e de um desembarque em total segurança e com comodidade não passou de um sonho que os meios técnicos disponíveis não permitiram concretizar. Designadamente durante o período áureo do comércio do açúcar, nos sécs. XV e XVI, esta deveria ser uma grande necessidade, tendo em conta os especiais cuidados a ser tidos com o produto para que não se molhasse no processo de transbordo ou de embarque (o mesmo não acontecia com o vinho, pois bastava rolar as pipas no calhau e conduzi-las a nado até às embarcações). Durante algum tempo, a existência de um porto não pareceu tão imprescindível. Entretanto, o fenómeno turístico, acompanhado do incómodo de içar os visitantes em cadeirinhas, trasladando-os dos veleiros para os barcos de transbordo, levou a que se voltasse a insistir na necessidade de um cais e de um molhe de abrigo para os momentos de tempestade. De facto, a passagem cada vez mais frequente de personalidades pela Madeira e o volume de passageiros em trânsito na Ilha, ou tendo-a como destino, obrigavam a repensar a forma tradicional de desembarque. Daí advieram a construção do molhe e da escada da Pontinha, na segunda metade do séc. XVIII (ficando para épocas posteriores a aposta no fornecimento de maiores comodidades e a adequação do porto às necessidades da navegação atlântica, nomeadamente com o uso regular da máquina a vapor, na segunda metade de Oitocentos). Só em 1755 se procedeu aos primeiros estudos em ordem à realização de obras na baía do Funchal, ficando assente a necessidade de estabelecer um molhe acostável até ao ilhéu onde estava implantado o forte de N.ª Sr.ª da Conceição. De acordo com a proposta do Sarg.-mor Ayres Telles de Menezes e Alencastre, a obra seria custeada pelos dinheiros usados para a fortificação da Ilha, pela taxa de ancoragem das embarcações, pelas comparticipações em dinheiro e pelas dádivas de trabalho braçal direto do povo. Do plano estabelecido, apenas foi concretizada, entre 1757 e 1762, a ligação ao ilhéu onde estava o forte de São José, de acordo com um projeto do Eng.º Francisco Tossi Columbina.   No ano de 1757, um temporal danificou esta estrutura, tornando-se imperioso realizar novas obras, para as quais só se obteve autorização em 1782, altura em que se teria estabelecido a ligação à Alfândega por meio de um caminho e de uma ponte na ribeira de São João. Esta informação, unanimemente veiculada, é todavia controversa: se dermos atenção a algumas imagens de princípios do séc. XVIII, veremos que a ligação entre o ilhéu e a terra – que, na maré baixa, se podia fazer a pé enxuto – já existia. Paulatinamente, este espaço da Pontinha tornou-se no ancoradouro principal do porto, tornando-se imprescindível assegurar as ligações até à Alfândega, pelo que a Coroa ordenou, em 1782, a construção de um caminho, concluído só em 1895; mas a finalização do molhe até ao ilhéu atrasou significativamente a sua construção. No contexto da evolução dos transportes marítimos, os madeirenses solicitavam remodelações portuárias, sobretudo quando confrontados com as obras dos portos das Canárias ou com a tomada de medidas por parte do Ministério das Obras Públicas, desde 1860, em ordem ao arranque das obras dos portos de Ponta Delgada e da Horta, já que a Madeira apenas tinha uma comissão nomeada ad hoc para proceder ao estudo do problema. Foi apresentada uma proposta que aliava a junção dos dois ilhéus (o da Pontinha e o ilhéu propriamente dito) a um prolongamento de 400 m. Quanto à construção, apostava-se numa concessão do direito de exploração por 99 anos, aliada a 20 anos dos direitos cobrados. Todavia, só em 1884 os madeirenses ganham alguma confiança, ao ver que o Governo destinara, para o ano económico de 1884-1885, uma verba de 30.000$000 réis para as obras do porto do