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ferraz, joão higino

Filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz, foi um destacado técnico e cientista do engenho Hinton entre 1888 a 1946, tendo sido o responsável por muitas das inovações introduzidas nos processos de produção de açúcar e de vinho. Palavras-chave: açúcar; vinho; engenhos; Hinton. Nascido no Funchal em 1863, é filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz (1792-1856), o primeiro a construir um engenho a vapor na ilha da Madeira, em 1856. Terá também sido o seu avô quem estabeleceu, entre 1848 e 1856, uma fábrica da família na Ponte Nova, onde João Higino começou a trabalhar e cuja direção assume em 1882. Era um jovem de 18 anos que se tornava responsável pela fábrica e que se manteve no cargo de direção até 1886, altura em que a família foi forçada a vender o edifício e os equipamentos em praça pública. Liquidada a fábrica, esteve dois anos sem emprego até que, em 1888, arrendou, em sociedade com o tio, João César de Carvalho, a fábrica de destilação da Ponte Deão, de Severiano Cristóvão de Sousa. No ano imediato, entrou para a fábrica do Torreão, da firma William Hinton & Sons, como técnico de fabrico de açúcar e álcool, assumindo a gerência industrial e técnica. Num manuscrito lavrado pela mão do próprio, João Higino Ferraz diz que, em 1900, assinou contrato com a fábrica do amigo Harry Hinton, a que ficou vinculado até à morte, em 1946. Todavia, e de acordo com o primeiro copiador de cartas, sabemos que estava ao serviço da firma desde 18 de outubro de 1898, como se pode confirmar pela carta enviada ao amigo e patrão Harry Hinton, solicitando a sua presença no engenho em construção para poder decidir sobre a forma de disposição das máquinas. No sentido de dar continuidade ao processo de modernização da fábrica do Torreão, esteve de visita aos complexos industriais franceses que laboravam a beterraba para o fabrico de açúcar. A visita foi proveitosa, refletindo-se nas modernizações do sistema do engenho de Hinton. Esta experiência terá sido importante para a saída que fez, em 1930, a Ponta Delgada (São Miguel), para dar alguns ensinamentos sobre o processo de fabrico de açúcar, nomeadamente a fermentação do melaço. Em julho de 1927, embarcou para o Lobito com Charles Henry Marsden (1872-1938), um engenheiro natural de Essex responsável pela modernização do engenho da casa Hinton, para montar uma estrutura mais moderna no engenho Cassequel, propriedade da casa Hinton. Aí permaneceu 103 dias, regressando ao Funchal a 13 de dezembro de 1928. O diário da saída, compilado numa agenda, documenta o processo de montagem da fábrica e as dificuldades de adaptação das peças ao conjunto da estrutura. Em 1945, lamentava-se: “sou pois técnico em fabricar açúcar e álcool, desde 1884 a 1945 = 61 anos. Não tenho direito a ter o título de técnico de fabricar açúcar e álcool oficialmente em Portugal? […] Desejava pois obter o título oficial de técnico de fabricar açúcar e álcool ou como técnico prático de fabricar açúcar e álcool” (FERRAZ, 2005b, 44). Mas acabou por morrer sem que fosse reconhecido o seu gigantesco trabalho como técnico, tendo sido a principal alma da permanente atualização tecnológica e química da fábrica do Hinton, que foi na época uma das mais avançadas tecnologicamente. A ideia está presente também no testemunho do próprio: “Nestes longos (60) anos assisti a variados sistemas de fabrico, desde quase do início de maneiras antigas no fabrico do açúcar de cana, destilação, etc., etc., acompanhando sempre os progressos nestas indústrias até hoje, principalmente desde 1900 a 1944, na fábrica do Torreão, onde pusemos em trabalho consecutivamente os sistemas os mais aperfeiçoados e mais modernos no fabrico de açúcar e álcool” (Id., 2005a, 39). Na correspondência com Harry Hinton, transparece uma perfeita sintonia entre os dois, que favoreceu o processo de permanente atualização tecnológica e química; partilhavam a mesma paixão pela indústria e desenvolvimento do engenho do Torreão. João Higino Ferraz não receia manifestar, diversas vezes, a amizade que o prende ao patrão. Em 1917, confessa: “Harry Hinton é um dos meus melhores amigos”. Passados 10 anos, confessa que a viagem a África sucedeu apenas “para ser agradável ao senhor Hinton a quem devo amizade e reconhecimento” (Id., Ibid., 40). João Higino Ferraz era o superintendente, mas acima de tudo um cientista que procurava aperfeiçoar os conhecimentos de química e tecnologia, através do confronto entre a literatura estrangeira e a sua capacidade inventiva. Manteve-se, assim, atualizado através da leitura de publicações, fundamentalmente francesas. Nos estudos, manifesta-se um cientista arguto que não detém a atenção apenas na cana sacarina, pois estuda e opina sobre o uso de outros produtos no fabrico de açúcar e álcool, como é o caso da batata e da aguardente.   Se confrontarmos a literatura científica mais significativa dessa altura, de finais do séc. XIX até à Segunda Guerra Mundial, verificamos que os conhecimentos e as técnicas mobilizados no engenho de Hinton são permanentemente atualizados e que se pautam por padrões de qualidade, integrando informações sobre os métodos mais avançados, como os estudos dos engenheiros químicos e industriais que marcaram o processo tecnológico do momento. Aliás, mantém contacto com inúmeras associações científicas europeias, como era o caso da Association des Chimistes de Sucrerie et de Distillerie. Na correspondência, surgem assiduamente nomes de cientistas europeus, como Barbet e Naudet. É de João Higino Ferraz o invento de um aparelho de difusão cujos direitos cedeu, em 19 de novembro de 1898, à firma William Hinton & Sons. Naquilo que resta da sua biblioteca, encontra-se um conjunto valioso de tratados de química e tecnologia relacionados com o açúcar. Sob a sua orientação, foram feitas várias experiências e adaptações dos sistemas tecnológicos importados. Em 1929, em carta ao amigo Avelino Cabral, que estava no Lobito, refere: “Como tenho tido tempo estou em estudos e experiências com o fermento Possehl’s no laboratório, e tenho obtido coisas bastante curiosas nas culturas feitas”. Ainda em carta ao mesmo refere a utilidade das inovações e experiências: “para que a parte comercial de uma indústria dê o resultado, é necessário ver também a parte industrial ou técnica” (Id., Ibid.). Apenas em 1922 temos informação de quanto auferia João Higino Ferraz pelos serviços prestados à fábrica Hinton. Para o novo contrato a celebrar reclamava 63 libras mensais, sendo o câmbio realizado mensalmente, ficando “com pulso livre para fazer e dirigir as minhas pequenas indústrias fora de açúcar, álcool e aguardente, não prejudicando por estes meus trabalhos a direcção técnica da fábrica de açúcar e álcool do Torreão” (Id., Ibid.). João Higino Ferraz fica para a história como um dos principais obreiros da modernização do engenho do Hinton ocorrida na primeira metade do séc. XX. Enquanto esteve à frente dos destinos da fábrica, de 1898 a 1946, foi imparável na sua adequação aos novos processos e inventos que iam sendo divulgados, não se coibindo mesmo de fazer algumas experiências com o equipamento e os produtos químicos. Opina sobre agronomia, bem como sobre mecânica e química, mantendo-se sempre atualizado sobre as inovações e experiências na Europa, nomeadamente em França. Da sua lista de contactos e conhecimentos fazem parte personalidades destacadas do mundo da química e da mecânica. Assim, para além dos contactos assíduos com Naudet, refere-nos com frequência os estudos de Maxime Buisson, M. E. Barbet, M. Saillard, F. Dobler, M. D. Sidersky, Luiz de Castilho, M. H. Bochet, M. Effort e M. Gaulet. À frente do engenho, a sintonia e empenho de Ferraz e Hinton fizeram com que a Ilha apresentasse, entre finais da centúria de oitocentos e inícios da seguinte, uma posição destacada no sector, atraindo as atenções a nível mundial. O Hinton acolhe especialistas de todo o mundo, na condição de visitantes ou como contratados para a execução dos trabalhos especializados. O Eng.º Charles Henry Marsden foi um deles, tendo aí trabalhado entre 1902 e 1937, altura em que saiu doente para Londres, onde faleceu no ano seguinte. A sua presença está documentada pelo menos em 1918, 1929 e 1931. Destaca-se também o Eng.º químico agrícola Maxime Buisson, que, em 1902, trabalhava no laboratório. Para o fabrico de açúcar, contratavam-se os afamados cuiseurs em França, de forma a seguir-se à risca as orientações de Naudet. O empenho de João Higino Ferraz não ficou por aqui, pois apostou também no processo de vinificação, âmbito no qual protagonizou algumas inovações que marcaram as primeiras décadas do séc. XX. A documentação disponível refere o seu empenho no processo de fabrico de vinho, aguardentes e outras bebidas, como a cidra, a cerveja e o vinho espumoso. A partir de 1905, J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o fabrico do açúcar, manteve-se permanente atualizado sobre a tecnologia francesa de fabrico de todo o tipo de bebidas fermentadas e destiladas. São frequentes as referências a equipamentos franceses, bem como a um conjunto de títulos sobre o tema, de que era possuidor de alguns exemplares. Na déc. de 20, construiu uma vinharia onde foi possível montar o aparelho de evaporação Barbet e um moderno sistema de refrigeração. Ao nível da destilaria, devemos assinalar a sua presença em Almeirim, em 1916, para montar um aparelho francês. As experiências levaram-no a produzir cidra, cerveja e malte, e, com vinho branco, xarope de uva, vinho de mesa e espumoso – que chamava de “fantasia” para não se confundir com o francês –, vinagre, vinho cidre maltine, licores finos, anis escarchado e genebra, que vendia localmente e exportava para alguns mercados como a Alemanha. Por outro lado, tentou imitar os vinhos franceses, o sauterre e o champagne. Da sua lista de experiências, constam ainda as que fez para o fabrico de geleia de pêro, marmelada de bagaço de pero e fermento puro de uva para uso medicinal. Ferraz apostou, pois, no aperfeiçoamento do processo de vinificação, sendo a sua vinharia um exemplo disso. Neste contexto, fez diversas demonstrações sobre o uso dos processos Barbet e Sémichon, sendo defensor da necessidade da compra da uva ao agricultor, medida que contribuía para um maior aproveitamento das massas vínicas e para um maior cuidado no acompanhamento do processo de vinificação que defendia. Numa época em que o vinho jaquet, casta americana, dominava a produção, fez ensaios para o seu uso com o vinho Madeira e com o vinho de mesa para consumo local. Além disso, apresentou um vinho de mesa ligeiramente gasoso, pelo processo de M. Mercey, que, no seu entender, deveria competir com a cerveja. Sucede que, nas experiências de 1914, o vinho posto à venda não teve grande aceitação, porque as garrafas haviam perdido parte do gás carbono por causa da má qualidade da rolha. Mesmo assim, retoma essas experiências em 1927. J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o conde de Canavial, bateu-se por mudanças radicais no processo de fabrico do vinho, apelando ao abandono das técnicas tradicionais a favor das vantagens das descobertas entretanto ocorridas na centúria de oitocentos no processo de vinificação, com os sistemas Barbet e Sémichon. Todas as experiências e ensaios eram sempre fundamentados com estudos científicos de carácter químico, nomeadamente franceses, e com a apresentação de equipamentos, maioritariamente com origem na tecnologia açucareira, que o mesmo adaptava, pelas suas próprias mãos, ao fabrico do vinho. A tudo juntava estudos minuciosos de viabilidade económica do novo produto, no sentido de convencer a Casa Hinton ou outros parceiros, mas o gosto madeirense não se mostrou favorável à novidade. Os conhecimentos adquiridos com o fabrico de açúcar no engenho do Hinton foram fundamentais para estes ensaios, mas o sucesso da iniciativa não foi coroado de êxito, pelo que acabará por abandonar esta atividade em 1942. O arquivo do engenho do Hinton é, por força das circunstâncias atrás descritas, fundamental para o conhecimento da história contemporânea da agricultura madeirense. Todavia, a forma conturbada como sucedeu o processo de desmantelamento da estrutura para a construção de um jardim público conduziu a que toda esta memória desaparecesse. Felizmente, tivemos a possibilidade de encontrar alguns testemunhos avulsos no arquivo particular de João Higino Ferraz. A documentação disponível, copiadores de cartas, livros de notas e apontamentos, constitui um acervo raro na história da técnica e da indústria. Não se conhecem casos idênticos de livros de apontamentos em que o técnico documenta, quase minuto a minuto, o que sucede na fábrica, desde os percalços do quotidiano às questões técnicas e laboratoriais. Para além disso, se tivermos em conta que a mesma documentação abrange um período nevrálgico da história de indústria açucareira, marcada por permanentes inovações no domínio da metalomecânica e da química, compreendemos claramente a importância deste tipo de espólio, que mais se valoriza pelo facto de ser, até aos começos do séc. XXI, o único divulgado e conhecido. O conjunto de nove livros referentes às cartas abarca um período crucial da vida do engenho do Hinton (1898-1937), marcado por profundas alterações na estrutura industrial, por força das inovações que iam acontecendo. A partir deste acervo de cartas, é possível conhecer tudo isso, mas também deduzir algo mais sobre o funcionamento desta estrutura. Ao mesmo tempo, ficamos a saber que João Higino Ferraz era, em Portugal, uma autoridade na matéria, prestando informações a todos os que pretendessem montar uma infraestrutura semelhante. Assim, em 1928, acompanhou a montagem do engenho Cassequel, no Lobito, onde a família Hinton tinha interesses, e esteve, em junho de 1930, em Ponta Delgada, nos Açores, a ensinar a fermentar melaço de açúcar de beterraba, na Fábrica de Santa Clara. Harry Hinton surge, em quase toda a documentação, como um interveniente ativo no processo, conhecedor das inovações tecnológicas e preocupado com o funcionamento diário do engenho, nomeadamente com a sua rentabilidade. J. H. Ferraz informava-o, de forma quase diária, de tudo o que se passava. A proximidade do Funchal aos grandes centros de decisão e inovação tecnológica da produção de açúcar a partir de beterraba, na França e Alemanha, associados aos contactos de H. Hinton e ao seu espírito empreendedor fizeram com que a Madeira estivesse na primeira linha da utilização da nova tecnologia. Em 1911, documentam-se diversas experiências com equipamento. Além disso, funcionava como espaço de adaptação da tecnologia de fabrico de açúcar a partir da beterraba para a cana sacarina. Daí as diversas deslocações de J. H. Ferraz a França (1904 e 1909) e os permanentes contactos com alguns estudiosos e fábricas. Tenha-se em conta que o mesmo era sócio da Association des Chimistes em França, sendo por isso leitor assíduo do seu Bulletin. Por outro lado, alguns inventores, como Naudet e engenheiros de diversas unidades na América (Brasil e Tucuman), Austrália e África do Sul, estavam em contacto com a realidade madeirense, fazendo, por vezes, deslocações para estudar o caso do engenho madeirense. A erudição de J. H. Ferraz era vasta, dominando toda a informação que surgia sobre aspetos relacionados com o processo industrial e químico do fabrico do açúcar. Para além da leitura do Bulletin de l’Association des Chimistes, temos referências à leitura do Journal de Fabricants de Sucre, e podemos documentar na sua biblioteca a existência de diversas obras da especialidade, muitas delas referenciadas nos livros de notas ou cartas. Aliás, nas cartas que manda a Harry Hinton quando este se encontra no estrangeiro, pede-lhe frequentemente publicações recentes. O corpo documental provém do arquivo privado de João Higino Ferraz e pode ser seccionado em três partes fundamentais: uma primeira constituída por nove copiadores de cartas; uma segunda formada por vários volumes de livros de notas; e, por fim, documentação avulsa. Esta organização do arquivo pessoal de J. Higino Ferraz é, de certa forma, artificial, dado que não foi feita pelo autor; trata-se de uma elaboração arquivística, que decorre da análise do conteúdo e da tipologia dos vários documentos que o compõem. A primeira parte, composta por nove livros onde Higino Ferraz conservou, em cópia, muita da correspondência por si remetida, e não só, cobre o período de 1898 até 1937, com um hiato temporal provavelmente entre finais de 1913 e inícios de 1917, e outro possivelmente de janeiro a outubro de 1919. Julgamos que estas lacunas estariam contempladas em dois volumes autónomos; contudo, se existiram, esses livros não ficaram para