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estancos ou monopólios

Por estanco entende-se uma forma de monopólio legal, exercida pelo Estado ou concedida por este a um particular, para produção ou venda de um determinado produto, como aconteceu com o tabaco, o sal, o sabão, a urzela e os diamantes. Estancar é impedir a venda livre de um produto. No caso de exercício do monopólio ou estanco de venda por particular, estamos perante uma doação como forma de mercê ou uma concessão, a troco de uma renda fixa. Estanco também pode significar o armazém onde se encontra depositado e para venda o produto do monopólio, como sabão, pólvora, charutos, cigarros e rapé, aguardente, chocolate, outras bebidas (1677) e sal (1631). O contratador do estanco providenciava estes espaços nas diversas localidades, através do sistema de subarrendamento, sendo conhecidos os seus proprietários como estanqueiros. Na toponímia do arquipélago, ainda subsistem vestígios desta situação. Assim, no Funchal, existiu uma rua com a designação de Estanco Velho, cuja referência mais antiga é de 1572, enquanto no Porto Santo existe o sítio do Estanco Velho. A situação de estanco ou monopólio aconteceu também no séc. XV, com as cartas de doação das capitanias madeirenses, em que estes capitães usufruíam dos direitos exclusivos de venda do sabão e sal. O do sabão persistiu até 25 de abril de 1857, altura em que se declarou livre o seu fabrico e comércio. Com a subida ao trono de D. Duarte iniciou-se uma nova era no sistema de governo das ilhas. O infante D. Henrique recebeu, por carta de 26 de setembro de 1433, o governo das ilhas da Madeira, Porto Santo e Desertas. Mediante esta carta, o infante é o senhorio e os escudeiros, que haviam dado início ao povoamento do arquipélago, são capitães subordinados à sua alçada, pelo que ficaram conhecidos como capitães do donatário, permanecendo como tal até finais do séc. XV. As cartas de doação da posse das áreas jurisdicionais, conhecidas como capitanias, confirmaram a situação. Nelas ficaram estabelecidos a alçada e os privilégios do capitão, bem como a forma de definição do poder na Ilha: o senhor, o capitão e o município. O senhor intervinha através da delegação de poderes nos capitães ou em funcionários, como o ouvidor, o contador, os tabeliães e o almoxarife. O concelho era a estrutura de poder local, a expressão dos interesses das populações, sendo representado pelos homens-bons, que tinham uma relação de subordinação ao senhor. Foi o infante D. Henrique quem, ao assumir de pleno direito a posse das ilhas, estabeleceu a estrutura administrativa, os seus direitos e os dos seus capitães. De acordo com a doação régia de 1433, ele detinha a seguinte capacidade de intervenção: o usufruto de rendas e direitos, exceto o foro e o dízimo do pescado. Os documentos que estabelecem juridicamente as capitanias, conhecidos como cartas de doação, não foram concedidos ao mesmo tempo para as três áreas, existindo entre eles alguns anos de diferença. O primeiro foi o de Tristão Vaz que, em 8 de maio de 1440, recebeu o carrego das terras situadas entre o Caniço e a Ponta de Tristão, área que ficou conhecida como a capitania de Machico. Tristão Vaz exercia o governo em nome do infante, com alguns privilégios de fruição própria, como o domínio exclusivo dos moinhos, exceto nos braçais, a posse dos fornos de poia, exceto fornalha para uso próprio, e o exclusivo, sob condições, da venda de sal. Embora o sal tenha gerado alguns diferendos, esta situação continuou e foi confirmada no caso do Funchal, em 1663, 1675 e 1694. O infante, como detentor dos meios de produção e guiado pelo objetivo de promover a cultura, permitiu que os povoadores construíssem engenhos para a laboração do açúcar, sujeitando-se ao pagamento de 1/3 da produção. Destes, temos notícia apenas do de Diogo Teive, conforme autorização do próprio duque – o senhorio da Ilha –, de 1452. O fabrico do açúcar fazia-se, em exclusivo, no lagar do senhorio já existente e no novo engenho de água, pois “[...] a ninguém que possa fazer outro semelhante e não se podendo todo fazer que eu dê lugar a quem me prover que faça outro” (VIEIRA, 1987, 129). As serras de água não são criação madeirense, pois a tecnologia foi importada do reino. Estas surgem, por vezes, ligadas aos engenhos de açúcar. É o caso de Diogo de Teive, em 1452, com engenho na Ribeira Brava, então conhecida como Ribeira da Serra de Água e, em 1492, de Bartolomeu de Paiva, na Ribeira de São Bartolomeu. As serras de água tiveram um grande incremento no início da ocupação da Ilha, fruto da exploração das madeiras, para exportação para o reino, uso nos engenhos e construção de habitações. Nas cartas de doação das capitanias, as serras de água são consideradas uma fonte de receita para o capitão, que recebe duas tábuas por semana ou dois marcos de prata ao ano, e a dízima para o senhorio. A importância dos cereais na dieta alimentar dos madeirenses, desde a ocupação da Ilha, conduziu à valorização dos meios de transformação dos cereais em farinha. No arquipélago, assinalam-se quatro meios distintos de transformação: moinhos de mão, atafonas, azenhas e moinhos de vento. Até 1821, os moinhos continuaram a ser um privilégio exclusivo dos capitães do donatário. Resquício disso é o Lg. dos Moinhos, no Funchal, onde o capitão detinha um conjunto de azenhas, que se serviam da água da ribeira de Santa Luzia. O último moinho foi destruído em 1910, restando deles apenas a memória na toponímia do local. Os capitães cobravam a maquia, i.e., um alqueire em doze, sobre todos os que aí moessem cereais. Desde o início do povoamento, são insistentes as queixas dos moradores pelo mau funcionamento destas infraestruturas. Em 1461, a falta e a má qualidade do serviço levou o infante D. Fernando a recomendar aos capitães mais cuidado neste serviço. A situação deverá ter perdurado até 1821, altura em que se abriu à iniciativa particular a construção de novos moinhos. Em 1863, temos, em toda a Ilha, 365 moinhos, sendo 79 no Funchal. No séc. XIX, surgiram algumas unidades industriais motorizadas e depois, com o advento e a expansão da energia elétrica, a partir dos anos 40, a eletrificação de muitas unidades. No princípio do séc. XX, era evidente uma tendência para a centralização da indústria de moagem nas unidades que souberam inovar. Foi o caso da Companhia Insular de Moinhos, no Funchal, alvo da fúria dos populares, em 1931, contra o decreto que regulava o comércio e a transformação de cereais, que foi entendido como uma forma de apoiar outra situação de monopólio, criando condições para essa situação para a Empresa Insular de Moinhos, e acabando com os concorrentes e as pequenas moagens artesanais. Assinale-se, ainda, a firma Viúva de Romano Gomes & Filhos Lda., dedicada à moagem do milho, conjuntamente com a de Marques Teixeira & Co. Lda, na Ponta de Sol. O sistema de monopólio não se fica apenas pelas forças de produção, alarga-se também ao comércio dos produtos. As questões em torno da produção e comércio do açúcar foram uma preocupação permanente de D. Manuel enquanto senhor e Rei. A partir dos anos 80 do séc. XV, o mercado do açúcar madeirense enfrenta uma crise de crescimento. Primeiro, a procura europeia conduzira a que se colocasse no mercado açúcar de má qualidade. Depois, o alargamento da área produtiva e do açúcar disponível não foi acompanhado pelo aumento da procura. A crise obrigou a Coroa a intervir, em 1498, no sector comercial, estabelecendo um sistema de contingentamento dos valores de exportação para os principais mercados, que passa a ser feito sob o regime de monopólio da Coroa. A medida justificava-se, pois o açúcar era “huma das mays proveytosas de nosos reygnos se poderia perder”, sendo “proveyto de bem comum da dita ylha mays ainda de todos nosos reygnos” (VIEIRA, 2014, 191). Na verdade, a Madeira era uma das principais joias da coroa. Por outro lado, os problemas do mercado açucareiro na déc. de 90 do séc. XV conduziram ao ressurgimento da política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre abril e meados de setembro, para comercializar os seus produtos, não podendo dispor de loja ou feitor. Apenas em 1496 D. Manuel reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou as interdições anteriormente impostas. As facilidades concedidas à estadia dos agentes forasteiros conduziriam à assiduidade da frequência na praça, bem como à fixação e intervenção, de modo acentuado, na estrutura fundiária e administrativa. O regime do comércio do açúcar madeirense nos sécs. XV e XVI, tal como assevera Vitorino Magalhães Godinho “vai oscilar entre a liberdade fortemente restringida pela intervenção quer da Coroa quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o monopólio global, primeiro, posteriormente um conjunto de monopólio cada qual em relação com uma escápula de outra banda” (VIEIRA, 1987, 129). O comércio apenas se manteve em regime livre até 1469, altura em que a baixa do preço veio condicionar a intervenção do senhorio, que estipulou o exclusivo aos mercadores de Lisboa. Isto não agradou aos madeirenses, habituados que estavam a negociar diretamente com os estrangeiros. Mesmo assim, o infante D. Fernando decidiu, em 1471, estabelecer o monopólio a uma companhia formada por Vicente Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo e Martim Anes Boa Viagem. Da decisão resultou um aceso conflito entre a vereação e os referidos contratadores. Passados 21 anos, a Ilha debatia-se ainda com dificuldades no comércio açucareiro, pelo que, em 1488 e 1495, a Coroa retomou a pretensão do monopólio, mas apenas conseguiu impor um conjunto de medidas regulamentadoras da cultura, safra e comércio, que ocorrem em 1490 e 1496. A política, definida no sentido da defesa do rendimento do açúcar, saldou-se num fracasso, pelo que, em 1498, foi tentada uma nova solução, com o estabelecimento de um contingente de 120.000 arrobas para exportação, distribuídas pelas diversas escápulas europeias. Estabilizada a produção e definidos os mercados do açúcar, a economia madeirense não necessitava de tão rigorosa regulamentação, pelo que, em 1499, o monarca acabou com algumas das prerrogativas estipuladas no ano anterior. Manteve-se, no entanto, o regime de contrato para venda até 1508, data da revogação da legislação anterior, iniciando-se o trato em regime de total liberdade. Assim o definiu o foral da capitania do Funchal, em 1515, ao enunciar que “os ditos açúcares se poderão carregar para o Levante e Poente e para todas outras partes que os mercadores e pessoas que os carregarem aprouver sem lhe isso ser posto embargo algum” (VIEIRA, 1987, 130). Também com o vinho se encontram situações e ideias que visam o estatuto de monopólio para o seu comércio, como forma de superar dificuldades comerciais. Sucedeu assim em 1784 e 1816, mas estas propostas não avançaram, deixando livre o seu comércio. Na segunda metade do séc. XIX, a crise da produção do vinho fez com que a cultura sacarina se apresentasse como a resposta adequada à perda de importância da vinha, assumindo o papel de “cultura rica” na agricultura madeirense. A intervenção deu lugar ao chamado “protecionismo sacarino”, que desembocou naquilo que ficou depois conhecido como a “questão Hinton”, outra situação de monopólio na produção de aguardente e açúcar a partir da cana sacarina. A conturbada situação política de finais do séc. XIX e princípios do séc. XX favoreceu o debate político em torno da questão sacarina e esta só foi apaziguada pelo Estado Novo. A lei de 24 de novembro de 1904 resolvia a querela, ao estabelecer a matrícula das fábricas de aguardente por um período de funcionamento de 15 anos. Com a queda da monarquia, instaurou-se a república, que parecia querer fazer ouvidos moucos às regalias conquistadas no anterior regime. São várias as manifestações dos madeirenses contra o monopólio sacarino. Em 6 de abril de 1910, os madeirenses fizeram um comício, no Teatro D. Maria Pia, a reclamar contra este monopólio, onde marcaram presença Manuel José Vieira e Leite Monteiro. A imprensa faz eco de queixas dos agricultores, que acusam o Hinton de pagar a 13 meses e de negociar o resultado disto a 90 dias. As dificuldades do comércio do vinho repercutiam-se no sector, com a diminuição do consumo de álcool – usual no sistema de tratamento do vinho Madeira para exportação –, que era a principal fonte de lucro das fábricas matriculadas. Em outubro de 1905, o conhecido enólogo Batalha Reis visitou a fábrica Hinton e teceu os melhores elogios ao álcool aí produzido. Todavia, insistiu na necessidade de introduzir os vinhos de Portugal, o que não agradou aos planos dos anfitriões. A situação não fez perigar a posição hegemónica da casa Hinton que se mantinha confortavelmente como o único produtor de açúcar. Com o Estado Novo, as medidas resultantes dos decretos n.ºs 14.168, 15.429, 15.831, 16.083 e 16.084 (1928), embora restritivas dos antigos privilégios, favoreceram Hinton, impedindo a instalação de novas fábricas e determinando o fecho de algumas em funcionamento. O ano de 1928 foi fulcral para a afirmação desta estratégia hegemónica. O engenho de Hinton, consolidada a posição dominadora do mercado local, manteve-se como a referência da cultura da cana-de-açúcar até que, em 1985, agonizou em definitivo o seu império do açúcar. Outros produtos tiveram uma exploração e um comércio sujeitos ao regime de monopólio. A urzela – da qual se extraía uma cor amarela, ocre e castanha – foi um dos primeiros produtos a ser comercializado nas ilhas. A sua exploração manteve-se ativa até ao séc. XIX, mas foi no séc. XVIII que se revelou de grande importância económica, sendo exportada para Inglaterra e a Flandres. A planta era abundante nas Selvagens, nas Desertas, no Porto Santo e na Madeira, nomeadamente na Ponta de São Lourenço. A sua apanha e o seu comércio estavam também sujeitos a um regime de contrato e monopólio. Temos ainda notícia do estanco do comércio do sal para o Brasil, que persistiu até 1801, não obstante inúmeros protestos. Outro estanco, não menos importante, foi o das cartas de jogar, surgido em 1630. Desta forma, estava proibido o fabrico e a venda de cartas, pertencendo ao estanqueiro esse direito, mediante uma renda cujo contrato era feito por arrematação. No séc. XVIII, o meirinho do estanco estava autorizado a fazer buscas a navios, barcos e quintas, quando houvesse suspeita da existência de cartas falsas ou da sua venda sem licença do contratador. Ao contratador ou estanqueiro das cartas de jogar era reconhecido o direito de ter mestres de fazer cartas, situação que estava vedada aos particulares. No séc. XVI, o baralho de cartas custava 80 réis. O mais importante de todos foi o estanco do tabaco, que perdurou desde do séc. XVII (a primeira notícia de contrato é de 1639) até à publicação da lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitida a plantação de tabaco nas ilhas da Madeira e dos Açores, o seu livre fabrico e o seu comércio. Com efeito, o estanco do tabaco foi estabelecido em 1639 e extinto a 23 de agosto de 1642; porém, o contrato foi renovado em 26 de junho de 1644 e adjudicado o contrato por sete anos a 14 de maio de 1650, ficando dele excluídos a Índia, o Brasil e certos lugares de África. O estanco foi restabelecido por decreto de 21 de abril de 1832, sendo contratado a 10 de dezembro de 1832 ao barão de Quintela, sendo definitivamente abolido pela lei de 13 de maio de 1864. Nesta altura foi permitido o cultivo da planta do tabaco na Madeira e nos Açores. O tabaco chegou a Portugal no séc. XVI, a partir do Brasil, e começou por ser um produto de uso medicinal. Na época filipina, principiaram a estabelecer-se contratos de arrematação para a comercialização do tabaco, com a criação dos chamados estancos para a sua venda. O monopólio ou estanco do tabaco estava sob a superintendência da chamada Junta da Administração do Tabaco, que foi extinta em 15 de janeiro de 1775, ficando, a partir desta data, o serviço de estanco a depender da Junta da Real Fazenda. Note-se que na Madeira, em 1855, eram 362 os estancos em toda a Ilha para venda de tabaco. A política monopolista atingiu também os espaços oceânicos. Após a restauração da independência de Portugal, o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações. Primeiro, com a criação do monopólio do comércio, através da companhia criada para o efeito e, depois, com o estabelecimento do sistema de comboios, para maior segurança da navegação. Ressalva-se o caso particular da Madeira e dos Açores que, a partir de 1650, passaram a poder enviar isoladamente dois navios com capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, depois trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Ficou estabelecido que os mesmos não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar. O movimento das duas embarcações da Madeira fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda. Em 1678, há referência a outro contrato de estanco, por nove anos, do fabrico de aguardente, chocolate, cerveja, grosa solis, cidra, sorvetes, limonada e mais bebidas desta qualidade, no valor de 600$000 reais ano. Em 1894, temos o monopólio dos fósforos à Companhia dos Fósforos, que tinha em Francisco da Costa & Filhos a sua representação na Ilha. De referir igualmente o estanco da pólvora que, em 1951, ainda persiste, como se poderá verificar pela imprensa local. Outros mecanismos institucionais e jurídicos, ainda que não sejam guiados por orientações monopolistas pretendem estabelecer regras reguladoras do sector produtivo ou comercial, que podem ser entendidas como orientações no sentido de políticas monopolistas. Foi o que aconteceu em 1931 com os cereais, como já se referiu, e em 1936 com o leite. As autoridades determinaram, pelo dec.-lei n.º 26.655, de 4 de junho de 1936, a criação da Junta de Lacticínios da Madeira, com o objetivo de estabelecer regras no sector. A ela ficou atribuída a missão de administrar os postos de desnatação, proceder ao pagamento do leite e ao seu rateio pelas fábricas. A primeira medida foi a fixação do número de postos de desnatação em 320, com o encerramento de 788. Contra o decreto, levantou-se uma onda de protestos em São Roque do Faial, Machico e Ribeira Brava, que ficou conhecida como a Revolta do Leite. A A Revolução Liberal permitiu acabar com os estancos, primeiro do sabão, do tabaco, do sal e dos moinhos. Em diversos momentos, foi evidente a reação dos madeirenses a esta tendência monopolista, quer ao nível do sector produtivo, quer comercial. É evidente, em termos históricos, uma atitude da população da Ilha contra os monopólios, quer através de reclamações, quer do recurso ao comércio ilícito com base no contrabando. Desta forma, podemos afirmar que as ideias monopolistas não fazem parte do dicionário histórico dos madeirenses, que sempre revelaram uma atitude contrária em reivindicações, memórias e textos.   Alberto Vieira (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social

estufas

De entre todos os vinhos, o Madeira é o único que dispõe de um sistema de vinificação singular em que o calor exerce o papel principal no processo de envelhecimento. A tradição diz-nos que o processo começou com o vinho da roda, considerado um feliz acaso das viagens transoceânicas. De acordo com esta versão, os marinheiros começaram a notar que o vinho embarcado para o serviço de bordo, que fazia o percurso entre a Madeira e a Índia e retornava a Inglaterra, com duas passagens pelos trópicos, melhorava. O calor dos porões obstruía-lhe um rápido envelhecimento, que cedo se tornou notado pelos Ingleses. A este propósito, referia John Barrow, em 1792: “Este vinho tem a fama de possuir muitas qualidades extraordinárias. Tenho ouvido dizer que se Madeira genuíno for exposto a temperaturas muito baixas até ficar congelado numa massa sólida de gelo e outra vez descongelado pelo fogo, se for aquecido até ao ponto de fervura e depois deixado arrefecer ou se ficar exposto ao sol durante semanas seguidas em barris abertos ou colocado em caves húmidas não sofrerá o mínimo dano apesar de sujeito a tão violentas alterações” (VIEIRA, 2003, 234). No mercado britânico, desde finais do séc. XVIII, o Common Madeira, o London Market e o London Particular (vinhos de exportação direta que seguiam o sistema tradicional de vinificação imposto pelos Ingleses) foram preteridos em favor do novo East India Madeira. As pipas embarcadas no Funchal com este destino e processo eram marcadas com as seguintes iniciais: V. O. W. I. (Very Old West Indies Madeira). O vinho de torna-viagem – o East India Madeira – apresentava o dobro do preço do outro, algo resultante dos custos do transporte, da elevada procura e da reputação que o mesmo adquirira no Reino Unido, onde teve um estatuto especial. A primeira referência ao comércio do vinho retornado das Índias surge em 1722. Nos meses de setembro e novembro de 1790, A Christie’s – que se tornaria uma famosa casa de leilões em Londres – colocou à venda no mercado britânico 3 pipas de vinho Madeira provenientes da Índia e 39 do Brasil. Daqui, terá sido um passo rápido para o estabelecimento e a afirmação do processo de estufagem do vinho Madeira. O sistema de estufa foi considerado oficialmente como um método de tratamento do vinho, mas apenas foi usado para o vinho das castas autorizadas, nomeadamente as de tinta negra mole. De acordo com a tradição, a estufa é entendida como o resultado de um feliz acaso que terá surgido numa conjuntura favorável ao escoamento rápido do vinho, que adveio com as guerras napoleónicas, com o consequente esgotamento dos stocks, criando a necessidade de um trato rápido dos vinhos novos para satisfazer as encomendas do mercado, apenas possível com as estufas. Em todo o caso, é certo que os madeirenses não desconheciam o sistema de tratamento pelo calor já usado pelos antigos; os Gregos e os Romanos tinham conhecimento da ação do calor dos porões dos barcos e dele se serviram para o trato dos vinhos, tal como refere Plínio, entre outros. Na Madeira, a prática parece ser tardia. A primeira informação de que dispomos data de 1550 e refere a despesa de dois vinténs feita pela Misericórdia de Machico relativamente à lenha para cozer o vinho. Não se sabe, na verdade, a que se reporta esta situação específica: poderá ser referente ao fabrico de aguardente. A tradição alega que a primeira estufa terá sido construída por Pantaleão Fernandes em 1794, mas a primeira referência documental a tais estruturas é de 1730. Foi a partir da década final do séc. XVIII que as estufas e o processo de vinificação com o seu uso se generalizaram. Mas, antes do aparecimento das estufas, existiu o chamado vinho de sol. A referência mais antiga ao processo de tratamento do vinho mediante a exposição solar surge em 1687. De acordo com H. Sloane, o vinho beneficiava com a exposição ao sol: “[…]tem a propriedade curiosa, muito especial de se tornar melhor quanto mais exposto estiver ao sol e ao calor. Assim, em vez de o levarem para uma adega fresca expõem-no ao sol e ao calor” (Id., Ibid., 236). A mesma constatação foi assumida por John Ovington que, em 1689, referia: “O vinho Madeira tem a qualidade muito peculiar de, quando está a fermentar, ser melhorado pelo calor do sol se o batoque for desviado da abertura da pipa e, desta madeira, o vinho ficar exposto ao ar” (Id., Ibid., 237).  