Funchal. A intervenção do Estado começara a fazer-se sentir em 1879, ano em que uma portaria de 17 de setembro determinava a realização de um estudo para a construção do cais, de que foi encarregado Henrique de Lima e Cunha. O projeto, aprovado pelo Conselho Superior de Obras Públicas e Minas a 17 de junho de 1881, só foi retomado em 1886, tendo as obras começado em 1889. A cidade ficou servida de um cais para desembarque de passageiros somente a 27 de abril de 1892, o qual foi ampliado para 80 m em 1932. Este cais terá sido o fator determinante no desenvolvimento de uma rede costeira de navegação, juntamente com a construção, pela Junta Geral, de cais acostáveis na Ponta do Sol (1850), em Santa Cruz (1845, 1875, 1909), no ilhéu de Fora (1870), em Lazareto (1874), em Machico (1874, 1905), no Faial (1903, 1905), no Porto Santo (1902), em Câmara de Lobos (1876, 1903), no ilhéu de Cima (1902), em Porto da Cruz (1903), na Ponta Gorda, em São Jorge (1904), em Porto Novo (1905, 1908), na Baía de Abra (1905), na Ribeira Brava (1904-1908), no Campanário (1908), na Ponta da Oliveira e no Caniço (1909), em Ponta da Cruz e em São Jorge (1910), no Porto Moniz e no Seixal (1916). O litoral oeste da baía do Funchal foi sendo cada vez mais valorizado, pois permitia o fechamento do espaço, ao ligar os dois ilhéus à terra. Todavia, o molhe tinha começado por ser uma ligação da terra somente ao ilhéu da Pontinha. Tornava-se também necessário construir a estrada de ligação à Alfândega, o que ocorreu entre 1872 e 1895 e que ascendeu ao montante de 133.744$215 réis. Os barcos a vapor obrigaram os portos atlânticos a adaptar-se às novas exigências, caso quisessem continuar a manter ativo o movimento de embarcações. Até então, o Funchal levava vantagem sobre os demais portos, tanto pela disponibilidade como pela qualidade dos seus produtos (o açúcar, o vinho); perdia-a, agora, por falta de condições e pela imposição de dispendiosos tributos. A resposta ao problema estava na construção de um porto artificial e na desoneração dos tributos, com a criação do porto franco. As autoridades competentes demoraram a entender a necessidade de reformulação da sua política portuária neste aspeto, acabando por ceder algumas vantagens a portos concorrentes como os das Canárias. Aí rapidamente se avançou com a construção de infraestruturas portuárias e a criação de melhores condições fiscais ao movimento de embarcações e mercadorias. Em 1852, surgiu o porto franco e, em 1884, o primitivo varadouro de Santelmo de 1811 foi substituído pela primeira fase do molhe de La Luz. A partir do séc. XVIII, a Pontinha tornou-se num espaço privilegiado da cidade. Ali se acorria em romaria para ver o mar, nomeadamente para observar o efeito das ondas alterosas (foi este espetáculo que presenciou Isabella de França, em 1853). Para além disso, a Pontinha era o local em que as mulheres se dedicavam à pesca nas tardes do mês de julho. Muitos estrangeiros aplaudiram o novo jardim na Est. da Pontinha, à Pç. da Rainha, que funcionava como um autêntico cartão de visita da cidade. O primeiro projeto relativo a um cais no porto do Funchal foi materializado no ilhéu de São José em meados do séc. XVIII. O cônsul francês fala da construção de um cais em 1750; em 1755, iniciam-se os trabalhos de ligação do litoral ao ilhéu. Em 1766, constrói-se uma escada de madeira para o desembarque, que ainda existia em 1817, mas que teve pouca utilidade, uma vez que a Câmara teve que mandar construir outra por ocasião do desembarque da princesa Carolina Leopoldina da Áustria. A dificuldade de comunicação entre este local da Pontinha e o centro da cidade devia-se à falta de uma estrada que cobrisse a distância que os separava, urgindo encontrar outro local para o cais. Acabou por se