a posteridade. A designação “copiador de cartas” foi adotada devido ao facto de os dois primeiros livros, que cobrem o período de 1898 a 1913, terem esse título na capa – não aposto por João Higino Ferraz, mas como denominação da finalidade dos volumes. Entendeu-se por bem atribuir a mesma designação a todos os livros, seguida da referência aos lapsos de tempo que abarcam. Cumpre ainda acrescentar que nem toda a correspondência remetida por João Higino Ferraz está presente nestes livros e que nem toda a documentação neles inserida é composta por epístolas. Ver-se-á que de algumas cartas enviadas, sobretudo as datilografadas, guardou o autor cópia sob a forma avulsa, estando as mesmas – aquelas a que tivemos acesso – transcritas na secção da documentação avulsa. Fizemos preceder cada carta transcrita de uma informação sumária concernente à data, ao destinatário e ao local, quando possível, para permitir uma mais rápida perceção por parte do leitor. Ao longo da transcrição, demo-nos conta de que alguma informação exarada nos copiadores não era, com efeito, composta por epistolografia, mas sim por relatórios, cálculos, estimativas de produção, lucros e despesas, etc. Antepusemos a cada um dos informes deste teor a menção à sua data e ao se destinatário, se conhecido fosse, e uma breve caracterização. Uma segunda secção deste espólio documental transcrito é constituída por anotações e apontamentos vários – inscritos em livros autónomos –, versando sobre produtos, processos, aparelhos e técnicas industriais de produção, bem como sobre a transformação de açúcar, álcool e aguardente; quase todos estes volumes têm título atribuído por João Higino Ferraz, que é respeitado e aceite por nós. Ainda que algo artificial, a denominação dada a este conjunto, “livros de notas”, advém dos próprios títulos atribuídos pelo autor. A última secção é constituída por documentação avulsa, abarcando: documentos epistolares, saídos do punho de Higino Ferraz (particularmente cópias de cartas) ou tendo-o como destinatário (sendo seus autores, por exemplo, Harry Hinton, Marinho de Nóbrega ou Antoine Germain); documentos referentes a aparelhos, processos e técnicas de fabrico e transformação de açúcar, álcool e aguardente (à imagem da informação exarada nos livros de notas); anotações manuscritas que João Higino Ferraz lançou nos forros da capa ou folhas de guarda de alguns livros ou manuais por si usados, que versavam sobre a cultura e produção de cana sacarina e seus derivados; e, ainda, apontamentos autobiográficos. Dividimos esta documentação em duas subsecções: a primeira, composta por todos os documentos que têm por autor Higino Ferraz; a segunda, por todas as fontes que foram produzidas por outros indivíduos. O arquivo privado deste técnico açucareiro, que morre em 1946, permite-nos, pois, ter acesso a informações que ilustram vários aspetos da sua vida pessoal e familiar, nomeadamente as suas condições de vida, relações de amizade e conceções políticas, sociais e económicas. Ao mesmo tempo, esta documentação reveste-se de especial interesse para a história da Madeira da primeira metade do séc. XX, sobretudo no que respeita à história da indústria açucareira nas suas vertentes económica, social e técnica, mas também nos seus meandros e implicações políticas.   Alberto Vieira (aualizado a 06.01.2017)

Física, Química e Engenharia História Económica e Social Personalidades

empresas

Os notários são uma fonte privilegiada para o estudo da história da economia e, de forma especial, das empresas, mas não são a única, embora sejam fundamentais. Este domínio do conhecimento tem dado lugar a múltiplas especializações, surgindo diversos campos de pesquisa que contribuíram para revolucionar a história económica, a partir da déc. de 90 do séc. XX. Desta forma, às abordagens globais, sobrepuseram-se, muitas vezes, as da micro-história, com a valorização da indústria e das empresas através de estudos especializados. A história empresarial mereceu, precisamente na déc. de 90 do séc XX, uma inusitada valorização, mercê da existência de associações especializadas, assim como de publicações periódicas. Ora, esta ambiência fez a disciplina desenvolver-se, com particular ênfase, na América Latina, em especial, na Argentina. Também em França, Inglaterra e Espanha se incrementaram linhas de investigação idênticas. A história das empresas ganhou, assim, um lugar de relevo na história económica, resgatando para o seu âmbito temático questões que estavam apagadas ou renegadas dele. Embora esta realidade empresarial possa ser vislumbrada, nomeadamente através das companhias familiares, em épocas anteriores, é com o processo da Revolução Industrial que estas ganham a sua verdadeira dimensão, sendo assim, também a partir do séc. XIX, que encontramos a sua atenção focalizada. No quadro da história das empresas, para além dos arquivos das próprias empresas, quando existam, os notários podem ser considerados uma fonte essencial para o conhecimento das mesmas, uma vez que todos os proprietários de empresas acorriam ao notário para segurar qualquer ato. O mesmo não podemos dizer da população em geral, uma vez que só se socorriam deste mecanismo aqueles que tinham meios para o fazer e não seriam muitos. Daí as múltiplas fragilidades deste tipo de fontes, quando usadas no estudo da vida material e do quotidiano em geral. Para a Madeira e o espaço atlântico, no período dos sécs. XVII e XVIII, existe um acervo significativo de cartas comerciais que permite, em muitas situações, reconstituir a história e o quotidiano das instituições, nomeadamente daquelas a que falta documentação oficial. Esta situação tem continuidade no séc. XIX, com o sector do vinho. A ausência de documentação oficial permite, em certa medida, reconstituir algumas teias da rede comercial e de negócios atlânticos dessa época, com origem ou não na Madeira. As cartas comerciais servem como instrumentos fundamentais no processo de trocas comerciais. Muitas vezes, o sucesso deste sistema de circulação de produtos depende da forma expedita como as mesmas circulam e chegam ao destinatário. As cartas de João Higino Ferraz, escritas entre 1898 e 1937, tanto envolvem interesses científicos como políticos, no sentido de firmar uma estratégia de crescimento de uma indústria e atividade em torno da produção do açúcar. O conjunto de nove livros referentes às ditas cartas abarca um período crucial da vida do engenho do Hinton (1898-1937), marcado por profundas alterações na estrutura industrial, por força das inovações que iam acontecendo. A partir deste acervo de cartas é possível saber tudo isso, mas também induzir algo mais sobre o funcionamento desta estrutura. Ficamos ainda a saber que João Higino Ferraz era uma autoridade na matéria, em Portugal, prestando informações a todos os que pretendessem montar uma infraestrutura semelhante. Assim, em 1928, acompanhou a montagem do engenho Cassequel, em Lobito, onde a família Hinton tinha interesses e esteve, em junho de 1930, em Ponta Delgada, nos Açores, a ensinar a fermentar melaço de açúcar de beterraba, na Fábrica de Santa Clara. A leitura destas cartas vem revelar e confirmar, mais uma vez, que a Madeira marcou um passo decisivo na história da cana-de-açúcar, entre os sécs. XV e XX, estando na linha da frente das inovações tecnológicas. Nos sécs. XV e XVI, acresce a função de distribuição da cultura e técnica em todo o espaço atlântico. Para finais do séc. XIX e princípios do seguinte, ficaria reservado o papel pioneiro no ensaio de algumas técnicas e sistemas de fabrico de açúcar e aguardente que revolucionaram todo o processo industrial. Para isso, foi importante a ação de João Higino Ferraz que, na qualidade de gerente técnico do engenho do Torreão, conseguiu manter contactos estreitos com os ensaios feitos em França, de que o sistema de Naudet é exemplo. Foi na Ilha que se ensaiaram alguns processos tecnológicos e químicos que, depois, adquiriram um papel de relevo no processo de industrialização do fabrico de açúcar e aguardente. Por outro lado, a permanência desta estrutura industrial dependeu de ativas manobras de bastidores junto dos políticos, em Lisboa e junto da imprensa local, no sentido de conservar esta situação de favorecimento que serviu de respaldo para a manutenção, evolução e adequação do engenho do Hinton. Tudo isto só é possível saber e testemunhar a partir do acervo privado e das cartas trocadas entre João Higino Ferraz e Harry Hinton. No séc. XV, o açúcar abriu a Ilha ao comércio internacional, ganhando os madeirenses consciência das redes comerciais europeias e das suas formas de expansão atlântica. As condições da época e os riscos inerentes ao processo conduziram a uma redistribuição equitativa de capital investido, bem como das perdas e dos lucros desta rede de negócios. Assim, especializaram-se as tarefas e surgiram os tratantes, os transportadores, os seguradores e os societários. Ainda, adaptaram-se a este movimento as estruturas que fundamentavam o comércio mediterrânico-europeu, as sociedades comerciais, os contratos de frete e o sistema de seguros a dar cobertura a essa aspiração de segurança, estabilidade e expansão da burguesia comercial e marítima europeia. A institucionalização destas redes comerciais mediterrânicas foi iniciativa dos mercadores italianos e alemães que chegaram às ilhas atraídos pelo comércio do açúcar, do pastel e da urzela. Muitos destes mercadores, instalados nas praças de Lisboa, Sevilha e Cádis, alargavam a sua ação às principais cidades portuárias insulares: Funchal, Ponta Delgada, Angra, Las Palmas, Santa Cruz (Tenerife) e Garachico. E aí subestabeleciam as tarefas comerciais em familiares ou concidadãos com o estatuto de societários, de agentes ou de procuradores. A forma mais comum de associação e de alargamento desta rede de negócios foi o estabelecimento de companhias ou sociedades comerciais, definidas, de um modo geral, pelo seu carácter familiar, pela eventualidade da sua ação e por uma composição variada de intervenientes. Estas eram habitualmente empresas familiares, servindo-se os seus componentes dos laços de parentesco para assegurar a permanência da sua ação, a solidariedade e comunhão de interesses. Só quando isso se tornava impossível se recorria aos compatrícios avizinhados nas principais praças. Esta última situação surgiu com frequência na Madeira. As companhias familiares tinham, à partida, uma tendência perdurável, de modo geral, enquanto a associação de mercadores tinha um carácter temporário ou eventual. Todas as companhias eram formadas por um período determinado e surgiam frequentemente nas transações comerciais em torno do açúcar, das escápulas ou contingentes de exportação pertencentes à coroa, dos direitos reais e também do arrendamento desses direitos por períodos determinados. O relacionamento dos intervenientes nestas sociedades fazia-se de acordo com o investimento na empresa: capital e trabalho. Quando um dos societários apenas intervinha com o seu trabalho, era designado agente ou feitor. Por vezes, os vínculos que ligavam os elementos do grupo eram de menor dimensão, surgindo assim o procurador que, mediante documento notarial, atuava sobre a fazenda do seu parceiro no mercado local, cobrando, por isso, uma determinada percentagem. A rede de negócios funchalense em torno do trato do açúcar foi criada e incentivada pelos mercadores estrangeiros, alemães ou italianos, que dominaram as principais sociedades intervenientes no comércio açucareiro, não obstante terem morada fixa em Lisboa, Flandres ou Génova, e o seu domínio atingiu não só as sociedades criadas no exterior, com intervenção na Ilha, mas também o grupo de agentes ou feitores e procuradores subestabelecidos no Funchal. A sua escolha era criteriosa: primeiro os familiares, depois os compatrícios enraizados na sociedade e, só no fim, os madeirenses ou nacionais. As principais casas comerciais europeias intervenientes no trato açucareiro madeirense podem ser definidas de acordo com o número de representantes, salientando-se, entre eles, Baptista Morelli, B. Marchioni, Welser, Claaes, Charles Correa, Pero de Ayala e Pero de Mimença. Os Welsers e Claaes intervieram na praça do Funchal por intermédio de agentes estabelecidos em Lisboa, respetivamente, Lucas Rem e Erasmo Esquet que, na Ilha, subestabeleceram, por sua vez, feitores. Assim, os Welsers tinham como interlocutores no Funchal, nos princípios do séc. XVI, João de Augusta, Bono Broxone, Jorge Emdorfor, Jácome Holsbuck, Leo Ravenspurger e Hans Schonid. Os agentes eram um elemento fundamental e ativador de todo o sistema de trocas. Eram eles que executavam as principais tarefas inerentes ao movimento de circulação dos produtos. E, numa sociedade essencialmente agrícola, em que a maioria da população se dedicava quase em exclusivo à faina do aproveitamento da terra e a atividades artesanais subsidiárias, tornava-se difícil o recrutamento desses novos agentes económicos. Os produtores e feitores, na sua condição de interlocutores dos mercados europeus, não se ligavam a uma única sociedade, mas atuavam através de um grupo numeroso de empresas e societários; e estes, por sua vez, não se prendiam apenas a um representante, pois faziam distribuir os seus poderes por um grupo de feitores e procuradores. Na primeira situação, distingue-se Benoco Amatori, que representava B. Marchioni, B. Morelli, Álvaro Pimentel e Jerónimo Sernigi; na segunda, João Francisco Affaitati, que, entre 1500 e 1529, estava representado por Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristóvão Bocollo, Capella e Caeollani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi, Mafei Rogell e Lucas Giraldi. Fora do âmbito do trato açucareiro, formaram-se também companhias com objetivos definidos no comércio ou transporte. No sector dos transportes, área onde o risco era maior, existiam também companhias em que intervinham mercadores e mareantes. Assim, em 1597, Rodrigo Fernandes S. de Veloso, mercador, morador no Funchal, contratou com Afonso Antunes, mercador, morador em Cabo Verde, o comércio de chacina. Na mesma data, surgiu uma nova sociedade entre Manuel Vieira Jardim e António Gonçalves d’Araújo, esta para o transporte e venda de trigo da ilha de São Miguel. Ainda nesta data, sabemos da venda de uma caravela que era pertença de uma sociedade composta por António Rodrigues Torzilho, Domingos António e Diogo Gonçalvez, a uma outra, composta pelos mercadores António Lopes de Vila Real e Manuel Gomes e pelo mareante Pero Vaz. Devemos ter em conta que a sociedade insular se definia pelo seu carácter agrário. A agricultura ocupava a quase totalidade da população da Ilha. O sector artesanal aliava-se, muitas vezes, ao agrário, enquanto o sector comercial, embora ligado a essa realidade, mantinha um certo distanciamento. O grupo de agentes dos transportes e do comércio fixou morada no burgo ribeirinho, afirmando-se, nesse meio, como um estrato socioeconómico importante e animador do quotidiano das vilas e cidades. Não obstante, a sua representatividade na população insular era muito reduzida, atingindo na Madeira os 7 %. Era no sector comercial que se afirmava o espírito empresarial. A atividade do campo e das oficinas e ofícios era uma atividade muitas vezes de carácter familiar. O espírito associativo está presente na entidade que, desde 1483, zelava pelos interesses dos ofícios, isto é, a Casa dos Vinte e Quatro, que persistiu até à reforma liberal. O espetro dos ofícios mudou, mas a mudança só se fez notar na reestruturação do sector produtivo após a Segunda Guerra Mundial, que conduziu a uma forma diferente de organização e valorização dos ofícios. As oficinas praticamente desapareceram, dando lugar a indústrias alimentadas por empresas sectoriais onde os ofícios se estruturam de forma diferente. Foi junto das comunidades estrangeiras que mais se fez sentir a organização empresarial. Os Ingleses consolidaram, desde a déc. de 50 do séc. XVII, a sua posição no mercado do vinho madeirense e estabeleceram uma lógica empresarial que tinha como ponto de partida a comunidade de compatriotas. A ocupação inglesa, no início do séc. XIX, foi favorável a uma afirmação das firmas britânicas, com a instalação de John Blandy (1802), Rutherford & Grant (1814). O último associou-se a P. Drury, mas em 1878 dissolveu-se a companhia, ficando Rutherford, Browne, Drury & Co. A partir das listas surgidas nos documentos oficiais, podemos saber da forma de representação das comunidades de comerciantes na praça do Funchal. E de entre estas, deverá notar-se a importância da britânica, que acabou por assumir uma posição de destaque no mercado e nos negócios. Esta situação perdurou, de modo que, no ocaso do séc. XX, A. J. Drexel Biddle testemunha ainda a supremacia inglesa. No sector