A solução para acelerar o processo de vinificação e de envelhecimento representava uma maior economia de tempo e de custos, permitindo colocar, em cerca de três meses, à disposição do cliente, um vinho prematuramente envelhecido com propriedades semelhantes ao que tinha estagiado cinco anos no casco. O uso das estufas generalizou-se. Era vulgar ver-se as pipas jacentes nos fornos de pão da cidade, ou simplesmente ao sol. Mas o vinho estufado, para além de ter gerado uma acesa polémica em princípios do séc. XIX, não mereceu a mesma referência por parte dos consumidores. O vinho da roda, aquele que seguia nas pipas, ao sol, a bordo dos navios que faziam o percurso de ida e volta ao Pacífico, com duas passagens pelo calor tórrido dos trópicos, era considerado diferente; para muitos, este tratamento tinha o condão de melhorar as qualidades organoléticas sem o degradar, o que não sucedia, com o vinho estufado. Em 1818, a própria Junta deu o exemplo desta prática do vinho da roda, ao carregar 50 pipas no brigue-escuna Mariado do Cap. José A. Martim de Sá, tendo-se dado ordem de embarque a 21 de abril. Em aviso ao deputado-escrivão da Junta de Cabo Verde, informou-se sobre a remessa de vinho que deveria “envelhecer e depois ser dado o destino que S. M. desejar, recomendando o cuidado e vigilância de sua existência, de maneira que receba o muito calor possível de Verão futuro e não haja extravio”. Noutro aviso a J. de Araújo Barros, em Cabo Verde, dá-se conta de outra remessa com o fim de se colocarem os vinhos nessa ilha e de eventualmente regressarem à Madeira, depois de passado o verão: “[...] lhe rogo o maior desvelo e cuidado na boa guarda e vigilância do dito vinho a fim de que não haja extravio casual nem voluntário e obtenha aquele grau de melhora que se espera” (Id., Ibid., 231). Nos registos de embarque de vinho de entre 1823 e 1830, assinala-se a presença do vinho da roda que, durante a fase a fase em que esta prática foi permitida, atingiu grandes proporções. Em 1823, saíram 1650 pipas e, em 1824, 366. Aqui, destacaram-se os comerciantes ingleses John Howard March & Ca. e Philip Noailles Searle, e também alguns portugueses das casas madeirenses mais importantes, como Monteiros & Ca., Luís de Ornelas Vasconcelos, e João Oliveira & Ca. Em 1826, a prática de embarque de vinhos para envelhecer havia-se generalizado e todo o vinho de roda era reembolsado dos direitos pagos à saída ou levantava fiança até ao retorno. Em 21 de fevereiro, Philip Noailles Searle solicitou o desconto dos direitos de 3 quartos e 10 meias quartolas de vinho de roda, autorizado em 8 de junho de 1825. Um ano depois, a generalização e a prática causou graves incómodos à administração da Alfândega, pelo que se determinou o seu embargo. A Junta da Real Fazenda, reconhecendo os percalços que a situação causava à arrecadação dos direitos, decidiu colocar um fim em tal prática. Daqui resultou a perda de importância do vinho da roda na Ilha e a sua consequente valorização no mercado britânico, onde as pipas da roda passaram a afluir com uma maior assiduidade. Ficou célebre, entre os apreciadores, o vinho que o cônsul inglês H. Veitch ofereceu, em 1815, a Napoleão Bonaparte, aquando da sua passagem pelo Funchal com destino ao exílio de Santa Helena. O antigo Imperador não bebeu o vinho e este regressou à Ilha, onde foi engarrafado a partir de 1840, com o título de Battle of Waterloo. Winston Churchill, de visita à Ilha em 1950, foi um dos poucos contemplados com uma garrafa. Em 1992, recriou-se a referida rota e a técnica de envelhecimento com o embarque de 600 l de Boal a bordo do veleiro Kaisei, que participou na regata Colombo 1992. Nem todos reconheceram o vinho da roda e as estufas como meios adequados ao processo de vinificação e de envelhecimento do vinho. Instalou-se o debate e, por vezes, a confusão. O Gov. José Manuel da Câmara, por editais de 23 de agosto de 1802 e de 6 de novembro de 1803, proibiu o funcionamento das estufas por serem prejudiciais à boa reputação dos vinhos. Mas, em face da reação da maioria dos comerciantes nacionais e estrangeiros da Região e do Senado da Câmara, foi obrigado, em 14 de fevereiro de 1804, a oficiar ao conde de Anadia, referindo o sucedido e a pretensão dos locais para que fosse levantada a suspensão de modo a poderem aviar as encomendas. Em representação dos comerciantes locais, pedindo a revogação, dizia-se que: “São três, os pontos principais, que servem de matéria para se atacar a existência, continuação e conservação das estufas. Eles abrangem diversos argumentos, que serão todos destruídos. O primeiro é o descrédito dos vinhos resultantes do benefício artificial, que se lhes quer fazer por meio das estufas. O segundo, o perigo iminente e continuado dos incêndios, em consequência dos fogos mais violentos e aturados, com que se trabalhavam as estufas. O terceiro, o prejuízo grave dos fumos, que originam de arder carvão de pedra, que dizem, atacam, alteram, e incomodam a saúde dos povos” (Id., Ibid., 250). Por ordem régia de 7 de maio do mesmo ano, foi expedido um aviso para ser levantada a proibição. Na verdade, o perigo de incêndios era uma constante, sendo de assinalar os incêndios de 1846 e de 1898. A polémica estava definitivamente instalada. O próprio Senado da Câmara, cuja composição, aliás heterogénea, mudava com assiduidade, assumiu posições contraditórias. Os que comungavam da opinião desfavorável sobre o novo processo de estufagem destacavam que as estufas estavam na origem da decadência da fama e do comércio do vinho, sendo, igualmente, prejudiciais à preservação das suas propriedades, retirando-lhe as qualidades balsâmicas ou alterando-lhe o sabor, e atribuindo-lhe um gosto torrado, queimado e muito desagradável. Em oposição, tivemos a opinião dos que pugnavam pela qualidade do vinho estufado, destacando que a medida era útil e barata para o trato e a rapidez de escoamento do vinho para os centros consumidores. Assim o referem os comerciantes locais, em 1804: “Granjeou o comerciante o fruto preciso dos seus cuidados, dos seus cálculos, e da sua bem atendida vigilância, pois que com o novo método de melhorar, e adiantar os seus vinhos de 5 a 6 meses apronta toda a quantidade de vinho, que é preciso para os seus embarques, não sendo obrigados a esperar o espaço seguro de 4 a 5 anos”. Ainda em 1834, a Câmara do Funchal desfez as acusações que apontavam as estufas como a causa primeira da ruína do comércio local, apresentando o efeito benéfico e incentivador que representavam para o comércio: “Ora devendo-se considerar a invenção das estufas como admirável processo por meio do qual se melhora rapidamente a qualidade dos vinhos, apressando sua maturação, ao mesmo passo que se evitam grandes embates de capital; e sendo este aliás o único método que nos pode habilitar a competir com os vinhos de outras nações nos quais a cultura dos vinhos é mui pouco dispendiosa [...]”(Id., Ibid., 238). Em 1819, a opinião da Câmara era diferente. Em representação à Junta de Melhoramento, deu a conhecer a quebra do vinho no mercado exportador, como consequência da perda de qualidade resultante do uso generalizado das estufas, “que degradando o vinho das suas virtudes essenciais, só lhe dão o cheiro postiço e uma aparência de bondade momentânea, tudo o que era sumo de parreira sem seleção alguma se preparava para o embarque. O que abertos, com a paz, os diques da guerra, os mercados se inundaram de vinhos; já o nosso deixou de servir a necessidade e parto ordinário, contrariando o seu consumo as mesas de luxo aonde o capricho e delicadeza faz aparecer algumas boteilhas de vinho Madeira”. O vinho estufado foi rejeitado pelo mercado e as estufas passaram a ser consideradas prejudiciais, estando na origem da decadência e do descrédito. “São as estufas, pois sabe-se pela experiência que tiram ao vinho as partes balcânicas, de sorte que em muitas praças já os médicos o não aplicam a certas moléstias em que tinham cura feliz e um desse conte desagradável, causa sede e dores de cabeça, sem beneficiar a digestão, de maneira que na terra se não faz uso desta bebida” (Id., Ibid., 250). Daqui resulta a necessidade de interdição ou de regulamentação do uso da estufagem no trato do vinho para que os donos fossem obrigados a manter o cozimento por 10 meses. Idêntica petição surgiu em 1821, clamando-se contra as “pérfidas estufas”. Os comerciantes, em 1834, reiteraram as afirmações de 1803 e, mais uma vez, manifestaram-se contra o decreto que introduziu o imposto sobre as estufas. Ao mesmo tempo, desfazia-se a argumentação que afirmava que as estufas seriam a causa da decadência do vinho, pois, fora da Ilha, também se estufava o vinho e tal não sucedia: “As ilhas dos Açores, Canárias e Cabo da Boa Esperança, têm estufas e estas livres de todo o tributo, ora se os vinhos estufados tivessem perdido o crédito decerto ali não haveria. Em todos países onde há vinhos está a exportação deles livre e livres de impostos todos aqueles que por meio da sua indústria promovem o consumo deles” (Id., Ibid., 250). Em meados do século, com o agudizar da crise, reacendeu-se a questão das estufas na imprensa local. Nas páginas do Correio da Madeira, afirmava-se, em 1851: “O vinho bom não carece de estufa, logo as estufas só servem para o ordinário, que se deve fazer para aguardente e consumir nas tabernas [...]. É uma calamidade pública esta funesta descoberta, que fazendo exportar o vinho mau, deixa o bom e óptimo estagnado, arruinando o nosso crédito”. Contra esta opinião manifestou-se um leitor, anotando que a origem da crise emanava da Pauta Aduaneira. Quanto às estufas, referia que era uma questão de prática, pois o que estava mal eram os abusos praticados, ou seja “o estufar o vinho ruim que deve ir para o alambique e só para o alambique, o envasilhar o vinho em pipas não avinhadas, o meter vinho em estufa forte de 3 meses, o embarcar o vinho antes de passar o tempo que é mister esta sobre o canteiro” (Id., Ibid., 251), uma vez que a uma estufagem bem feita deveriam seguir-se dois anos de descanso no canteiro para o vinho adquirir o aroma. João da Câmara Leme tinha uma opinião semelhante, acabando por estabelecer um novo processo de tratamento, conhecido como o método de canavial, um sistema eficaz e capaz de manter as qualidades do vinho. Eduardo Grande, em 1865, no relatório sobre a situação da Ilha após a crise de 1852, salientou que a crise não se deveu única e exclusivamente à moléstia da vinha, apresentando subjacentemente o dedo acusador às estufas. No Funchal, o principal centro vinícola da Ilha, procedia-se ao tratamento do vinho por meio das estufas. O sistema de tratamento pelas estufas generalizou-se a partir de finais do séc. XIX. As estufas distribuíam-se indiscriminadamente por toda a cidade, situando-se nos terrenos anexos às adegas, na área circunvizinha do cabrestante. O processo de estufagem tinha lugar em edifícios construídos para tal, ou em cima dos fornos de cal ou de cozer pão. Em 1861, a estufa existente na R. dos Moinhos foi demolida por não ter conseguido melhorar o vinho. Para o período entre 1739 e 1872, assinala-se o uso de um forno de cal à R. do Hospital Velho e de 12 fornos de cozer pão, com idênticas funções, nas ruas do Aljube, da Ponte Nova, da Sé, das Queimadas, dos Ingleses, do Capitão, da Bela Vista, do Castanheiro, dos Pintos, Nova de Santa Maria, do Esmeraldo, e no Lg. da Sé. Por editais de 23 de agosto de 1802 e de 6 de novembro de 1803, proibiu-se a construção de estufas no recinto da cidade, tendo o juiz do povo argumentado sobre os inconvenientes que daí advinham para a saúde pública, devido ao fumo e ao constante perigo de incêndio no período de laboração. Os comerciantes da praça do Funchal manifestaram-se contra, alegando os prejuízos referentes à deslocação das estufas para os subúrbios da cidade e contrariando os argumentos infundados do referido juiz do povo; o seu intento acabou por vencer. Na realidade, como referiam, só tinham existido, até 1803, três ameaços e apenas um incêndio na estufa de Phelps Page & Ca., em 29 de outubro de 1806. As estufas deste último foram alvo de um novo incêndio na noite de 10 para 11 de novembro de 1846, mas as perdas foram apenas nas instalações, uma vez que se conseguiu salvar o vinho. Depois disso, só existem referências a três incêndios na última década da centúria: a 20 de janeiro de 1894, o fogo devorou a estufa da firma de vinhos Araújo & Henriques, seguindo-se, a 15 de dezembro de 1898, outro incêndio na estufa do conde de Canavial, na R. 5 de Julho, onde estavam mais de 100 pipas de diversos proprietários; o último incêndio noticiado sucedeu a 11 de julho de 1900 num prédio da R. do Esmeraldo, propriedade dos herdeiros de Júlio Henriques de Freitas, que tinha no primeiro andar uma estufa com 49 pipas, que se salvaram. Tendo em consideração que estas estufas podiam laborar até seis meses, o gasto em lenhas era elevado, criando, certamente, dificuldades no seu abastecimento na cidade. Desta forma, em 27 de abril de 1835, surgiu a notícia de uma reclamação ao perfeito, reivindicando a substituição das lenhas pelo carvão. Esta medida não se concretizou, uma vez que, em 1919, apareceram anúncios nos jornais relativamente à venda de lenhas para queimar nas fornalhas das estufas. Assim, em 1919, foram anunciados serviços de venda de lenhas para cozinhas, estufas e engenhos em armazéns no Campo da Barca e no Calhau. Se as estufas não eram um perigo para a saúde e a segurança públicas, tornavam-se, no entanto, prejudiciais à pouca salubridade do burgo oitocentista, atingindo o centro do mesmo e as ruas de maior movimento em redor do porto do Funchal. Assim acontecia na área da Sé do Funchal, próxima da Alfândega e do cabrestante, onde, entre 1809 e 1834, laboraram as estufas de Gordon Duff & Ca., respetivamente no beco do Assucar e na R. do Esmeraldo. Aliás, considerando que a freguesia da Sé se situava na área central da cidade, surgirá uma ideia clara da implantação, pois entre 1839 e 1840 existiam 15 estufas, a que se seguiram 9 na freguesia de S. Pedro, denotando uma forte concentração na área circunvizinha da Alfândega e do porto do Funchal, concentração que, em parte, se justifica com base no objetivo de se conseguir um fácil transporte do vinho de embarque. De notar, entre 1839 e 1840, a também elevada concentração de estufas no beco dos Aranhas (4 e 5) e em S. Paulo (3 e 1), uma área ribeirinha ao mar pelo lado da Pontinha e sobranceira à ribeira de S. João. No termo da cidade, as estufas localizavam-se em Santa Luzia, em Caminho da Torrinha, em Torreão e, em Santa Maria Maior, na R. dos Balcões, na R. Bela de Santiago e na Rochinha. Fora da área do Funchal, encontravam-se apenas duas em Santa Cruz, em 1840, uma em S. Fernando, de Joaquim Telles de Menezes, e outra na R. Direita, de Augusto César de Oliveira. Entre 1805 e 1816, notava-se uma estabilização no número de estufas: era uma altura de medidas proibitivas e de discussão contrária à implantação e à utilidade daquelas. Passado este período, o número estabilizou-se, a que se seguiu, depois de solucionada a crise, um forte impulso entre 1817 e 1829. A década de 30 foi marcada por uma queda, que se acentua a partir de 1832. O período que decorreu entre 1834 e 1844 foi de certa estabilidade no número de estufas em laboração, apenas se notando um salto isolado em 1839. Desde 1845, a tendência era para subir, atingindo-se, em 1851, o número máximo de estufas (42); mas a situação vivida a partir de 1851 inverteu o processo, que se acentuou a partir de 1860. O primeiro dado surgiu num momento em que a discussão em torno das estufas se havia atenuado, estando a própria Câmara do Funchal de acordo com a sua utilização; mas, em 1851, o assunto volta a ser objeto de intensa discussão. Depois disto, só existem dados sobre as estufas em relação ao ano de 1905, em que estão contabilizadas 35, sendo 1 mista de fogo e sol, e 7 de sol. A crise do comércio do vinho ocorrida em finais do séc. XIX contribuiu para o lento desaparecimento do número de estufas, tal como vinha sucedendo com as empresas do sector. No entanto, a tradição de estufar o vinho não se perdeu, passando a fazer parte do processo de vinificação. Nota-se que esta é uma característica do processo de vinificação que só acontece com o vinho Madeira, podendo ser considerado um processo de criação regional. João da Câmara Leme, especialista em assuntos enológicos, teve oportunidade de, em França, entrar em contacto com os sistemas de aquecimento usados desde o primeiro quartel do séc. XIX, nomeadamente com os sistemas em vaso fechado concebidos por Appert, Ervais, Verguette, Cemotte e Pasteur. De regresso à Madeira, foi confrontado com o processo de estufagem em uso, notando que o “sistema de aquecimento lento com comunicação com ar ambiente” dava ao vinho um “sabor torrado de queimado muito desagradável”, ao mesmo tempo que lhe retirava as propriedades essenciais: “Um sistema que priva os vinhos novos das suas melhores qualidades naturais e lhes introduz efeitos persistentes; que lhes tira o açúcar, álcool, óleos essenciais, e lhes introduz, um sabor desagradável que o carvão vegetal empregado lhes não pode nunca tirar de tudo, e que os impede de adquirir a finura tão assinalada nos antigos vinhos de canteiro. Na destilação do vinho de garapa despreza-se o vinhão e guardam-se líquidos alcoólicos, éteres, e sais e guarda-se o vinhão” (Id., Ibid., 241). Perante a constatação, houve que tomar providências, optando-se por um sistema de aquecimento em vaso fechado, segundo o método de Pasteur, conhecido por pasteurização. Feitas as devidas experiências, João da Câmara Leme concluiu “que o gosto de novo desaparecia muito pouco para que o vinho Madeira pudesse ser embarcado em pouco tempo como vinho mais velho, e que os seus outros caracteres não tinham suficientemente melhorado”. Em 1889, ao fim de seis anos de estudo e 10 anos de ensaios e de experiências, estabeleceu um sistema de aquecimento e de afinamento dos vinhos que tomou o nome de sistema canavial. Adotava o novo método de aquecimento rápido e arrefecimento lento em recipiente fechado. Assim, “o vinho que vai ser aquecido entra, depois de medido, num reservatório superiormente disposto, donde desce, pelo seu próprio peso, por um cano de estanho, […] continuando depois a descer, sem encontrar nada no caminho que lhe apresse o aperfeiçoamento; e chegando finalmente, depois de ter marcado num termómetro a uma temperatura adquirida, ao fundo da mesma pipa d’onde sairá pouco antes, e cuja boca, disposta de modo a impedir perda de vapores, é fechada logo que termina a operação” (Id., Ibid., 242). O autor do sistema anota que, com este processo, o vinho não perde qualquer nível do teor alcoólico e apresenta melhorias; que não há indícios de presença de enxofre e tem um aroma muito agradável, o que significa que o processo permite um notável melhoramento da qualidade do vinho. A singularidade do processo assenta no facto de se tratar de um sistema estar hermeticamente fechado, no qual “cinco fornalhas introduzem ar quente em canos que dão três voltas nas estâncias; e que são guarnecidos de chapas de ferro para facilitarem a transmissão do calor, sempre bem regulado e facilmente observado por termómetros que se podem bem ler de fora”. Daqui resulta que “o vinho assim aquecido e afinado conserva todas as qualidades naturais, apresenta qualidades próprias do vinho de canteiro que tem cinco ou seis anos e uma notável finura muito apreciável; sem apresentar nenhum mau sabor, nem defeito algum, sendo convenientemente tratado, pode logo ser lotado com outros vinhos aquecidos e conservados livres de fermentos, e mesmo ser embarcado, sem risco de se alterar, e com grande economia de álcool” (Id., Ibid., 243). O método era considerado o único processo de tratamento por estufa que animava a qualidade do vinho fazendo-o adquirir características e qualidades próprias, podendo rivalizar com os melhores vinhos de canteiro, ou seja, os vinhos que não passavam pelas estufas, envelhecendo em pipas nos chamados canteiros, os assentos do vasilhame. O vinho canavial era normalmente preparado com o boal, apresentado as seguintes propriedades: digestivo, antisséptico, medicinal e alimentício. Assim, no primeiro quartel do séc. XX, a imprensa funchalense, através de anúncios que publicitavam a sua atividade, referia dois sistemas distintos de estufagem: o canavial e o de Pasteur. O sistema canavial foi iniciado por João da Câmara Leme e foi seu privilégio durante 15 anos, sendo usado em várias estufas. Estas ofereciam aos interessados os serviços de aquecimento e de afinamento dos vinhos. O aquecimento de uma pipa de vinho ficava por apenas 1$200, enquanto o afinamento por 3 meses era de 4$500, custando 6$000 o período de 6 meses. De acordo com anúncio que publicitava o sistema de Pasteur, encontrado nas estufas das ruas 5 de Junho e dos Aranhas, o custo era de 1$500 por pipa, sendo a quebra do volume do vinho baixa e implicando, para uma pipa, a poupança de 12.000 reis a 15.000 reis. Entre 1888 e 1920, verificaram-se diversos anúncios na imprensa que publicitaram o serviço de estufagem em que os serviços disponibilizados para o efeito eram de 3, 4 e 6 meses. Mas também surgiram anúncios sobre a liquidação de três estufas de vinho, o que poderá sugerir uma crise no sistema, por força dos constrangimentos do mercado. Muito antes de João da Câmara Leme, já tinha surgido uma notícia sobre outro invento de estufagem. O novo método adequava-se aos vinhos, “comunicando-lhes o calor internamente” e tornando-os “vermelhos em pouco tempo” (Id., Ibid., 243). Tudo indica que tal processo tenha sido uma importação francesa de Severiano Ferraz, uma vez que foi a França várias vezes, donde trouxe alambiques de destilação contínua, tendo travado contacto com as inovações da técnica francesa de destilação e de aquecimento do vinho. Em 1917, sabe-se que Salomão Veiga França (1893-19??) registou a patente de um aparelho de aquecimento de vinho, mas não temos qualquer informação sobre o mesmo e se funcionou. No período entre 1806 e 1872, através da documentação disponível, podemos acompanhar o número de pipas de vinho submetidas ao tratamento de estufagem por ambos os sistemas. A primeira conclusão possível é a de que até meados do século era reduzido o número de pipas de vinho estufado, quando comparado com os valores da produção e da exportação. A estufagem só se generalizou a partir da década de 50 no processo de vinificação do vinho Madeira. O período que decorreu entre 1856 e 1865 pode ser considerado um momento crítico. A crise do oídio refletiu-se nas produções e nas exportações, fazendo com que a oferta de vinhos já estufados fosse muito inferior à colheita e à procura. Isto poderá ser a prova da existência, em armazém, de elevados stocks de vinho de colheitas anteriores. As estufas, na verdade, não morreram, apenas foram aperfeiçoadas com o tempo. Os mecanismos a vapor e a moderna tecnologia elétrica substituíram as fornalhas de lenha, propiciando uma temperatura constante de 45 a 50 ºC por um período de três meses. No início do séc XXI, o sistema de canteiro convive de modo cordial com o das estufas; ambos persistem e são usados pelas empresas de acordo com o tipo de vinhos que se pretende fazer. Os chamados vinhos novos de cinco anos são quase sempre de estufa, enquanto os demais são de canteiro. Apenas uma empresa, Artur Barros & Sousa Lda., continua fiel à tradição do sistema de canteiro em todos os vinhos que comercializa. De acordo com a legislação em vigor nesta época, o vinho deverá manter-se nos recipientes a uma temperatura constante até 55º C, por um prazo de 90 dias. Anteriormente, o vinho sofria uma evaporação de cerca de 15 %, mas, com a nova tecnologia, as perdas tornaram-se reduzidas. A disponibilização no mercado só poderá acontecer após dois anos de estágio no canteiro. Nesta altura, a Madeira Wine Company Lda. dispõe, nas suas instalações, ao Lg. Severiano Ferraz, de dois tipos de estufas tradicionais: a estufa de cimento e a de madeira, usando, ali e na R. de S. Francisco, o chamado sistema de armazém de calor. Nas demais empresas, usam-se estufas modernas, com sistemas que permitem um melhor controlo de calor.   Alberto Vieira (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social

economia

A definição da economia da Madeira convoca vários aspectos, desde o seu espaço e posicionamento no processo histórico peninsular e atlântico à preocupação das autoridades no sentido de assegurar a riqueza que torna sustentável a manutenção do espaço e da população. Teoria: os ciclos A primeira questão a merecer a nossa atenção prende-se com a tão celebrada teoria dos ciclos económicos da Madeira. De acordo com os seus arautos, o processo económico da Madeira articula-se de acordo com uma afirmação cíclica de produtos. Todavia, esta teoria, que teve o seu apogeu nas décs. de 50 e 60 do séc. XX, deixou de ter adeptos nos começos do séc. XXI. As suas bases foram lançadas em 1929 com Lúcio de Azevedo, sendo a teoria reforçada 20 anos depois com Fernand Braudel, conquistando grande adesão na historiografia brasileira. Ambos argumentam que o processo económico das ilhas se articulou de acordo com o regime produtivo de monocultura. Ainda em 1949, Orlando Ribeiro esclarecia que, no caso da Madeira, não era possível encontrar rastros de monocultura no regime de exploração agrícola madeirense, mas Joel Serrão, em 1950, insistia em definir o “ciclo dos cereais”. A mesma opinião também surgiu nas Canárias, onde, volvidos 20 anos, Elias Serra Rafols respondia a Francisco Morales Lezcano, enunciando que nunca existiu um regime de monocultura, uma vez que a economia canária foi dominada por uma variedade de culturas cuja atuação não é uniforme no tempo e no espaço. Mais tarde, Frédéric Mauro, secundado por Vitorino Magalhães Godinho, retomou a questão, defendendo que a economia insular se definiu apenas por um regime de produtos dominantes e não de monocultura. Vitorino Godinho introduziu, neste contexto, um novo conceito operatório: complexo histórico-geográfico. Na Madeira, a ideia vingou sobretudo junto de historiadores e eruditos, sendo difícil encontrar esta ideia expressa em qualquer análise de carácter económico. Ficou assim assente o ciclo dos cereais, do açúcar ou ouro branco, do vinho, do turismo, da banana e, certamente, da autonomia. A partir de 1979, esta forma de ver a história chegou à Madeira através da análise da história da arte e urbanismo da cidade, surgindo pela pena de António Aragão a ideia de que a cidade teve dois momentos distintos que definiram diversas formas de concretização artística e urbanística: a cidade do açúcar e a cidade do vinho. O impacto que o livro de António Aragão teve no meio académico e no público interessado levou a que a ideia acabasse por vingar. Uma análise aturada da economia insular mostra-nos que a mesma não se regeu por princípios exclusivistas, de acordo com a premência das solicitações externas. Pelo contrário, o seu desenvolvimento socioeconómico processou-se de forma variada, sendo a exploração económica dominada pela procura externa em consonância com as condições e recursos do meio, e com as solicitações da economia de subsistência. É difícil, se não impossível, conseguir definir um ciclo em que impere a monocultura de exportação num espaço amplo e multifacetado como é o do mundo insular. Os modelos, embora perfeitamente delineados, não se ajustam à realidade socioeconómica, que é extremamente variada e enriquecida com múltiplos matizes. Embora alguns produtos, como o trigo, o açúcar, o vinho e o pastel, surjam em épocas e ilhas diferenciadas como os mais importantes e definidores das trocas externas, não são os únicos na economia insular. Na verdade, a dominância destes produtos sucede apenas no sector da exportação e nunca na realidade global da Ilha, onde por vezes outros são mais dominantes enquanto fonte de riqueza familiar e de subsistência. Os ciclos de monocultivo são apenas a parte visível das exportações, pelo que limitar a análise económica a essa dinâmica é uma atitude reducionista que apenas reconhece a importância dos produtos com maior peso nas exportações. A Madeira é um microcosmo definido pela variedade de espaços ecológicos que não se compadecem com uma unicidade agrícola. Esta condição dominante levou a uma sistematização do devir