construir a chamada estrada da Pontinha, cuja utilização não era permanente. Assim, o molhe da Pontinha seria utilizado só na impossibilidade de sê-lo o cais do Funchal. De facto, fala-se, desde 1823, da necessidade de um novo cais para a cidade, a construir na área próxima da fortaleza de Santiago ou na praça da Rainha. Com este propósito, o Brig. António Raposo faz alguns estudos na zona baixa da praia de Santiago; a conceção do projeto é de Paulo Dias de Almeida, tenente-coronel do Real Corpo de Engenheiros. No entanto, porque o mar destruiu o trabalho realizado, a Câmara do Funchal decidiu, a 22 de abril de 1843, avançar com a obra noutro local, próximo da fortaleza de S. Lourenço. As obras do cais foram então projetadas pelo Ten.-Cor. Manuel José Júlio Guerra (que, em 1847, com a insurreição da Maria da Fonte na Madeira, assumiu a chefia da Junta); com o fim da revolta, teria de regressar ao continente e as obras ficariam por acabar. Já em 1846 o mar tinha voltado a destruir parte significativa do trabalho realizado, pelo que se gastaram 5220$248 réis sem qualquer proveito – deste primitivo cais fala-nos Isabella de França, referindo que dele apenas existiam alguns vestígios e que o processo de desembarque havia retornado ao sistema antigo (na praia ou, então, pelo cais do ilhéu da Pontinha). O movimento de passageiros, nomeadamente de personalidades ilustres da aristocracia europeia, não se compadecia das condições do porto do Funchal, sendo o Gov. José Silvestre Ribeiro obrigado a improvisar um cais de passageiros na Pontinha para acolher a Rainha de Inglaterra e o príncipe Alexandre dos Países Baixos, sendo esse o único ponto de embarque e desembarque existente na cidade do Funchal e em toda a costa da Ilha. Este foi o primeiro cais de desembarque da Ilha e é também considerado o primeiro de Portugal (em 1850, o cais ficou mais seguro, ao ser talhado na rocha). Foi nele que, em 1852, o Gov. civil José Silvestre Ribeiro acolheu a Imperatriz do Brasil D. M.ª Amélia e a sua filha doente. Sabe-se que, em 1867, se projetavam um novo cais na Pontinha e a ligação por estrada à Alfândega, avaliados em 48.623$360 réis; o orçamento da Junta Geral para o ano económico de 1875-1876 previa uma despesa de 3080$00 com o referido cais. Por portaria do Governo de 17 de setembro de 1879, encarregou-se o oficial de artilharia Henrique de Lima e Cunha de preparar um novo projeto de cais e molhe para a Pontinha, bem como a estrada de ligação entre o porto e a Alfândega, com o custo total de 142.000$00 réis. O projeto foi apresentado em 1881, mas só em 1886 se avançaram com as alterações ao projeto inicial pelo Eng.º José Bernardo Lopes de Andrade (pelo que a receção a Capelo e Ivens, em 1885, não seria feita nas melhores condições se a Câmara não tivesse improvisado um cais de madeira); a obra não chegaria a ser adjudicada, por falta de licitantes. Em 1888, o Eng.º Lima e Cunha apresentou um novo projeto que, depois de posto a concurso, foi adjudicado a 18 de janeiro de 1889 aos engenheiros franceses Combemale, Michelon e Maurie pelo valor de 87.000$000 réis. A obra realizada encontrava-se, em 1891, em estado de ruína, pois o muro fora desmoronado pelo temporal de fevereiro de 1890, acabando por ser completamente destruída por um segundo temporal, em 28 de fevereiro de 1892, sendo necessário novo projeto, desta vez do Eng.