açucareiro, a forma de exploração empresarial afirmou-se, de maneira evidente, com o retorno da cultura, a partir da déc. de 70 do séc. xix, e com a crise da vinha e do vinho. Este é um sector que se tornou muito competitivo na Ilha e fora dela. Tudo começou em 23 de março de 1879, com a inauguração da Companhia Fabril do Açúcar Madeirense. Era uma fábrica de destilação de aguardente e de fabrico de açúcar na Ribeira de São João. Demarcou-se das demais com o recurso a tecnologia francesa, usufruindo dos inventos patenteados em 1875 pelo visconde de Canavial. Isto foi apenas o princípio de um conflito industrial em que imperou a lei do mais forte. A família Hinton ficou para a história como a autora dessa inovação que acabou por ser comum em vários espaços açucareiros. Em 1902, a fábrica Hinton experimentou um novo sistema em ligação com M. León Naudet, que ficou conhecido como sistema Hinton-Naudet, que consistia em submeter o bagaço a uma circulação forçada num aparelho de difusão, conseguindo-se um ganho de mais 17% e uma maior pureza da garapa, evitando as defecadoras. Esta intervenção pioneira é sublinhada por inúmera bibliografia da especialidade. Todavia, a montagem do novo mecanismo começou apenas em meados de setembro, após a conclusão da safra. Até 1909, o técnico do Hinton manteve correspondência assídua, no sentido de esclarecer pormenores sobre a instalação dos mecanismos. Na sequência disto, João Higino Ferraz deslocou-se a Paris para um novo encontro com Naudet e uma visita às fábricas de açúcar de beterraba. A família Hinton conseguiu singrar na indústria açucareira a muito custo. A conjuntura política conturbada condicionou a sua capacidade de persuasão. A visita do rei D. Carlos à Ilha, em 1901, poderá ter sido um momento crucial. O engenho do Hinton, consolidada a posição dominadora no mercado local, manteve-se como referência da cultura da cana-de-açúcar até que, em 1985, agonizou em definitivo. Durante todo o séc. XX, até àquela data, a fábrica Hinton foi uma referência na cidade e na vida de quase todos os agricultores madeirenses que apostaram na cultura da cana como meio para angariar algum dinheiro. A posição de favorecimento que mereceu, desde a monarquia ao Estado Novo, alimentou inimizades, debates na imprensa e a reprovação de alguns sectores da sociedade. A casa Hinton estabeleceu uma estratégia de domínio da indústria açucareira e do álcool através de uma aposta permanente na inovação tecnológica, capaz de esmagar todos os concorrentes; assim, os estabelecimentos destes, pouco a pouco, foram sendo adquiridos e desmantelados. O séc. XX foi o momento da plena afirmação, até à decadência definitiva do negócio Hinton. Com efeito, de acordo com dados de 1907, o engenho moía cerca de 1/3 da cana da Ilha, ficando o demais para os restantes 47 engenhos. Na altura, empregava 230 trabalhadores, tendo ao serviço 10 geradores a vapor Babcook & Wilcox com a maior potência em uso na Madeira. Apenas o de José Júlio de Lemos se podia aproximar, ficando, ainda assim, a longa distância. A capacidade da fábrica aumentou nos anos seguintes. Harry Hinton, não satisfeito com o aumento da unidade industrial, procurou neutralizar as demais através da compra ou arrendamento. Assim, adquiriu a antiga fábrica de Severiano Ferraz, na Ponte Nova e, de outras, adquiriu os mecanismos mais importantes. No caso da de José Júlio de Lemos, estabeleceu um contrato de arrendamento de 25 contos anuais que perdurou até 1919. A necessidade de afirmação levou-o a apostar na renovação tecnológica do engenho do Torreão, sob a superintendência de João Higino Ferraz. As reformas iniciaram-se em dezembro de 1900, com a montagem de cilindros, peças centrífugas e filtros mecânicos de Mamoury. Para os anos imediatos, reservou-se a montagem das turbinas Weston, dos difusores e da caldeira a vapor. A sociedade que estabeleceu com W. R. Bradsley terá favorecido o arranque definitivo para a hegemonia tecnológica alcançada. O aperfeiçoamento tecnológico favoreceu a posição concorrencial da fábrica: em 1929, enquanto uma companhia nova só podia laborar 100 t de cana em 24 horas, a do Torreão conseguia atingir as 500 t e, em 1920, as 608 t. As medidas de 1939, que conduziram ao encerramento de 48 fábricas de aguardente em toda a Ilha, favoreceram a tendência monopolista em relação à safra da cana sacarina. Com efeito, alguns dados da laboração do engenho revelam a dominação do sector, por parte da mesma, a partir de 1907. Refira-se que, a partir da déc. de 70 do séc. XIX, foi consolidado o predomínio da navegação a vapor nas rotas transatlânticas, sendo o serviço de abastecimento de carvão algo imprescindível e que veio a ser dominado por estrangeiros. Assim, surgiram empresas apostadas neste serviço. Primeiro, a firma Blandy Brothers, depois, em 1898, a Cory Brothers Co. Limited e, em 1901, a Wilson Sons Co. Limited. Estas empresas estenderam, seguidamente, os seus serviços aos outros arquipélagos, ficando aquela primeira firma pelas Canárias e as duas seguintes por Cabo Verde. Em 1904 efetuou-se o primeiro depósito de carvão de origem alemã, com a firma Manoel Gonçalves & Co., que depois deu lugar à Deutch Kolen Dépot. Nos diversos sectores ligados à atividade marítima houve várias empresas com papel importante na economia madeirense. Também no serviço de cabotagem interna, que se afirmou no decurso da segunda metade do séc. XIX, surgiram diversas empresas e sociedades, fundadas por locais ou por estrangeiros. No ramo do seguro marítimo, registe-se a Blandy Lloyds Agents. Depois, surgiram diversas agências de navegação, podendo referir-se, para os princípios do séc. XX, as seguintes: Cory, Bros. & Co; Empresa Funchalense de Cabotagem; Elder Dempster & Co.; Empresa Insulana de Navegação; Henrique Figueira da Silva, Manuel da Silva Passos & Co. Suc., Wilson & Sons Ltd. Na área da construção e reparação naval, existiram também diversos estaleiros e empresas de reduzida dimensão. Uma delas foi o arsenal de Santiago, propriedade da Madeira Engineering Lda., que foi transferido, em 1989, para a Zona Franca da Madeira, no Caniçal. Este Arsenal era propriedade da casa Blandy Bros & Co. e estava situado defronte do campo de Almirante Reis. Sabemos, ainda, ter existido outro, Cossart Gordon Madeira, que foi integrado, em princípios do séc. XX, na empresa do cabrestante e que, com a abertura da Av. do Mar, foi transferido para a praia Formosa. Também ali existiram os estaleiros de outras duas empresas que começaram por prestar serviço à navegação com o abastecimento de carvão: a casa Wilson & Sons, no Gorgulho, próxima da Qt. Calaça, e o da agência de navegação Cory Bros & Co., no sítio do Portinho, no Caniço. No sector do vinho, dominado também pelos britânicos, a crise oitocentista provocou uma debandada geral do mercado inglês e americano, ficando apenas aqueles com interesses noutros sectores. Como corolário disso, verificou-se o desaparecimento das sociedades familiares e o aparecimento de associações como a Madeira Wine Association, que absorveu, nos anos imediatos à sua criação, em 1925, mais de 30 casas. Em 2015, o comércio do vinho é assegurado por novas empresas, criadas no rescaldo da crise do sector, mantendo três, a Henriques & Henriques Lda., a H. M. Borges Sucessores Lda. e a Vinhos Justino Henriques Lda., o elo de continuidade com o passado. As demais (Madeira Wine Company, Vinhos Barbeito Madeira Lda., Pereira d’Oliveira Vinhos Lda., Artur Barros & Sousa Lda.) foram criadas a partir dos escombros de vetustas casas ou de adegas particulares. A par do vinho, é no bordado que se afirma, também há muito, o espírito empresarial madeirense. A necessidade de bastante mão-de-obra levou ao estabelecimento de várias empresas e de uma rede de bordadeiras rurais ligadas a elas por meio de agentes. A partir de 1890, processou-se uma profunda transformação no sector, com a afirmação das casas de bordado em detrimento dos exportadores. A diferença estava em que os últimos se limitavam a adquirir o produto às bordadeiras, enquanto os segundos passaram a intervir diretamente no processo produtivo, dando àquelas o tecido já com os desenhos estampados. Para isso, montaram uma rede de agentes em toda a Ilha que procedia à distribuição dos panos e, depois, os recolhia já bordados. Esta mudança, incrementada pelos alemães, conduziu à afirmação das chamadas casas de bordado. No primeiro quartel do séc. XX, são referenciadas as seguintes casas: A. J. Fróes; Casa Bradwil; Casa Grande; Casa Hougas; Casa Maru; Casa Suíça; Companhia Portuguesa de Bordados; H. C. Payne; Hamú; José Clemente a Silva; Mallouk Bros.; M. R. Silva Diniz; Wagner; Schinitzer; União Madeirense de Bordados; Casa Americana. A Primeira Guerra Mundial refletiu-se de forma direta nas empresas de bordados, como nos elucida A. Marques Caldeira: “Havia antes da guerra de 1914 diversas casas de bordados de propriedade alemã entre elas algumas que acima mencionamos e que cessaram a sua atividade no período da primeira conflagração mundial. Terminada a guerra, algumas destas fábricas passaram à posse de firmas americanas, orientadas no Funchal por súbditos sírios que, aparentemente, deram certo movimento ao comércio e bordados abandonando depois essa indústria, à exceção de alguns que ainda se encontram a dirigir diversas firmas no Funchal, exportadoras de bordados da Madeira” (CALDEIRA, 1964, 43). Mesmo assim, em 1923, foram referenciadas 100 casas de bordado, o que atesta a vitalidade da indústria no período entre as duas guerras mundiais. A partir de 1924, o peso das pautas aduaneiras levou à saída dos sírios, que entregaram as casas aos madeirenses, passando estes a controlar o sector. Nos anos seguintes, manteve-se o número elevado de empresas relacionadas com o bordado. Na déc. de 40, Orlando Ribeiro refere a atividade de 91 casas empenhadas no comércio e exportação do produto. Em 1953, um relatório do grémio do sector anota a existência de 103 casas, mas sucede que a grande maioria delas não ultrapassava os 50 contos de exportações mensais, sendo assim casas de pequena dimensão. Apenas 12 faturavam mensalmente mais de 7 mil contos. Em 1969, são referenciadas 88 casas de bordados. Destacamos as mais importantes: António Gomes de Oliveira Sucr.; Arte Fina; Brazão & Freitas Lda.; C. A. Pereira Lda.; Exportadora Insular de Bordado Lda.; Ferreira Ornelas & C.ª Lda.; G. Farra & C.ª Lda.; Imperial de Bordados Lda.; João C. Silva; João Eduardo de Sousa Lda.; Leacock Bordados Lda.; Madeira Art Hand Embroidey & C.ª Lda.; Madeira Superbia Lda.; Maria Lubéli Kiekeben; Miguéis Lda.; Nóbrega Irmãos; Patrício & Gouveia Sucs. Lda.; The Madeira House C.ª Lda. A política de corporativismo fomentada pelo Estado Novo também atingiu a indústria dos bordados. Assim, pelo dec.-lei n.º 25643, de 20 de julho de 1935, foi criado o Grémio dos Industriais de Bordados da Madeira, com a missão de orientar a indústria no campo da produção e do comércio. Tal como enuncia um folheto publicitário do Grémio, de 1958, a defesa dos interesses do sector estava assegurada, pois não se repetiram, na vigência desse órgão, as crises periódicas que, no passado, tanto afligiram a economia da indústria e os seus trabalhadores. De acordo com a portaria 8337, foi estabelecida uma taxa sobre o valor das exportações e das vendas locais para acudir às despesas da agremiação. Foi com os fundos resultantes desta taxa que se construiu a sede, o edifício do IVBAM – Instituto do Vinho e do Bordado do Arquipélago da Madeira, em 2015, inaugurada nos anos 50. Aqui, o Grémio dispunha de armazéns para a reserva de tecidos e de linhas para abastecer o sector, situação que ainda em 2015 se verificava para os tecidos. Para além da função reguladora do sector, o Grémio atuava no sentido da sua defesa, promovendo o ensino do bordar às jovens, com as escolas criadas em Câmara de Lobos e Machico. Ao mesmo tempo, estabelecia os preços mínimos da mão-de-obra, baseada numa unidade de medida conhecida como pontos industriais. De acordo com os dados oficiais, entre 1935 e 1958, houve uma melhoria significativa na valorização do trabalho da bordadeira, passando-se de 35 centavos por 100 pontos para 2420, em 1958. Esta melhoria atingiu também as 750 operárias das casas que, em 1935, recebiam entre 3$00 a 6$00 de salário e, em 1958, entre 11$00 e 20$00. Os dados referentes a estudos e publicações de autoria do Instituto Nacional de Estatística (INE) e da Direção Regional de Estatística da Madeira (DREM) permitem perspetivar a abordagem à temática das empresas da Ilha. Segundo dados do INE, no ano 1990 o número de empresas na RAM era de 12.058, representando 1,52 % das empresas nacionais. Nos anos seguintes, verificou-se um aumento anual e tendencial daquele número, chegando, em 1997 e 1998, a ultrapassar as 20.000 empresas: em 1997, atingiu as 20.045 e, em 1998, as 21.930. A partir de 1998, verificou-se um decréscimo no volume de empresas, o que terá resultado do facto de só se terem voltado verificar os números em 2005, quando a Região apresentava 20.314 empresas, representando cerca de 1,81 % do universo português. Entre os anos de 2006 e 2008, inclusive, verificou-se um crescimento anual do número de empresas na Madeira, com 21.085, 22.248 e 23.015 unidades, nos anos de 2006, 2007 e 2008, respetivamente. No ano 2009, a tendência de crescimento é quebrada, verificando-se uma inversão da mesma. Com efeito, o decréscimo do número de empresas foi uma constante até ao ano 2012, altura em que foram contabilizadas 20.526 em toda a Região. Ao efetuarmos um paralelo entre a evolução do número de empresas na RAM e no país, é possível constatar que, apesar de a evolução ser quase sempre similar, no ano 2012, a proporção de empresas da RAM na totalidade de empresas em Portugal fixou-se nos 1,93 %, um valor superior ao de anos anteriores. Quando comparados os dados da RAM com os do arquipélago dos Açores, o número de empresas é superior no último, sendo que estes tinham 22.714 empresas em 2004, o que corresponde a cerca de 117 % das empresas que existiam na RAM. Em 2012, esta proporção aumentou para cerca de 120 %, com os Açores a apresentar 24.559 empresas. Quanto ao número de empresas com a configuração de sociedade existentes na RAM, a análise efetuada é em parte semelhante à da realizada antes para as empresas comuns, sendo que os períodos de crescimento são mais longos no primeiro caso. No ano 1990 a Região tinha 2648 sociedades, valor que aumentou, quase sempre, até ao ano 2006, quando aquele número se fixou em 14.231. A partir de 2007, verificou-se uma queda acentuada no número de sociedades, sendo este de 10.591 e decrescido até o ano 2011, chegando às 8635 sociedades. A evolução do número de sociedades criadas e dissolvidas permite avaliar anualmente a dinâmica empresarial da Região. No ano 1976, foram criadas 81 sociedades na RAM, fixando-se o número de sociedades dissolvidas em 8. A diferença entre sociedades criadas e sociedades dissolvidas manteve-se positiva durante um longo período de tempo, chegando a alcançar o número de 1557, em 2001, quando foram criadas 1781 sociedades e dissolvidas 224. Todavia, a tendência positiva inverteu-se a partir do ano 2009, em que o número de sociedades criadas foi de 786 e o de sociedades dissolvidas de 1171, o que perfaz um saldo negativo. No ano seguinte, a tendência repetiu-se, com o número de sociedades dissolvidas a ultrapassar, em 167, as sociedades criadas. O ano de 2011 não foi exceção; pelo contrário, foi quando o saldo negativo atingiu a sua maior expressão, já que a diferença entre as sociedades criadas (801) e as sociedades dissolvidas (1295) foi de 494. A evolução verificada no saldo anual resultante da criação e da dissolução de sociedades está, no caso da RAM, intimamente relacionada com o comportamento do Centro Internacional de Negócios da Madeira, do qual dependem, em grande medida, os resultados registados. Outra variável que sofreu alterações importantes ao longo dos anos é aquela que diz respeito ao peso que as sociedades da Região têm no total nacional. No ano 1990, a RAM contava com 2648 sociedades, enquanto o universo português ascendia às 162.149 sociedades, resultando assim que a RAM respondia por cerca de 1,6 % das sociedades existentes em território nacional. Ao longo dos anos, esta proporção aumentou significativamente, chegando a atingir os 3,4 % em 2006, quando o número de sociedades na RAM totalizava 14.231 e no resto de Portugal 416.369. Todavia, a partir do ano 2007, a proporção começou constantemente a diminuir, alcançando o valor de 2,4 % em 2011, ano em que a RAM registou 8635 sociedades e o território nacional 360.588. Tendo em conta que aquela proporção tem por base duas variáveis, o número de sociedades na RAM e o número de sociedades no resto do país, convém