socioeconómico em ciclos. A documentação é unânime na afirmação de que o empenho do ilhéu não se resume apenas ao produto que mais gira nas relações com o exterior. Há em todos uma certa preocupação com a autossuficiência que milita a favor da manutenção das culturas tradicionais que medram, lado a lado, com as dominantes no comércio externo. Esta polivalência produtiva manteve-se sempre no devir socioeconómico insular. A dominância de um ou de outro produto nas relações com o exterior não destrói essa polissemia produtiva, nem retira o empenho das gentes laboriosas nesse processo. Atesta-o as posturas municipais, nas quais, nos diversos sectores económicos, se expressa uma diversidade de interesses e o movimento quotidiano de produtos. Em todas as dinâmicas produtivas e comerciais que marcaram e definiram o processo histórico madeirense é gritante a extrema dependência da Ilha em relação ao exterior. A Europa detém, neste contexto, uma posição dominante, firmando-se como centro de orientações políticas e económicas. Essa situação comum ao mundo insular define uma das principais peculiaridades deste espaço: a extrema fragilidade e dependência da sua economia em relação ao velho continente. Para isso, em muito contribuiu a posição hegemónica das cidades-capitais dos impérios peninsulares, bem como a disponibilidade de recursos e meios das sociedades insulares. Por outro lado, é evidente que a afirmação de um produto no sector das exportações não é possível sem um sistema de policultura, principalmente em universos restritos como as ilhas. Assim, os canaviais subsistem se for possível assegurar um vasto hinterland de culturas de subsistência. Deste modo, os ciclos serão a visão mais deformada do processo económico da Ilha, a caricatura de uma realidade que é muito complexa. Entender a economia das ilhas e a sua história é, assim, reconhecer um estatuto diferenciado a estes espaços económicos. Nas ilhas, domina a diversidade geoeconómica, fruto da configuração geográfica. Na Madeira, esta situação provoca um escalonamento de culturas, impedindo a sua sobreposição. O espaço e os seus produtos O estudo e entendimento da história económica da Madeira só podem ter lugar no quadro do espaço atlântico criado pelo europeu a partir de princípios do séc. XV. A partir dessa altura, o Atlântico definiu-se como um espaço excecional dos impérios europeus, no qual as ilhas assumem uma função privilegiada no cruzamento de rotas, bem como na circulação de pessoas e produtos. A ilha foi, assim, um dos primeiros exemplos da afirmação económica europeia além das fronteiras peninsulares e a primeira demonstração do que viria a ser o mercado atlântico, materializando de forma clara as solicitações do velho continente e as esperanças e descobertas do Novo Mundo. O Atlântico tornou-se uma realidade de análise historiográfica a partir da déc. de 40 do séc. XX, sendo o exemplo dado pela historiografia norte-americana, preocupada em rastrear as origens europeias. O conceito de espaço atlântico começou a ser definido em 1947 com Louis Wright, mas terá sido o Mediterrâneo de F. Braudel que convocou a atenção a partir da déc. de 50. Os finais do séc. XX foram o momento de afirmação da historiografia atlântica. De ambos os lados do Atlântico, surgiram trabalhos em que este se constituiu como o objeto principal. No séc. XX, a história das ilhas atlânticas mereceu um tratamento preferencial no âmbito da história do Atlântico. Primeiro foram os investigadores europeus, como o já referido F. Braudel, Pierre Chaunu, Frédéric Mauro e Charles Verlinden, a destacar a importância do espaço insular no contexto da expansão europeia. Só depois surgiu a historiografia nacional a corroborar a ideia e a equacioná-la nas dinâmicas da expansão insular, sendo pioneiros os trabalhos de Francisco Morales Padron e Vitorino Magalhães Godinho. Esta ambiência condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas décadas do séc. XX e contribuiu para a abertura do conhecimento histórico às novas teorias e orientações. As décs. de 70 e 80 desse século foram importantes momentos no progresso da investigação e do saber históricos, contribuindo para tal a definição de estruturas institucionais e de iniciativas científicas. A historiografia foi defendendo única e exclusivamente a vinculação das ilhas ao Velho Mundo, realçando apenas a importância desta relação umbilical com a mãe-pátria. Os sécs. XV e XVI seriam definidos como os momentos áureos de tal relacionamento, enquanto a conjuntura setecentista seria a expressão da viragem para o Novo Mundo, em que produtos como o vinho assumem o papel de protagonistas das trocas comerciais. Os estudos confirmam que o relacionamento da Ilha com o exterior não se resumia apenas a estas situações. À margem das importantes vias e mercados, subsistem outros fatores que ativaram também a economia madeirense desde o séc. XV. As conexões com os arquipélagos próximos (Açores e Canárias) e com os afastados (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) foram já motivo de aprofundada explanação, que propiciou a valorização da estrutura comercial. A praça comercial madeirense foi protagonista de outros destinos no litoral africano e no litoral americano, e rosário de ilhas da América Central. No primeiro destino, destaca-se a costa marroquina, onde os Portugueses assentaram algumas praças, defendidas, a ferro e fogo, pelos ilhéus. No séc. XVI, com a paulatina afirmação do novo mundo americano costeiro e insular, surge um novo destino e mercado, que pautou as relações nas centúrias posteriores. O novo mundo e mercado significaram tanto a esperança de enriquecimento, como a forma de assegurar a posse de bens fundiários. O Atlântico não é só uma imensa massa de água polvilhada de ilhas, associando-se a uma larga tradição histórica que remonta à Antiguidade, donde resultou o seu nome. Assim, deparamo-nos com um conjunto polifacetado de ilhas e arquipélagos que se tornaram relevantes no processo histórico do oceano, quase sempre como intermediários entre o mar-alto e os portos litorais dos continentes europeu, africano e americano. No Atlântico, as ilhas anicham-se, de um modo geral, junto da costa dos continentes africano e americano, pois apenas os Açores, Santa Helena, Ascensão e o grupo de Tristão da Cunha se distanciam. As ilhas foram também espaços criadores de riqueza, sendo a agricultura a principal aposta. Esta exploração obedeceu às exigências da subsistência das populações e às solicitações do mercado externo face aos produtos de exportação. A valorização socioeconómica dos espaços insulares não foi unilinear, dependendo da confluência de dois fatores: primeiro, dos rumos da expansão atlântica e dos níveis de expressão em cada um; depois, das condições propiciadoras de cada ilha ou arquipélago em termos físicos, de habitabilidade ou da existência ou não de uma população autóctone. Nos sécs. XV e XVI, as ilhas e os arquipélagos firmaram um lugar de relevo na economia atlântica, distinguindo-se pela função de escala económica ou mista: com a função de escala, surgem as ilhas de Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha; como espaço económico, temos as Antilhas e a Madeira; e com a dupla função, económica e de escala, os arquipélagos das Canárias, dos Açores, de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe. O papel da cana sacarina, ao contrário do que sucedeu com os demais produtos e culturas (como a vinha e os cereais), não se resumiu apenas à intervenção no processo económico, sendo este produto marcado por evidentes especificidades capazes de moldarem a sociedade, que dele se serviu para firmar a sua dimensão económica. A importância que o sector comercial lhe atribuiu transformou-a numa cultura dominante em todo (ou quase todo) o espaço agrícola disponível, capaz também de estabelecer os contornos de uma nova realidade social. Foi precisamente esta tendência que levou a historiografia a definir o período da afirmação deste produto como o “ciclo do açúcar”. A omnipresença da cultura e as múltiplas implicações que gerou nos espaços em que foi cultivada levaram alguns investigadores a estabelecer um novo modelo de análise: os ciclos de produção assentes na monocultura. Deste modo, o ciclo do açúcar resultava, não da exclusiva afirmação da cultura, mas da sua dominância ou hegemonia no sistema de trocas. Neste contexto, a grande aposta das autoridades assentou na definição de um regime de policultura capaz de garantir uma estabilidade económica à principal riqueza da Ilha, que continuava a ser a exploração agrícola. Primeiro, procurava-se assegurar o necessário equilíbrio entre as culturas de subsistência e de mercado, de forma que as primeiras pudessem suprir o mais possível as necessidades das populações. Depois, no quadro das culturas de exportação, promoveu-se uma diversificação, de acordo com as solicitações do mercado. Desde o Gov. José Silvestre Ribeiro, com a grande exposição industrial no palácio de S. Lourenço, em 1850, que se vinha apostando na criação ou incentivo de indústrias artesanais com potencialidades económicas nas exportações. Assim, assistiu-se à aposta nos bordados, nas obras de vimes, nos laticínios e nas conservas de peixe. O dealbar do séc. XX foi fértil no aparecimento de pequenas unidades industriais para suprir as carências da Ilha. Temos, assim, as fábricas de velas de estearina, de pregos, adubos químicos, tintas, telha de cimento, bolachas e biscoitos, massas alimentícias e bebidas. Perante este quadro, Fernando Augusto da Silva afirmava, em 1921, que, embora a Madeira fosse uma região mais agrícola que industrial, indústrias havia que se podiam considerar vigorosas e outras que prometiam vantagens, sendo já mais ou menos lucrativas. Este fenómeno era também gerador de novos empregos, sendo os trabalhadores recrutados entre a mão de obra rural, o que pode ser considerado o princípio de uma das vias que, conjuntamente com a emigração, está na origem do êxodo rural que se consolidará com a Segunda Guerra Mundial. Os primeiros resultados da política de diversificação e culturas começaram a surgir de imediato. Desde 1938, a Ilha produzia excedentes que exportava para o continente português e para alguns países europeus, como Inglaterra, Irlanda, Bélgica, Alemanha e Itália, bem como para África e para os Açores, por força do incentivo da delegação da Junta Nacional de Exportações de Fruta no Funchal, criada em 1936, e do Grémio dos Exportadores de Frutas e Produtos Hortícolas da Madeira. Também não poderá esquecer-se os diversos viveiros promovidos pela estação agrária da Madeira em várias freguesias, como Ribeira Brava, Santana, Caniçal e Santo da Serra. De acordo com dados fornecidos por Ramon Honorato Rodrigues, a bananeira era a cultura de maior rentabilidade, quando comparada com a vinha ou cana-de-açúcar. Esta situação da valorização económica do produto prende-se com a demanda que o mesmo tinha nos mercados externos. Os dados disponíveis são esclarecedores relativamente às mudanças ocorridas na agricultura madeirense. Os produtos tradicionais foram perdendo importância e o estatuto de culturas ricas, surgindo outros com maior rentabilidade. É certo que a bananeira era uma cultura promissora, mas outras culturas de subsistência não lhe ficavam atrás. O principal resultado desta situação foi um nivelamento por baixo da riqueza, cavando-se cada vez mais o fosso do mundo rural e propiciando-se a emigração em catadupa para a Venezuela, a África do Sul e a Austrália. Neste longo processo, um conjunto restrito de produtos agrícolas teve uma função primordial, assumindo-se tais produtos como catalisadores da animação social e económica, ou definidores de uma diversa realidade societal. Nos primeiros momentos de ocupação do solo, o vinho e o trigo, primeiro, e o açúcar depois surgem como elementos aglutinadores de uma peculiar vivência com inevitáveis implicações políticas e urbanísticas. Os primeiros materializam a necessária garantia das condições de subsistência e do ritual cristão, enquanto o último encerra a ambição e voracidade mercantil da nova burguesia atlântico-mediterrânica, que fez da Madeira o principal pilar da sua afirmação na economia atlântica e mundial. O processo é irreversível, de modo que, em consonância com os movimentos económicos, sucede-se uma catadupa de produtos com valor utilitário para a sociedade insular ou com capacidade adequada para ativar as trocas com o mercado externo. Se na primeira fase o domínio pertenceu à economia agrícola, no segundo ele reparte-se entre os serviços, as indústrias artesanais (vimes e bordado) e, de novo, os produtos agrícolas. Os interesses em causa, quanto ao processo de desenvolvimento económico, não são pacíficos, sendo feito de embates permanentes entre a necessária manutenção da subsistência e a animação comercial externa. Foi, pois, nesta luta permanente entre os produtos de uma subsistência familiar, local e insular e os impostos relacionados com a permanente solicitação externa que se alicerçou a economia da Ilha até ao limiar do séc. XIX. Os produtos mencionados revelam-se fulcrais para a compreensão da evolução da realidade socioeconómica madeirense. Para dar conta de tal processo, deveremos, antes de mais, salientar que a tradição mediterrânico-atlântica, que define a realidade peninsular, se repercutiu, inevitavelmente, na estrutura agrária e, por conseguinte, no impacto ecológico que acompanhou a expansão atlântica. Dos portos do reino saíram as sementes, utensílios e homens que lançaram as bases dessa nova vivência atlântica e insular. A par disso, as novas realidades civilizacionais americanas e índicas contribuíram para o acesso a novas culturas e produtos com inevitáveis repercussões na economia e hábitos alimentares do europeu. Da Europa, saíram os cereais (centeio, cevada e trigo), as videiras e as socas de cana, enquanto da América e Índia aportaram ao velho continente o milho, a batata, o inhame e o arroz. Nesse contexto, as ilhas atlânticas, pela sua posição charneira no relacionamento entre esses mundos, surgem como viveiros da aclimatação desses produtos às novas condições ecossistémicas. A Madeira deteve uma posição importante neste contexto, afirmando-se, no séc. XV, como o viveiro experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo – os cereais, o pastel, a vinha e a cana-de-açúcar. A expansão europeia veio revolucionar o cardápio da Europa, aumentando a gama de produtos e condimentos. A pouco e pouco, a tradição culinária europeia foi sendo destronada pelo exotismo das novas sensações gustativas que acabaram por afeiçoar o paladar. Mas, até que isso se generalizasse, foi necessário conduzir o cereal e o vinho aos locais mais recônditos. Assim, as embarcações que sulcavam o oceano levavam nos seus porões, para além das manufaturas e bugigangas aliciadoras das populações autóctones, inúmeras pipas de vinho e barris de farinha ou biscoito. Se o cereal podia encontrar produtos similares nas colónias europeias, como o milho e a mandioca, o mesmo não acontecia com o vinho, que era desconhecido e incapaz de se adaptar às suas condições mesológicas. Desta forma, o vinho foi conduzido da Europa ou das ilhas até aos mais recônditos espaços em que se fixou o europeu, consistindo no companheiro inseparável dos mareantes, expedicionários, bandeirantes e colonizadores. Aos primeiros, servia de antídoto para o escorbuto, aos segundos saciava a sede, enquanto aos últimos servia como recordação ou devaneio hilariante da terra-mãe. O vinho consistiu, assim, num dos principais elementos de união das gentes europeias na gesta da expansão além-Atlântico. Nas primeiras décadas oitocentistas, o vinho perde a sua posição preferencial nas trocas com o exterior. Quer na Madeira, quer fora, depara-se com uma conjuntura difícil, dominada pela fome e emigração. Essa precariedade da economia madeirense não derivou apenas da sua posição dependente em relação ao velho continente, mas também das diminutas possibilidades de usufruto concedidas pelos 741 km2 de superfície da Ilha. Neste contexto, salienta-se o papel do cabouqueiro, colono que recebe das principais gentes da Ilha o encargo de valorizar economicamente as parcelas que estas receberam como benesse. Esse investimento da sua capacidade de trabalho terá justificação jurídica nas chamadas benfeitorias, que englobavam paredes, casas de habitação, lagares ou lagariças, árvores de fruto, latadas, etc. É, assim, o colono que lança as bases dessa revolução técnico-agrícola, sendo um dos principais obreiros dessa harmoniosa paisagem rural. Os proprietários preferiam os bulícios ribeirinhos da cidade ou do burgo que tentavam erguer, fazendo com que a arquitetura e o viver quotidiano se adaptassem à medida dos réditos acumulados com o comércio do açúcar e do vinho. Empenhados nas lides administrativas ou entretidos nos jogos de pela e de canas, estava-lhes reservado o usufruto da vida no espaço urbano. No princípio da ocupação da Ilha, as necessidades do cardápio e ritual cristãos comandaram a seleção das sementes que acompanharam os povoadores. As sementes do precioso cereal acompanham os primeiros cavalos de cepas peninsulares no processo de transmigração vegetativa. A fertilidade do solo, resultante do seu estado virgem e das cinzas fertilizadoras das queimadas, fizeram elevar a produção a níveis nunca antes atingidos, criando excedentes que supriram as necessidades de mercados carentes, como foi o caso de Lisboa e das praças do Norte de África. Até à déc. de 70 do séc. XV, a Madeira firma a sua posição de celeiro atlântico, perdendo-a, depois, a favor dos Açores, que passam a assumir uma posição dominante na política e na economia frumentárias do Atlântico. A Madeira inverte, assim, a sua situação: de área excedentária, a Ilha passa a uma posição de dependência em relação aos celeiros açoriano, canário e europeu. O estabelecimento de uma rota obrigatória a partir do fornecimento de cereal açoriano à Madeira criará as condições necessárias à afirmação da cultura da cana sacarina, produto tão insistentemente solicitado no mercado europeu. O empenho do senhorio e da Coroa na cultura deste novo produto conduziu à afirmação preferencial de uma nova vertente da economia atlântico-insular. A partir de então, os interesses mercantis dominam a dinâmica agrária madeirense. Na Ilha, as searas dão lugar aos canaviais, enquanto as vinhas se mantêm de modo insistente numa posição de destaque. Se o cereal pouco contribuía para aumentar os réditos dos seus intervenientes, o mesmo não se poderá dizer em relação ao açúcar e ao vinho, que, a seu tempo, contribuíram para o enriquecimento das gentes da Ilha. A própria Coroa e o senhorio fizeram depender grande parte das suas despesas ordinárias dessa fonte de receita. A par disso, o enobrecimento da vila, e futura cidade, do Funchal fez-se à custa desses dinheiros. O Funchal avançou para poente e adquiriu fama em novos e potenciais mercados. O vinho Madeira foi, sem dúvida, o que mais se evidenciou no universo das ilhas, e de forma especial na Madeira. O luzidio rubinéctar, que continua a encher os cálices de cristal, é não só a materialização da pujança económica presente, mas também o testemunho de um passado histórico de riqueza. Prende-o à Ilha uma tradição de mais de cinco séculos. Nele, refletem-se as épocas de progresso e de crise. Porém, no esquecimento de todos fica, quase sempre, a parte amarga da labuta diária do colono no campo e nas adegas, o árduo trabalho das vindimas, o alarido dos borracheiros. Para recriarmos essa ambiência passada, torna-se necessário olhar os restos materiais e ler os documentos, a partir dos quais ainda é possível desbobinar o filme do quotidiano de luta que se esconde por entre a ferrugem, a traça e o pó. O vinho Madeira, celebrado por poetas e apreciado por monarcas, príncipes, militares, exploradores e expedicionários, perdeu paulatinamente, ao longo do séc. XX, parte significativa do mercado, fruto da conjuntura criada nos finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX. A procura deste produto obrigou o madeirense a utilizar todo o vinho e a acelerar o processo de envelhecimento, de modo a satisfazer os pedidos. No entanto, a abertura dos mercados conduziu ao fastio a partir de 1814. Depois, as doenças acabaram com as cepas de boa qualidade, fazendo-as substituir pelo produtor direto, que se manteve lado a lado com as cepas europeias, numa promiscuidade pouco adequada à preservação da qualidade. O passado recente anunciou o retorno das castas tradicionais e abriu portas a novos momentos de riqueza. A presença da vinha na Madeira, associada aos primeiros colonos, é uma inevitabilidade do mundo cristão. O ritual religioso fez do pão e do vinho os elementos substanciais da sua prática, tornando-os símbolos da essência da vida humana e de Cristo. Ambos foram companheiros da expansão da cristandade, sendo responsáveis pela revolução dos hábitos alimentares. A partir do séc. VII, comer pão e beber vinho simbolizavam para o mundo cristão o sustento humano. Em meados do séc. XV, com o arranque do processo de ocupação e de aproveitamento da Ilha, é dada como certa a introdução de videiras do reino e, mais tarde, das célebres cepas do Mediterrâneo. João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo, que receberam o domínio das capitanias do arquipélago sob a direção do Monarca e infante D. Henrique, procederam ao desbravamento e cultivo da terra, plantando as primeiras culturas trazidas do reino, nas quais se incluíam as cepas. O vinho Madeira adquiriu desde logo fama no mundo colonial, tornando-se na bebida preferida do militar e do aventureiro na América ou na Ásia. Escolhido pela aristocracia, manteve lugar cativo no mercado londrino, europeu e colonial. Perante isto, a partir do último quartel do séc. XVI, o ilhéu fez mudar os canaviais por vinhedos, ao mesmo tempo que conquistou novas terras à floresta, a sul e a norte da Ilha. Porém, embalado pela excessiva procura do vinho, o madeirense esqueceu-se de assegurar a autossuficiência. O vinho era a sua fonte de rendimento e a única moeda de troca para assegurar o alimento, a indumentária e as manufaturas, daqui resultando uma troca desigual para o madeirense e muito rentável para o inglês. No séc. XV, o vinho competia com o trigo e o açúcar, assumindo uma posição de relevo na economia local. Os trigais e os canaviais foram dando lugar às latadas e às balseiras, e a vinha tornou-se na cultura quase exclusiva. Tudo isto projetou o vinho para o primeiro lugar na atividade económica da Ilha, posição que manteve por mais de três séculos. O ilhéu apostou, assim, desde o último quartel do séc. XVI, na cultura da vinha, tirando dela o necessário para se sustentar, manter uma vida de luxo e construir sumptuosos palácios, igrejas e conventos. Entre o séc. XVII e princípios do XIX, a Madeira viveu embalada pela opulência do comércio do vinho. O madeirense, com tão avultados proventos, deixou-se vencer pelo luxo, habituou-se à vida cortesã e copiou os hábitos ingleses. A política exclusiva da cultura da vinha, imposta pelo mercantilismo inglês, mereceu a reprovação, quer do Gov. e Cap.