º João Henrique von Hage. A obra iniciou-se em 1895 e custou 15.044$000 réis. Ficava, assim, concluída a segunda fase do porto de abrigo do Funchal, tendo sido as obras terminadas pelo engenheiro suíço René Masset, com o custo total de 539.759$815 réis. Contudo, em 1909 o molhe encontrava-se em mau estado, sendo urgente proceder a novas reparações. O cais da Pontinha continuou a ser usado no desembarque, quando as condições do mar não propiciassem o uso do cais localizado defronte da cidade. Não obstante ter sido sempre considerado um cais muito mau, foi aqui que desembarcaram ilustres personalidades, como a Imperatriz Zita, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral e o Presidente da República António José de Almeida, em 1922, para além das anteriormente referidas. Já a 27 de abril de 1892 o Funchal ficara finalmente servido de um cais, cifrando-se a despesa total da obra em 92.005$515 réis. Este cais tornou-se rapidamente na “porta de entrada” da cidade, no local onde se acolhiam, à sua chegada, as grandes personalidades (por aqui passou, designadamente, o Rei D. Carlos em 1901). Várias vozes – de visitantes e mesmo das próprias autoridades locais – testemunham a situação de falta de atenção prestada à Madeira no domínio das obras públicas. Em 1939, o Gov. José Nosolini, num relatório sobre a situação da Ilha enviado ao ministro do Interior, dava conta do abandono a que a Madeira estava sujeita; assim, constatava que, até dezembro de 1936, o Estado gastara 943.369 contos em estradas no continente e, na Madeira, nada. O dec. 28.592, de 14 de abril de 1938, estabelecera um plano de construção de estradas até 1949, no valor 44.000 contos, de acordo com o qual o Estado assumiria 75 % do financiamento. O governador apontava o dedo ao Estado, acusando-o de favorecer outras regiões em detrimento da Madeira, e dava o exemplo dos portos: o Estado apoiara, através de empréstimos, as obras dos portos de Viana do Castelo, de Aveiro, de Setúbal, do Douro e de Leixões, enquanto todas as obras realizadas no porto do Funchal haviam sido custeadas pela Junta. Em meados do séc. XX, estava muito por fazer quanto à rede viária e eram necessários investimentos para que a Ilha se desenvolvesse neste aspeto. O incremento do plano viário da Ilha foi um processo muito moroso, dificultado pela orografia, sendo que as estradas foram construídas com elevadas despesas para a Junta Geral. De facto, a Junta dispunha, desde 1928, da receita dos impostos sobre as transações e sobre a aplicação de capitais, consignada à construção e à reforma de estradas. Em 1938, foi definido um plano de construção de estradas pelo período de 11 anos, com o custo de 44.000 contos, competindo ao Governo o financiamento de 75 % e o restante à Junta, para o que a Junta solicitou um empréstimo no valor de 3750 contos; esta proporção manteve-se em 1967, ano em que a participação do Estado foi de 33.750 contos e a da Junta Geral de 11.250 contos. É de referir o papel de Abel Rodrigues da Silva Vieira (1898-1972), responsável pelo departamento de obras públicas da Junta Geral, na definição deste plano viário do Estado Novo. Ao longo deste século, tudo o que se relacionava com a expansão da rede viária foi sendo motivo ora de reivindicação, ora de comemoração. A construção das estradas (com a definição do seu traçado sinuoso), das pontes e de alguns túneis (poucos) implicou um redobrado esforço da engenharia e da capacidade humana, assim como um dispêndio avultado de verbas. No final do séc. XX, a tecnologia alivia o esforço humano e possibilita a substituição da terraplanagem por viadutos, pontes e túneis; deste modo, encurtam-se os trajetos, que anteriormente se faziam pelo rendilhado das encostas, e permite-se uma circulação mais rápida e mais eficaz, o que resulta na aproximação dos diversos núcleos populacionais; como consequência, o recurso às vias terrestres ultrapassa o recurso às vias marítimas. A rede viária na déc. de 30 era já bastante razoável e tornava-se motivo de elogios, contrastando notoriamente com a realidade da centúria anterior. Alguns visitantes reconhecem o labor da Junta Geral: “vamos olhando as terras