ressaltar que a evolução do número de sociedades verificada, com a Região a ganhar uma maior representatividade, resulta dos seguintes aspectos: a variação do número de sociedades na RAM ser superior à variação no demais território português; e a variação na Região ser anémica, mas a variação no restante território português ser negativa. Na realidade, quando tentamos desvendar a origem deste aumento de representatividade notamos que a segunda consideração mencionada pode ser considerada a principal causa desta realidade, já que ao observarmos as taxas de variação anuais para os dois territórios, notamos que, em grande parte dos casos, o valor verificado na RAM é superior ao do demais território nacional. Exemplo disto são as taxas de crescimento verificadas nos seguintes anos: 1993, ano em que Portugal viu o seu número de sociedades aumentar 1,9 % e a RAM apresentou um crescimento anual de 13 %; 1996, quando a Região apresentou uma variação positiva de 16 % e Portugal apenas 3,4 %; e 2004, quando a taxa de crescimento anual foi de 19 % na RAM e de 4,5 % no resto do país. Não obstante, nota-se que, nos últimos anos em análise, nomeadamente no período compreendido entre 2007 e 2011, a tendência se inverteu, acompanhando a proporção das empresas da RAM o todo nacional. A expressividade desta realidade apresenta-se particularmente destacada quando verificamos os dados referentes ao ano 2010, constatando que, embora o território nacional tenha apresentado uma variação anual positiva no que diz respeito ao número de sociedades na ordem dos 3,1 %, o território insular madeirense apresentou uma taxa negativa de 10,3 %. No que concerne à distribuição geográfica das sociedades na RAM, os dados são bastante contundentes e afirmam a grande concentração na capital da Região, o concelho do Funchal, que contava com 62,1 % das sociedades, no ano 2010, seguindo-o o concelho de Santa Cruz, com 10,6 % e o concelho de Câmara de Lobos, com 7,9 %. Se considerarmos cinco dos onze concelhos da Região, nomeadamente Machico, Santa Cruz, Funchal, Câmara de Lobos e Ribeira Brava, constatamos, em 2010, a concentração de 89,9% das sociedades da RAM. No mesmo ano, o concelho de Porto Moniz era aquele que apresentava a menor percentagem, com apenas 0,5 %. Em 2010, a Região registava 21.598 empresas. Estas concentravam-se, essencialmente, nos sectores do comércio por grosso e a retalho e na reparação de veículos automóveis e motociclos (19,6 %); no sector que abrange as atividades administrativas e os serviços de apoio (13,8 %); e no sector onde se incluem as atividades de alojamento, restauração e similares (10,6 %). Daqui decorre que, em 2010, cerca de 43,5 % das empresas da Região tinham como atividade económica principal uma das referenciadas anteriormente.   Alberto Vieira Sérgio Rodrigues (atualizado a 02.01.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social

domínio marítimo

O domínio público marítimo distingue-se de outras formas de domínio hídrico com base no seu conteúdo e extensão (nos bens que integram o domínio marítimo). De acordo com a lei em vigor, o domínio público marítimo é sempre da titularidade do Estado, embora se deva atender às especificidades regionais quanto à sua delimitação nas regiões autónomas e se admita o reconhecimento de propriedade privada em alguns casos. Durante muito tempo, os órgãos de governo da Região Autónoma da Madeira defenderam que o domínio marítimo constituía domínio regional. Todavia, a jurisprudência do Tribunal Constitucional afastou reiteradamente esse entendimento. No texto, distingue-se ainda a titularidade e o exercício de poderes dominiais, sublinhando que a jurisprudência constitucional admite o exercício de poderes secundários dominiais pela Região Autónoma da Madeira (v.g., através da atribuição de licenças e concessões de utilização privativa) mas não de poderes primários dominiais (v.g., desafetação). Palavras-chave: domínio marítimo; jurisprudência; lei; Região Autónoma da Madeira. A Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976, após a revisão constitucional de 1989, incluiu no art. 84.º, n.º 1, uma enumeração, não exaustiva, dos bens do domínio público, individualizando alguns bens que integram necessariamente o domínio público, e que são, assim, bens de domínio público ex constitutione, como é o caso do domínio público hídrico, tal como concretizado na alínea a) deste preceito: “as águas territoriais com seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos”. O art. 84.º, n.º 2, se é certo que reconhece que as regiões autónomas, o Estado e as autarquias locais são titulares do domínio público, não procede a qualquer delimitação do seu âmbito, remetendo tal tarefa para ato legislativo dos órgãos de soberania. O domínio público hídrico é um conceito amplo que abrange quer as águas dominais  quer os terrenos que se encontram estreitamente relacionados com as águas públicas, “abrangendo os respetivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas” (art. 1.º, n.º 1, da lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que regula a titularidade dos recursos hídricos). Dentro da categoria mais vasta do domínio público hídrico, o art. 2.º, n.º 1, do mesmo diploma distingue: (i) o domínio público marítimo; (ii) o domínio público fluvial; (iii) o domínio público lacustre; (iv) o domínio público das restantes águas. Nos termos previstos no art. 3.º, o domínio público marítimo integra no seu âmbito: as águas costeiras e territoriais; as águas interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas; os fundos marinhos contíguos da plataforma continental, abrangendo toda a zona económica exclusiva e as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés. Importa frisar que o art. 3.º da lei n.º 54/2005 adota uma interpretação muito ampla de domínio público marítimo, uma vez que a doutrina, louvando-se no direito internacional do mar, distingue: (i) os direitos do Estado sobre parcelas do território terrestre ou bens nele existentes, que apresentam maior similitude com o direito de propriedade, embora submetidos ao direito público (regime do domínio público e do domínio privado), e assentam numa ideia de exclusividade e exclusão de atividades exercidas por terceiros, nomeadamente a de terceiros Estados sobre o mesmo espaço, salvo a atribuição de uma concessão nesse sentido; (ii) os direitos dos Estados costeiros relativamente ao espaço marítimo sob jurisdição ou soberania nacional (as águas interiores, o mar territorial, a zona contígua, a zona económica exclusiva e a plataforma continental) que, tal como sucede com o espaço aéreo, constitui um espaço indeterminado, insuscetível, portanto, de ser objeto de direitos de propriedade, mas apenas de direitos dominiais, resultantes da jurisdição incluída no senhorio da entidade soberana sobre o território onde tem assento (domínio eminente), o que implica a necessidade da sua harmonização com os poderes de todos os outros Estados, nomeadamente com o princípio da liberdade do alto mar ou do direito de passagem inofensiva. Todavia, o Estado exerce soberania territorial sobre as águas interiores, i.e., as águas situadas no interior das linhas de base do mar territorial, nos termos do art. 2.º e art. 8.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982, que beneficiam, por conseguinte, de um estatuto jurídico equivalente àquele que o Estado exerce sobre o território terrestre (lei n.º 17/2014, de 10 de abril que aprova as bases da política de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional, e lei n.º 34/2006, de 28 de julho, que disciplina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar). Os recursos hídricos foram, durante muitos anos, disciplinados por legislação dispersa e manifestamente desatualizada (v.g., dec. n.º 5787-41, de 18 de maio de 1919 e dec.-lei n.º 468/71, de 5 de novembro). Durante a vigência do estatuto provisório da Região Autónoma da Madeira (RAM), aprovado pelo dec.-lei n.º 318-D/76, de 30 de abril, o art. 60.º estipulava que integravam o património da Região os bens do extinto distrito autónomo, os que por ela vierem a ser adquiridos e os que vierem a ser definidos no estatuto definitivo. Todos os bens não incluídos nesta disposição mantinham-se, assim, na titularidade do Estado. O Estatuto Político-Administrativo da RAM, aprovado pela lei n.º 13/91, de 5 de junho, alterado pela lei n.º 130/99, de 21 de agosto, e lei n.º 12/2000, de 21 de junho, consagrou um princípio radicalmente oposto, sendo a regra a de que todos os bens de que o Estado é titular, quer do domínio público, quer do domínio privado, desde que situados na RAM, se integram no domínio público regional, com ressalva das situações excecionadas. Com efeito, o art. 144.º do Estatuto, sob a epígrafe “Domínio público”, estabelece o seguinte: “1. Os bens do domínio público situados no arquipélago, pertencentes ao Estado, bem como ao antigo distrito autónomo, integram o domínio público da Região. 2. Excetuam-se do domínio público regional os bens que interessem à defesa nacional e os afetos a serviços públicos não regionalizados, desde que não classificados como património cultural”. Consagrou-se assim o princípio da tendencial titularidade regional dos bens do domínio público e do domínio privado situado na RAM. Assim sendo, os bens que são classificados por lei como integrando o domínio do Estado serão, em princípio, bens do domínio público regional por força do princípio estabelecido no art. 145.º dos Estatutos (v.g., bens elencados no dec.-lei n.º 477/80, de 15 de outubro, que procede ao inventário dos bens do domínio público e privado do Estado). Todavia, a cláusula aberta de dominialidade pública regional consagrada no art. 144.º do Estatuto tem suscitado complexas e intrincadas dificuldades interpretativas, tendo presente que a doutrina e a jurisprudência constitucional têm preconizado a necessidade de uma interpretação desta disposição conforme com a Constituição, no sentido de admitir que existem bens essenciais ao exercício das funções soberanas para lá dos bens que interessem à defesa e dos bens afetos a serviços públicos não regionalizados e que não podem deixar, sob pena de inconstitucionalidade, de se encontrar integrados no domínio público do Estado. A questão colocou-se sobretudo no que concerne ao domínio público marítimo, tendo presente que o art. 3.º dos Estatuto Político-Administrativo da RAM prescreve, sob a epígrafe “Território”, que o “arquipélago da Madeira é composto pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas, Selvagens e seus ilhéus” (n.º 1), abrangendo ainda a Região Autónoma da Madeira “o mar circundante e seus fundos, designadamente as águas territoriais e a zona económica exclusiva, nos termos da lei” (n.º 2). Na vigência do dec.-lei n.º 468/71, de 5 de novembro, o art. 5.º, n.º 1 deste diploma considerava como domínio público do Estado os leitos e margens das águas do mar, além de outras águas e leitos e margens, na esteira, aliás, do entendimento preconizado pela comissão do domínio público. Os órgãos de governo próprios da RAM – invocando a necessidade de uma interpretação atualista desta disposição, conforme ao reconhecimento da autonomia político-administrativa das regiões autónomas pela Constituição de 1976 e sua conjugação com o disposto no art. 144.º do Estatuto Político-Administrativo da RAM, lei dotada de valor reforçado – sustentaram que o domínio público hídrico, inclusive o domínio público marítimo, integrava o domínio público regional, salvo quando existisse um ato expresso de afetação de bens nele integrados à defesa nacional. No pólo oposto, o Tribunal Constitucional tem firmado jurisprudência constante e reiterada no sentido de que não é “constitucionalmente possível integrar o domínio público marítimo no domínio público da Região” (ac. 330/99, de 1 de julho), não sendo possível sequer a sua “transferência para os Governos Regionais”, desde logo “por força do princípio da unidade do Estado e da obrigação que lhe incumbe de assegurar a defesa nacional” e ainda por se tratar de bens que integram o “domínio público necessário do Estado” (ac. 131/2003) “por imperativo constitucional, atenta a sua incindível conexão com a identidade e a soberania nacionais” (ac. 402/2008). O domínio público marítimo é considerado, assim, um “domínio público material” ou “domínio público por natureza” ou “domínio público necessário” por se referir a bens que se encontram intrinsecamente relacionados com a integridade territorial, a identidade e a própria sobrevivência do Estado em sentido amplo e, como tal, devem, pela própria natureza das coisas, estar sujeitos a um regime de dominialidade pública, independentemente de qualquer previsão constitucional ou legal nesse sentido. Já o domínio público lacustre e fluvial tanto pode ser da titularidade do Estado, das regiões autónomas ou das autarquias locais (art. 6.º da lei n.º 54/2005, de 15 de novembro). As águas e os terrenos que não são incluídos no domínio público hídrico (“recursos hídricos”) são qualificados como “recursos patrimoniais” e integram a propriedade privada das entidades particulares ou o domínio privado das entidades públicas (art. 1.º, n.º 2 do mesmo diploma). Registe-se, a este propósito, que nos termos previstos no art. 15.º, que foi alterado pela lei n.º 34/2014, de 19 de junho, se admite o reconhecimento de propriedade privada ou posse sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, sendo a competência confiada aos tribunais comuns. Por outro lado, a largura da margem das águas do mar, definida como uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas, se, por regra, é fixada em 50 m (art. 11º, n.º 2), ou em largura superior quando tiver natureza de praia, estendendo-se até onde o terreno apresentar tal natureza (art. 11.º, n.º 4), é fixada, nas regiões autónomas, tendo presente a sua específica orografia, em largura inferior sempre que a margem atingir uma estrada regional ou municipal existente (art. 11.º, n.º 7). A lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, consagra que a titularidade do domínio público marítimo pertence sempre ao Estado (art. 4.º), na esteira da jurisprudência e doutrina constitucional. A lei não reconhece, por conseguinte, um domínio marítimo regional, estabelecendo a titularidade exclusiva do Estado. Trata-se de um entendimento que tem largo apoio nas experiências regionais de direito comparado. Em Espanha, o artigo 132.º, n.º 2, da Constituição de 1978 é claro e inequívoco ao determinar que “são bens de domínio público estatal os que a lei determinar e, em todo o caso, a zona marítimo-terrestre, as praias, o mar territorial e os recursos naturais da zona económica e da plataforma continental”. O art. 14.º do Estatuto da Sardenha, região dotada de autonomia político-administrativa face ao Estado italiano, estabelece que “a região no quadro do seu território sucede nos bens e direitos patrimoniais do Estado de natureza imobiliária e nos bens dominiais com exceção do domínio marítimo”. O art. 32.º do Estatuto da Sicília, região autónoma italiana e que foi a fonte inspiradora dos estatutos das nossas regiões autónomas, determinava que “os bens dominiais do Estado, compreendendo as águas públicas existentes na região, são atribuídas à região, com exceção dos que interessem à defesa nacional ou a serviços de carácter nacional”. A Corte Constituzionale acabou por decidir que, apesar de o domínio público marítimo não ser expressamente excecionado no teor literal do referido preceito do âmbito domínio da Sicília, deveria ser dele excluído dado que se trata de um bem que interessa manifestamente à defesa nacional, no que foi secundada pela doutrina e pelo Conselho de Estado italiano, que se pronunciou no sentido de todo o domínio marítimo interessar a serviços de carácter nacional e, como tal, deveria ser excluído do domínio regional. Aliás, o art. 22.º, n.º 3, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela lei n.º 39/80, de 5 de agosto, alterada pela lei n.º 9/87, de 26 de março, lei n.º 61/98 de 27 de agosto e lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro, é perentório no reconhecimento da natureza estadual do domínio público marítimo, excetuando do domínio público regional “os bens afetos ao domínio público militar, ao domínio público marítimo, ao domínio público aéreo e, salvo quando classificados como património cultural, os bens dominiais afetos a serviços públicos não regionalizados” . No que respeita à delimitação dos bens integrados no domínio público marítimo, de titularidade estatal, o entendimento da jurisprudência constitucional tem sido no sentido de abranger tanto as águas marítimas (quer costeiras, quer territoriais, quer as águas interiores sujeitas à influência das marés) quer as respetivas margens (faixas de terreno contíguas ou sobranceiras à linha que limita o leito das águas), pelo que podemos concluir que a disciplina da lei n.