-Gen. José. A. Sá Pereira, através de um regimento de agricultura para o Porto Santo, quer do Corr. e desembargador António Rodrigues Veloso, nas instruções que deixou, em 1782, na Câmara da Calheta. Mas foi tudo em vão, visto que ninguém foi capaz de travar a “febre vitícola”, nem de convencer o viticultor a diversificar as culturas da terra. Vivia-se um momento de grande procura do vinho no mercado internacional e as colheitas eram insuficientes para satisfazer a incessante procura. Perante tão desusada solicitação e à falta de melhor, socorriam-se dos vinhos do norte da Ilha e mesmo dos Açores e das Canárias para saciar o sedento colonialista. O comerciante inglês que surgiu a partir do séc. XVII soube tirar o máximo partido do produto, fazendo-o chegar em quantidades volumosas às mãos dos compatriotas que o aguardavam nos quatro cantos do mundo. Vários fatores fizeram com que o inglês se instalasse na Ilha e se afirmasse como o principal negociante do vinho, nomeadamente as condições favoráveis exaradas nos tratados luso-britânicos e o favorecimento que as regulamentações britânicas do comércio colonial atribuíram à Madeira. Assim, o movimento de exportação do vinho da Madeira nos sécs. XVIII e XIX liga-se, de modo direto, ao traçado das rotas marítimas coloniais inglesas que tinham passagem obrigatória na Ilha. São as rotas da Inglaterra colonial que fazem do Funchal o porto de refresco e de carga para o vinho no percurso para as Índias Ocidentais e Orientais, de onde regressavam pela rota dos Açores, com o recheio colonial. Também os navios portugueses da rota das Índias ou do Brasil escalavam a Ilha, onde recebiam o vinho para as praças lusas. São ainda os navios ingleses que se dirigem à Madeira com manufaturas, retornando por Gibraltar, Lisboa ou Porto. Também os navios norte-americanos trazem as farinhas para sustento diário do madeirense, regressando carregados de vinho. Por tudo isto, o vinho madeirense conquistou o mercado britânico em África, Ásia e América, afirmando-se, até meados do séc. XIX, como a bebida dos funcionários e militares das colónias. Com o movimento independentista das colónias, todos regressaram à terra de origem trazendo o vinho na bagagem. Seiscentos anos depois da introdução da vinha na Madeira, estavam ainda presentes na memória os tempos áureos da apreciação e do comércio do vinho, apesar das dificuldades que pelo caminho surgiram. À euforia da procura sucedeu-se a crise dos mercados, agravada pela presença das doenças que atacaram a vinha (oídio e filoxera). A crise do sector produtivo, resultante de fatores botânicos, alastrou a todo o espaço vitícola, com efeitos semelhantes na economia e no mercado do vinho. Perdeu-se a ligação ancestral com as tradicionais castas europeias, mas, em contrapartida, descobriram-se novas variedades americanas. As dificuldades do negócio conduziram à debandada dos agentes que haviam traçado o mercado. No entanto, a Madeira conseguiu paulatinamente recuperar ou conquistar novos mercados. O séc. XVII foi o momento de viragem no mercado atlântico do vinho, conseguindo a Ilha levar a melhor na preferência do mercado norte-americano e das colónias das Antilhas. Para além disso, o vinho Madeira tornou-se, como vimos, numa moda do quotidiano das colónias britânicas. A vinha e o vinho assumem, assim, particular destaque na caracterização do processo histórico madeirense ao longo destes 600 anos de labor. Desde os primórdios da ocupação da Ilha, este produto manteve a mesma vivacidade na vida agrícola e no comércio. Os demais não tiveram capacidade suficiente para resistir à concorrência desenfreada de novos e potenciais mercados fornecedores de aquém e além-mar. Apenas o vinho resistiu à concorrência dos Açores, das Canárias, da Europa e do cabo da Boa Esperança, mantendo o tradicional grupo de apreciadores no velho e no novo mundos. Também a história do açúcar na Madeira se confunde com a conjuntura de expansão europeia e com os momentos de fulgor do arquipélago. A sua presença é multissecular e deixou rastros evidentes na sociedade madeirense. Dos sécs. XV e XVI, ficaram os imponentes monumentos, pinturas e peças de ourivesaria que foram comprados com os proventos do açúcar, e que, na sua maioria, foram colocados no Museu de Arte Sacra do Funchal. Do séc. XIX e do primeiro quartel do séc. XX, perduram ainda a maioria dos engenhos da nova vaga de cultura dos canaviais. Nesta altura, a cana diversificou-se no uso industrial, sendo geradora sobretudo do álcool e da aguardente. Foi certamente neste momento que surgiu a tão afamada poncha, irmã do ponche de Cabo Verde e da caipirinha do Brasil. O açúcar é, entre todos os produtos a que, no Ocidente, se atribuiu valor comercial, o que foi alvo de maiores inovações no seu fabrico. Note-se que, no caso do fabrico do vinho, a tecnologia pouco mudou desde o tempo dos Romanos. Várias condicionantes favoreceram a necessidade de permanente atualização no que respeita ao açúcar, situação que se tornou mais clara no séc. XVIII com a concorrência da beterraba. O fabrico do açúcar está limitado pela situação e ciclo vegetativo da planta. A cana sacarina tem um período útil de vida em que a percentagem de sacarose é mais elevada. Assim, a cana está, em determinado momento, pronta para ser colhida, representando cada dia a mais que passe uma perda para o produto. Depois de cortada, tem pouco mais de 48 h para ser moída e cozida; caso contrário, começa a perder sacarose e inicia o processo de fermentação. Daqui resulta a necessidade de acelerar o processo de fabrico do açúcar através de constantes inovações tecnológicas, que cobrem o processo de corte, esmagamento e cozedura. A isto junta-se a necessidade do aumento da mão de obra, que se fez à custa de escravos africanos. A cana-de-açúcar não está, porém, na origem da escravidão africana, mas no processo de afirmação da mesma a partir da Madeira. Quando a cultura sacarina se fazia em pequenas parcelas, a maior parte destas questões não se colocava. No entanto, quando se avançou para uma produção em larga escala, houve necessidade de encontrar soluções capazes de responder aos novos desafios. A viragem aconteceu, na Madeira, a partir de meados do séc. XV e implicou mudanças radicais na tecnologia usada e na afirmação da escravatura dos indígenas das Canárias e dos negros da costa da Guiné. É por isso que se assinalam, a partir do exemplo da Madeira, importantes inovações tecnológicas no sistema de moenda da cana com a generalização do sistema de cilindros. A história tecnológica evidencia que a expansão europeia condicionou a divulgação de técnicas e permitiu a invenção de tecnologia inovadora, que contribuiu para revolucionar a economia mundial. Os homens que circularam no espaço atlântico foram, pois, portadores de uma cultura tecnológica que divulgaram nos quatro cantos e adaptaram às condições dos espaços de povoamento agrícola. Aos madeirenses foi atribuída uma missão especial nos primórdios deste processo. O facto de os arquipélagos da Madeira e das Canárias terem sido meios de ligação da nova cultura económica do atlântico ocidental não quer dizer que tivesse havido uma transplantação total e igual para os novos espaços. As condições ambientais e os obreiros da transformação eram outros, como diversa foi a realidade que o produto gerou. Tal perspetiva deverá resultar das ciladas inerentes ao método de análise do processo histórico de forma retrospetiva, no qual, por vezes, o facto surge como a imagem e como a consequência. Tal como provaram alguns estudos do séc. XX sobre a situação da economia açucareira do Mediterrâneo Atlântico, a conjuntura deste espaço é diversa da americana, seja ela insular ou continental. Por outro lado, também não se poderá colocar ao mesmo nível o caso de São Tomé, que, embora situado no sector ocidental do oceano, aproxima-se mais da realidade antilhana que dos arquipélagos da Madeira e das Canárias. A ideia de que a civilização do açúcar teve apenas uma forma de expressão no Atlântico Ocidental e Oriental deu origem a afirmações precipitadas, no âmbito da análise da economia e da sociedade, que lhe serviram de base. A historiografia associou ao açúcar, desde muito cedo, a escravatura, fazendo jus à afirmação de A. Antonil, segundo a qual os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho. Aqui também a relação não nos surge tão transparente como à primeira vista pode parecer. As Cruzadas, de acordo com a historiografia europeia, foram o princípio da expansão da cultura açucareira e da vinculação aos escravos. Nas colónias italianas do Mediterrâneo Oriental, surgem os primeiros indícios da nova dinâmica social, que passaria à Sicília e, depois, à Madeira, expandindo-se a partir deste arquipélago no Atlântico. Diz-se, ainda, que a ligação do escravo, negro ou não, à cultura dos canaviais foi uma invenção do Ocidente cristão, não tendo lugar no mundo muçulmano. Diferente é, todavia, a opinião de Yoro Fall, que encontra testemunhos evidentes dessa relação no usufruto de mão de obra negra pelas plantações muçulmanas do Egito e de Marrocos. Sucede que a escravatura da Madeira não assumiu uma posição similar à de Cabo Verde, São Tomé, Brasil ou Antilhas, não obstante o surto evidente de produção açucareira. Aí, ao invés daquilo que tem lugar nestes espaços, o escravo não dominou as relações sociais de produção. Existiu, sob a condição de operário especializado ou não, mas a sua posição não era dominante, tal como sucedia nas áreas supracitadas. Por fim, é de notar que a hipervalorização do açúcar na história da Madeira levou alguns aventureiros e progenitores de teorias de vanguarda a estabelecer também uma forma peculiar de urbanização do Funchal, de acordo com a sua presença. Deste modo, ao Funchal do séc. XVI chamam, sem saberem e explicarem porquê, cidade do açúcar, quando na realidade a expressão urbanística da cana-de-açúcar é manifestada pela ruralidade. O açúcar, acima de tudo, era um complemento fundamental na vida económica da Ilha. Sucedeu assim até meados do séc. XVI, mas, a partir de finais do séc. XIX, tudo mudou. Assim, com os lucros advindos desse produto ergueram-se igrejas – a Sé do Funchal é um exemplo disso – e amplos palácios que se rechearam de obras de arte de importação, testemunhos evidentes que passaram a constar no Museu de Arte Sacra. A arte flamenga na Ilha é também um dom do açúcar. O progresso socioeconómico da Madeira e o seu protagonismo na expansão atlântica – nos Descobrimentos e defesa das praças africanas – só foram, assim, possíveis à custa da elevada riqueza acumulada pelos madeirenses. Todos, sem diferença de condição social, fruíram da riqueza. Até a opulência e luxúria da própria Coroa, lá longe no reino, foi conseguida, durante algum tempo, com o açúcar que esta arrecadava na Ilha. Na Madeira, um dos aspetos mais evidentes da revolução tecnológica iniciada no séc. XV prende-se com a capacidade do europeu de adaptar as técnicas de transformação conhecidas às circunstâncias e exigências de culturas e produtos tão desafiantes como a cana e o açúcar. O tributo de outras culturas foi evidente. Ao vinho foi-se buscar a prensa, ao azeite e aos cereais a mó de pedra. Por outro lado, estamos perante uma permuta constante de processos tecnológicos e formas de aproveitamento das diversas fontes de energia. A tração animal, bem como a força motriz do vento e da água, foram usadas em simultâneo com os cereais e a cana sacarina. Por vezes, a mesma estrutura assume uma dupla função. Sucedeu assim na Madeira com o engenho da Ribeira Brava, posterior Museu Etnográfico, no qual a estrutura de aproveitamento da força motriz da água servia um engenho de cana e um moinho de cereais. As grandes questões deste período prendiam-se com a importância da Madeira resultante da expansão dos canaviais no espaço atlântico e da afirmação do açúcar no mercado europeu. Durante muito tempo, o estudo sobre o açúcar madeirense que teve maior visibilidade internacional foi o de Virgínia Rau e Borges Macedo sobre o livro dos estimos de 1494, em que a temática fundamental é a questão da propriedade. A esse, podemos juntar os textos de Fernando Jasmins Pereira, que, como os de Carlos Montenegro Miguel, Joel Serrão e Ernesto Gonçalves, não tiveram muita divulgação. A incidência temática recaiu quase só nos aspetos relacionados com o sistema de propriedade e com o comércio do açúcar no mercado europeu, ficando esquecidos aspetos fundamentais, como a tecnologia dos engenhos e o fabrico do açúcar. Nos últimos decénios do séc. XX, por força da realização de colóquios e do aparecimento de revistas, a temática açucareira voltou a motivar o interesse dos estudiosos. Neste contexto, é de assinalar os estudos de David Ferreira Gouveia, que equacionou alguns problemas de forma inovadora. A partir da segunda metade do séc. XVIII, assistiu-se à revelação da Madeira como estância para o turismo terapêutico, mercê das então exaltadas qualidades profiláticas do seu clima na cura da tuberculose, que cativaram a atenção de novos forasteiros. A tísica propiciou à Ilha, ao longo do séc. XIX, o convívio com poetas, escritores, políticos e aristocratas. Não obstante a polémica criada em torno das possibilidades deste sistema de cura, a Ilha permaneceu por muito tempo como local de acolhimento desses doentes, sendo considerada a primeira e principal estância de cura e convalescença do velho continente. Foi a presença, cada vez mais assídua, de tais doentes que provocou a necessidade de criação de infraestruturas de apoio: sanatórios, hospedagens e agentes, que serviam de intermediários entre esses forasteiros e os proprietários de tais espaços de acolhimento. Estes últimos foram o prelúdio dos posteriores agentes de viagens. O turismo, tal como hoje o entendemos, dava então os seus primeiros passos. Foi, pois, como corolário disso que se estabeleceram as primeiras infraestruturas hoteleiras e que o turismo passou a ser uma atividade organizada e com uma função relevante na economia da Ilha. Mais uma vez, o inglês foi o protagonista. O turismo caminhou lado a lado com o vinho e o aparecimento de novas atividades. A vinha persistiu nas latadas e fez-se companheira dos vimieiros e bordadeiras. Esta harmonia revertia a favor da Ilha e tornava possível a existência de várias formas de atividade que garantiam a sobrevivência. A variedade foi a receita certa para manter de pé, por algum tempo, a frágil economia insular. Na déc. de 40, o comércio, a navegação e o turismo foram os grandes propulsores do desenvolvimento insular. As atividades em torno da obra de vimes e dos bordados tiveram nos estrangeiros, principalmente nos Ingleses, os seus principais promotores. A primeira metade do séc. XX foi marcada por profundas mudanças na economia madeirense, representando, para aqueles que a viveram, um momento para esquecer. Primeiro as guerras mundiais (1914-1919 e 1939-1945) e, depois, os problemas políticos e económicos dificultaram bastante a vida do madeirense. A guerra evidenciou a fragilidade da economia da Ilha e a sua extrema dependência face ao mercado externo. Os problemas económicos dão origem a convulsões sociais que se misturam com as políticas, assistindo-se, em fevereiro de 1931, à Revolta das Farinhas, a que se seguiu, em 1936, a Revolta do Leite. Para muitos madeirenses a solução foi a emigração para o Brasil, Venezuela, USA e Curaçau, que funcionou como válvula de escape para a miséria da sociedade. As medidas do Governo, com a criação da Comissão de Aproveitamentos Hidráulicos e as suas iniciativas, atenuaram os efeitos da crise em algumas famílias. Começava aqui um plano de fomento de infraestruturas consideradas primordiais para o progresso da Ilha. Assim, assistiu-se à reorganização do sistema de regadio, que iria permitir um maior aproveitamento agrícola através de novas levadas, e ao delineamento de um plano viário, que permitiria a aproximação das diversas localidades da Madeira. No passado, foram as condições do meio que fizeram da Ilha o principal motivo de atração turística. Nos sécs. XX-XXI, o turista é outro e por isso também as exigências são diferentes. Assim, aos motivos ambientais aliam-se os culturais, passando os dois a andar de braço dado. No fundo, é a simbiose do grand tour europeu com o turismo terapêutico insular. A economia insular  A geografia é determinante na função económica a atribuir aos espaços humanizados. Neste sentido, as condições particulares da Madeira definiram uma vocação eminentemente agrícola. A aposta nos serviços, como o turismo, surgiu por acaso e por influência britânica. No mundo insular atlântico, o arquipélago da Madeira assume uma posição particular, fruto da quase total ausência da dimensão arquipelágica. Na verdade, são apenas duas ilhas que mereceram ocupação humana, mas uma, o Porto Santo, pelas dificuldades de abastecimento de água, não permitiu a definição de uma situação socioeconómica assente na complementaridade dos espaços. Enquanto nos Açores e Canárias, devido à existência de diversas ilhas, existiram formas de exploração agrícola assente na complementaridade, no caso madeirense esta deverá buscar-se dentro do espaço da Ilha ou nos arquipélagos vizinhos. A Madeira apresenta-se, em termos orográficos, com múltiplas condições adversas ao avanço da exploração agrícola do solo. A configuração piramidal, dominada por uma costa alta cortada pelas bacias das ribeiras, fruto da erosão provocada pela força das ribeiras, torna o acesso difícil e limita as possibilidades da agricultura. A costa elevada condiciona a navegação costeira, que, até à déc. de 50 do séc. XX, foi o meio de contacto entre as diversas localidades. A orografia dificultava o transporte terrestre, pelo que apenas o automóvel do séc. XX conseguiu vencer os veleiros e vapores costeiros. Por tudo isto, o processo de povoamento foi condicionado. A falta de água levou ao quase abandono do Porto Santo e, na Madeira, as dificuldades de penetração no interior conduziram à existência de um povoamento costeiro, assente nas clareiras abertas pelas ribeiras, áreas de fácil acesso, mas também férteis, por força das aluviões de terras trazidas pela água. O acesso a norte, muito limitado por terra e mar, conduziu a que esta área tardasse na ocupação e valorização económica em relação ao que sucedeu na vertente sul. A configuração geográfica condiciona ainda a diversidade de microclimas, o que conduz à valorização das chamadas fajãs ou à possibilidade de escalonamento das culturas em altitude, procurando aproveitar as condições climáticas. Estas cambiantes permitem que, dentro do espaço da Ilha, se possa estabelecer uma complementaridade assente nas culturas de subsistência e mercado externo. Todavia, a tendência dominante da exploração do solo foram as culturas com grande valor económico, por força da demanda do mercado externo. A partir daqui, definiram-se ciclos ou, melhor dizendo, períodos de produtos dominantes, como foi o caso dos cereais, da cana-de-açúcar, do vinho e da banana. A área agrícola da Ilha, bastante limitada desde o início da ocupação, obrigou a uma exploração intensiva do solo, o que provocou diversas dificuldades na exploração agrícola – com o esgotamento do solo a obrigar ao sistema de pousio ou rotação de culturas – que limitaram as possibilidades de afirmação de uma produção em larga escala capaz de concorrer em pé de igualdade no mercado. É neste contexto que podemos assinalar a luta hercúlea do madeirense pela conquista de terra através da construção de poios em locais íngremes ou com elevada inclinação, que se tornaram numa das dominantes da paisagem madeirense e que provam a luta secular do seu habitante contra as condições adversas do solo. A possibilidade de sucesso de uma cultura não dependia tanto das condições da Ilha, mas do mercado. Enquanto a Ilha produzia açúcar de forma isolada, os madeirenses conseguiram elevada riqueza, mas, quando teve de competir com outros mercados, perdeu capacidade de intervenção por força da limitação do espaço e das condicionantes atrás anunciadas. Situação diferente sucedeu com o vinho, dadas as circunstâncias políticas que permitiram a fixação inglesa e o facto de este produto ter características específicas, sendo capaz de chegar a qualquer sítio em perfeitas condições. Neste caso, foram as características próprias do produto, e não da exploração agrícola, que favorecem a sua posição preferencial no mercado. A ocupação de um novo espaço obedece a determinados requisitos. Primeiro, deve propiciar condições para que sejam garantidas as condições de sobrevivência das populações. Assim, para além da disponibilidade de água, deve apresentar um solo adequado ao cultivo dos produtos básicos da subsistência, que no caso dos europeus do séc. XV assentava nos cereais e na vinha. Estas exigências são ainda mais importantes quando se fala de ilhas isoladas, onde as condições de acesso a outros espaços estão muito condicionadas por força do nível de desenvolvimento da navegação à vela. Na Madeira, o processo de povoamento foi muito rápido por força da inexistência de populações e da necessidade de ocupação deste espaço para assegurar o controlo do espaço atlântico. Nos primeiros 600 anos de ocupação humana do arquipélago, a riqueza dos madeirenses foi gerada por força do seu esforço. Um solo de recursos limitados e de difícil domínio constituiu um pesado fardo no quotidiano que chegou até aos nossos dias. Por outro lado, o avanço do povoamento e da população conduziram a alguns problemas. Os recursos da terra, por serem mal distribuídos e limitados, não se ajustavam ao crescimento populacional, obrigando, desde o início, à abertura de válvulas de escape como a emigração. Até meados do séc. XIX, podemos afirmar que a agricultura foi dominada por uma permanente tensão entre os interesses da subsistência e aquilo que demandava o mercado. Esta realidade é testemunhada de forma clara por Giulio Landi, em 1530: “A Ilha produziria maior quantidade se semeasse. Mas a ambição das riquezas faz com que os habitantes descuidando-se... se dediquem apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maior proveito” (ARAGÃO, 1981, 84). A crise do vinho colocou a necessidade de repensar os produtos dominantes e as formas de exploração económica. As autoridades foram determinadas no combate à tendência para uma exploração de monocultivo. A aposta estava num sistema de policultura, em que se misturavam as culturas de subsistência com aquelas que manifestavam valor mercantil. Deste modo, o momento da segunda metade da centúria oitocentista foi fértil na experimentação de uma diversidade de culturas com valor mercantil e da mercantilização de algumas atividades artesanais, como o bordado e a obra de vimes. A par disso, desde o séc. XVI que se vinha a experimentar novas culturas e frutos com valor alimentar, assumindo-se a Ilha como um dos espaços privilegiados de adaptação dos produtos do Novo Mundo. Os madeirenses rapidamente se habituaram aos novos sabores, pelo que, de uma alimentação tradicional assente nos cereais, se avançou rapidamente para outra baseada em novos produtos, como a batata, o inhame e a farinha de milho. Tudo isto aconteceu de uma forma clara a partir do séc. XIX e consolidou-se nos primeiros decénios do seguinte. O processo económico, quando assume uma posição de sucesso, mercê da inserção no mercado mundial, conduz a uma forma de exploração intensiva que provoca inevitavelmente o desequilíbrio entre aquilo que o quadro natural possibilita e o que o Homem exige. Na Madeira, a exploração económica fez-se de forma intensiva e de acordo com as solicitações do mercado exterior, o que contribuiu ainda mais para agravar a relação entre o Homem e o quadro natural, arrastando os espaços para uma situação de total deterioração. O primeiro testemunho surge já em meados do séc. XV com Cadamosto: “As suas terras costumavam dar a princípio, sessenta por um, o que presentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão deteriorando dia a dia. A situação resulta da solicitação para a exploração intensiva por obrigação geral dos madeirenses em abastecer as cidades do reino e praças africanas de cereal” (Id., Ibid., 37). O cereal, que no início da ocupação do solo havia sido a cultura da prosperidade, rapidamente cedeu lugar aos canaviais, que em pouco tempo dominaram o espaço agrícola. A indústria para o fabrico do açúcar exigiu muito do quadro natural, lançando a Ilha num processo de desflorestação, de consequências imprevisíveis, e provocando a exaustão do solo agrícola. A situação é testemunhada, em 1689, por John Ovington: “A fertilidade da Ilha decaiu muito relativamente ao período das primeiras culturas. A cultura sem descanso dos terrenos tornou os fracos espaços em muitos lugares e de tal modo que os abandonam periodicamente, tendo de ficar de poisio três ou quatro anos. Depois desse tempo, se não crescer nenhuma giesta como sinal de fertilidade futura, abandonam-nos, como estéreis. A aridez de muitas das suas terras atribuem-na simploriamente ao aumento dos seus pecados” (Id., Ibid., 201). A opulência foi efémera, pois, a partir da terceira década do séc. XVI, o açúcar madeirense foi destronado da posição cimeira no mercado europeu, perdendo a preferência em favor das Canárias, São Tomé e Brasil, que aparecem com preços mais competitivos. No entanto, a persistência de alguns lavradores, a fama da superior qualidade e a procura da doçaria e casquinha madeirenses fizeram com que a cultura dos canaviais se mantivesse por largos anos, atingindo, em momentos de crise nos mercados americanos, alguma pujança. Ainda assim, como a cultura estava irremediavelmente condenada, o madeirense, a partir de meados do séc. XVI, foi forçado a canalizar as atenções para as vinhas, fazendo com que estas assumissem o espaço deixado pelos canaviais. Desta forma, por mais de dois séculos, a vinha e o vinho foram os principais aglutinadores das atividades económicas da Ilha, dando ao meio rural e urbano uma desusada animação. O Funchal cresceu em monumentalidade e as principais famílias reforçaram a posição económica. A mudança abalou a estrutura produtiva. Assim, enquanto o açúcar exigia apenas um complexo industrial, o engenho onde decorria a respetiva safra, o vinho necessitava de espaços distintos: o lagar, onde as uvas se transformam no saboroso mosto, e os armazéns da cidade, onde este fermenta e é preparado para atingir os necessários aroma e bouquet exigidos pelo mercado. Deste modo, o agricultor, colono ou não, detém apenas o controlo da viticultura, ficando reservado ao mercador o processo de vinificação. A conjuntura da primeira metade de Oitocentos, marcada pelos conflitos europeus e guerras de independência das colónias, e associada aos fatores de origem botânica (com o aparecimento do oídio, em 1852, e da filoxera, em 1872), conduziu ao paulatino apagamento da pujança económica do vinho. Como corolário disto, surge a fome nos anos 40 e, nas décs. de 50 e 80, a sangria emigratória para o continente americano, onde o madeirense foi substituir o escravo nas plantações. Por um período de mais de 70 anos, a confusão institucional e económica alargou-se aos domínios social e alimentar. Para além dos novos alimentos que ganharam relevo na culinária madeirense, definiram-se políticas de reconversão e ensaio de novos produtos com valor comercial, como foi o caso do tabaco e do chá. A emigração de Oitocentos e do período pós-Segunda Guerra Mundial foi responsável por um acentuado processo de desertificação da Ilha, arrastando muitas terras para o abandono. Foi o início de um pousio para as terras, já esgotadas com a exploração intensiva das culturas de subsistência e exportação. Em pleno apogeu da indústria vinhateira, teve lugar a afirmação de um novo sector de serviços. Na segunda metade do séc. XVIII, a Ilha assumiu outro papel, tornando-se espaço de acolhimento de doentes. A Europa oferecia ao aristocrata britânico vários motivos para o grand tour cultural, mas as ilhas ofereciam a amenidade do seu clima e ambientes paradisíacos, num retorno implícito ao paraíso perdido. Na Madeira, o turismo começou a dar os primeiros passos na segunda metade do séc. XVIII, mas foi a partir de finais da centúria seguinte que se consolidou como sector de serviços na sociedade funchalense. Alguém terá dito que os promotores do turismo insular foram os Gregos, mas os primeiros turistas foram, sem dúvida, os Ingleses. Os Gregos celebraram, na prolixa criação literária, as delícias das ilhas situadas além das colunas de Hércules. Os arquipélagos da Madeira e das Canárias foram considerados