da Junta Geral e vendo o cuidado com que são tratadas as estradas madeirenses, limpas, calcetadas, sem poeira, debruadas por flores tenras que dentro de anos as emoldurarão ricamente” (MONTÊS, 1938, 190). E dizem ainda: “preparámo-nos para desembarcar no Funchal, capital dum arquipélago feliz, que tem esplêndidas estradas, sem poeira, construídas em terreno dificílimo, que são frequentemente verdadeiras obras de arte […] com a eletrificação rural mais adiantada do país, […] além de possuir já um ótimo porto de mar, com o abastecimento dos combustíveis líquidos à navegação e uma rede hoteleira das mais modernas e confortáveis. Finalmente tem em Porto Santo um aeródromo de categoria internacional, e vai dispor, dentro em breve, na própria ilha da Madeira, da pista de Santa Catarina. Por todos estes melhoramentos, que a administração nacional realizou e por todas aquelas excelências que Deus Nosso Senhor lhe deu, a ilha da Madeira poderia considerar-se entre as mais felizes das suas congéneres” (COUTINHO, 1962, 183). Esta obra de engenharia, que demorou a ganhar expressão em toda a Ilha, não se fez à custa dos apoios do Governo central, que eram insuficientes, mas resultou antes da integração de Portugal na então Comunidade Económica Europeia, no seio da qual foi estabelecida, de forma definitiva, uma situação particular para a política de desenvolvimento local, a qual contemplaria elevados investimentos nas redes viária, portuária e aeroportuária. A Comissão Administrativa da Junta Geral, presidida por João Figueira de Freitas, apostou no desenvolvimento da rede de estradas da Madeira. Para isso, solicitou ao Governo Nacional autorização para contrair um empréstimo de 15.000 contos. Em janeiro de 1931, para atenuar a grave crise de trabalho por que passava a Madeira, pediu ao presidente do Ministério e aos três ministros do Interior, do Comércio e das Finanças que aprovassem de imediato a adjudicação da empreitada das obras do cais do Funchal. A estas, seguiram-se outras obras. O Governo enviou à Madeira uma comissão técnica que estudou e estabeleceu um plano para a construção das novas estradas e para a conclusão de outras, concedendo à Junta Geral um empréstimo de 33.000 contos; esta colocou, dos seus cofres, mais 11.000 contos, perfazendo, assim, 44.000 contos, com que concluiu as ditas estradas. Em 14 de abril de 1938, é publicado o decreto-lei n.º 28.592, que estabelecia o novo plano complementar da rede de estradas da Madeira, o qual previa o período de 10 anos para conclusão das obras. No plano das construções, o Governo deu seguimento à realização do plano complementar da rede de estradas da Madeira, para o que foi necessário o montante de 78.000 contos, assumindo o Estado 75 % e a Junta Geral 25 % do valor total. Em 1955, a Junta conseguiu do Governo um reforço desse plano, com uma verba de 50.000 contos. Foi sob a alçada do Governo que se construíram as estradas Ribeira da Janela-Seixal e Boaventura-Arco de S. Jorge (com o respetivo túnel, denominado túnel Eng.º Duarte Pacheco), a ponte da Ribeira da Janela, e as estradas de acesso ao Curral das Freiras e ao Pico do Areeiro. No séc. XXI, a Madeira apresenta-se diferente: graças aos meios financeiros propiciados pela União Europeia, abriram-se estradas e vias rápidas, acabando-se com as barreiras orográficas, aparentemente inultrapassáveis. Além disso, a construção de portos, cais e embarcadouros, iniciada em épocas anteriores, acabou por garantir condições de circulação de pessoas e produtos, mecanismo eficaz de animação da agricultura e do mercado, estimulado pela existência de condições de apoio à navegação livre de taxas tributárias no porto do Funchal.   Alberto Vieira Emanuel Janes (atualizado a 05.01.2017)

História Económica e Social