º 54/2005, também neste particular, se limita a concretizar aquela linha jurisprudencial (acs. do Tribunal Constitucional n.º 280/90, n.º 330/90, n.º 315/2014, e, em especial, ac. n.º 131/2003 e ac. n.º 654/2009). Com efeito, inclusive no âmbito do domínio público portuário que constitui pacificamente domínio público regional (dado o facto de o art. 4.º, alínea e) do dec.-lei n.º 477/80, de 15 de outubro qualificar os “portos artificiais e docas” como bens do domínio público do Estado e a tendencial titularidade regional dos bens do domínio público situados nas regiões autónomas), assiste-se a uma interpretação jurisprudencial restritiva do conceito de “porto artificial e doca”, circunscrevendo-se o domínio público portuário aos edifícios e infraestruturas de apoio à atividade portuária, com exclusão dos terrenos em que tais edifícios assentam, que integram exclusivamente o domínio público marítimo. Solução que não é evidente atendendo a que o domínio público portuário constitui um conceito autónomo do domínio hídrico e que constitui uma das modalidades do domínio público infraestrutural, que compreende a universalidade ou o conjunto de bens (a rede de infraestruturas) que são qualificadas como dominiais, por opção legislativa, por se destinarem a prosseguir uma finalidade unitária e constituírem o suporte físico artificial do desenvolvimento de determinadas atividades ligadas ao exercício de serviços públicos essenciais. No ac. n.º 654/2009, de 12 de fevereiro de 2010 (processo n.º 668/06), o Tribunal Constitucional rejeitou a tese de que os terrenos em torno dos cais e portos constituiriam bens da Região pelo facto de os portos e cais serem domínio público daquela e tais terrenos constituírem, em conjunto com eles, uma universalidade pública. Procedeu-se, nesta sede, a uma relevante distinção entre a titularidade e a gestão dos bens do domínio público, afirmando-se que a “unidade funcional de um determinado conjunto de bens pode justificar que a gestão da sua utilização caiba a uma só entidade, mas não implica necessariamente a unidade da titularidade dominial do complexo de bens que o integram”. A não regionabilidade da titularidade do domínio público marítimo integrante ou circundante da área territorial das regiões autónomas não arrasta consigo, como consequência forçosa, a insusceptibilidade de transferência de certos poderes contidos no domínio. No ac. n.º 402/2008 do Tribunal Constitucional, na linha do que já era defendido pela Comissão do Domínio Público Marítimo (parecer n.º 5945, de 18/01/2002) esclareceu-se que, desde que “mantida incólume a titularidade do Estado”, estão “constitucionalmente legitimadas formas dúcteis de exploração e rendibilização dos bens dominiais, em cuja definição tenham um papel relevante os poderes regionais”. Uma tal opção encontra apoio claro nos fundamentos e objetivos da autonomia traçados no artigo 225.º, em particular nos objetivos de “desenvolvimento económico-social” e no de “promoção e defesa dos interesses regionais” (n.º 2 do citado artigo). Como decorre inequivocamente da jurisprudência constitucional, mormente do ac. 654/2009, o “ente territorial não titular de determinados bens do domínio público, quando estes se encontrem no seu território […] pode exercer poderes dominiais secundários (concessão ou licença de exploração e uso privativo), mas já não poderes primários (desafetação)”. Já no acórdão n.º 315/2014, esclarece-se que o “reenvio que o artigo 84.º da CRP faz para lei, quanto à definição dos bens integrantes do domínio público, bem como do seu regime, condições de utilização e limites (alínea f) do n.º 1 e n.º 2), consente a separação entre titularidade e o exercício dos poderes característicos do estatuto da dominialidade, o que significa, por outras palavras, que a titularidade do domínio não engloba necessariamente todos os poderes de gestão do bem dominial”. Importa assim distinguir: (i) os poderes primários, i.e., “aqueles que apenas podem ser exercidos pelo titular dominial, sob pena de não se assegurar o fim público a que direta e permanentemente estão destinados”, sendo que, relativamente ao “domínio público marítimo são intransferíveis os poderes que respeitem à integridade e soberania do Estado ou os poderes que sejam incompatíveis com a integração dos bens em causa nesse domínio, designadamente os poderes de manutenção, delimitação e defesa do domínio”, mormente os poderes de desafetação do domínio público marítimo; (ii) os poderes secundários, i.e., aqueles que “podem ser exercidos por entidades diferentes do respetivo titular, sem se comprometer aquela finalidade”, nos quais se integram os poderes de “gestão do bem dominial, incluindo o seu aproveitamento ou utilização” relativamente aos quais não há impedimento a que sejam dissociados “do titular do domínio e confiados a outras pessoas coletivas públicas ou a particulares, designadamente concessionários”. Esta separação entre a titularidade e o exercício de poderes de administração sobre os bens do domínio público hídrico está, aliás, expressamente consagrada na lei 54/2005, de 15 de novembro, onde se dispõe que “a jurisdição do domínio público marítimo é assegurada, nas regiões autónomas, pelos respetivos serviços regionalizados na medida em que o mesmo lhes esteja afeto” (art. 28.º, n.º 2).   Ana Gouveia Martins (atualizado a 02.01.2017)

Direito e Política

doações

A doação é um ato pelo qual se transfere, gratuitamente, a posse total ou parcial de um bem a outrem, e reveste duas modalidades: inter vivos, quando o doador aliena irrevogavelmente o património, ou in mortis causa, quando a doação apenas se processa após a morte do doador, assumindo, assim, o carácter de um legado. Apesar do carácter gratuito da cedência, a doação não é, de modo geral, totalmente desinteressada, na medida em que pressupõe um objetivo que é importante para o doador, ainda que isso não lhe retire o estatuto de instrumento estruturante tanto na história do reino de Portugal como na do arquipélago da Madeira. A prática de se doarem parcelas de território a senhores nobres ou eclesiásticos surge cedo na Península Ibérica, muito como resultado do empreendimento da reconquista cristã, e destinava-se quer a recompensar serviços prestados ao Rei, quer a promover o repovoamento das áreas retomadas, quer a representar um simples ato da generosidade do Monarca. O próprio nascimento de Portugal radica numa doação feita por Afonso VI de Leão e Castela a seu genro, o conde D. Henrique, e, após a elevação do condado à categoria de reino, a prática continuou a ser seguida pelos Reis de Portugal, que abundantemente distribuíram terras a entidades civis e religiosas, de entre as quais avultam as concessões a ordens religiosas e a instituições conventuais. Esta estratégia visava, sobretudo, contribuir para a defesa, promover a fixação de povoadores, e assegurar a produtividade das terras entregues a mosteiros. Quando, cerca de 1419, se (re)descobre a Madeira, e se começa a pensar o seu povoamento, desenrolado a partir 1425, principia também a definir-se um modelo para a administração do território, o qual assentará, do mesmo modo, em sucessivos processos de doação. Com efeito, enquanto entre 1420 e 1425, a responsabilidade sobre o arquipélago permanecia inteiramente nas mãos do Rei, D. João I, a partir de 1425, ela é transferida para as do infante D. Henrique, sem que, no entanto, a posse das ilhas deixe de ser propriedade régia, pois enquanto foi vivo D. João sempre se considerou como “Rei e Senhor” delas. A morte do Soberano, ocorrida em 1433 vai alterar esta situação, na medida em que o novo monarca, D. Duarte, por carta de doação datada de 26 de setembro do mesmo ano, concederá ao infante D. Henrique o estatuto de “Senhor das Ilhas”, tornando-o, assim, e de facto, donatário do arquipélago. Na mesma data, D. Duarte atribuiu também à Ordem de Cristo “para todo o sempre o espiritual das Ilhas da Madeira, do Porto Santo e da Ilha Deserta” (FERREIRA, 1960, 35-36). Entre 1440 e 1450, o infante donatário, doará, por sua vez a Tristão Teixeira (8 de maio de 1440), a capitania de Machico, a Bartolomeu Perestrelo (1 novembro de 1446), a do Porto Santo e a João Gonçalves Zarco (1 de novembro de 1450), a do Funchal. Fica assim claramente estabelecido o papel que o mecanismo de doação ocupa na génese da administração do território insular. No próprio desenrolar do povoamento, as doações continuaram a desempenhar um papel importante no que concerne à cedência de propriedades em regime de sesmarias, como forma de garantir o arroteamento dos terrenos, seguindo-se aqui um procedimento muito equivalente ao que se passara no reino. Os beneficiados com a concessão de terrenos não foram, porém, apenas os senhores que receberam os terrenos para arrotear, mas também a própria Igreja, cuja implantação no arquipélago igualmente gozou do acesso a propriedades oferecidas para que nelas se pudessem edificar os necessários edifícios de culto. Com efeito, a construção dos templos requeria espaços, que foram disponibilizados quer a partir de contributos de particulares, que nas suas fazendas povoadas rapidamente erigiam capelas destinadas à celebração dos ofícios divinos, quer originados nas instituições que tutelavam o espiritual das ilhas: a Ordem de Cristo, primeiro, e, depois, a Coroa. As ordens monásticas foram igualmente beneficiadas por este sistema de doações, o que se verifica a partir da fixação definitiva dos Franciscanos no arquipélago. Tendo cabido à Ordem Seráfica a responsabilidade do pastoreio das almas dos primeiros povoadores, logo por volta de 1479 assiste-se à entrega de um terreno vinculado à capela de Clara Esteves, falecida, o qual, por ordem de D. Beatriz, à data administradora da Ordem de Cristo, foi entregue aos frades de Assis para edificação da sua casa conventual. O mesmo aconteceu com a construção do convento de N.ª Sr.ª da Piedade, em Santa Cruz, erigido em terrenos de Urbano Lomelino e com o convento de S. Bernardino, em Câmara de Lobos, para o qual contribuiu a doação do sítio operada por João Afonso, escudeiro do infante D. Henrique e senhor do lugar. A ereção dos conventos de Clarissas na Diocese do Funchal operou-se de acordo com os mesmos critérios. Assim, para o primeiro deles, S.ta Clara, fundado em finais do séc. XV, foi determinante o papel de João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do Funchal, que o mandou edificar em terrenos anexos à igreja de N.ª Sr.ª da Conceição de Cima, já fundada por seu pai, João Gonçalves Zarco. Aos Câmaras ficou, ainda, adstrito o padroado da instituição, a qual requeria, para ingresso, um dote avultado que reforçava o carácter elitista das suas freiras, decidido, de resto, por D. Manuel, quando a destinara a servir as “filhas e parentes dos principais da terra” (FONTOURA, 2000, 55). Com os conventos de N.ª Sr.ª da Encarnação e de N.ª Sr.ª das Mercês, o procedimento foi idêntico. Assim, o primeiro começou a erguer-se, a partir de 1645, graças ao empenho e financiamento do Cón. Henrique Calaça, e o segundo foi fundado em 1663, por iniciativa de Gaspar de Berenguer e sua mulher Isabel de França, que o dotaram de terreno e verbas destinadas ao seu funcionamento. No processo de construção da Sé do Funchal assiste-se igualmente à doação, por parte de D. Manuel, então ainda na qualidade de administrador da Ordem de Cristo, a cujo padroado pertencia a administração religiosa do arquipélago, de um canavial, conhecido como “campo do duque”, sobre o qual se haveria de erguer o templo (FERREIRA, 1963, 41). Para tornar mais expedito o procedimento, o duque doou ainda os rendimentos de penas criminais que lhe pertenciam, bem como a imposição sobre vinhos atavernados, ou seja, aplicou ao fim da construção da igreja impostos que normalmente seriam por ele recebidos. O desenrolar do processo de cobertura da Ilha por estruturas religiosas leva à criação de um conjunto de paróquias fora do Funchal – Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol, Calheta, Machico, Santa Cruz, e.g., cujas igrejas se tiveram de ir edificando, correndo as despesas com a capela-mor por conta da Ordem de Cristo, numa fase inicial, e da Coroa, numa fase posterior, ficando o restante corpo do templo por conta dos fregueses, que assim, e desde o início, se associam também à dinâmica de dotação da Igreja dos contributos indispensáveis à sua implantação em território insular. Este modus operandi que divide responsabilidades na construção e manutenção dos espaços sagrados vai manter-se ao longo do tempo, sendo frequente ver chamadas de atenção dos bispos, em sede de provimentos de visitação, nas quais se apelava aos paroquianos para que não descurassem as suas obrigações naquela matéria. Assim acontece, e.g., na Tabua, quando, em 1589, se assinala que o forro da igreja está danificado pela chuva, pelo que se solicita aos fregueses que, “por todo o mês de setembro” o mandem consertar (ACDF, Tabua, cx. 2, fl. 10). Nessa mesma freguesia, e por estar a igreja velha arruinada, provia o visitador, em 1590, que os fregueses edificassem um novo templo, de acordo com especificações deixadas, e, se assim não o cumprissem, ver-se-iam condenados. O visitador acrescentava, porém, que sendo “a capela e a sacristia da obrigação de Sua Majestade a quem se pagam os dízimos […] mandamos lhe requeiram provisão para as mandar fazer segundo o corpo da igreja e poder correr toda a obra juntamente” (Ibid., fl. 13v.). À medida que a determinação tridentina, que obrigava à residência paroquial, vai sendo implementada, também se pode acompanhar aquilo que as visitações iam provendo sobre o assunto, o qual implicava, igualmente, a contribuição direta dos paroquianos. Continuando na Tabua e em 1590, o prelado que pessoalmente visitava a freguesia pedia aos fregueses que “hajam assento e chão acomodado para casa do vigário perto da igreja e que lha ajudem a fazer e ponham da sua parte para isso toda a diligência e favor por ser importante a residência dele em a freguesia e igreja” (Ibid., fl. 15). O mesmo acontecia na Fajã da Ovelha, onde, também em 1590, o povo era solicitado a arranjar “chão” e ajudar o pároco na construção da casa (ACDF, Fajã da Ovelha, Provimentos de Visitações, 1591-1730, fl. 9), enquanto no Seixal, em 1591, os pedidos iam no sentido do fornecimento de “madeira, pedra e colmo”, bem como colaboração com mão de obra para a residência do clérigo (ACDF, Seixal, Livro de Provimentos, 1591-1756, fl. 3v.). Outra forma muito utilizada para induzir a doação de bens à Igreja era a do recurso aos peditórios que se faziam a propósito dos mais variados motivos: para se instituir uma confraria, por ocasião da festa do orago – neste caso normalmente organizados pela confraria da mesma invocação –, para ajudar as ordens mendicantes, e ainda para financiar os conventos cuja regra os impedia de possuírem bens próprios, como acontecia, e.g., com o de N.ª Sr.