a mansão dos deuses, o jardim das delícias, onde convivem os heróis da mitologia. Todavia, foram os Ingleses, ainda que muito mais tarde, a desfrutar da ambiência paradisíaca reservada aos deuses e heróis, escolhendo-a como rincão de permanência, breve ou prolongada. Diz-se até, segundo a lenda de Machim, que a primeira viagem de núpcias, embora ocasional, terá sido protagonizada por um casal inglês. Na verdade, foi a visão mítica, perpetuada nos relatos antigos ou reavivada nos testemunhos coevos, que despertou o desusado interesse do inglês pelas belezas aprazíveis da Madeira. O ilhéu, autêntico cabouqueiro e jardineiro deste rincão, estava por demais embrenhado na árdua tarefa de erguer paredes e arrotear os poios, e por isso mantinha-se alheio ao usufruto das delícias. Para ele, a beleza agreste dos declives não passava de mais um entrave na luta contra a natureza. Assim, enquanto o inglês se entretinha nos passeios a cavalo ou em rede pelos mais recônditos locais da Ilha, o madeirense cavava e traçava os poios. A verdadeira descoberta da Madeira foi obra dos Ingleses, ainda que tenha sido o Português a descobrir o caminho para aí chegar. A situação com que a agricultura madeirense se depara na segunda metade do séc. XIX pode ser entendida como o início do processo de transformação que irá marcar a vida do mundo rural. A transformação política, a partir de 1820, conduziu à desestruturação de tal mundo, acabando com algumas situações que marcavam o dia a dia do campo. Acabaram-se os senhorios, mas persistiu o contrato de colonia. A crise do vinho obrigou a repensar-se a forma de aproveitamento do solo, acabando-se definitivamente com a tendência para a aposta preferencial numa cultura. A grande aposta passou a estar na diversificação de culturas e na aposta firme nas indústrias. No reduzido quadro industrial, temos de realçar a iniciativa de estrangeiros, nomeadamente britânicos, como Page, Leacock e Hinton. Miss Phelps esteve na origem da comercialização do bordado em Inglaterra; já Leacock foi o principal promotor da obra de vimes e da aposta na cultura da bananeira, com a criação, em 1928, da The Ocean Islands Fruit & Co Ltd. No séc. XX, passados os anos conturbados da República, o Governo da Ditadura e do Estado Novo definiram uma política concertada de valorização da produção nacional apostada em assegurar a autossubsistência. Apenas no período pós-25 de Abril de 1974, o processo autonómico permitiu repensar os rumos da atividade agrícola. A aposta das autoridades foi para uma agricultura assente numa variedade de culturas. Às culturas tradicionais, ditas ricas, como era o caso dos cereais, cana-de-açúcar, vinha e banana, juntavam-se agora outras, conhecidas como pobres, que acabaram, no entanto, por adquirir valor económico no mercado regional e externo. De entre estas, podemos salientar a batata comum –ou semilha, para o madeirense –, a batata-doce, a cebola, a ervilha, o feijão, o tomate e a vaginha, ou feijão em vagem. Depois, podemos juntar um grupo variado de frutas: abacate, ameixa, amora, anona, araçá, castanha, cereja, cidra, damasco, figo, goiaba, jambo, laranja, limão, maça, manga, maracujá, marmelo, noz, nêspera, pero, pera, pêssego e pitanga. As exportações As conexões insulares resultam mais de fatores estranhos à progressão do trato comercial que às exigências e possibilidades de troca. O facto de as ilhas apostarem na mesma forma de agricultura, orientada para as necessidades internas ou do mercado colonial, não deixou grande espaço para um estreitamento dos contactos comerciais. Os produtos de subsistência nem sempre foram suficientes para suprir as carências e, no caso da exportação, preferiu-se outros mercados mais vantajosos, pois as ilhas ou arquipélagos vizinhos não ofereciam idênticas condições de lucro. Por outro lado, os produtos de exportação, seja para o mercado europeu, seja para o colonial, acabaram por levar ao afrontamento entre estes limitados mercados. O caso mais evidente é o comércio do vinho, que atinge nos três arquipélagos – Madeira, Açores e Canárias –, no decurso dos sécs. XVIII e XIX, idêntico protagonismo nas rotas externas, provocando por vezes alguma tensão. Perante isto, as possibilidades de troca interna no mercado insular incidem quase só nos produtos de subsistência – primeiro o trigo e, depois, o milho – e nalgumas manufaturas de reexportação. As últimas resultaram da forma como se estruturaram as rotas oceânicas e permitiram o protagonismo de certas ilhas como portos de apoio, em detrimento de outras. Todavia, no decurso do séc. XVIII e no seguinte, todas as ilhas faziam parte do roteiro das embarcações. Suplantadas as dificuldades técnicas, as rotas de navegação ajustaram-se às exigências e interesses do mercado e dos mercadores. O mercado das ilhas tornou-se numa importante e complementar rota de navegação no Atlântico. Fala-se de um circuito fechado, que compreende a metrópole, a Madeira e os Açores, ou o Mediterrâneo, a Madeira e a rota Canárias-Berberia. A questão do trigo é uma das dominantes da história da metrópole portuguesa e das ilhas. Aliás, no decurso do séc. XIX foi uma das importantes questões do debate político. Assim, a luta pelo pão parece ter sido uma constante da história insular, muito particularmente na Madeira. Para tal concorreu a desarticulação entre o movimento demográfico e a economia de aproveitamento do solo. Na Madeira, há uma aposta preferencial nos produtos de exportação, com grande solicitação nos mercados do novo e do velho mundos, o que afasta as culturas de subsistência das áreas pobres de cultivo e as aproxima dos grandes centros de exportação. Esta incessante luta pelo pão determina o relacionamento entre as ilhas em todo o processo histórico. O tráfico interinsular assenta fundamentalmente na redistribuição dos meios de subsistência, o que origina alguma complementaridade, mais evidente nos primórdios da criação das sociedades insulares que nos momentos posteriores. É nesta lógica de complementaridade que se definem os circuitos interinsulares e que ganha forma, à escala das ilhas, um novo mercado que enlaça o chamado Mediterrâneo Atlântico. Açores, Canárias e Madeira unem-se quando os interesses e conjunturas não são adversos. O abastecimento de cereais foi um dos principais incentivos à manutenção das relações interinsulares, que foram uma constante na história madeirense. Todavia, em qualquer dos momentos, o Mediterrâneo atlântico não foi autossuficiente, carecendo da importação do mercado europeu ou do americano. Este último mercado tornou-se uma realidade no decurso dos sécs. XVIII e XIX, funcionando para a Madeira como contrapartida ao vinho. No período entre 1727 e 1810, entraram no porto do Funchal 4297 embarcações com cereal ou farinha, sendo 2053 (48 %) da América do Norte, 799 (19 %) de Inglaterra e 687 (16 %) dos Açores. Disto decorre que a Madeira fazia depender a sua subsistência dos tradicionais mercados consumidores do vinho, a América e a Europa do Norte, que totalizavam mais de dois terços do negócio. As ilhas dos Açores e das Canárias afirmam-se como celeiro de provimento da Madeira. Desde 1516 que a Coroa se viu na necessidade de regulamentar o negócio dos Açores, forçando os agricultores ao abastecimento do mercado madeirense. Os açorianos sempre se mostraram renitentes, quer em momentos de penúria, quer de abundância, pois o comércio com outras áreas parecia-lhes mais vantajoso. Daí a insistência da Coroa relativamente à permanência desta via de suprimento das carências alimentares dos madeirenses. Esta posição açoriana foi uma constante. Afirmou-se no séc. XVI e continuou nas centúrias seguintes. Em meados do séc. XVIII, como reflexo da Guerra dos Sete Anos, tardavam a aparecer os navios americanos com cereal e farinha, pelo que foi necessário o recurso a outros mercados como os Açores, que não se mostrou interessado em tal ligação. A alternativa foi, mais uma vez, Cádis e Canárias. Analisando a relação dos valores da importação de bens alimentares e da saída de vinhos no período de 1784 a 1786, constatamos que a situação é favorável à Madeira, mas eram os Ingleses que arrecadavam todos os lucros, mercê da política de adiantamentos quanto à compra do vinho. Perante as constantes incursões corsárias nesta importante área de passagem dominada pela Madeira e pelos Açores, a parte portuguesa foi muito afetada, não só pelas presas que sofreu, mas também pelos constantes bloqueios das rotas de comércio das ilhas e do Brasil. A Madeira, por exemplo, com uma economia dependente do mercado externo, viveu algumas vezes momentos aflitivos, pois viu-se impedida de sair com o vinho e sem qualquer possibilidade de se reabastecer de comestíveis e manufaturas. Esta realidade surgiu no culminar da viragem da economia insular, no decurso da segunda metade do séc. XVII. A aposta no vinho como meio ativador das trocas externas e a definição do mercado nas colónias ou na Europa do Norte provocaram o desvio de tais rotas, que foi vantajoso para os intervenientes. Os Açores, que no decurso do séc. XVI, em aliança com as Canárias, detinham a missão de suprir as necessidades frumentárias da Ilha, perderam inexoravelmente tal função a favor do novo mercado conquistado com o comércio do vinho. No período de 1510 a 1640, as ilhas acudiram com 69 % do cereal consumido no Funchal, com evidente destaque para os Açores, que proveu 55%, enquanto a Europa se quedou numa posição muito inferior – 28%. A situação mudou no decurso do séc. XIX, com a revolução dos hábitos alimentares das gentes das ilhas. O milho assumiu protagonismo, associando-se agora à batata. A crise de fome na ilha da Madeira, em 1847, é precisamente provocada pela falta deste tubérculo, atacado pela doença. Um dos fatores fundamentais do processo socioeconómico madeirense, a partir de finais do séc. XV, prende-se com as crises de subsistência, resultantes da desarticulação entre o sector produtivo e o movimento demográfico. A conjuntura resultou de mecanismos da sociedade colonial, que estabelece a dependência entre a metrópole e as colónias, e destas entre si. A adequação do processo económico do Mediterrâneo atlântico à realidade comandou o processo interno e externo, e levou as ilhas ou arquipélagos autossuficientes a uma situação de dependência. Foi o caso dos Açores e das Canárias, onde uma situação inicial de equilíbrio da economia agrária favoreceu uma autossuficiência que foi paulatinamente desapareceu. Por outro lado, a aceleração do processo conduziu ao esvaziamento da realidade própria do Mediterrâneo Atlântico. A complementaridade, que no decurso dos sécs. XV e XVI se havia afirmado como um mecanismo de autodefesa da economia insular, converte-se em afrontamento desmedido, evidente no comércio do vinho ou na política do porto franquismo. O comércio O comércio interinsular é uma característica da história económica das ilhas entre os sécs. XV e XVII e resulta, fundamentalmente, da complementaridade. A isto acresce um conjunto diversificado de fatores que evidenciam tal aproximação, tornando-a imprescindível para a marcha do processo económico. A situação torna-se mais evidente para os arquipélagos dos Açores, das Canárias e da Madeira. Em Cabo Verde, não obstante a existência de uma comunidade de insulares e de algumas relações comerciais, não há este tipo de relacionamento e complementaridade do Mediterrâneo atlântico. É de notar que a Madeira, pela posição geográfica e processo económico, foi a ilha que mais usufruiu desta realidade. As trocas insulares incidem na necessidade de abastecimento de cereais, mecanismo indispensável para o equilíbrio do desenvolvimento económico. O arquipélago da Madeira dispõe apenas de duas ilhas, e a segunda adquire pouca importância económica. Daqui resulta que o processo económico, como muito bem entendeu a Coroa, só foi possível graças ao vínculo de complementaridade com outros arquipélagos. Foi, pois, nos Açores que a Coroa encontrou a solução, mas foi nas Canárias que os madeirenses melhor conseguiram levar por diante tal política. O relacionamento comercial com as ilhas dos Açores e das Canários pode ser considerado unidirecional, uma vez que quase só tem como objetivo abastecer a Madeira de cereais. É, aliás, o cereal o principal motor destes contactos, mesmo entre os Açores e as Canárias. No período de 1510 a 1640, contabilizamos a entrada de 196.087,5 fanegas de trigo no Funchal, das quais 135.777,5 provinham das ilhas, correspondendo aos Açores 10.800 e às Canárias 27.777,5. Nos sécs. XVIII e XIX, continua a manter-se o relacionamento da Madeira com os arquipélagos vizinhos, mas é na América e na Europa do Norte que a Ilha encontra o abastecimento de cereais. O recurso a novos mercados abastecedores é-lhe mais vantajoso, visto que lhe permite a troca pelo vinho, o que raramente sucedia nas Canárias e nos Açores. Na segunda metade do séc. XIX, os contactos interinsulares a partir da Madeira mostram-se ocasionais. Os mercados atlânticos: Brasil A partir do séc. XVII, uma das rotas privilegiadas do comércio das ilhas é o Brasil. No caso português, este mercado, mercê da política monopolista do Estado, manteve-se fechado até 1765, altura em que se acabou com o sistema exclusivo das frotas criado em 1649. A constituição da Companhia do Comércio do Brasil veio retirar às ilhas a possibilidade de comércio com o país. Daí a reclamação dos insulares, a quem foi dada, em 1652, a possibilidade de envio de três embarcações dos Açores e duas da Madeira. Maior empenho teve a Madeira no comércio com o Brasil, já no decurso do séc. XVI, pela necessidade de açúcar para suprir, em momentos de dificuldade da produção de tal bem na Ilha, o fabrico de conservas e de casquinha. No decurso dos sécs. XVI e XVII, manteve-se o afrontamento entre os produtores locais e os mercadores do açúcar brasileiro. A partir de meados do séc. XVII, o açúcar madeirense foi, paulatinamente, definhando, rendendo-se a indústria do doce ao açúcar do Brasil. Ao açúcar, juntaram-se os couros, as madeiras e os escravos. Neste contexto, releva-se a figura de Diogo Fernandes Branco, que conseguiu estabelecer uma trama de negócios a partir do Funchal, tendo Lisboa, Angola e Brasil como vértice do triângulo. No caso da Madeira, foi proibida, em 1776, a entrada do vinho, aguardente e vinagre nas regiões do sul, o que veio reforçar a tradicional relação com os portos do nordeste brasileiro. A esta limitação juntam-se outras, que insistiam na proibição da reexportação de produtos estrangeiros, o que levou à reclamação das autoridades pelo pouco interesse em mantê-la. Deste modo, em 1748, fez-se aumentar o número de embarcações para quatro, dando mais campo de manobra para o investimento madeirense na rota. Da Europa à América do Norte  Nos primórdios da ocupação das ilhas, foi a Europa que definiu as rotas do comércio. Porém, com o evoluir do processo, a vinculação europeia perdeu importância, acabando por ceder lugar ao Novo Mundo, que, para as ilhas, corresponde sobretudo à costa africana e à América (do Sul, Central e do Norte). O Oriente é apenas uma miragem com alguns reflexos na economia açoriana, mercê da função de escala e apoio à navegação estabelecida na ilha Terceira. A Europa manteve-se sempre presente no mercado insular, catapultando aspetos dominantes do relacionamento externo. As primeiras culturas lançadas nas ilhas surgem, precisamente, para corresponder às necessidades do mercado europeu. Primeiro os cereais, depois a cana-de-açúcar e o pastel, eis os produtos que marcam essa situação de dependência. Os cereais, juntamente com o pastel, são a marca dos Açores e delimitam rotas de escoamento com destino ao reino, Europa do Norte e Norte de África. O pastel, que, nos sécs. XVI e XVII, adquiriu grande pujança no mercado açoriano, foi o produto que projetou os Açores, nomeadamente São Miguel, nas rotas do tráfico europeu internacional e que começou por estabelecer o vínculo ao Reino Unido, que sairia reforçado mais tarde, no séc. XIX, com a laranja. Ambos os produtos – pastel e laranja – definem um mercado e uma opção socioeconómica com reflexos evidentes no devir açoriano. Na Madeira e nas Canárias, foi o açúcar que delineou o forte vínculo europeu. Também neste contexto, e ainda que seja a Flandres o principal destino, a Europa do Norte adquire uma posição cimeira, seguida do Mediterrâneo. A metrópole e o Estado Ao nível económico e financeiro, a relação entre a Madeira e o continente revela-se na entrega de toda a riqueza da Ilha. As culturas agrícolas são impostas para servir os caprichos da metrópole e todo o lucro situa-se no sector da circulação fora da Ilha. Sucedeu assim com a cana-de-açúcar, que se transformou na galinha dos ovos de ouro para a Coroa portuguesa entre finais do séc. XV e princípios do seguinte. Toda a riqueza resultante da exploração económica, impostos incluídos, é orientada para fora do espaço que a cria. Tão pouco sucede um investimento na valorização do local. O pouco que retornava surge sob a forma de caridade da própria Coroa, de oferta. O Rei D. Manuel foi de todos o mais caridoso para com os madeirenses, pelos quais distribuiu benesses e obras de arte, mas também o que mais fruiu das riquezas da Ilha. As finanças do reino foram marcadas por um permanente déficit, pelo que a Coroa teve necessidade de se socorrer de diversos meios para saldar a diferença. Desde o séc. XIV que a forma mais usual de solucionar o problema era o recurso a pedidos e empréstimos. Era com estas formas de financiamento que a Coroa cobria o déficit e as despesas bélicas, bem como a boda do casamento dos príncipes. O vigor demonstrado pelos madeirenses na defesa dos seus interesses tem expressão na recusa ao pedido de empréstimo de 1478, sendo reforçado no papel do Senado da Câmara do Funchal. Na verdade, a Madeira era, desde 1433, um espaço fora do controle da Coroa, dependendo do mestrado da Ordem de Cristo e tendo o infante D. Henrique como senhor. Mas a sua riqueza estava na mira da Coroa, pelo que D. Manuel, que também foi senhor da Ilha, deu a machadada final no processo de autogoverno dos madeirenses ao proceder, em 1497, à “nacionalização” da Madeira. A partir de finais do séc. XV, toda a riqueza gerada deixou de pertencer ao senhorio e passou para o usufruto da Coroa, indo a tempo de financiar as grandes viagens oceânicas e a despesa da Casa Real. A partir daqui, é evidente que a Madeira perdeu a capacidade reivindicativa perante a Coroa. O centralismo régio está patente na submissão e pronto acatamento pela vereação de todos os regimentos e decretos régios. É evidente que, durante o séc. XV e o primeiro quartel do seguinte, a principal fonte de receita do mundo português estava no açúcar madeirense. As receitas advinham dos direitos lançados e do comércio do açúcar apurado. Os dados financeiros disponíveis não evidenciam de forma clara a situação. Perderam-se os livros de contas, mas os poucos que se podem consultar não nos atraiçoam. Primeiro o senhorio e depois a Coroa oneravam este produto com diversas tributações, que lhes permitiam amealhar elevadas quantias que usavam em benefício próprio, no pagamento de tenças, esmolas, empréstimos e dívidas. No primeiro registo das receitas do reino e possessões, datado de 1506, a Madeira surge com o valor mais elevado das comparticipações dos novos espaços insulares, com 5,3 %. Até à déc. de 30 do séc. XVI, os réditos fiscais resultantes da produção e comércio do açúcar asseguraram parte importante das fontes de financiamento do reino e dos projetos expansionistas. Em 1529, com o Tratado de Saragoça, foi encontrada uma solução provisória que, a curto prazo, parecia agradar a ambas as partes. D. João III viu-se forçado a pagar 350.000 ducados para assegurar a posse das Molucas, que afinal se encontravam dentro da área de influência de Portugal. Mais uma vez, é possível assinalar uma ligação à Madeira, pois terá sido, segundo alguns, o madeirense António de Abreu o primeiro explorador. Por outro lado, os madeirenses contribuíram com avultada quantia de empréstimo para o pagamento do referido contrato. Manuel de Noronha ficou com o encargo de arrecadar a contribuição madeirense. Também João Rodrigues Castelhano é referenciado como recebedor do referido empréstimo, tendo desembolsado da sua fazenda 300.000 reais. A este juntaram-se Fernão Teixeira com 150.000 reais e Gonçalo Fernandes com 200.000 reais. O pagamento fez-se nos anos de 1530-1531 à custa dos dinheiros resultantes dos direitos da Coroa sobre o açúcar. A Madeira, como centro gerador da riqueza do reino e da forma colonial da administração, não passou desapercebida aos locais e visitantes. No séc. XVIII, a promoção do comércio do vinho gerou de novo elevada riqueza, pelo que a Ilha parecia querer regressar aos velhos tempos da opulência açucareira. É dentro desta ambiência que James Cook refere, em 1768, que a Coroa arrecadava na Ilha 20.000 libras por ano, mas poderia dar o dobro se estivesse nas mãos de outro povo. Em 1827, outro súbdito inglês, cujo nome se desconhece, apontava o destino desta receita: “o Rei pagava todas as despesas das legações no estrangeiro (isto antes de 1820) com o excedente dos seus rendimentos da Madeira. Todos os anos era transferida para Londres, com esse fim, uma quantia de 50 a 80.000 libras” (VIEIRA, 2014, 411). O contraste entre esta crescente riqueza que todos os anos enchia os cofres do reino e as condições cada vez mais precárias da população madeirense é evidente. Também Paulo Dias de Almeida, sendo enviado à Ilha para proceder ao estudo da defesa e da rede viária, fez notar o quanto tal relação enchia os cofres do Estado. O séc. XIX foi um marco na plena afirmação do debate político, que para muitos madeirenses foi alicerçado nos combates pela defesa do torrão natal. As mudanças políticas tão pouco solucionaram as ancestrais questões. O combate político avivou os ideais autonómicos e conduziu ao estabelecimento da autonomia administrativa por carta de lei de 12 de junho de 1901. A República jacobina foi marcadamente centralista, e o movimento autonomista das primeiras décadas do séc. XX, apoiado nos sectores políticos mais conservadores da sociedade madeirense, fez desta orfandade e sangria financeira o cavalo de batalha para a luta autonómica. Note-se que eram redobradas as razões para tal, uma vez que o esforço de investimento financeiro do Estado na região não suplantava os 0,2 %, quando o contributo financeiro da Ilha para o todo nacional chegava aos 12,5 %. No caso das províncias ultramarinas, o panorama da despesa é distinto, atingindo-se, em 1914-1915, os 16 %. O contraste é evidente e mobilizador de alguns sectores políticos da sociedade madeirense. Um exemplo mais a provar o tratamento de tipo colonial nas aplicações financeiras do Estado na região está na forma como se procedia ao lançamento de infraestruturas imprescindíveis para o desenvolvimento da Ilha. Incluem-se neste caso as obras do porto do Funchal e as dos aproveitamentos hidroagrícolas e elétricos. Para o primeiro, foi criada, em 1913, a Junta Autónoma das Obras do Porto Funchal, com o objetivo de coordenar as referidas obras e conseguir os meios financeiros necessários, sendo-lhe para isso atribuído o direito de arrecadação do imposto sobre o tabaco. Entre 1931 e 1933, as obras custaram 5.353.000 escudos, enquanto a receita do imposto, entre 1923 e 1932, foi de 25.123.841 escudos, isto é, os gastos foram de apenas 21 %. Por outro lado, as obras contribuíram para um incremento do movimento do porto com repercussão direta nas receitas da Alfândega, que, a partir de 1927, quadruplicaram. A promoção do sistema de regadio e de eletrificação foi encargo da Comissão de Aproveitamentos Hidráulicos criada em 1944. O investimento desta Comissão, entre 1944 e 1968, foi de 340.152 contos, em que a comparticipação do Estado foi de apenas 29 %, sendo o resto de autofinanciamento. O esforço contributivo da região no período do Estado Novo não foi devidamente recompensado com o investimento. Mesmo assim, é neste período que temos a maior incidência e preocupação do Estado no investimento reprodutivo, com empreendimentos vultuosos, como o porto, o aeroporto e os aproveitamentos hidroelétricos e hidroagrícolas. O problema financeiro pesou de forma evidente no debate político sobre a autonomia. Ademais, para a maioria dos intervenientes é evidente o contraste entre uma ilha que alimentava permanentemente os cofres de Lisboa e o abandono a que estava votada. Desde o ano 1976, a economia madeirense assumiu vários matizes, nos quais é notório o acompanhamento da economia regional consoante as fases de desenvolvimento vivenciadas pela RAM. Tal pode ser verificado através de uma análise comparativa daqueles que eram os motores da economia na déc. de 70 do séc. XX e os propulsores da mesma no séc. XXI. O sector primário foi aquele que apresentou claramente uma diminuição do seu peso relativo na atividade económica, sendo que a proporção do valor acrescentado bruto (VAB) do sector no VAB regional diminuiu consideravelmente. Dados referentes ao ano de 1995 permitem constatar que o sector que engloba as atividades da agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca representava 3,3 % do VAB da Região, proporção que diminuiu, sendo reportado um peso de 1,9 % no ano de 2012. Em detrimento dos sectores primário e secundário, o sector terciário afirmou-se como principal motor económico, realidade que pode ser explicada pela influência que a atividade turística assume, mas também pela modernização a que o sector empresarial foi sujeito, impulsionada pelo ritmo de desenvolvimento que a Região estava a apresentar. Naturalmente, não só o comércio e as atividades relacionadas com o sector hoteleiro e com a restauração permitiram que a preponderância do sector terciário se tornasse mais evidente. O sector dos serviços, como, por exemplo, aqueles que estão associados ao apoio das empresas, também contribuiu para isso. Se, no ano de 1995, o sector terciário representava 76,4 % do VAB regional, a proporção aumentou significativamente no espaço de cerca de 20 anos, fixando-se, no ano 2012, em 84, 8 %. As atividades administrativas e os serviços de apoio, que representavam 6,7 % do total regional em 1995, passaram a representar 12,4 % no ano 2012. Cabe destacar que, para colmatar as insuficiências que a RAM apresentava em termos de infraestruturas, foram direcionadas verbas provenientes, na sua grande maioria, de fundos comunitários. Note-se que o sector da construção representou 12,04 % do VAB regional em 1995, reduzindo-se essa percentagem para metade no ano 2012, o que denota um auge do sector ocasionado pelo investimento em obras públicas e nas edificações construídas pelo sector privado. Em termos de emprego, o sector empregou 13,3 % da população empregada em 1995, passando a empregar cerca de 10,6 % em 2012. Como é possível constatar, a evolução da RAM condicionou a caracterização sectorial da economia, tendo sido clara a afirmação do sector terciário, que, em 2011, dava emprego a cerca de três quartos da população empregada, nomeadamente a 73,13 %, representando cerca de 85,26 % do investimento na Região.   Alberto Vieira  Sérgio Rodrigues (atualizado a 02.01.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social

teatro, história do

Em Portugal até ao séc. XV circunstâncias de ordem política e social fazem da poesia dramática uma forma acidental de arte e inibem a cultura e os costumes tradicionais destinados ao povo. No séc. XVI a Igreja permite que o povo participe na liturgia, cujas formas são essencialmente dramáticas. Estas mantêm-se assim unidas aos costumes e festas populares, dando seguimento a uma corrente oposta à da erudição humanista da Renascença que valorizava as comédias clássicas. Com o surgimento de povoadores na ilha, como o moçárabe, a poesia de reminiscências medievais, une-se ao figurado e à melopeia das composições árabes, caracterizando os primeiros esboços de arte referidas pelos autores. No séc. XVII, o teatro assume um papel de diversão e de reflexão crítica e nos séculos seguintes são fluentes os nomes de autores naturais da ilha ou que por ela tenham passado. No séc. XIX as publicações dedicadas ao teatro multiplicam-se, dado o impacto que têm na sociedade. Palavras-chave: teatro, drama, poesia dramática, liturgia cristã, povo, costumes, festas populares, Renascença (da Itália), comédias clássicas, povoadores, moçárabe, poesia de reminiscências medievais, composições árabes. O texto dramático integra-se no modo literário do drama. É constituído por um texto principal e por um texto secundário; enquanto o primeiro contém réplicas, atos linguísticos realizados pelas personagens, o segundo é formado por didascálicas ou indicações cénicas. No texto dramático monológico, apesar de não existirem réplicas, os elementos dialógicos podem estar presentes de forma implícita ou latente. Desprovido de narrador, a ação subordina-se às exigências do conflito, o tempo é relativamente condensado, o espaço é rarefeito, as personagens supérfluas são eliminadas e os episódios laterais são abolidos, dado destinar-se a ser representado e encenado por atores que, no palco, são peças fundamentais. O teatro tem origem na Grécia antiga, nas homenagens religiosas ao deus Dionísio. Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes e Antífanes figuram entre os principais autores dramáticos deste período. A comédia, a tragédia, a tragicomédia, o auto e a farsa são as espécies que representam o género e prosperam ao longo dos séculos. A comédia tem o quotidiano como temática, satirizando os defeitos humanos e a sociedade em geral. Aristóteles defendia que era a imitação de seres humanos inferiores, não quanto a toda a espécie de vícios, mas apenas quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. As personagens eram estereótipos das debilidades humanas, como o rabugento, o avaro, o apaixonado e o mesquinho; clichês que se disseminam pela história, principalmente na Europa. A estrutura consiste numa situação inicial complicada, que finaliza bem. Ainda do ponto de vista de Aristóteles, a tragédia, imitação de uma ação de carácter elevado, suscita o terror e a piedade, e tem como objetivo a purificação das emoções. Tem um carácter mais sério e solene, e personagens humanas pertencentes às classes nobres, como reis e príncipes, que sofrem às mãos dos deuses e do destino. A estrutura parte de uma ação inicial feliz, que tem um final trágico. A temática é baseada no sofrimento e no infortúnio do protagonista. A tragicomédia é uma obra dramática que matiza elementos trágicos e cómicos ou risíveis. Aristóteles é também um dos primeiros pensadores a utilizar o conceito, salientando que os dois géneros utilizam na sua composição a mesma métrica, os mesmos cantos e os mesmos ritmos. O auto é uma peça curta, geralmente de conteúdo religioso ou profano e, sobretudo, simbólico, uma vez que as suas personagens não são humanas, mas entidades abstratas, como a hipocrisia, a bondade, a luxúria, a virtude, entre outras. É representado por ocasião das grandes festas religiosas, nos pátios ou no interior das igrejas, e muitas vezes nas praças. A farsa, surgida por volta do séc. XIV, é normalmente uma pequena peça teatral, que tem como objetivo satirizar os costumes e despertar o riso por meio da representação de situações ridículas, grotescas ou engraçadas. Na verdade, para António de Sousa Bastos, atendendo à etimologia, drama é toda a obra teatral, trágica, dramática, cómica ou burlesca; o termo evoluiu semanticamente, passando a designar qualquer peça teatral, em prosa ou verso, que constitua um meio-termo entre a tragédia e a comédia. Embora sério na essência, o drama admite todo o género de personagens e exprime toda a sorte de sentimentos. As peças dramáticas possuem um carácter comovedor e uma forma mais familiar do que a tragédia, mas aproximam-se dela pela natureza e complicação dos acontecimentos, tirando da comédia os seus processos de intriga, a linguagem natural e a cópia dos costumes e situações vulgares da vida. De modo mais preciso, António Sousa Bastos diz-nos o seguinte: “A peça literária é aquela cuja forma, mais ou menos teatral, é todavia primorosa no conceito, nos caracteres e especialmente na linguagem” (BASTOS, 1994, 84). É precisamente este conceito de peça que envolve o de literatura dramática. Deste modo, a representação teatral é inseparável de uma literatura que lhe dá corpo e que é a matéria que a sustenta. Em Portugal, mormente na Madeira, a literatura dramática acompanha a história da nação. Uma vez que circunstâncias de ordem política e social fazem da poesia dramática uma forma acidental de arte e inibem a cultura e os costumes tradicionais destinados ao povo, pode afirmar-se que, até ao séc. XV, a fórmula de Shakespeare, “the form and pressure of the times” [a forma e a pressão dos tempos] não se aplica à realidade portuguesa. À medida que o elemento moçárabe que compõe a raça portuguesa perde relevância, o fisco, a enfiteuse manuelina, os dízimos, os exércitos permanentes, as ordens mendicantes, a desigualdade social e o fanatismo religioso dificultam a subsistência da classe social mais baixa e a sua arte espontânea e criadora. O elemento aristocrático ou leonês, que compõe a linha de fronteira entre Espanha e Portugal, vive na ociosidade da corte e promove passatempos nas festas reais, uma moda seguida na Europa, que os monarcas portugueses se prezam de imitar; condicionalismos que projetam as principais tradições da nação para as páginas das crónicas monásticas. O povo não as conhece, de modo que Portugal quase fica sem festas nacionais. Os ensaios dramáticos surgem a partir das tradições épicas da Idade Média de dois dialetos franceses, frequentemente chamados línguas do sim, a língua d’ oil e d’oc (“oc” significava “sim” no sul de França e “oil” tinha o mesmo significado no norte). A língua d’ oil vulgariza o nome de Bon Amis entre o povo. D. Sancho I concedeu o feudo de umas terras do Douro a um farsante ou bobo chamado Bonamis, a seu irmão, Acompaniado, e aos descendentes. Segundo Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo foi precisamente um serviço feudal grotesco que fez com que aparecesse em Portugal a palavra “arremedilho” que o estudioso interpreta como uma espécie de farsa mímica, “farsas em miniatura, dotadas de música e, sobretudo, de um ‘texto’ escrito segundo o esquema do contraste, pelo que a recitação deveria ser confiada a um par de atores pelo menos” (PICCHIO, 1964, 33); “embora, arrimidilum, longe de ser sinónimo de entremez ou farsa e de provar a vetusta existência de um ‘género’ típico da tradição dramática portuguesa, equivalia, pelo contrário, [...] a ‘imitação burlesca’ prometida ao soberano por jograis remedadores, isto é, por bobos cuja especialidade consistia em ridicularizar o próximo macaqueando-lhe o semblante” (Id., Ibid., 33-34). O conceito de bonifrates enraíza nesta época. Foi pela influência da língua d'oc na aristocracia portuguesa que nos primeiros séculos da monarquia se conheceram as “cortes de amor”, que têm vagas analogias com os espetáculos cénicos. No Cancioneiro da Ajuda, que exclui os géneros mais vulgares, nas cantigas de escárnio e de maldizer, existem versos que aludem àquelas “cortes”, ao debate entre damas e cavaleiros de uma casuística sentimental, de que são exemplo os seguintes: “E vej'a muitos aqui razoar / Que a mais grave coita de soflrer / Veela ome, e ren non lhe dizer, etc.” (BRAGA, 1870, 6). Por seu turno, o povo desconhece essa poesia subtil e canta as suas prosas e hinos farsis na liturgia cristã, até que a pressão do catolicismo lhe impõe silêncio. O espírito aristocrático procura banir o costume simples e natural do vulgo e proíbe uma poesia dramática arreigada a costumes populares. Deste modo, no séc. XVI, ao contrário do que se passa na centúria anterior, quando o teatro encontra condições sociais e mentais de desenvolvimento favoráveis, como os papas se tornam príncipes temporais, a Igreja mostra-se aristocrática e afasta o povo da participação na liturgia. Francisco I de França e o Parlamento são, por vezes, severos nas repressões para os que representam farsas e comédias políticas, aplicando-lhes a censura prévia. Cronologicamente, estas proibições coincidem com a condenação eclesiástica que se encontra geralmente transcrita nas Constituições episcopais portuguesas, que excluem da liturgia as representações populares. Em 1534, lê-se nas Constituições do Bispado de Évora: “Defendemos a todas as pessoas eclesiásticas e seculares de qualquer estado ou condição que sejam, que não comam nas igrejas, nem bebam, com mesas nem sem mesas, nem cantem, nem bailem em elas, nem em seus adros, nem os leigos façam seus ajuntamentos dentro delas sobre cousas profanas; nem se façam nas ditas igrejas ou adros delas jogos alguns, posto que sejam vigília de santos ou dalguma festa; nem representações que sejam da Paixão de Nosso Senhor J. C., ou da sua ressurreição, ou nascença, de dia nem de noite, sem nossa especial licença; por que de tais autos se seguem muitos inconvenientes, e muitas vezes trazem escândalo no coração daqueles que não estão mui firmes na nossa santa fé católica, vendo as desordens que nisto se fazem” (BRAGA, 1898, 72). Repetem esta proibição de representar autos da Paixão, da ressurreição e da natividade nas igrejas as Constituições episcopais de Lisboa, em 1536, de Braga, em 1537, de Angra, em 1559, de Lamego, em 1561, de Miranda, em 1536, e do Funchal, em 1538. Contudo, consentem a persistência do costume com especial licença do ordinário ou bispo. Esta proibição canónica remete para a existência de um teatro hierático em Portugal nos três últimos séculos da Idade Média, que chega ainda à Madeira, e mostra também que não são somente espetáculos religiosos que se usam. As formas litúrgicas do cristianismo são eminentemente dramáticas e o povo, que não abandona rapidamente os costumes, toma parte nas cerimónias do culto. Embora se reconhecessem nesses autos hieráticos a persistência de costumes, as manifestações populares são toleradas com uma certa benevolência. Tal como se lê num decreto da Universidade de Paris em 1444: “Os nossos predecessores, que eram grandes personagens, permitiram estas festas. […] Nós não fazemos todas estas cousas a sério, mas por jogo, para nos divertirmos segundo o antigo costume, para que a tolice (folie) que nos é natural se expanda uma vez por ano. Os toneis de vinho rebentariam, se lhes não dessem ar por vezes […]. É por isso que consagramos alguns dias ás representações e chocarrices” (BRAGA, 1898, 73). Com este espírito, os mistérios, os milagres e as moralidades passam de formas hieráticas a farsas políticas e sarcásticas comédias burguesas. Gil Vicente apropria-se desses elementos tradicionais e exerce sobre eles o seu génio dramático. Na verdade, essas formas de teatro podem desenvolver dramas sacros, poemas narrativos e sequências líricas; outros ficam na espontaneidade dos costumes populares, como os dramas da vida quotidiana. Deste modo, as formas dramáticas mantêm-se unidas aos costumes e às festas populares e a obra de Gil Vicente, colocada na transição do séc. XV para o XVI, surge dessa tradição. As vigílias do Natal são a primeira forma da sua escrita e muitos dos seus autos continuaram a ser representados em igrejas. Inspirado no espírito de tolerância racional, resiste aos obstáculos, cuja tendência é reprimir a sua obra e a fundação do teatro nacional. Desprovidos de raízes étnicas e com simpatia pela Idade Média, os seus autos não poderiam vencer a corrente da erudição humanista da Renascença que impõe ao gosto da corte, da Universidade e dos solares da fidalguia as comédias clássicas e as suas imitações italianas. Garcia de Resende afirmava aliás que o criador do género dramático não fora Gil Vicente, mas o espanhol Juan del Enzina. Na verdade, Gil Vicente mantém o interesse e a atenção do povo, a sua obra tenta resistir ao Tribunal do Santo Ofício, à presunção das tragicomédias dos Jesuítas, que pretendem sobrepor-se ao teatro popular, e também às comédias clássicas. Para Duarte Ivo Cruz, um teatro litúrgico religioso, um teatro popular e jogralesco e um teatro de origem cortesã, provenientes da época medieval, atingem a faixa ocidental da Península Ibérica naquela época. Estes três ramos dramatúrgicos não são estanques, embora o filão litúrgico, quase todo perdido, tenha sido o mais praticado. Na Madeira, Balthazar Dias, nascido em finais do séc. XV, é considerado o principal contemporâneo de Gil Vicente e um dos principais expoentes da literatura dramática portuguesa. No entanto, já no alvor da centúria, afluem à Ilha, a passos brandos, povoadores como o moçárabe, elemento importante do povo que traz consigo o carácter português e o que a arte popular e tradicional possui de original. É precisamente a fusão com as “correntes estranhas”, transportadas pelos povoadores, que dá à literatura uma originalidade própria. A poesia de reminiscências medievais, unida ao figurado e à melopeia das composições árabes, caracteriza os primeiros esboços de arte, a que vários autores fazem referência. Por seu lado, os capitães donatários dão continuidade à vida palaciana, já que a aristocracia permanece parte do tempo no continente, enquanto na Ilha se erguem os seus palacetes. Analisado o teor de várias composições de diversos poetas fidalgos madeirenses, pode verificar-se que se aproximam das do reino, como acontece com os poetas inseridos no Cancioneiro de Garcia de Resende. Autores como Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, o visconde do Porto da Cruz, o conde de Sabugosa, Francisco Trigoso de Aragão Morato, entre outros, fazem o historial dessa poesia de contornos dramáticos que tão bem caracteriza essa época. Atesta este estudioso que a forma mais usada nos divertimentos cénicos da corte de D. Afonso V e de D. João II é justamente a mímica, e que os momos, acompanhados de dança, nem sempre são mudos, já que alguns dizem palavras apropriadas ao carácter das pessoas que representam. No casamento da Infanta D. Leonor, precisamente irmã de D. Afonso V, com o Imperador Frederico III de Habsburgo, representam-se vários momos, a que um poeta do Cancioneiro Geral também chama autos, como pode ler-se no seguinte verso: “Eram vossos tempos Autos/Nas festas da Imperatriz/Mas agora calar chyz/Nem é tempo de crisautos” (fl. 47, v, col. 2.). Duarte de Brito é o autor dos versos e o visado é João Gomes da Ilha, dois madeirenses ilustrados constantes do Cancioneiro. Apesar da controvérsia sobre a naturalidade do autor, tal como a relata João de Freitas Branco, o compositor tem ligações à Ilha e a ilhéus e fornece dados de valor irrefutável sobre as criações literárias da época. Quanto a D. Afonso V, é por mais evidente que conhece a primeira Renascença da Itália: manda aí estudar os artistas portugueses e chega a visitar a corte francesa, na qual são muito usados os divertimentos dramáticos, tal como se pode ler no poema seguinte: “Por Framengos, Genoveses Froreniyns e Castelhanos/mal nos vindo/com seus novos entremezes dam-nos trinta mil avanos,/vam-se rindo” (BRAGA, 1970, 8). Também D. João II, à semelhança de seu pai, manda os artistas portugueses fazer aperfeiçoamento em Itália e mantém relações diretas com Angelo Poliziano, um dos primeiros que no séc. XV inicia em Itália a imitação do teatro clássico, e cuja obra-prima, Orféo, é escrita para uma festa palaciana. Nos divertimentos dos serões da corte de D. João II encontra-se uma representação cénica criada pelo conde de Vimioso, que Garcia de Resende conserva. O que se passa fora dos palácios, o popular, está pouco documentado e conduz a opiniões controversas, no que respeita à existência de uma literatura original, embora não seja completamente desconhecido. Relativamente a Baltazar Dias, não se sabe ao certo onde nasce, mas sabe-se que passa grande parte do tempo no continente, onde vem a falecer. Barbosa Machado, uma das principais e mais antigas fontes de conhecimento do autor, afirma “que foi um dos celebres poetas que floresceram no reinado de D. Sebastião, particularmente na composição de autos, com a circunstância de ser cego de nascimento” (MACHADO, I, 1741, 446). Nas mais diversas histórias de literatura e de dicionários de teatro, é citado como o “poeta popular” mais incontestável. Na verdade, os conhecimentos literários que revela mostram que aprendera as formas e os temas poéticos elementares da atmosfera espiritual da Ilha, o que lhe permitiu criar obra memorável. Tradições medievais, lendas de santos, gestos de paladinos, amores desventurados, mágoas de exílio e visões de peregrinos, são uma presença na alma dos insulares que marca o espírito deste poeta. A corrente humanista apenas o influencia ligeiramente, como se pode constatar num requerimento que dirige a D. João III para publicar os seus autos e trovas; no texto, declara que é natural da ilha da Madeira, que cantou vidas de santos, que animou na técnica gótica dos seus autos, que celebrou feitos de heróis portugueses, como D. João de Castro, e que riu dos disparates da época e da variedade das mulheres. Álvaro Rodrigues de Azevedo destaca-o como contemporâneo de D. Sebastião e autor de vários autos dramáticos, uns sacros e outros profanos, à semelhança de Gil Vicente. Parte das obras do autor, mencionadas por Inocêncio da Silva, tem grande divulgação em várias edições: Auto de St.º Aleixo, edições de 1613, 1616, 1638, 1749 e 1791, Auto de El-Rei Salomão, edição de 1613, Auto da Paixão de Cristo, edição de 1613, Auto da Feira da Ladra, edição de 1613, Auto de Santa Catharina, Virgem Mártir, edições de 1610, 1038, 1659, 1727, 1786, Auto da Malícia das Mulheres, edições de 1640 e 1793, Auto do Nascimento de Cristo, edição de 1665, Conselhos Para Bem Casar, edições de 1638, 1659, 1680, História da Imperatriz Porcina, Mulher do Imperador Lodonio de Roma, edição de 1660, Trovas de Arte Maior Sobre a Morte de D. João de Castro e Tragédia do Marquez de Mantua, edição 1665. No séc. XVII, Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723) enriquece a literatura dramática madeirense com a sua obra. É bacharel em leis, formado na Universidade de Coimbra entre 1686 e 1697. Em 1697, é nomeado ouvidor da Capitania do Funchal. São famosos os seus poemas à morte de D. Pedro II, sucedida em 1706, e um elogio dramático em honra do governador e capitão-general da ilha da Madeira, João de Saldanha da Gama, quando termina o seu governo em 1718. O elogio dramático, representado em 1718 pelas freiras de Santa Clara, possui um argumento simples. A peça, intitulada Residência do Governador e Capitão General da Ilha da Madeira, é uma obra de arte viva, cuja ação assume a função de pedagogia política, já que evidencia sentido de justiça e de razão, princípios que devem nortear a conduta humana perante um mundo cheio de controvérsias e de excessos. O objetivo é, precisamente, mostrar ao leitor e ao espectador essas imagens e abrir um espaço de reflexão sobre os princípios que devem orientar o comportamento dos homens. Decorrido num só ato e em seis cenas, o autor apresenta ao espetador uma espécie de julgamento em praça pública, em que as personagens principais não são mais do que (falsas) testemunhas de acusação e o réu é o Gov. João de Saldanha. Na estrutura interna, a ação é dividida em três partes: a exposição, que corresponde ao momento em que as personagens abstratas – a corte, a Ilha, a saudade, a religião, a justiça e a fama – vão sendo apresentadas, por ordem decrescente de importância; o conflito, que diz respeito aos argumentos de acusação que cada uma das personagens vai expondo contra o governador; e o desenlace, momento em que se chega a um veredicto final. A corte, símbolo do poder régio e da virtude soberana, é a primeira personagem a entrar em cena, a cantar e a incitar a que se apresentem as queixas relativas ao governador. O teatro assume um papel de diversão, de arma pedagógica e de espaço para a reflexão crítica, já que demonstra que o verdadeiro governador é aquele que é constante, humilde, justo, dono da verdade e da razão. Enquanto no séc. XVII apenas há registo do elogio dramático atrás referido, a partir da centúria seguinte abundam os nomes de autores naturais da Ilha ou que por ela passaram. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo Menezes, Sousa Bastos, Inocêncio da Silva e, mais recentemente, Luiz Francisco Rebello, fazem o historial dos múltiplos escritores e das principais obras dramáticas. Joaquim de Menezes e Ataíde (1765-1828) é o primeiro autor destacado, que Inocêncio da Silva considera um distinto escritor, apesar de a maioria das suas composições poéticas e dramáticas ter sido publicada por Luiz José Baiardo, seu secretário durante vários anos. Nascido na mesma década, Manuel Caetano Pimenta de Aguiar (1765-1832) inscreve o nome na história da literatura dramática da Madeira com uma vasta produção dramática, sendo por muitos considerado o precursor de Almeida Garrett. O curso de artes e ciências feito em França dá-lhe a intuição de que em Portugal não há um verdadeiro teatro, razão que o leva a cultivar os trágicos franceses. Com esse espírito, escreve tragédias, apresenta uma obra original e desperta o gosto para este género literário. Começa a publicar em 1816 e, num curto período, imprime dez tragédias escritas em verso, intituladas Virginia, Os Dois Irmãos Inimigos, D. João I, Arria, Destruição de Jerusalém, D. Sebastião em Africa, Conquista do Peru, Eudoxia Liciana, Morte de Socrates e Carácter dos Lusitanos. Fernando Augusto da Silva e Carlos Menezes citam a representação de um drama seu em três atos, intitulado A Festa do Olimpo, no Teatro Grande, em 1822. No último quartel do século, Luiz José Baiardo (n. 1775) é sobejamente conhecido por publicar em seu nome, como já se referiu, a obra de Joaquim de Menezes e Ataíde, bispo do Funchal. Dada a sua paixão pelo teatro e a sua inibição de figurar como autor, o clérigo cede a sua obra a Luiz José Baiardo, seu fâmulo, consentindo que a divulgue como sua. A partir de 1821, já em Lisboa, Baiardo escreve peças originais e traduz outras. Da sua autoria são: O Moiro de Ormuz, comédia mágica representada pela primeira vez no Teatro do Salitre, em 1826, Valadomir Elevado ao Throno de Seus Maiores, O Combate de Touros, Gullistan, O Marquez de Pomhal ou o Terremoto de 1785, A Virtude Triumphante ou os Mágicos de Granada, Hariadan Barha Roxa, As Luvas Amarellas, Christierno Rei de Dinamarca, Templo da Innocencia, Figaro, O Delator, Alberto I, O Caminho Escuro, Gullistan, Miguel Valadomir, etc. Em 1838, redige um periódico semanal, Atalaia dos Teatros, do qual saem alguns números, mostrando mais uma vez a paixão pela representação e pelo género dramático. José Anselmo Correia Henriques (1777-1831), natural da Ribeira Brava, segue a carreira diplomática em vários países europeus e também no Brasil, no Rio de Janeiro, onde desempenha cargos da confiança do príncipe regente, quando a corte e o governo português ali estão estabelecidos. Embora se tenha dedicado mais à poesia, cultiva a tragédia e a comédia, e publica traduções, nomeadamente de uma comédia intitulada A Escola do Escandalo, composta por Ricardo Brinsley Sheridan. Da sua autoria são as tragédias A Revolução de Portugal e Mesquita. A sua obra encontra-se publicada em Paris, Londres, Hamburgo, Veneza e Christiania, o que indica que terá passado algum tempo nessa cidade, no exercício de funções consulares ou diplomáticas. Luiz da Costa Pereira (1819-1893) é considerado um homem do teatro pelos autores do Elucidário Madeirense, dada a sua vocação para autor, ator, ensaiador e diretor técnico. Efetivamente, exerce o cargo de comissário régio no teatro D. Maria, e é professor de declamação e da arte de representar no Real Conservatório de Lisboa. Camilo Castelo Branco elogia o seu trabalho de encenador. Traduz e adapta à cena portuguesa algumas peças de teatro estrangeiro e escreve o livro Rudimentos da Arte Dramática, de que só publica a primeira parte. Entre as peças que traduz conta-se Calumnia, de Scribe. Manuel Luís Viana de Freitas (1820-1861) destaca-se com um drama intitulado D. Luiz d'Athayde, e por ser sócio correspondente do Instituto Dramático de Coimbra, dada a sua paixão pelo teatro. Sérvulo de Paula Medina e Vasconcelos (1822-1854) é redator do periódico Beija-Flor e funcionário público nas ilhas de Cabo Verde. Em 1845, publica no Funchal um drama intitulado Amor e Pátria, que foi estreou no teatro Concórdia, em 1844. Em Cabo Verde, é redator do Boletim Official, onde publica o romance Um Filho Chorado. João de Andrade Corvo (1824-1890) distingue-se como jornalista, político e escritor. O desempenho de elevados cargos públicos proporciona-lhe um conhecimento dos problemas reais do país e sensibilidade em assuntos de carácter social, como a abolição da escravatura e a emigração, e condu-lo ao público através do texto dramático. Na altura em que o oidium tuckerii chega à Madeira, Andrade Corvo desloca-se à Ilha a fim de estudar essa enfermidade da vinha. A peça O Alliciador retrata esses tempos, a situação dos camponeses, decorrente dos “contratos de colónia”, e os dramas do aliciamento e da emigração clandestina, uma necessidade para muitos madeirenses. O drama é representado no teatro D. Maria II, em Lisboa. Outro dos autores que se destaca é Álvaro Rodrigues de Azevedo (1824-1898). Após a obtenção da licenciatura em Direito, na Universidade de Coimbra, desloca-se de Vila Franca de Xira para o Funchal em 1856. A par da carreira de professor, faz investigação da história da Madeira, envolve-se na vida política, escreve para a imprensa, dirige periódicos e publica uma vasta obra. Sensível aos problemas sociais dos madeirenses, bem como aos seus usos e costumes, escreve o drama A Família do Demerarista, sobre o madeirense que enriquece nos países de emigração à custa do seu trabalho e regressa à terra natal com vontade de ajudar a família e os da terra – contrariando os retratos feitos por João de Nóbrega Soares e Andrade Corvo, que o descrevem como um explorador dos seus compatriotas. João de Nóbrega Soares (1831-1890) é professor e jornalista. Como escritor, cultiva vários géneros literários, entre eles o dramático. São de sua autoria as peças Qual dos Dois?, Um Quarto com Duas Camas e A Virtude Premiada. Esta peça é um drama de atualidade que contém no final um conjunto de notas sobre vários pontos geográficos da Guiana Inglesa que são, precisamente, o espaço em que se movimentam as várias personagens ligadas à emigração de madeirenses no ano de 1861. Na verdade, João de Nóbrega Soares viaja por África e pela América do Norte e percorre o trilho dos portugueses naquelas terras, o que lhe permite fazer retratos aproximados dos dramas de muitos conterrâneos seus ao longo do séc. XIX. A peça é representada no teatro Esperança, na Madeira, colhe os maiores aplausos, e o autor confirma que a literatura dramática é o género que melhor retrata o crer e o viver do povo. Ao escrever a peça, o seu principal objetivo fora esclarecer e proteger os camponeses que na época emigravam engajados para terras longínquas, à procura de trabalho e de uma vida melhor. M. Knowler visita a Madeira em 1845 e profere no Funchal uma série de seis conferências sobre poesia dramática, nas quais revela elevado conhecimento do assunto. Encontram-se publicadas em Inglaterra e contêm referências à passagem do autor pela Ilha. Eugénio Maximiliano Azevedo (1850-1911) inicia-se na escrita dramática ainda jovem, sobretudo com comédias. Fazem parte desse tempo Por Força!, Paulo, Santos de Casa... e Duas Crianças, representadas no Teatro Ginásio, entre 1873 e 1874, e Vida Airada, representada no teatro D. Maria, em 1875. Na mesma época traduz A Familia Mougrol, de grande sucesso no Teatro Ginásio, e Um Fura-vidas, imitada da comédia italiana Un Uomo d’Affari. Nas décs. de 80 e de 90 escreve Os Annos da Menina, O Epílogo, Cinta e Bordão, representadas no Teatro Ginásio e no teatro D. Maria, e O Crime das Picôas, representada no teatro do Príncipe Real. A peça original de maior valor é o drama histórico Ignez de Castro, representada no teatro Príncipe Real de Lisboa, na rua dos Condes, no teatro Príncipe Real do Porto, na rua Nova de Sá da Bandeira e, por fim, no teatro Lucinda, do Rio de Janeiro. Para uma sociedade de amadores faialenses escreve a comédia de costumes açorianos Ralham as comadres…, representada em 1879 no teatro União, da Horta. A peça é representada na Madeira em 1901. Do seu rol de traduções e de imitações, fazem parte Os Jesuitas, Tosca, Causa Celebre, Purgatório de Casados, A Mendiga, O Amor, O Convento do Diabo, As Surpresas do Divorcio, Naná, O Az de Paus, Os Filhos do Capitão Grant e A Honra. O primeiro trabalho do autor a aparecer no teatro é a comédia Entre a Vitima e o Carrasco, traduzida do espanhol. Para além de escritor dramático, é, em final de vida, crítico teatral e comissário régio do teatro Normal. O seu nome é uma presença constante na história do teatro madeirense, pelo impulso e apoio dado à subida ao palco da peça Guiomar Teixeira, de João dos Reis Gomes. Também João de Freitas Branco (1854-1910) se distingue na literatura dramática, na crítica, na escrita de originais e na tradução de peças estrangeiras. Depois de ter viajado e permanecido alguns anos fora do país, em Inglaterra, França, e especialmente na Áustria, onde adquire conhecimentos de línguas estrangeiras, regressa a Portugal e divulga os trabalhos dos dramaturgos mais famosos do norte da Europa, Suécia, Dinamarca e Alemanha, traduzindo diretamente dos originais as suas principais obras. Entre elas, contam-se a Casa da Boneca e o Esteio da Sociedade, de Ibsen, Uma Fallencia, de Bjornson, Penedos do Inferno, de Blumenthal e O Fim de Sodoma, de Sudermann. Sousa Bastos, em A Carteira do Artista e no Diccionario do Theatro Portuguez, elenca a obra traduzida pelo madeirense e a que sobe aos palcos dos mais importantes teatros de Lisboa, o teatro D. Maria e o Teatro Ginásio. Luiz António Gonçalves de Freitas (1858-1904), chefe de repartição no Governo Civil de Lisboa, administrador de concelho e deputado, redige e colabora em importantes jornais, embora os trabalhos literários sejam a sua paixão. Aos 12 anos, em 1871, “publicava o seu primeiro livro original, Phantasias, ensaios litterarios e a sua tradução do Monge de Kremsmanster de Alphonse Karr” (BASTOS, 1898, 495). O seu primeiro trabalho do género dramático é a opereta escrita em verso A Pupila de Beltrão, para ser representada pelos alunos do 5.º ano do curso de Direito de 1879/1880. A peça é levada à cena pela primeira vez no Teatro Académico de Coimbra, em 1880. Em 1886, em homenagem a Leopoldo Carvalho, Noite de Núpcias é representada no Ginásio e posteriormente nos teatros da rua dos Condes e Avenida. Em 1897, sobe à cena no teatro da rua dos Condes a sua ópera cómica Pif! Puf! Publica também, entre dramas, comédias e operetas, À Beira do Abismo, Sob as Cinzas, traduzida de Charles Méronvel, O Club dos Perigosos, Rachel, Por Causa d´Um Cabelo, Pecados da Mocidade e Velha Farça. É sócio e diretor da empresa que explora o teatro Avenida, dado o seu gosto pelo drama e pela representação; traduz para esta empresa, em parceria com Sousa Bastos, uma opereta em três atos, Josephina Vendida por Suas Irmãs. João dos Reis Gomes (1869-1950), militar de carreira, professor do ensino secundário e técnico, jornalista e crítico de arte, na sua qualidade de autor, escreve obras de cariz histórico, filosófico e dramático. O Teatro e o Actor, em 1905, A Música e o Teatro, em 1919, e ainda Figuras de Teatro, em 1928, são obras que distinguem este escritor. Em 1912, escreve o drama Guiomar Teixeira, extraído da sua novela madeirense A Filha de Tristão das Damas. A peça é representada por amadores em 1913; pela Companhia Vitaliani-Duse em 1914; e em 1922, por ocasião das festas da comemoração do V centenário da descoberta da Madeira, novamente pelo primitivo grupo de amadores, embora com algumas substituições. A obra é um expoente da literatura dramática da Madeira, pelos motivos históricos retratados e porque a estreia oferece a novidade de fundir o cinema e a ação dramática. Efetivamente, é a primeira vez que em Portugal se utilizam efeitos especiais cinematográficos como o pano de fundo, e que estes se combinam com a representação dos atores. Maximiliano de Azevedo impulsiona a estreia da peça em Lisboa, dado ser um homem de teatro e ter conhecimentos que satisfaziam as ambições da representação do autor da peça. Francisco Bento de Gouveia (1874-1921) colabora numa revista que foi levada à cena no teatro Manuel de Arriaga. No final de século, em 1877, Olimpia Pio Fernandes escreve um drama intitulado Alda ou a Filha do Mar, que foi representado no Funchal. As principais cenas da peça são publicadas pela imprensa regional, com a qual colaborou. Francisco Jorge de Abreu (1878-1932) é jornalista de profissão. Além de muitos artigos disseminados por vários periódicos do Funchal, de Lisboa e do Porto, traduz várias peças teatrais. José Jorge Rodrigues dos Santos, ou apenas Jorge Santos (1879-1958), segue a carreira diplomática na Suécia e na Dinamarca. É autor de três peças dramáticas representadas no teatro nacional: em 1903, Crime de Amor, que põe em cena um caso de incesto, e A Festa da Actriz, uma derivação da estética naturalista; e, em 1908, Mar de Lágrimas, escrita em colaboração com João Gouveia. Escreve ainda Rosa Enamorada e uma peça de costumes madeirenses, Vinho Novo, entregue no teatro nacional em 1903, mas que não chegou a ser representada. João Gouveia (1880-1947) é um escritor apaixonado pela aeronáutica. Da sua autoria são duas peças levadas à cena no teatro nacional, nomeadamente Engano de Alma, em 1904, e Mar de Lágrimas, em 1908, com a colaboração do seu conterrâneo Jorge Santos. Em 1912, escreve Balões e Aeroplanos. Salienta-se, igualmente, Alberto Figueira Jardim (1882-1970), bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, professor do liceu do Funchal, colaborador de alguns jornais na região e autor de uma vasta obra, que escreve uma fábula trágica, Galateia, publicada no Funchal em 1920, e a comédia Honra, Drama e a Laranja de Califa, peça em dois atos. Alfredo Freitas Branco (1890-1975), também conhecido por Visconde do Porto da Cruz, escreve Madrinha de Guerra em 1919, uma comédia cuja ação é centrada em Lisboa no ano de 1917. No mesmo ano, publica um auto designado Auto da Primavera, para o qual seu primo Luís Freitas Branco escreve uma música, e, em 1922, publica a peça A Canção de Solveig. A estes autores junta-se Álvaro Leal (1891-1931), autor de revistas e de operetas, umas escritas individualmente, outras em coautoria, como A Conferência, uma adaptação do francês, em 1924, Aqui para Nós, revista em um ato e três quadros, Jesus!, peça sacra, episódio bíblico em três etapas, de parceria com Pedro Bandeira, Isso Era d’ Antes, revista em um prólogo, dois atos e seis quadras, com outros autores, Sol de Portugal, revista em dois atos e doze quadros, com Lourenço Rodrigues, Prata da Casa, série de oito quadros de conjunto, a imitar uma revista novamente em colaboração com Pedro Bandeira. Escreve também o melodrama O Alfinete egípcio, em colaboração com Carlos Ferreira, representado apenas em tradução espanhola. É ainda autor das comédias Pegadas na Areia, da qual foi colaborador Lourenço Rodrigues, representada no teatro nacional em 1930, e Nero, escrita com Guedes Vaz. Algumas destas peças encontram-se no Arquivo Distrital do Porto. Augusto Elmano Vieira (1893-1962), bacharel em Direito pela Universidade de Lisboa em 1920, exerce o jornalismo, a advocacia e é membro da Câmara Municipal do Funchal. Como escritor dramático, colabora na revista de costumes madeirenses A Madeira por Dentro, representada no teatro Dr. Manuel de Arriaga, e na opereta regional A Menina dos Bordados, representada no pavilhão Paris. Em 1915 escreve o episódio dramático A Ultima Bênção, publicado no Funchal, em 1917. A peça é representada no teatro Circo, do Funchal, e no teatro nacional, em Lisboa, com muito sucesso, dado a gente da Ilha ser muito sensível ao tema retratado, a emigração madeirense; a ação é, pois, fundamental para esclarecer tanto os que partem para destinos transatlânticos, como os que ficam, aguardando que os seus regressem depressa. João França (1908-1996) que escreve várias peças de teatro, entre dramas, farsas e comédias, levadas à cena no Funchal por amadores, entre 1924 e 1930, nas quais representa alguns papéis. Algumas constituem grande êxito, como Mimi, O Regenerado e Amor Sem Deus. Escreve também uma opereta, Zé do Telhado, representada no teatro Avenida, em 1944, uma adaptação de O Bobo, de Alexandre Herculano, publicada em 1964 com o título O Drama do Bobo, uma comédia, Um Mundo Àparte, premiada em 1970 no concurso de originais para o teatro Maria Matos, proibida pela censura, e o monólogo Sol nas Minhas Mãos. Em 1978 publica o drama O Emigrante, peça em que retrata a emigração madeirense para a América no primeiro lustro do séc. XX. João de Brito Câmara (1909-1967) publica, em 1943, no Funchal, o Auto da Lenda, que é a descrição poética da lenda que conta os amores de Ana d’Arfat e Machim, que em tempos idos terão chegado à Madeira. Alberto Figueira Gomes (n. 1913) foi um estudioso da história insular madeirense e das fontes das principais tradições poéticas. A publicação da obra Poesia e Dramaturgia Populares no Século XVI – Baltasar Dias vai ao encontro desse gosto do autor. Em 1965, publica Encontros no Pireu, peça em um ato. Ernesto Leal (1913-2005) publica a obra teatral Afonso III, “história fabulosa e irónica de um rei sem história”. Finalmente, António Aragão (Funchal, 1921-2008) é autor de uma única peça dramática, Desastre Nu, distinguida em 1980, na qual propõe uma visão despojada e desencantada do mundo tecnocrático seu contemporâneo, dada a sua ligação ao experimentalismo dos anos 60 e 70. Em termos conclusivos, e segundo os autores do Elucidário Madeirense, a literatura dramática na Madeira foi, no início, uma articulação entre o génio dramático dos criadores e a fome, a pobreza e a necessidade. As famílias ilustres dedicavam-se à filantropia, forma de sobressaírem socialmente, algo que distingue e caracteriza o teatro na Madeira. Afirma Derrida que, quando os povos atingem um certo grau de civilização, os espetáculos são uma necessidade, “uma energia […] a única arte da vida” (MATEUS, 1977, 36). No séc. XIX, principalmente, os títulos dos jornais e outras publicações dedicadas ao teatro multiplicam-se, dado o impacto que têm na sociedade. Ao longo dos séculos, organiza-se um movimento mundano de apoio ao teatro, do meio citadino ao rural, suscitando paixões e levando-o a desempenhar um papel importante no cenário político, social e cultural de cada época.   Elina Baptista (atualizado a 10.01.2017)

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cruz vermelha portuguesa, delegação da

Para um breve enquadramento na instituição nacional, pode-se referir que a delegação da Cruz Vermelha na Madeira se integra numa vasta estrutura humanitária que é a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), fundada a 11 de fevereiro de 1865 pelo médico militar José António Marques. A CVP é uma organização não-governamental, com carácter humanitário e voluntário, sem fins lucrativos. Como tal, desenvolve a sua atividade de forma autónoma ao Estado, de acordo com os seus princípios fundamentais: “Humanidade, Imparcialidade, Neutralidade, Independência, Voluntariado, Unidade e Universalidade”. A Cruz Vermelha é a maior organização humanitária do mundo, com representação em 190 países, associada à organização do Crescente Vermelho. Estas atuam, a nível mundial, em conflitos armados ou catástrofes. No caso de Portugal, compete ao Ministério da Defesa Nacional o exercício da tutela desta organização. No começo do séc. XXI, a CVP tem a sua delegação regional da Madeira sediada no Funchal, no edifício com acesso pela R. das Mercês e pelo Lg. Severiano Ferraz, no palacete do séc. XX designado Casa dos Perestrellos e dos Franças, edifício de estrutura barroca singular na sua arquitetura e uma referência na cidade do Funchal, destacando-se o pátio interior, que possui uma pequena capela e torre sineira. A afetação da Casa dos Perestrellos e dos Franças à delegação da CVP decorreu da vontade de um dos seus herdeiros, Mário do Nascimento, que, falecido em 1941, em Lisboa, deixou em testamento o palácio de seus avós maternos à Câmara Municipal do Funchal (CMF), com o fim de se destinar a museu ou sede da delegação da CVP. Data de 1950 a concretização dessa disposição testamentária, por iniciativa do então tesoureiro da organização, Salomão da Veiga França. As origens da presença da instituição na Madeira remontam à criação da delegação da CVP da Madeira, que, segundo refere o Elucidário Madeirense, ocorreu a 9 de novembro de 1870, sem que, no entanto, tenha sido possível aceder a documentação que possa reportar as condições de funcionamento e da sua atividade à data. Pode-se referir, no entanto, que a atividade da organização na Madeira foi assegurada através de uma agência da instituição que promovia a angariação de donativos. A entrada da CVP no panorama de assistência à população da cidade e da Ilha tornou-se mais evidente no início do séc. XX. Assim, a 27 de abril de 1911 surge uma proposta da organização à CMF para instalar um posto de pronto-socorro ao serviço da população. O projeto acabou por culminar na instalação de uma delegação da CVP, que se concretizou em novembro de 1914. Ainda de acordo com o Elucidário Madeirense, foi a iniciativa do médico madeirense Dr. Eliseu de Sousa Drumond, com a colaboração de José Sotero e Silva, António Agostinho Câmara e Manuel Passos de Freitas, que contribuiu decisivamente para a criação dessa delegação. O reforço da iniciativa surge integrado no contexto do deflagrar da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e no envolvimento direto de Portugal no conflito, a partir de 1916, o que trouxe novos desafios à ação da CVP, traduzida no início oficial da atividade no Funchal da então designada delegação distrital da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha, que data de 14 de novembro de 1914 (só em 1983 passou a ter a designação de delegação da Cruz Vermelha Portuguesa na Madeira). A imprensa local, concretamente o Diário de Notícias, publicou, no dia 15 de novembro de 1914, a notícia e o anúncio de que a Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha estava a proceder à instalação da sua delegação no Funchal, em resultado da solicitação à “comissão central com sede em Lisboa” feita por “sócios vitalícios” residentes no Funchal, o “que lhes foi concedido” (DN, Funchal, 15 nov. 1914, 2). A mesma nota de imprensa dava conta da composição da direção, dos vogais e da comissão fiscal, que era assim constituída: direção (efetivos): o presidente, Luís do Rego Barreto de Barros Lima de Azevedo Araújo e Gama; os secretários, António Agostinho Câmara e Alexandre da Cunha Teles; e o tesoureiro, José Sotero e Silva. Os corpos dirigentes eram ainda compostos pelos vogais efetivos: Manuel de França Dória, Rui Bettencourt da Câmara, João dos Reis Gomes, Manuel Augusto Martins e Nuno Vasconcelos Porto. Como suplentes, o presidente, Eliseu de Sousa Drummond; os secretários, João Francisco d’Almada e Juvenal Henriques de Araújo; o tesoureiro, Ricardo José de Andrade; e os vogais, Fernando Alfredo Pitta, Francisco Meira, João Nepomuceno de Freitas, Pedro José Lomelino e Humberto dos Passos Freitas. A comissão fiscal era constituída por três membros efetivos, José Bettencourt da Câmara, Nuno Ferreira Jardim e Henrique Vieira de Castro, e pelos suplentes, Manuel Gonçalves, Pedro Goes Pita e João de Freitas Martins. Neste elenco, pode-se constatar a presença de uma grande parte da elite social ligada ao exercício de cargos administrativos e governativos, profissões liberais e comércio. O arranque da instalação da instituição contou com um donativo de 50.000 reis, pelo “benemérito titular sr. Visconde de Cacongo”, destinados a fundos. A notícia da instalação da delegação da CVP destaca ainda que, segundo os seus estatutos, então vigentes (dec. de 31 de maio de 1913), as “Delegações têm vida própria e completa autonomia na gerência e administração dos seus fundos, ocupam-se especialmente da organização e funcionamento de ambulâncias e postos de socorros em caso de desastres e epidemias, nas localidades em que estão estabelecidas” (DN, Funchal, 14 nov. 1914, 2). A partir de então, tornou-se frequente a divulgação de iniciativas beneméritas a favor dos feridos de guerra. Tal foi o caso da subscrição promovida pelo jornal O Século, sendo os fundos obtidos, segundo noticia o Diário de Notícias da Madeira de 14 de novembro de 1914, recebidos na referida agência da CVP na Madeira, seguindo depois nos vapores que asseguravam a ligação com Lisboa. A lista dos beneméritos era publicada no referido jornal da capital, segundo declarava o representante da delegação da CVP de então, Jaime de Albuquerque Mesquita. No dia seguinte, o mesmo periódico faz saber da realização de dois espetáculos de beneficência no pavilhão Paris, no Funchal, “a favor da Cruz Vermelha e de uma família belga” (DN, Funchal, 15 nov. 1914, 2), anunciando ainda outro espetáculo musical promovido pela empresa do Teatro Circo, cujas verbas arrecadadas reverteriam a favor da CVP, o que revela que ainda antes da data oficial de início da atividade da delegação da CVP ocorriam regularmente iniciativas do género a favor da instituição. A duração da Guerra e o isolamento da ilha da Madeira, ainda mais evidenciado pela dificuldade de transportes e pela insegurança dos mesmos, devido à guerra submarina, afetaram de forma marcante e duradoura a situação e as condições de vida da população madeirense, que teve de enfrentar a subida do preço dos mantimentos (cereais diversos, açúcar, farinha, bacalhau, e.g.), cronicamente escassos e caros, sujeitos a racionamento, bem como a falta de outros bens de consumo, nomeadamente o carvão. Estas dificuldades afetaram a estabilidade social, agravando o ambiente de descontentamento e provocando a degradação das condições de vida, que atingiram mesmo níveis de miséria e de carência extrema em vários concelhos e freguesias. Neste particular, é igualmente de destacar o contributo da Cruz Vermelha Americana, que em 1918, em plena crise de abastecimentos, motivada pela conjuntura da Guerra, concretizou uma iniciativa em que acudiu à pobreza da Ilha com a remessa de avultada quantidade de milho, feijão e batatas, a 17 de outubro desse ano. Fig. 1 – Fotografia da delegação da CVP da Madeira. Fonte: coleção da delegação da CVP da Madeira, s.d O ataque do submarino alemão ao porto e à cidade do Funchal, a 3 de dezembro de 1916, colocou em ação o socorro prestado pela ambulância da CVP, sob a coordenação de Luís do Rego Barreto de Barros Lima de Azevedo Araújo e Gama, aos seis feridos da canhoeira francesa La Surprise, resultantes do ataque, conduzindo-os ao Hospital de Santa Isabel. O segundo mestre da canhoeira francesa veio mesmo a falecer, realizando-se o funeral com solenidade e dando-se significativamente o segundo lugar no cortejo à ambulância da CVP, logo a seguir a uma força de infantaria, tendo igualmente marcado presença algumas autoridades locais, civis e religiosas, e ainda o cônsul francês. A cerimónia contou igualmente com a presença de “várias Damas da Cruz Vermelha, entre elas a Viscondessa de Geraz do Lima, D. Beatriz de Barros Lima” (DN, Funchal, 6 dez. 1916, 2), que se destacara na intervenção de socorro e apoio às vítimas. A 1 de dezembro de 1918, a mesma viscondessa recebeu o grau de Oficial de Torre e Espada de Valor Lealdade e Mérito, tornando-se assim na única mulher portuguesa agraciada com a mais alta distinção lusa. Os dias que se seguiram ao bombardeamento contaram com a participação da ambulância da CVP no transporte de assistência aos feridos que se achavam em tratamento, dando-se conta ainda, nas notícias da época, de que muitos foram os cidadãos, desde médicos, enfermeiros, até ao “chauffeur Remígio”, a receber louvores públicos por se terem disponibilizado voluntariamente para realizar serviços de condução e apoio à ambulância (DN, Funchal, 7 dez. 1916, 2). Por outro lado, vários barcos foram disponibilizados ao serviço da missão de socorro da CVP para os possíveis feridos do ataque no mar, tendo, para tal, os seus proprietários sido indemnizados por prejuízos causados. Elogios públicos foram igualmente dirigidos às telefonistas, “D. Elvira Amélia de Afonseca e Matos Ferreira, chefe, D. Teresa do Carmo de Seabra, D. Georgina da Purificação Figueira, D. Isabel Maria César de Seabra e D. Berta Eugénia do Nascimento”, que, no seu posto, se mantiveram ininterruptamente a assegurar as comunicações urgentes das autoridades locais, relacionadas com o que se passava no porto do Funchal e em terra (DN, Funchal, 8 dez. 1916, 2). O segundo bombardeamento do Funchal por um submarino alemão ocorreu poucos dias depois, na manhã do dia 12 de dezembro, pelas 06.20 h, provocando elevados estragos materiais em diversos pontos do Funchal, desde a área da Pontinha, ponte de São João, Trav. das Violetas, Convento de Santa Clara, R. dos Aranhas, na parte ocidental da cidade, até à zona oriental, de Santiago, ao Bom Sucesso, passando pela Qt. Mãe dos Homens, pela Qt. da Bela Vista, entre outro locais, onde também se registaram ferimentos e perdas humanas, num total de 5 mortos