ª das Mercês. A exemplificar a primeira das situações (a que diz respeito à fundação de uma confraria), veja-se o que ficou exarado em 1590 na Ponta Delgada, em que o bispo, D. Luís Figueiredo de Lemos, interessado na fundação de uma Confraria das Almas ordena aos fregueses que “dentro em dois meses instituam a dita confraria das almas e para que mais comodamente o possam fazer lhes dou licença pera que tirem esmolas pelas eiras e lagares da freguesia.” (ARM, Ponta Delgada, Livro de Provimentos, 1589-1694, fl. 8). O exagero que, porém, por vezes se verificava nestas iniciativas levava os prelados a intervir procurando disciplinar aquela prática, para o que deixavam avisos tendentes à moderação, como se vê no que está vertido nos provimentos de S. Martinho exarados em 1587 e que dizem estar o antístite informado “que algumas pessoas vêm a esta freguesia pedir esmolas pera confrarias & os santos de outros lugares & freguesias havendo aqui os mesmo santos & confrarias o que é causa de se dividirem as esmolas & estarem tão pobres as próprias no que querendo nos prover mandamos que nenhum petitório geral ou particular de santo de fora se consinta na freguesia em que houver outro semelhante posto que para isso haja licença nossa porque não é nossa intenção concedê-la” (ARM, Registos Paroquiais, S. Martinho, liv. 9122, fl. 4-4v.). A instituição de confrarias veio a revelar-se um profícuo mecanismo de captação de bens para a Igreja, pois não só os irmãos contribuíam com verba anualmente paga para a sua manutenção, como a administração dos bens legados por particulares fazia confluir para os seus cofres um não despiciendo fluxo financeiro, que deveria ser gerido tendo em vista o fim que presidira à constituição do movimento confraternal: a celebração de ofícios divinos, a ajuda ao próximo e a salvação das almas. A responsabilidade da gestão destes fundos variava de acordo com o compromisso das diversas confrarias, e era objeto de inspeção nas visitas paroquiais, deixando os bispos, ou os visitadores, nos seus provimentos, muitas vezes críticas e recomendações sobre os procedimentos a seguir na apresentação dos resultados da contabilidade confraternal. Outro recurso que muito contribuiu para a sustentação económica da Igreja surge sob a forma de doações in mortis causa, ou seja, aquelas que eram feitas em testamentos e se destinavam a assegurar a prestação continuada de cuidados à alma do falecido que, para tal, doava terras ou rendimentos a serem aplicados em missas para resgate da sua alma. Sendo esta uma prática transversal a todos os grupos sociais, os montantes legados variam, contudo, e como seria de esperar, em função da capacidade económica dos doadores, constatando-se situações em que se fundam capelas de missas, com obrigação de celebração diária enquanto “o mundo for mundo”, a par de outras que apenas solicitam os ofícios divinos que os herdeiros acharem possíveis. O facto de os rendimentos afetos às capelas se tornarem insuficientes mercê do decurso do tempo, da desvalorização, ou de outros fatores, vai estar na origem de múltiplos conflitos que irão opondo bispos a testamenteiros e a juízes dos resíduos e capelas, sendo fonte de inesgotáveis processo em tribunais e de preocupações no tocante ao incumprimento das últimas vontades dos instituidores. A emergência deste fenómeno, que impossibilitava a cabal satisfação dos legados, é muito antiga na Madeira, estando já contemplada nas Constituições Sinodais de 1615, onde se referia ter o bispo sido informado de que “muitas capelas se não cumprem por as propriedades e bens sobre que foram instituídas renderem hoje tão pouco que não basta para se dizerem as missas […] que os instituidores mandam dizer”, “pelo que se autorizava aos administradores em incumprimento que pudessem satisfazer apenas dois terços do inicialmente previsto” (COSTA, 1987, 19). As dificuldades na satisfação de encargos pios, o devir histórico e, até, as alterações da conjuntura política motivadas pelo liberalismo, com a consequente diminuição do peso institucional da Igreja, foram, aos poucos, diminuindo a prática dos legados testamentários, sem que, no entanto, se possa falar de uma completa extinção do procedimento. No começo do terceiro milénio, as doações na Igreja Católica estão sujeitas às normas do Código de Direito Canónico (liv. V) e das normas particulares das dioceses.   Cristina Trindade (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social História Política e Institucional

estancos ou monopólios

Por estanco entende-se uma forma de monopólio legal, exercida pelo Estado ou concedida por este a um particular, para produção ou venda de um determinado produto, como aconteceu com o tabaco, o sal, o sabão, a urzela e os diamantes. Estancar é impedir a venda livre de um produto. No caso de exercício do monopólio ou estanco de venda por particular, estamos perante uma doação como forma de mercê ou uma concessão, a troco de uma renda fixa. Estanco também pode significar o armazém onde se encontra depositado e para venda o produto do monopólio, como sabão, pólvora, charutos, cigarros e rapé, aguardente, chocolate, outras bebidas (1677) e sal (1631). O contratador do estanco providenciava estes espaços nas diversas localidades, através do sistema de subarrendamento, sendo conhecidos os seus proprietários como estanqueiros. Na toponímia do arquipélago, ainda subsistem vestígios desta situação. Assim, no Funchal, existiu uma rua com a designação de Estanco Velho, cuja referência mais antiga é de 1572, enquanto no Porto Santo existe o sítio do Estanco Velho. A situação de estanco ou monopólio aconteceu também no séc. XV, com as cartas de doação das capitanias madeirenses, em que estes capitães usufruíam dos direitos exclusivos de venda do sabão e sal. O do sabão persistiu até 25 de abril de 1857, altura em que se declarou livre o seu fabrico e comércio. Com a subida ao trono de D. Duarte iniciou-se uma nova era no sistema de governo das ilhas. O infante D. Henrique recebeu, por carta de 26 de setembro de 1433, o governo das ilhas da Madeira, Porto Santo e Desertas. Mediante esta carta, o infante é o senhorio e os escudeiros, que haviam dado início ao povoamento do arquipélago, são capitães subordinados à sua alçada, pelo que ficaram conhecidos como capitães do donatário, permanecendo como tal até finais do séc. XV. As cartas de doação da posse das áreas jurisdicionais, conhecidas como capitanias, confirmaram a situação. Nelas ficaram estabelecidos a alçada e os privilégios do capitão, bem como a forma de definição do poder na Ilha: o senhor, o capitão e o município. O senhor intervinha através da delegação de poderes nos capitães ou em funcionários, como o ouvidor, o contador, os tabeliães e o almoxarife. O concelho era a estrutura de poder local, a expressão dos interesses das populações, sendo representado pelos homens-bons, que tinham uma relação de subordinação ao senhor. Foi o infante D. Henrique quem, ao assumir de pleno direito a posse das ilhas, estabeleceu a estrutura administrativa, os seus direitos e os dos seus capitães. De acordo com a doação régia de 1433, ele detinha a seguinte capacidade de intervenção: o usufruto de rendas e direitos, exceto o foro e o dízimo do pescado. Os documentos que estabelecem juridicamente as capitanias, conhecidos como cartas de doação, não foram concedidos ao mesmo tempo para as três áreas, existindo entre eles alguns anos de diferença. O primeiro foi o de Tristão Vaz que, em 8 de maio de 1440, recebeu o carrego das terras situadas entre o Caniço e a Ponta de Tristão, área que ficou conhecida como a capitania de Machico. Tristão Vaz exercia o governo em nome do infante, com alguns privilégios de fruição própria, como o domínio exclusivo dos moinhos, exceto nos braçais, a posse dos fornos de poia, exceto fornalha para uso próprio, e o exclusivo, sob condições, da venda de sal. Embora o sal tenha gerado alguns diferendos, esta situação continuou e foi confirmada no caso do Funchal, em 1663, 1675 e 1694. O infante, como detentor dos meios de produção e guiado pelo objetivo de promover a cultura, permitiu que os povoadores construíssem engenhos para a laboração do açúcar, sujeitando-se ao pagamento de 1/3 da produção. Destes, temos notícia apenas do de Diogo Teive, conforme autorização do próprio duque – o senhorio da Ilha –, de 1452. O fabrico do açúcar fazia-se, em exclusivo, no lagar do senhorio já existente e no novo engenho de água, pois “[...] a ninguém que possa fazer outro semelhante e não se podendo todo fazer que eu dê lugar a quem me prover que faça outro” (VIEIRA, 1987, 129). As serras de água não são criação madeirense, pois a tecnologia foi importada do reino. Estas surgem, por vezes, ligadas aos engenhos de açúcar. É o caso de Diogo de Teive, em 1452, com engenho na Ribeira Brava, então conhecida como Ribeira da Serra de Água e, em 1492, de Bartolomeu de Paiva, na Ribeira de São Bartolomeu. As serras de água tiveram um grande incremento no início da ocupação da Ilha, fruto da exploração das madeiras, para exportação para o reino, uso nos engenhos e construção de habitações. Nas cartas de doação das capitanias, as serras de água são consideradas uma fonte de receita para o capitão, que recebe duas tábuas por semana ou dois marcos de prata ao ano, e a dízima para o senhorio. A importância dos cereais na dieta alimentar dos madeirenses, desde a ocupação da Ilha, conduziu à valorização dos meios de transformação dos cereais em farinha. No arquipélago, assinalam-se quatro meios distintos de transformação: moinhos de mão, atafonas, azenhas e moinhos de vento. Até 1821, os moinhos continuaram a ser um privilégio exclusivo dos capitães do donatário. Resquício disso é o Lg. dos Moinhos, no Funchal, onde o capitão detinha um conjunto de azenhas, que se serviam da água da ribeira de Santa Luzia. O último moinho foi destruído em 1910, restando deles apenas a memória na toponímia do local. Os capitães cobravam a maquia, i.e., um alqueire em doze, sobre todos os que aí moessem cereais. Desde o início do povoamento, são insistentes as queixas dos moradores pelo mau funcionamento destas infraestruturas. Em 1461, a falta e a má qualidade do serviço levou o infante D. Fernando a recomendar aos capitães mais cuidado neste serviço. A situação deverá ter perdurado até 1821, altura em que se abriu à iniciativa particular a construção de novos moinhos. Em 1863, temos, em toda a Ilha, 365 moinhos, sendo 79 no Funchal. No séc. XIX, surgiram algumas unidades industriais motorizadas e depois, com o advento e a expansão da energia elétrica, a partir dos anos 40, a eletrificação de muitas unidades. No princípio do séc. XX, era evidente uma tendência para a centralização da indústria de moagem nas unidades que souberam inovar. Foi o caso da Companhia Insular de Moinhos, no Funchal, alvo da fúria dos populares, em 1931, contra o decreto que regulava o comércio e a transformação de cereais, que foi entendido como uma forma de apoiar outra situação de monopólio, criando condições para essa situação para a Empresa Insular de Moinhos, e acabando com os concorrentes e as pequenas moagens artesanais. Assinale-se, ainda, a firma Viúva de Romano Gomes & Filhos Lda., dedicada à moagem do milho, conjuntamente com a de Marques Teixeira & Co. Lda, na Ponta de Sol. O sistema de monopólio não se fica apenas pelas forças de produção, alarga-se também ao comércio dos produtos. As questões em torno da produção e comércio do açúcar foram uma preocupação permanente de D. Manuel enquanto senhor e Rei. A partir dos anos 80 do séc. XV, o mercado do açúcar madeirense enfrenta uma crise de crescimento. Primeiro, a procura europeia conduzira a que se colocasse no mercado açúcar de má qualidade. Depois, o alargamento da área produtiva e do açúcar disponível não foi acompanhado pelo aumento da procura. A crise obrigou a Coroa a intervir, em 1498, no sector comercial, estabelecendo um sistema de contingentamento dos valores de exportação para os principais mercados, que passa a ser feito sob o regime de monopólio da Coroa. A medida justificava-se, pois o açúcar era “huma das mays proveytosas de nosos reygnos se poderia perder”, sendo “proveyto de bem comum da dita ylha mays ainda de todos nosos reygnos” (VIEIRA, 2014, 191). Na verdade, a Madeira era uma das principais joias da coroa. Por outro lado, os problemas do mercado açucareiro na déc. de 90 do séc. XV conduziram ao ressurgimento da política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre abril e meados de setembro, para comercializar os seus produtos, não podendo dispor de loja ou feitor. Apenas em 1496 D. Manuel reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou as interdições anteriormente impostas. As facilidades concedidas à estadia dos agentes forasteiros conduziriam à assiduidade da frequência na praça, bem como à fixação e intervenção, de modo acentuado, na estrutura fundiária e administrativa. O regime do comércio do açúcar madeirense nos sécs. XV e XVI, tal como assevera Vitorino Magalhães Godinho “vai oscilar entre a liberdade fortemente restringida pela intervenção quer da Coroa quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o monopólio global, primeiro, posteriormente um conjunto de monopólio cada qual em relação com uma escápula de outra banda” (VIEIRA, 1987, 129). O comércio apenas se manteve em regime livre até 1469, altura em que a baixa do preço veio condicionar a intervenção do senhorio, que estipulou o exclusivo aos mercadores de Lisboa. Isto não agradou aos madeirenses, habituados que estavam a negociar diretamente com os estrangeiros. Mesmo assim, o infante D. Fernando decidiu, em 1471, estabelecer o monopólio a uma companhia formada por Vicente Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo e Martim Anes Boa Viagem. Da decisão resultou um aceso conflito entre a vereação e os referidos contratadores. Passados 21 anos, a Ilha debatia-se ainda com dificuldades no comércio açucareiro, pelo que, em 1488 e 1495, a Coroa retomou a pretensão do monopólio, mas apenas conseguiu impor um conjunto de medidas regulamentadoras da cultura, safra e comércio, que ocorrem em 1490 e 1496. A política, definida no sentido da defesa do rendimento do açúcar, saldou-se num fracasso, pelo que, em 1498, foi tentada uma nova solução, com o estabelecimento de um contingente de 120.000 arrobas para exportação, distribuídas pelas diversas escápulas europeias. Estabilizada a produção e definidos os mercados do açúcar, a economia madeirense não necessitava de tão rigorosa regulamentação, pelo que, em 1499, o monarca acabou com algumas das prerrogativas estipuladas no ano anterior. Manteve-se, no entanto, o regime de contrato para venda até 1508, data da revogação da legislação anterior, iniciando-se o trato em regime de total liberdade. Assim o definiu o foral da capitania do Funchal, em 1515, ao enunciar que “os ditos açúcares se poderão carregar para o Levante e Poente e para todas outras partes que os mercadores e pessoas que os carregarem aprouver sem lhe isso ser posto embargo algum” (VIEIRA, 1987, 130). Também com o vinho se encontram situações e ideias que visam o estatuto de monopólio para o seu comércio, como forma de superar dificuldades comerciais. Sucedeu assim em 1784 e 1816, mas estas propostas não avançaram, deixando livre o seu comércio. Na segunda metade do séc. XIX, a crise da produção do vinho fez com que a cultura sacarina se apresentasse como a resposta adequada à perda de importância da vinha, assumindo o papel de “cultura rica” na agricultura madeirense. A intervenção deu lugar ao chamado “protecionismo sacarino”, que desembocou naquilo que ficou depois conhecido como a “questão Hinton”, outra situação de monopólio na produção de aguardente e açúcar a partir da cana sacarina. A conturbada situação política de finais do séc. XIX e princípios do séc. XX favoreceu o debate político em torno da questão sacarina e esta só foi apaziguada pelo Estado Novo. A lei de 24 de novembro de 1904 resolvia a querela, ao estabelecer a matrícula das fábricas de aguardente por um período de funcionamento de 15 anos. Com a queda da monarquia, instaurou-se a república, que parecia querer fazer ouvidos moucos às regalias conquistadas no anterior regime. São várias as manifestações dos madeirenses contra o monopólio sacarino. Em 6 de abril de 1910, os madeirenses fizeram um comício, no Teatro D. Maria Pia, a reclamar contra este monopólio, onde marcaram presença Manuel José Vieira e Leite Monteiro. A imprensa faz eco de queixas dos agricultores, que acusam o Hinton de pagar a 13 meses e de negociar o resultado disto a 90 dias. As dificuldades do comércio do vinho repercutiam-se no sector, com a diminuição do consumo de álcool – usual no sistema de tratamento do vinho Madeira para exportação –, que era a principal fonte de lucro das fábricas matriculadas. Em outubro de 1905, o conhecido enólogo Batalha Reis visitou a fábrica Hinton e teceu os melhores elogios ao álcool aí produzido. Todavia, insistiu na necessidade de introduzir os vinhos de Portugal, o que não agradou aos planos dos anfitriões. A situação não fez perigar a posição hegemónica da casa Hinton que se mantinha confortavelmente como o único produtor de açúcar. Com o Estado Novo, as medidas resultantes dos decretos n.ºs 14.168, 15.429, 15.831, 16.083 e 16.084 (1928), embora restritivas dos antigos privilégios, favoreceram Hinton, impedindo a instalação de novas fábricas e determinando o fecho de algumas em funcionamento. O ano de 1928 foi fulcral para a afirmação desta estratégia hegemónica. O engenho de Hinton, consolidada a posição dominadora do mercado local, manteve-se como a referência da cultura da cana-de-açúcar até que, em 1985, agonizou em definitivo o seu império do açúcar. Outros produtos tiveram uma exploração e um comércio sujeitos ao regime de monopólio. A urzela – da qual se extraía uma cor amarela, ocre e castanha – foi um dos primeiros produtos a ser comercializado nas ilhas. A sua exploração manteve-se ativa até ao séc. XIX, mas foi no séc. XVIII que se revelou de grande importância económica, sendo exportada para Inglaterra e a Flandres. A planta era abundante nas Selvagens, nas Desertas, no Porto Santo e na Madeira, nomeadamente na Ponta de São Lourenço. A sua apanha e o seu comércio estavam também sujeitos a um regime de contrato e monopólio. Temos ainda notícia do estanco do comércio do sal para o Brasil, que persistiu até 1801, não obstante inúmeros protestos. Outro estanco, não menos importante, foi o das cartas de jogar, surgido em 1630. Desta forma, estava proibido o fabrico e a venda de cartas, pertencendo ao estanqueiro esse direito, mediante uma renda cujo contrato era feito por arrematação. No séc. XVIII, o meirinho do estanco estava autorizado a fazer buscas a navios, barcos e quintas, quando houvesse suspeita da existência de cartas falsas ou da sua venda sem licença do contratador. Ao contratador ou estanqueiro das cartas de jogar era reconhecido o direito de ter mestres de fazer cartas, situação que estava vedada aos particulares. No séc. XVI, o baralho de cartas custava 80 réis. O mais importante de todos foi o estanco do tabaco, que perdurou desde do séc. XVII (a primeira notícia de contrato é de 1639) até à publicação da lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitida a plantação de tabaco nas ilhas da Madeira e dos Açores, o seu livre fabrico e o seu comércio. Com efeito, o estanco do tabaco foi estabelecido em 1639 e extinto a 23 de agosto de 1642; porém, o contrato foi renovado em 26 de junho de 1644 e adjudicado o contrato por sete anos a 14 de maio de 1650, ficando dele excluídos a Índia, o Brasil e certos lugares de África. O estanco foi restabelecido por decreto de 21 de abril de 1832, sendo contratado a 10 de dezembro de 1832 ao barão de Quintela, sendo definitivamente abolido pela lei de 13 de maio de 1864. Nesta altura foi permitido o cultivo da planta do tabaco na Madeira e nos Açores. O tabaco chegou a Portugal no séc. XVI, a partir do Brasil, e começou por ser um produto de uso medicinal. Na época filipina, principiaram a estabelecer-se contratos de arrematação para a comercialização do tabaco, com a criação dos chamados estancos para a sua venda. O monopólio ou estanco do tabaco estava sob a superintendência da chamada Junta da Administração do Tabaco, que foi extinta em 15 de janeiro de 1775, ficando, a partir desta data, o serviço de estanco a depender da Junta da Real Fazenda. Note-se que na Madeira, em 1855, eram 362 os estancos em toda a Ilha para venda de tabaco. A política monopolista atingiu também os espaços oceânicos. Após a restauração da independência de Portugal, o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações. Primeiro, com a criação do monopólio do comércio, através da companhia criada para o efeito e, depois, com o estabelecimento do sistema de comboios, para maior segurança da navegação. Ressalva-se o caso particular da Madeira e dos Açores que, a partir de 1650, passaram a poder enviar isoladamente dois navios com capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, depois trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Ficou estabelecido que os mesmos não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar. O movimento das duas embarcações da Madeira fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda. Em 1678, há referência a outro contrato de estanco, por nove anos, do fabrico de aguardente, chocolate, cerveja, grosa solis, cidra, sorvetes, limonada e mais bebidas desta qualidade, no valor de 600$000 reais ano. Em 1894, temos o monopólio dos fósforos à Companhia dos Fósforos, que tinha em Francisco da Costa & Filhos a sua representação na Ilha. De referir igualmente o estanco da pólvora que, em 1951, ainda persiste, como se poderá verificar pela imprensa local. Outros mecanismos institucionais e jurídicos, ainda que não sejam guiados por orientações monopolistas pretendem estabelecer regras reguladoras do sector produtivo ou comercial, que podem ser entendidas como orientações no sentido de políticas monopolistas. Foi o que aconteceu em 1931 com os cereais, como já se referiu, e em 1936 com o leite. As autoridades determinaram, pelo dec.-lei n.º 26.655, de 4 de junho de 1936, a criação da Junta de Lacticínios da Madeira, com o objetivo de estabelecer regras no sector. A ela ficou atribuída a missão de administrar os postos de desnatação, proceder ao pagamento do leite e ao seu rateio pelas fábricas. A primeira medida foi a fixação do número de postos de desnatação em 320, com o encerramento de 788. Contra o decreto, levantou-se uma onda de protestos em São Roque do Faial, Machico e Ribeira Brava, que ficou conhecida como a Revolta do Leite. A A Revolução Liberal permitiu acabar com os estancos, primeiro do sabão, do tabaco, do sal e dos moinhos. Em diversos momentos, foi evidente a reação dos madeirenses a esta tendência monopolista, quer ao nível do sector produtivo, quer comercial. É evidente, em termos históricos, uma atitude da população da Ilha contra os monopólios, quer através de reclamações, quer do recurso ao comércio ilícito com base no contrabando. Desta forma, podemos afirmar que as ideias monopolistas não fazem parte do dicionário histórico dos madeirenses, que sempre revelaram uma atitude contrária em reivindicações, memórias e textos.   Alberto Vieira (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social

estufas

De entre todos os vinhos, o Madeira é o único que dispõe de um sistema de vinificação singular em que o calor exerce o papel principal no processo de envelhecimento. A tradição diz-nos que o processo começou com o vinho da roda, considerado um feliz acaso das viagens transoceânicas. De acordo com esta versão, os marinheiros começaram a notar que o vinho embarcado para o serviço de bordo, que fazia o percurso entre a Madeira e a Índia e retornava a Inglaterra, com duas passagens pelos trópicos, melhorava. O calor dos porões obstruía-lhe um rápido envelhecimento, que cedo se tornou notado pelos Ingleses. A este propósito, referia John Barrow, em 1792: “Este vinho tem a fama de possuir muitas qualidades extraordinárias. Tenho ouvido dizer que se Madeira genuíno for exposto a temperaturas muito baixas até ficar congelado numa massa sólida de gelo e outra vez descongelado pelo fogo, se for aquecido até ao ponto de fervura e depois deixado arrefecer ou se ficar exposto ao sol durante semanas seguidas em barris abertos ou colocado em caves húmidas não sofrerá o mínimo dano apesar de sujeito a tão violentas alterações” (VIEIRA, 2003, 234). No mercado britânico, desde finais do séc. XVIII, o Common Madeira, o London Market e o London Particular (vinhos de exportação direta que seguiam o sistema tradicional de vinificação imposto pelos Ingleses) foram preteridos em favor do novo East India Madeira. As pipas embarcadas no Funchal com este destino e processo eram marcadas com as seguintes iniciais: V. O. W. I. (Very Old West Indies Madeira). O vinho de torna-viagem – o East India Madeira – apresentava o dobro do preço do outro, algo resultante dos custos do transporte, da elevada procura e da reputação que o mesmo adquirira no Reino Unido, onde teve um estatuto especial. A primeira referência ao comércio do vinho retornado das Índias surge em 1722. Nos meses de setembro e novembro de 1790, A Christie’s – que se tornaria uma famosa casa de leilões em Londres – colocou à venda no mercado britânico 3 pipas de vinho Madeira provenientes da Índia e 39 do Brasil. Daqui, terá sido um passo rápido para o estabelecimento e a afirmação do processo de estufagem do vinho Madeira. O sistema de estufa foi considerado oficialmente como um método de tratamento do vinho, mas apenas foi usado para o vinho das castas autorizadas, nomeadamente as de tinta negra mole. De acordo com a tradição, a estufa é entendida como o resultado de um feliz acaso que terá surgido numa conjuntura favorável ao escoamento rápido do vinho, que adveio com as guerras napoleónicas, com o consequente esgotamento dos stocks, criando a necessidade de um trato rápido dos vinhos novos para satisfazer as encomendas do mercado, apenas possível com as estufas. Em todo o caso, é certo que os madeirenses não desconheciam o sistema de tratamento pelo calor já usado pelos antigos; os Gregos e os Romanos tinham conhecimento da ação do calor dos porões dos barcos e dele se serviram para o trato dos vinhos, tal como refere Plínio, entre outros. Na Madeira, a prática parece ser tardia. A primeira informação de que dispomos data de 1550 e refere a despesa de dois vinténs feita pela Misericórdia de Machico relativamente à lenha para cozer o vinho. Não se sabe, na verdade, a que se reporta esta situação específica: poderá ser referente ao fabrico de aguardente. A tradição alega que a primeira estufa terá sido construída por Pantaleão Fernandes em 1794, mas a primeira referência documental a tais estruturas é de 1730. Foi a partir da década final do séc. XVIII que as estufas e o processo de vinificação com o seu uso se generalizaram. Mas, antes do aparecimento das estufas, existiu o chamado vinho de sol. A referência mais antiga ao processo de tratamento do vinho mediante a exposição solar surge em 1687. De acordo com H. Sloane, o vinho beneficiava com a exposição ao sol: “[…]tem a propriedade curiosa, muito especial de se tornar melhor quanto mais exposto estiver ao sol e ao calor. Assim, em vez de o levarem para uma adega fresca expõem-no ao sol e ao calor” (Id., Ibid., 236). A mesma constatação foi assumida por John Ovington que, em 1689, referia: “O vinho Madeira tem a qualidade muito peculiar de, quando está a fermentar, ser melhorado pelo calor do sol se o batoque for desviado da abertura da pipa e, desta madeira, o vinho ficar exposto ao ar” (Id., Ibid., 237).  A solução para acelerar o processo de vinificação e de envelhecimento representava uma maior economia de tempo e de custos, permitindo colocar, em cerca de três meses, à disposição do cliente, um vinho prematuramente envelhecido com propriedades semelhantes ao que tinha estagiado cinco anos no casco. O uso das estufas generalizou-se. Era vulgar ver-se as pipas jacentes nos fornos de pão da cidade, ou simplesmente ao sol. Mas o vinho estufado, para além de ter gerado uma acesa polémica em princípios do séc. XIX, não mereceu a mesma referência por parte dos consumidores. O vinho da roda, aquele que seguia nas pipas, ao sol, a bordo dos navios que faziam o percurso de ida e volta ao Pacífico, com duas passagens pelo calor tórrido dos trópicos, era considerado diferente; para muitos, este tratamento tinha o condão de melhorar as qualidades organoléticas sem o degradar, o que não sucedia, com o vinho estufado. Em 1818, a própria Junta deu o exemplo desta prática do vinho da roda, ao carregar 50 pipas no brigue-escuna Mariado do Cap. José A. Martim de Sá, tendo-se dado ordem de embarque a 21 de abril. Em aviso ao deputado-escrivão da Junta de Cabo Verde, informou-se sobre a remessa de vinho que deveria “envelhecer e depois ser dado o destino que S. M. desejar, recomendando o cuidado e vigilância de sua existência, de maneira que receba o muito calor possível de Verão futuro e não haja extravio”. Noutro aviso a J. de Araújo Barros, em Cabo Verde, dá-se conta de outra remessa com o fim de se colocarem os vinhos nessa ilha e de eventualmente regressarem à Madeira, depois de passado o verão: “[...] lhe rogo o maior desvelo e cuidado na boa guarda e vigilância do dito vinho a fim de que não haja extravio casual nem voluntário e obtenha aquele grau de melhora que se espera” (Id., Ibid., 231). Nos registos de embarque de vinho de entre 1823 e 1830, assinala-se a presença do vinho da roda que, durante a fase a fase em que esta prática foi permitida, atingiu grandes proporções. Em 1823, saíram 1650 pipas e, em 1824, 366. Aqui, destacaram-se os comerciantes ingleses John Howard March & Ca. e Philip Noailles Searle, e também alguns portugueses das casas madeirenses mais importantes, como Monteiros & Ca., Luís de Ornelas Vasconcelos, e João Oliveira & Ca. Em 1826, a prática de embarque de vinhos para envelhecer havia-se generalizado e todo o vinho de roda era reembolsado dos direitos pagos à saída ou levantava fiança até ao retorno. Em 21 de fevereiro, Philip Noailles Searle solicitou o desconto dos direitos de 3 quartos e 10 meias quartolas de vinho de roda, autorizado em 8 de junho de 1825. Um ano depois, a generalização e a prática causou graves incómodos à administração da Alfândega, pelo que se determinou o seu embargo. A Junta da Real Fazenda, reconhecendo os percalços que a situação causava à arrecadação dos direitos, decidiu colocar um fim em tal prática. Daqui resultou a perda de importância do vinho da roda na Ilha e a sua consequente valorização no mercado britânico, onde as pipas da roda passaram a afluir com uma maior assiduidade. Ficou célebre, entre os apreciadores, o vinho que o cônsul inglês H. Veitch ofereceu, em 1815, a Napoleão Bonaparte, aquando da sua passagem pelo Funchal com destino ao exílio de Santa Helena. O antigo Imperador não bebeu o vinho e este regressou à Ilha, onde foi engarrafado a partir de 1840, com o título de Battle of Waterloo. Winston Churchill, de visita à Ilha em 1950, foi um dos poucos contemplados com uma garrafa. Em 1992, recriou-se a referida rota e a técnica de envelhecimento com o embarque de 600 l de Boal a bordo do veleiro Kaisei, que participou na regata Colombo 1992. Nem todos reconheceram o vinho da roda e as estufas como meios adequados ao processo de vinificação e de envelhecimento do vinho. Instalou-se o debate e, por vezes, a confusão. O Gov. José Manuel da Câmara, por editais de 23 de agosto de 1802 e de 6 de novembro de 1803, proibiu o funcionamento das estufas por serem prejudiciais à boa reputação dos vinhos. Mas, em face da reação da maioria dos comerciantes nacionais e estrangeiros da Região e do Senado da Câmara, foi obrigado, em 14 de fevereiro de 1804, a oficiar ao conde de Anadia, referindo o sucedido e a pretensão dos locais para que fosse levantada a suspensão de modo a poderem aviar as encomendas. Em representação dos comerciantes locais, pedindo a revogação, dizia-se que: “São três, os pontos principais, que servem de matéria para se atacar a existência, continuação e conservação das estufas. Eles abrangem diversos argumentos, que serão todos destruídos. O primeiro é o descrédito dos vinhos resultantes do benefício artificial, que se lhes quer fazer por meio das estufas. O segundo, o perigo iminente e continuado dos incêndios, em consequência dos fogos mais violentos e aturados, com que se trabalhavam as estufas. O terceiro, o prejuízo grave dos fumos, que originam de arder carvão de pedra, que dizem, atacam, alteram, e incomodam a saúde dos povos” (Id., Ibid., 250). Por ordem régia de 7 de maio do mesmo ano, foi expedido um aviso para ser levantada a proibição. Na verdade, o perigo de incêndios era uma constante, sendo de assinalar os incêndios de 1846 e de 1898. A polémica estava definitivamente instalada. O próprio Senado da Câmara, cuja composição, aliás heterogénea, mudava com assiduidade, assumiu posições contraditórias. Os que comungavam da opinião desfavorável sobre o novo processo de estufagem destacavam que as estufas estavam na origem da decadência da fama e do comércio do vinho, sendo, igualmente, prejudiciais à preservação das suas propriedades, retirando-lhe as qualidades balsâmicas ou alterando-lhe o sabor, e atribuindo-lhe um gosto torrado, queimado e muito desagradável. Em oposição, tivemos a opinião dos que pugnavam pela qualidade do vinho estufado, destacando que a medida era útil e barata para o trato e a rapidez de escoamento do vinho para os centros consumidores. Assim o referem os comerciantes locais, em 1804: “Granjeou o comerciante o fruto preciso dos seus cuidados, dos seus cálculos, e da sua bem atendida vigilância, pois que com o novo método de melhorar, e adiantar os seus vinhos de 5 a 6 meses apronta toda a quantidade de vinho, que é preciso para os seus embarques, não sendo obrigados a esperar o espaço seguro de 4 a 5 anos”. Ainda em 1834, a Câmara do Funchal desfez as acusações que apontavam as estufas como a causa primeira da ruína do comércio local, apresentando o efeito benéfico e incentivador que representavam para o comércio: “Ora devendo-se considerar a invenção das estufas como admirável processo por meio do qual se melhora rapidamente a qualidade dos vinhos, apressando sua maturação, ao mesmo passo que se evitam grandes embates de capital; e sendo este aliás o único método que nos pode habilitar a competir com os vinhos de outras nações nos quais a cultura dos vinhos é mui pouco dispendiosa [...]”