e cerca de 30 feridos. Desde os primeiros minutos após a queda das granadas, os serviços da CVP iniciaram a sua ação junto dos que foram mais atingidos nos locais em que os explosivos caíram, promovendo o transporte dos feridos para a sede, na R. dos Netos. A prestação dos cuidados foi assegurada pelo pessoal da CVP, sob a direção do médico-chefe, Dr. João Albino Rodrigues de Sousa, e, depois de recebidos os primeiros socorros, os feridos foram encaminhados para o Hospital Civil ou para as suas residências, consoante o seu estado. Nos dias seguintes, o Diário de Notícias noticiava a convocação de todos os feridos à sede da delegação da CVP a fim de receberem “o soro antitetânico” para prevenir o tétano (DN, Funchal, 13 dez. 1917, 2). Uma vez que o voluntariado é uma das formas de participação nas atividades abrangidas pela missão da CVP, também na delegação da Madeira esta componente se tornou uma mais-valia, contando com uma secção de voluntariado do apoio geral, constituída por voluntários dedicados a tarefas de natureza social, orientados, preparados e organizados para esse nível específico de ação. Neste sector, o voluntariado estava, nos começos do séc. XXI, representado por 30 voluntárias, sendo o organismo herdeiro da Secção Feminina da CVP, criada em 1945 por Carolina da Rocha Machado; os voluntários implementavam atividades que visavam o apoio aos idosos mais carenciados, visitas a doentes internados nos hospitais, receção e distribuição de vestuário e ainda um serviço de café oferecido aos utentes das consultas externas do Centro Hospitalar do Funchal, com géneros fornecidos por diversas entidades. Esta secção do voluntariado promovia ainda um bazar de Natal para angariar fundos e realizava, no mês de maio, um peditório anual. O voluntariado também estava presente na Coluna de Socorro Henri Dunant, criada a 19 de dezembro de 1978 e composta por voluntários habilitados para o desempenho do serviço de ambulância e de socorrismo. Desde então, a CVP passou a dispor de um piquete diário, composto por duas equipas de ambulância. Ao longo da sua atividade, esta coluna de socorro teve um papel fundamental no serviço quotidiano de emergência, mas também em momentos de maior gravidade, em que a sua intervenção sempre se revelou como sendo de grande profissionalismo e sentido humanitário, em prol das populações. Destaque-se o caso da intervenção no apoio à população durante a ocorrência das tempestades e aluviões registadas em 1993 e 2010. Com efeito, a 29 de outubro de 1993, o Funchal foi atingido, durante a noite, por chuvas torrenciais que provocaram o deslizamento de terras que encheram as ribeiras, as quais, por sua vez, não conseguiram reter as águas dentro das suas margens, provocando perdas humanas e materiais; o mesmo aconteceu no temporal de 20 de fevereiro de 2010, cujo impacto foi ainda mais gravoso. Desta vez, para além dos voluntários em exercício, apresentaram-se ao serviço antigos voluntários, atingindo cerca de 150 em ação no terreno. A CVP, a nível nacional, manifestou total solidariedade com a situação de vulnerabilidade das vítimas deste temporal e colocou à disposição da delegação da Madeira os seus meios para ajudar nesta catástrofe. A delegação da CVP na Madeira esteve desde o primeiro momento ao serviço da população madeirense. Nas primeiras décadas do séc. XXI, em coordenação com o serviço regional de Proteção Civil e Segurança Social, o apoio da CVP consistiu em assegurar, através dos seus meios, serviços na área da emergência médica e em fornecer alimentação, vestuário e medicamentos às populações com dificuldade nos acessos nas zonas altas do Funchal e de outros concelhos afetados por intempéries ou por outras situações de emergência. A CVP foi largamente interveniente em situações de emergência grave, como a que ocorreu, em 1984, num acidente com um autocarro na Pena. Os grandes incêndios que assolaram a Ilha em 2010, 2012 e 2013 contaram igualmente com o apoio dos meios da CVP à população atingida. Além disso, a instituição desenvolveu posteriormente um trabalho de apoio e acompanhamento às famílias atingidas pelos vários infortúnios. A intervenção da CVP foi igualmente fundamental aquando da visita do Papa João Paulo II à Região Autónoma da Madeira, a 12 de maio de 1991, que, pelo seu significado religioso e social, mobilizou milhares de pessoas para o centro do Funchal, bem como para o estádio dos Barreiros, onde se celebrou a missa campal. Data de 1989 a concretização de um projeto de ação no sector da educação, de que resultou a instalação do infantário Colibri nas instalações da delegação da CVP na Madeira. O projeto na área educativa foi ampliado em 1993 com a inauguração de uma nova instituição, o infantário Donamina, em substituição do anterior. Em 1999, este projeto foi complementado com a construção do Complexo Dona Olga de Brito, na Achada, constituído por um infantário, uma escola básica e um lar para idosos. A delegação da CVP manteve em funcionamento diversas estruturas no sector de Socorro e Emergência, nomeadamente a Coluna de Socorro Henri Dunant e o Corpo de Enfermagem, formado em 2001 e constituído por enfermeiros recém-licenciados que recebiam formação específica para a emergência pré-hospitalar. Este sector mantinha, em 2015, um piquete diário com duas ambulâncias, cujo funcionamento era assegurado por 120 voluntários. A Coluna de Socorro Henri Dunant prestava ainda apoio na emergência pré-hospitalar a diversos eventos ligados ao desporto e ao turismo (Festa da Flor e cortejo de Carnaval), bem como através da sua presença em arraiais, concertos ou outros eventos públicos. Além das atividades já referidas, a delegação da CVP, tal como acontece noutras regiões do país, desenvolvia neste período a Missão Sorriso, em parceria com o grupo Sonae, realizando recolha de alimentos duas vezes ao ano em todas as superfícies comerciais daquele grupo empresarial. A recolha, o inventário, o armazenamento e a distribuição dos produtos eram assegurados pelos voluntários. Ao nível do ensino do socorrismo, a organização contava com formadores habilitados em primeiros-socorros, que asseguravam os cursos solicitados por várias entidades, bem como a formação dos socorristas que prestavam serviço na CVP. Finalmente, é de realçar a ação de solidariedade desenvolvida em prol da Madeira, por diversas entidades a que a CVP se associou, através da sua delegação na Região Autónoma da Madeira, em coordenação com a Proteção Civil e com a Segurança Social regional, para apoiar a população das zonas mais atingidas pela intempérie de 20 de fevereiro de 2010, numa campanha denominada Juntos pela Madeira. A iniciativa, que contou ainda com o apoio da RTP Madeira e do grupo Sonae, angariou cerca de 1.800.000 €, destinados prioritariamente à criação de condições de realojamento para os que ficaram despojados dos seus bens e das suas casas. Deste modo, a iniciativa tornou possível a construção de um complexo habitacional no sítio da Pereira, na Serra de Água, a recuperação das casas destruídas pela grua no Laranjal, bem como a construção de quatro apartamentos no sítio das Bróteas (freguesia de Santo António), a recuperação de dois apartamentos na Quinta Grande e de outros quatro na Trincheira, em Câmara de Lobos, e ainda a recuperação de uma moradia em São Gonçalo, todos atingidos pelos efeitos nefastos do temporal e da aluvião.   Fátima Freitas Gomes (atualizado a 03.01.2017)

Sociedade e Comunicação Social

calçada madeirense: bordados de pedra a preto e branco

No séc. XVI, Gaspar Frutuoso, na sua obra Saudades da Terra, trata com admiração e elogio as “calçadas de pedra miúda” (FRUTUOSO, 1968, II, 117). De acordo com Sainz-Trueva, a utilização de seixos pretos e brancos na calçada madeirense atingiria o apogeu nos sécs. XVIII e XIX. Todavia, a partir de 1950, a atividade sofrerá um grande declínio motivado, essencialmente, pelos seguintes fatores: desinteresse por essa tradição, falta de mão de obra e de motivação da existente, pouco apreço pelo ofício, baixos salários, menor disponibilidade da pedra natural local e utilização de novos tipos de materiais para pavimentação. Ainda segundo Sainz-Trueva, “as severas mudanças no ‘rosto’ da cidade e arredores ajudaram a apagar os traços mais característicos da Madeira antiga, cada vez mais confrontada com ventos do progresso, que nem sempre contemplam da melhor forma os testemunhos de uma herança secular” (SAINZ-TRUEVA, 1991, 132 e 133). A calçada madeirense é muito anterior à chamada calçada portuguesa, dela distinta, a qual utiliza pedra facetada, de morfologia aproximadamente cúbica ou paralelepipédica, de cores preta (identificada como sendo basalto) e cinzenta-escura, branca ou rosada (identificada como sendo calcário). A calçada portuguesa, nacional e internacionalmente prestigiada, foi criada em 1842 pelo Ten.-Cor. e Eng.º Eusébio Pinheiro Furtado, quando no comando do Batalhão de Caçadores 5, que, querendo combater o ócio dos seus soldados, os pôs a revestir a parada do quartel com pedrinhas pretas e brancas. A calçada madeirense constitui uma autêntica referência histórica e patrimonial do arquipélago e é um símbolo da geodiversidade litológica local, sendo por vezes confundida com a calçada portuguesa propriamente dita. Em 2004, João Baptista Pereira Silva e Celso de Sousa Figueiredo Gomes desenvolveram um conjunto de investigações com os seguintes objetivos: caracterizar a pedra natural aplicada na calçada madeirense dos pontos de vista textural, petrográfico, químico, mineralógico e físico-mecânico; identificar os locais de proveniência da pedra natural; homenagear os profissionais com um papel ativo na preservação do secular trabalho que envolve a aplicação de pedra de seixo ou de calhau rolado, contribuindo desta forma para a preservação dos ofícios tradicionais; desenvolver uma ação pedagógica de divulgação da calçada madeirense junto da população e das entidades competentes, sensibilizando-as para a importância da preservação desta técnica, em vez de se proceder à substituição da pedra natural por outros materiais; valorizar o património edificado e dignificar a arte dos trabalhos concebidos com pedra natural, pequena e rolada. Materiais e amostragem A pedra natural local, de origem vulcânica e sedimentar, potencialmente adequada à aplicação na calçada madeirense, e que foi objeto da referida investigação, foi amostrada em depósitos de praia, em pequenos afloramentos de rocha carbonatada e em obras de recuperação de calçadas sitas nos concelhos do Funchal, de Câmara de Lobos, da Ponta do Sol, de Santa Cruz, de São Vicente e também na ilha do Porto Santo. Nos textos consultados e nos diálogos mantidos com alguns estudiosos e profissionais do sector é frequente referir-se serem os seixos brancos feitos de calcário originário de Portugal continental, tendo provavelmente servido de lastro em navios que outrora aportavam ao Funchal. Foi propósito da já mencionada investigação referir os locais de proveniência da pedra natural utilizada nas calçadas; tendo em conta, quer o levantamento já efetuado, quer a extensão da sua aplicação em todo o arquipélago, admite-se que a pedra aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte da Madeira e do Porto Santo. Atualmente, a recolha dos materiais está restringida a depósitos de algumas praias (figs. 1 e 2) – Formosa (Funchal), Porto Novo (Santa Cruz), Madalena do Mar (Ponta de Sol) e Calhau da Serra de Fora e Calhau da Serra de Dentro (Porto Santo) –, devidamente autorizada pelas autoridades regionais competentes (Secretaria Regional dos Assuntos Parlamentares e Europeus da Região Autónoma da Madeira e capitania do Porto do Funchal). A amostragem dos materiais nas praias foi feita na baixa-mar, por duas razões (fig. 1): a primeira, porque a secção da praia é mais ampla; a segunda, porque a recolha de material é feita em maior segurança durante a maré baixa.   Na ilha do Porto Santo, os calcários ocorrem entre as cotas 0-165 m, correspondendo-lhes idades compreendidas entre os 13,5 e os 18 milhões de anos (Miocénico Inferior), tendo sido neles identificados foraminíferos, celentrados, briozoários, equinodermes, crustáceos, anelídeos e grande variedade de espécies de lamelibrânquios e de gastrópodes – isto é, nos calcários figuram quase todos os grandes grupos de invertebrados, bem como restos de seláceos e algas coralinas. O paleontólogo Gumerzindo Silva atribui aos calcários da ilha do Porto Santo e dos seus ilhéus uma fácies recifal edificada sob clima tropical a profundidade que não devia exceder os 40 m; normalmente, este tipo de calcários pode exibir cor branca leitosa e/ou cor branca amarelada.No que diz respeito às rochas carbonatadas, identificadas como sendo calcários recifais marinhos, elas apresentam as cores seguintes: castanha-avermelhada, branca leitosa, branca amarelada ou branca avermelhada. Trata-se de materiais com origem no concelho de São Vicente, na ilha da Madeira (fig. 3), no ilhéu da Cal ou de Baixo e no vale da Ribeira da Serra de Dentro, ilha do Porto Santo (fig. 4). No caso dos calcários que ocorrem no afloramento do sítio dos Lameiros (à cota de 475 m), em São Vicente, eles são, essencialmente, recifais, associados a tufos de cor castanha-avermelhada, e aglomerados, cujos fósseis marinhos identificados correspondem a várias espécies de lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes, coraliários, crustáceos e foraminíferos. Dados de geocronologia isotópica apontam a idade de sete milhões de anos (Miocénico Superior) para os calcários fossilíferos. Na segunda déc. do séc. XXI, puderam ser observados alguns dos antigos depósitos de calcário recifal no sítio do Furtado da Achada do Barrinho, Lameiros, ao percorrer o itinerário turístico-geológico denominado Rota da Cal (fig. 3).   No Museu de História Natural do Jardim Botânico da Madeira pode ser observado um rico e diversificado espólio de exemplares de fósseis marinhos originários das ilhas da Madeira e do Porto Santo. No conjunto, destacam-se, entre os fósseis mais representativos, lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes e algas coralinas, fósseis que apresentam, na generalidade, um elevado grau de preservação, situação que permite a fácil identificação das respetivas espécies. Nos seixos e calhaus de rocha carbonatada aplicada na calçada madeirense observam-se os exo-esqueletos de várias espécies de fósseis marinhos (fig. 5). Aspetos texturais A população designa vulgarmente a pedra aplicada na calçada madeirense por seixo, calhau ou cascalho rolado – mas, em termos técnicos e científicos, as denominações seixo e calhau não têm o mesmo significado. Efetivamente, em termos técnicos e científicos, os referidos nomes correspondem a designações que estão intimamente relacionadas com aspetos texturais, isto é, com a dimensão e a forma das peças individuais do material pétreo. A escala granulométrica de Chester K. Wentworth, utilizada em sedimentologia, estabelece designações e limites dimensionais para as partículas constituintes dos sedimentos. Nesta escala, a designação calhau é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 256 mm e 64 mm, e a designação seixo é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 64 mm e 4 mm (fig. 6). Por outro lado, o estudo morfométrico dos materiais pétreos – isto é, o estudo das diferentes geometrias dos calhaus e seixos aplicados na calçada – permite, de acordo com a classificação de Theodor Zingg, definir que eles apresentam, normalmente, forma oblata ou discoidal. Os seixos e calhaus de rocha vulcânica apresentam-se lisos, polidos, entre arredondados e bem arredondados, e a cor escura que exibem é normalmente devida à patine que vão adquirindo ao longo do tempo, efeito da poluição e da sujidade acumulada. Tipologias e propriedades No âmbito da referida investigação, a caracterização petrográfica, mineralógica e química dos materiais pétreos (calhaus e seixos) amostrados nas calçadas madeirenses foi realizada no departamento de Geociências da Universidade de Aveiro, tendo permitido o estabelecimento das tipologias relevantes. No que diz respeito às rochas vulcânicas, utilizando a relação entre a percentagem de sílica (SiO2) e a percentagem de alcalis (Na2O + K2O) adotada no sistema classificativo das rochas vulcânicas proposto por Peter Francis, foi possível definir as litologias seguintes: traquibasalto, traquiandesito e traquito, que apresentam tonalidades que vão desde o cinzento-escuro até ao cinzento-claro (fig. 6); basalto, hawaiíto e representantes do grupo minor varieties, que inclui diversos tipos de rochas vulcânicas menos comuns; normalmente, estes tipos litológicos apresentam cor preta. Os resultados da análise química obtidos por fluorescência de raios X indicam que as amostras estudadas de seixos ou calhaus de calcário do arquipélago da Madeira apresentam teores muito baixos de sílica (SiO2) e de alumina (Al2O3), sempre inferiores a 200 ppm. Diferentemente, no caso das amostras de calcário utilizado em calçada portuguesa (técnica também presente no arquipélago da Madeira), provenientes das localidades de Porto de Mós, Alcanena, Albufeira e Lagoa, em Portugal continental, os teores de sílica (SiO2) e alumina (Al2O3) variam entre 0,40 % e 3,19 %. Assim sendo, os resultados analíticos obtidos permitem identificar a origem do seixo e do calhau de calcário aplicado na calçada madeirense, a qual está relacionada com rochas carbonatadas locais (calcário recifal muito puro). De facto, as investigações realizadas mostram que a pedra calcária aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte das ilhas da Madeira e do Porto Santo (figs. 3, 4 e 5). Por sua vez, as propriedades físico-mecânicas dos principais tipos de pedra natural utilizados na calçada madeirense foram avaliadas no Laboratório de São Mamede de Infesta (Porto), afeto ao antigo Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (posteriormente, Laboratório Nacional de Energia e Geologia). A determinação da resistência ao desgaste por abrasão em vários provetes de pedra natural foi realizada através do método de desgaste de Capon. Os resultados obtidos permitem concluir que a rocha traquibasáltica é a que apresenta menor desgaste (0,6 mm), e que o calcário recifal é a rocha que apresenta maior desgaste (4,2 mm). Se observarmos alguns pavimentos pelos quais há grande circulação de pessoas, verificamos facilmente que a superfície superior e exposta da pedra calcária se apresenta plana, ou seja, com maior grau de desgaste, quando comparada com a superfície superior e exposta da pedra vulcânica contiguamente aplicada, que se apresenta abaulada ou convexa (fig. 7). Aplicação da calçada madeirense A calçada madeirense é uma manifestação do património insular madeirense, sendo também testemunho da atividade desenvolvida por trabalhadores de ofícios tradicionais. Feita na maior parte das vezes por mãos anónimas, revela a sensibilidade naïve dos seus autores (e.g., fig. 20) e é um testemunho cultural que merece ser divulgado e preservado. Na feitura da calçada madeirense, a aplicação dos materiais pétreos no terreno poderá realizar-se diretamente sobre uma camada de solo silto-argiloso (designado localmente por cerro). Caso contrário, a aplicação dos materiais passa por diversas etapas: preparação do fundo de caixa com aplicação de tout venant sobre o terreno e colocação de pó de pedra sobre o tout venant e tirada de pontos (fig. 8); colocação da pedra segundo o seu eixo maior (isto é, para um sistema de eixos XYZ, em que X representa o comprimento máximo, Y a largura máxima e Z a espessura máxima) (fig. 9); betonagem das juntas entre as pedras, com uma mistura líquida de calda de areia e cimento, numa proporção de três partes de areia para cinco de cimento (fig. 10); calcamento e nivelamento do pavimento com calcão mecânico e acabamento com maço de madeira de plátano (fig. 11); colocação de areia fina sobre o pavimento, com o objetivo de remover o excedente da calda de cimento e, finalmente, a lavagem, a escovagem e o varrimento (fig. 12). Para se ter noção do grau de exigência que esta arte de pavimentação implica, marcou-se no chão, com motivo em espinha, a área de 1 m2. Verificou-se que em cada metro quadrado foram aplicados, em média, 1023 seixos. Este valor é elucidativo dos milhares de seixos que foram utilizados para fazer o pavimento de calçada madeirense que existe no jardim municipal do Funchal (fig. 13). Tendo em conta a proveniência dos materiais, pode dizer-se que se assemelham a praias que foram transferidas para o espaço urbano e rural. Na déc. de 1960, o Arqt. Fernando Santos Pessoa introduziu uma alteração à calçada madeirense tradicional – a variante de calçada madeirense com pedra partida; trata-se de um pavimento menos escorregadio e que oferece maior atrito ao calçado, permitindo melhor andamento e mais conforto (fig. 14).   Motivos A calçada madeirense pode ser construída utilizando unicamente calhaus e seixos de rochas vulcânicas, de tonalidade cinzenta mais ou menos escura, cuja monocromia é quebrada devido às diferentes orientações conferidas pela disposição dos materiais (figs. 14 e 17). Quando são utilizadas rochas vulcânicas e sedimentares, a policromia a preto e branco apresenta uma grande diversidade de padrões e temas geométricos e florais estilizados que ornamentam e embelezam ruas, átrios, igrejas, palácios, casas, quintais e jardins (figs. 15-22). Muitos dos motivos dos pontos do bordado da Madeira – tais como oficial, bastido, chão, corda, granitos e richelieu – foram aproveitados pelos calceteiros para serem representados na decoração da calçada madeirense. O adro da igreja de S. Martinho, no Funchal, é talvez o local que reúne a maior diversidade de padrões e de motivos geométricos e florais estilizados, com vários pontos de bordado da Madeira.   No pavimento, predomina geralmente o material mais abundante, isto é, calhaus e seixos de rochas vulcânicas, sendo apenas utilizadas rochas sedimentares para realçar alguns aspetos florais, brasões de armas, monogramas, datas e a cruz de Cristo (figs. 23 e 24). Os pavimentos de calçada madeirense apresentam pouca reflexão da luz e são facilmente limpos utilizando a tradicional vassoura de urze.   Preservação Em meados da segunda déc. do séc. XXI, a calçada foi modificada e adulterada em alguns espaços, com a aplicação de materiais estranhos a esta técnica e com a remoção de motivos. A pedra rolada foi substituída por cubos e paralelepípedos de mármore e coberta por argamassas de areia, cimento e material betuminoso, ou por alcatrão (figs. 25 e 26).   Na requalificação urbana que ocorreu no núcleo histórico de Câmara de Lobos, o antigo brasão do concelho – que estava colocado no adro da igreja de S. Sebastião, fazendo parte de um tapete de pedra rolada – deu lugar a um pavimento de “calçada madeirense” de blocos e calhaus partidos; perdeu-se, assim, o único exemplo de heráldica municipal em calçada madeirense construída no arquipélago, restando dela apenas registos fotográficos (fig. 27).Também nesta altura, na rua D. Carlos I, na zona velha do Funchal, foi observada a existência de diferenças cromáticas entre as argamassas em algumas obras de recuperação, viu-se serem muito diferentes as dimensões dos seixos utilizados e serem os espaços entre pedras roladas – porque grandes – preenchidos por argamassa.  Nas travessas da Malta e do Redondo, o pavimento de calçada madeirense foi coberto por tapete betuminoso. Noutros locais, verificou-se ser total o abandono da calçada, como no caso dos passeios na estrada do João Abel de Freitas e na estrada da Boa Nova, e advir grande perigo – tanto para peões como para utilizadores de viaturas motorizadas – das pedras, encontrando-se estas soltas entre a estrada e o passeio (fig. 28).   O desenvolvimento das raízes das árvores de grande porte destruiu e só ergueu por vezes o pavimento – como aconteceu na capela de N.ª Sr.ª da Graça, no Instituto do Vinho da Madeira e no Hospício Princesa Dona Maria Amélia –, carente de trabalhos de manutenção regulares.No adro da capela de N.ª Sr.ª da Graça, na ilha do Porto Santo, observou-se a presença de grandes manchas de cera, com origem no pagamento de promessas feito por alguns fiéis (com velas) e na ausência da sua posterior remoção. Durante a referida investigação, teve-se oportunidade de acompanhar diversas obras de recuperação de antigas calçadas e de construção de novas pavimentações. Exemplos disso mesmo são o antigo palacete dos Zinos, posteriormente palacete do Lugar de Baixo, recuperado em 2004 pelo Governo Regional da Madeira (GRM) (fig. 29); os jardins de Santa Luzia, recuperados em 2004 pela Câmara Municipal do Funchal e pelo GRM (ao projeto, da autoria do Arqt. Luís Paulo Ribeiro, foi atribuída uma menção honrosa na categoria de espaços exteriores de uso público, no quadro do Prémio Nacional de Arquitectura Paisagista, em 2005) (fig. 30); o pavimento onde está representado o cronograma dos vários Batalhões de Infantaria e dos Caçadores na Universidade da Madeira, recuperado por calceteiros da Câmara Municipal do Funchal, em 2008 (figs. 31 e 32).   A preservação da calçada madeirense, nas antigas quintas e jardins públicos e privados, casas particulares, ruas, estradas, etc., reveste-se de uma importância crucial, especialmente para os núcleos e zonas históricas das ilhas da Madeira e do Porto Santo. Deste modo, a profissão e a formação do calceteiro é imprescindível para a manutenção dos referidos espaços. Além disso, o património material da calçada madeirense constitui um legado de grande valor, sob os vários aspetos da sua composição, da diversidade dos materiais geológicos utilizados, com presença de fósseis marinhos, e da diversidade de padrões construídos e desenhados.   João Baptista Pereira Silva Celso de Sousa Figueiredo Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Arquitetura Património Geologia