(Id., Ibid., 238). Em 1819, a opinião da Câmara era diferente. Em representação à Junta de Melhoramento, deu a conhecer a quebra do vinho no mercado exportador, como consequência da perda de qualidade resultante do uso generalizado das estufas, “que degradando o vinho das suas virtudes essenciais, só lhe dão o cheiro postiço e uma aparência de bondade momentânea, tudo o que era sumo de parreira sem seleção alguma se preparava para o embarque. O que abertos, com a paz, os diques da guerra, os mercados se inundaram de vinhos; já o nosso deixou de servir a necessidade e parto ordinário, contrariando o seu consumo as mesas de luxo aonde o capricho e delicadeza faz aparecer algumas boteilhas de vinho Madeira”. O vinho estufado foi rejeitado pelo mercado e as estufas passaram a ser consideradas prejudiciais, estando na origem da decadência e do descrédito. “São as estufas, pois sabe-se pela experiência que tiram ao vinho as partes balcânicas, de sorte que em muitas praças já os médicos o não aplicam a certas moléstias em que tinham cura feliz e um desse conte desagradável, causa sede e dores de cabeça, sem beneficiar a digestão, de maneira que na terra se não faz uso desta bebida” (Id., Ibid., 250). Daqui resulta a necessidade de interdição ou de regulamentação do uso da estufagem no trato do vinho para que os donos fossem obrigados a manter o cozimento por 10 meses. Idêntica petição surgiu em 1821, clamando-se contra as “pérfidas estufas”. Os comerciantes, em 1834, reiteraram as afirmações de 1803 e, mais uma vez, manifestaram-se contra o decreto que introduziu o imposto sobre as estufas. Ao mesmo tempo, desfazia-se a argumentação que afirmava que as estufas seriam a causa da decadência do vinho, pois, fora da Ilha, também se estufava o vinho e tal não sucedia: “As ilhas dos Açores, Canárias e Cabo da Boa Esperança, têm estufas e estas livres de todo o tributo, ora se os vinhos estufados tivessem perdido o crédito decerto ali não haveria. Em todos países onde há vinhos está a exportação deles livre e livres de impostos todos aqueles que por meio da sua indústria promovem o consumo deles” (Id., Ibid., 250). Em meados do século, com o agudizar da crise, reacendeu-se a questão das estufas na imprensa local. Nas páginas do Correio da Madeira, afirmava-se, em 1851: “O vinho bom não carece de estufa, logo as estufas só servem para o ordinário, que se deve fazer para aguardente e consumir nas tabernas [...]. É uma calamidade pública esta funesta descoberta, que fazendo exportar o vinho mau, deixa o bom e óptimo estagnado, arruinando o nosso crédito”. Contra esta opinião manifestou-se um leitor, anotando que a origem da crise emanava da Pauta Aduaneira. Quanto às estufas, referia que era uma questão de prática, pois o que estava mal eram os abusos praticados, ou seja “o estufar o vinho ruim que deve ir para o alambique e só para o alambique, o envasilhar o vinho em pipas não avinhadas, o meter vinho em estufa forte de 3 meses, o embarcar o vinho antes de passar o tempo que é mister esta sobre o canteiro” (Id., Ibid., 251), uma vez que a uma estufagem bem feita deveriam seguir-se dois anos de descanso no canteiro para o vinho adquirir o aroma. João da Câmara Leme tinha uma opinião semelhante, acabando por estabelecer um novo processo de tratamento, conhecido como o método de canavial, um sistema eficaz e capaz de manter as qualidades do vinho. Eduardo Grande, em 1865, no relatório sobre a situação da Ilha após a crise de 1852, salientou que a crise não se deveu única e exclusivamente à moléstia da vinha, apresentando subjacentemente o dedo acusador às estufas. No Funchal, o principal centro vinícola da Ilha, procedia-se ao tratamento do vinho por meio das estufas. O sistema de tratamento pelas estufas generalizou-se a partir de finais do séc. XIX. As estufas distribuíam-se indiscriminadamente por toda a cidade, situando-se nos terrenos anexos às adegas, na área circunvizinha do cabrestante. O processo de estufagem tinha lugar em edifícios construídos para tal, ou em cima dos fornos de cal ou de cozer pão. Em 1861, a estufa existente na R. dos Moinhos foi demolida por não ter conseguido melhorar o vinho. Para o período entre 1739 e 1872, assinala-se o uso de um forno de cal à R. do Hospital Velho e de 12 fornos de cozer pão, com idênticas funções, nas ruas do Aljube, da Ponte Nova, da Sé, das Queimadas, dos Ingleses, do Capitão, da Bela Vista, do Castanheiro, dos Pintos, Nova de Santa Maria, do Esmeraldo, e no Lg. da Sé. Por editais de 23 de agosto de 1802 e de 6 de novembro de 1803, proibiu-se a construção de estufas no recinto da cidade, tendo o juiz do povo argumentado sobre os inconvenientes que daí advinham para a saúde pública, devido ao fumo e ao constante perigo de incêndio no período de laboração. Os comerciantes da praça do Funchal manifestaram-se contra, alegando os prejuízos referentes à deslocação das estufas para os subúrbios da cidade e contrariando os argumentos infundados do referido juiz do povo; o seu intento acabou por vencer. Na realidade, como referiam, só tinham existido, até 1803, três ameaços e apenas um incêndio na estufa de Phelps Page & Ca., em 29 de outubro de 1806. As estufas deste último foram alvo de um novo incêndio na noite de 10 para 11 de novembro de 1846, mas as perdas foram apenas nas instalações, uma vez que se conseguiu salvar o vinho. Depois disso, só existem referências a três incêndios na última década da centúria: a 20 de janeiro de 1894, o fogo devorou a estufa da firma de vinhos Araújo & Henriques, seguindo-se, a 15 de dezembro de 1898, outro incêndio na estufa do conde de Canavial, na R. 5 de Julho, onde estavam mais de 100 pipas de diversos proprietários; o último incêndio noticiado sucedeu a 11 de julho de 1900 num prédio da R. do Esmeraldo, propriedade dos herdeiros de Júlio Henriques de Freitas, que tinha no primeiro andar uma estufa com 49 pipas, que se salvaram. Tendo em consideração que estas estufas podiam laborar até seis meses, o gasto em lenhas era elevado, criando, certamente, dificuldades no seu abastecimento na cidade. Desta forma, em 27 de abril de 1835, surgiu a notícia de uma reclamação ao perfeito, reivindicando a substituição das lenhas pelo carvão. Esta medida não se concretizou, uma vez que, em 1919, apareceram anúncios nos jornais relativamente à venda de lenhas para queimar nas fornalhas das estufas. Assim, em 1919, foram anunciados serviços de venda de lenhas para cozinhas, estufas e engenhos em armazéns no Campo da Barca e no Calhau. Se as estufas não eram um perigo para a saúde e a segurança públicas, tornavam-se, no entanto, prejudiciais à pouca salubridade do burgo oitocentista, atingindo o centro do mesmo e as ruas de maior movimento em redor do porto do Funchal. Assim acontecia na área da Sé do Funchal, próxima da Alfândega e do cabrestante, onde, entre 1809 e 1834, laboraram as estufas de Gordon Duff & Ca., respetivamente no beco do Assucar e na R. do Esmeraldo. Aliás, considerando que a freguesia da Sé se situava na área central da cidade, surgirá uma ideia clara da implantação, pois entre 1839 e 1840 existiam 15 estufas, a que se seguiram 9 na freguesia de S. Pedro, denotando uma forte concentração na área circunvizinha da Alfândega e do porto do Funchal, concentração que, em parte, se justifica com base no objetivo de se conseguir um fácil transporte do vinho de embarque. De notar, entre 1839 e 1840, a também elevada concentração de estufas no beco dos Aranhas (4 e 5) e em S. Paulo (3 e 1), uma área ribeirinha ao mar pelo lado da Pontinha e sobranceira à ribeira de S. João. No termo da cidade, as estufas localizavam-se em Santa Luzia, em Caminho da Torrinha, em Torreão e, em Santa Maria Maior, na R. dos Balcões, na R. Bela de Santiago e na Rochinha. Fora da área do Funchal, encontravam-se apenas duas em Santa Cruz, em 1840, uma em S. Fernando, de Joaquim Telles de Menezes, e outra na R. Direita, de Augusto César de Oliveira. Entre 1805 e 1816, notava-se uma estabilização no número de estufas: era uma altura de medidas proibitivas e de discussão contrária à implantação e à utilidade daquelas. Passado este período, o número estabilizou-se, a que se seguiu, depois de solucionada a crise, um forte impulso entre 1817 e 1829. A década de 30 foi marcada por uma queda, que se acentua a partir de 1832. O período que decorreu entre 1834 e 1844 foi de certa estabilidade no número de estufas em laboração, apenas se notando um salto isolado em 1839. Desde 1845, a tendência era para subir, atingindo-se, em 1851, o número máximo de estufas (42); mas a situação vivida a partir de 1851 inverteu o processo, que se acentuou a partir de 1860. O primeiro dado surgiu num momento em que a discussão em torno das estufas se havia atenuado, estando a própria Câmara do Funchal de acordo com a sua utilização; mas, em 1851, o assunto volta a ser objeto de intensa discussão. Depois disto, só existem dados sobre as estufas em relação ao ano de 1905, em que estão contabilizadas 35, sendo 1 mista de fogo e sol, e 7 de sol. A crise do comércio do vinho ocorrida em finais do séc. XIX contribuiu para o lento desaparecimento do número de estufas, tal como vinha sucedendo com as empresas do sector. No entanto, a tradição de estufar o vinho não se perdeu, passando a fazer parte do processo de vinificação. Nota-se que esta é uma característica do processo de vinificação que só acontece com o vinho Madeira, podendo ser considerado um processo de criação regional. João da Câmara Leme, especialista em assuntos enológicos, teve oportunidade de, em França, entrar em contacto com os sistemas de aquecimento usados desde o primeiro quartel do séc. XIX, nomeadamente com os sistemas em vaso fechado concebidos por Appert, Ervais, Verguette, Cemotte e Pasteur. De regresso à Madeira, foi confrontado com o processo de estufagem em uso, notando que o “sistema de aquecimento lento com comunicação com ar ambiente” dava ao vinho um “sabor torrado de queimado muito desagradável”, ao mesmo tempo que lhe retirava as propriedades essenciais: “Um sistema que priva os vinhos novos das suas melhores qualidades naturais e lhes introduz efeitos persistentes; que lhes tira o açúcar, álcool, óleos essenciais, e lhes introduz, um sabor desagradável que o carvão vegetal empregado lhes não pode nunca tirar de tudo, e que os impede de adquirir a finura tão assinalada nos antigos vinhos de canteiro. Na destilação do vinho de garapa despreza-se o vinhão e guardam-se líquidos alcoólicos, éteres, e sais e guarda-se o vinhão” (Id., Ibid., 241). Perante a constatação, houve que tomar providências, optando-se por um sistema de aquecimento em vaso fechado, segundo o método de Pasteur, conhecido por pasteurização. Feitas as devidas experiências, João da Câmara Leme concluiu “que o gosto de novo desaparecia muito pouco para que o vinho Madeira pudesse ser embarcado em pouco tempo como vinho mais velho, e que os seus outros caracteres não tinham suficientemente melhorado”. Em 1889, ao fim de seis anos de estudo e 10 anos de ensaios e de experiências, estabeleceu um sistema de aquecimento e de afinamento dos vinhos que tomou o nome de sistema canavial. Adotava o novo método de aquecimento rápido e arrefecimento lento em recipiente fechado. Assim, “o vinho que vai ser aquecido entra, depois de medido, num reservatório superiormente disposto, donde desce, pelo seu próprio peso, por um cano de estanho, […] continuando depois a descer, sem encontrar nada no caminho que lhe apresse o aperfeiçoamento; e chegando finalmente, depois de ter marcado num termómetro a uma temperatura adquirida, ao fundo da mesma pipa d’onde sairá pouco antes, e cuja boca, disposta de modo a impedir perda de vapores, é fechada logo que termina a operação” (Id., Ibid., 242). O autor do sistema anota que, com este processo, o vinho não perde qualquer nível do teor alcoólico e apresenta melhorias; que não há indícios de presença de enxofre e tem um aroma muito agradável, o que significa que o processo permite um notável melhoramento da qualidade do vinho. A singularidade do processo assenta no facto de se tratar de um sistema estar hermeticamente fechado, no qual “cinco fornalhas introduzem ar quente em canos que dão três voltas nas estâncias; e que são guarnecidos de chapas de ferro para facilitarem a transmissão do calor, sempre bem regulado e facilmente observado por termómetros que se podem bem ler de fora”. Daqui resulta que “o vinho assim aquecido e afinado conserva todas as qualidades naturais, apresenta qualidades próprias do vinho de canteiro que tem cinco ou seis anos e uma notável finura muito apreciável; sem apresentar nenhum mau sabor, nem defeito algum, sendo convenientemente tratado, pode logo ser lotado com outros vinhos aquecidos e conservados livres de fermentos, e mesmo ser embarcado, sem risco de se alterar, e com grande economia de álcool” (Id., Ibid., 243). O método era considerado o único processo de tratamento por estufa que animava a qualidade do vinho fazendo-o adquirir características e qualidades próprias, podendo rivalizar com os melhores vinhos de canteiro, ou seja, os vinhos que não passavam pelas estufas, envelhecendo em pipas nos chamados canteiros, os assentos do vasilhame. O vinho canavial era normalmente preparado com o boal, apresentado as seguintes propriedades: digestivo, antisséptico, medicinal e alimentício. Assim, no primeiro quartel do séc. XX, a imprensa funchalense, através de anúncios que publicitavam a sua atividade, referia dois sistemas distintos de estufagem: o canavial e o de Pasteur. O sistema canavial foi iniciado por João da Câmara Leme e foi seu privilégio durante 15 anos, sendo usado em várias estufas. Estas ofereciam aos interessados os serviços de aquecimento e de afinamento dos vinhos. O aquecimento de uma pipa de vinho ficava por apenas 1$200, enquanto o afinamento por 3 meses era de 4$500, custando 6$000 o período de 6 meses. De acordo com anúncio que publicitava o sistema de Pasteur, encontrado nas estufas das ruas 5 de Junho e dos Aranhas, o custo era de 1$500 por pipa, sendo a quebra do volume do vinho baixa e implicando, para uma pipa, a poupança de 12.000 reis a 15.000 reis. Entre 1888 e 1920, verificaram-se diversos anúncios na imprensa que publicitaram o serviço de estufagem em que os serviços disponibilizados para o efeito eram de 3, 4 e 6 meses. Mas também surgiram anúncios sobre a liquidação de três estufas de vinho, o que poderá sugerir uma crise no sistema, por força dos constrangimentos do mercado. Muito antes de João da Câmara Leme, já tinha surgido uma notícia sobre outro invento de estufagem. O novo método adequava-se aos vinhos, “comunicando-lhes o calor internamente” e tornando-os “vermelhos em pouco tempo” (Id., Ibid., 243). Tudo indica que tal processo tenha sido uma importação francesa de Severiano Ferraz, uma vez que foi a França várias vezes, donde trouxe alambiques de destilação contínua, tendo travado contacto com as inovações da técnica francesa de destilação e de aquecimento do vinho. Em 1917, sabe-se que Salomão Veiga França (1893-19??) registou a patente de um aparelho de aquecimento de vinho, mas não temos qualquer informação sobre o mesmo e se funcionou. No período entre 1806 e 1872, através da documentação disponível, podemos acompanhar o número de pipas de vinho submetidas ao tratamento de estufagem por ambos os sistemas. A primeira conclusão possível é a de que até meados do século era reduzido o número de pipas de vinho estufado, quando comparado com os valores da produção e da exportação. A estufagem só se generalizou a partir da década de 50 no processo de vinificação do vinho Madeira. O período que decorreu entre 1856 e 1865 pode ser considerado um momento crítico. A crise do oídio refletiu-se nas produções e nas exportações, fazendo com que a oferta de vinhos já estufados fosse muito inferior à colheita e à procura. Isto poderá ser a prova da existência, em armazém, de elevados stocks de vinho de colheitas anteriores. As estufas, na verdade, não morreram, apenas foram aperfeiçoadas com o tempo. Os mecanismos a vapor e a moderna tecnologia elétrica substituíram as fornalhas de lenha, propiciando uma temperatura constante de 45 a 50 ºC por um período de três meses. No início do séc XXI, o sistema de canteiro convive de modo cordial com o das estufas; ambos persistem e são usados pelas empresas de acordo com o tipo de vinhos que se pretende fazer. Os chamados vinhos novos de cinco anos são quase sempre de estufa, enquanto os demais são de canteiro. Apenas uma empresa, Artur Barros & Sousa Lda., continua fiel à tradição do sistema de canteiro em todos os vinhos que comercializa. De acordo com a legislação em vigor nesta época, o vinho deverá manter-se nos recipientes a uma temperatura constante até 55º C, por um prazo de 90 dias. Anteriormente, o vinho sofria uma evaporação de cerca de 15 %, mas, com a nova tecnologia, as perdas tornaram-se reduzidas. A disponibilização no mercado só poderá acontecer após dois anos de estágio no canteiro. Nesta altura, a Madeira Wine Company Lda. dispõe, nas suas instalações, ao Lg. Severiano Ferraz, de dois tipos de estufas tradicionais: a estufa de cimento e a de madeira, usando, ali e na R. de S. Francisco, o chamado sistema de armazém de calor. Nas demais empresas, usam-se estufas modernas, com sistemas que permitem um melhor controlo de calor.   Alberto Vieira (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social