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branco, josé de sousa de castelo

Nasceu em Leiria a 2 de novembro de 1654, sendo filho de Heitor Vaz de Castelo Branco, “senhor do Lagar do Rei e comendador de Santa Marinha”, e de sua mulher, D. Luísa Maria da Silva Arnault, senhora de morgado (NORONHA, 1996, 126). Tal como o seu antecedente, D. Fr. José de Santa Maria, este prelado foi recrutado nas fileiras da pequena nobreza de província. Enquanto jovem, foi para Coimbra estudar, e aí se formou em teologia, tendo, de seguida, ocupado um canonicato na sé de Leiria. Encetou, depois, uma carreira na Inquisição, instituição que serviu como deputado em Évora, como promotor em Lisboa, como inquisidor, de novo em Évora, e, finalmente, como presidente do tribunal de Coimbra. Nessa posição se encontrava quando, em 1697, foi designado por D. Pedro II para bispo do Funchal. A sagração aconteceu em Lisboa, no oratório de S. Filipe de Nery, a 28 de junho de 1698, ano em que se deslocou para a diocese, fazendo, na viagem, um desvio por Mazagão, onde se deteve “a ensinar os moradores” e a crismar 1400 pessoas (Id., Ibid., 127). Ainda durante a viagem, começou, de acordo com um manuscrito intitulado Memorias sobre a Creacção e Augmento do Estado Eccleziastico na Ilha da Madeira, a dar indícios de um comportamento singular, pois, segundo reza o texto, “foi este Bispo o Prelado mais amante da nobreza que tem vindo a esta Ilha”. A fundamentação desta apreciação encontra-se, logo de seguida, na descrição de um episódio com Gaspar Mendes de Vasconcelos, cujo pai, o Ten.-Gen. Inácio Bettencourt de Vasconcelos, o mandara para o reino assentar praça; segundo se conta, o bispo logo o trouxera para bordo, atribuindo-lhe no caminho uma conezia, tendo mandado, assim que chegou a terra, o mordomo avisar o general que “ali lhe mandava o filho cónego” esperando que ele lhe perdoasse “o vir contra as suas determinações” (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 273, fl. 93v.). O mesmo documento insiste nesta tónica quando acrescenta que não “houve casa que não beneficiasse, criando-lhe alguns dos seus filhos em cónegos da catedral”, e, de facto, é possível constatar que da família dos Correias e da dos Ornelas saíram três capitulares, da dos Freitas dois e da dos Berengueres um, registando-se, ainda, a atribuição de benefícios que favoreceram outros agregados nobres da Ilha. Com efeito, as Memorias acrescentam que “continuamente lhe estava fazendo a eles presentes de trastes e ainda cortes de vestido” e que ia “passar dias de verão nas Quintas dos Cavaleiros da terra e com todos fez uma boa harmonia (Ibid., fl. 97). Se esta era uma estratégia de minimização de conflitos, não resultou em pleno, porque o episcopado de D. José não foi isento de confrontos que opuseram o bispo a mais do que uma entidade na Ilha. Um dos cenários dessa conflitualidade ocorreu com dois dos três governadores com quem se cruzou no exercício de funções, sendo que, logo com o primeiro, João da Costa Ataíde, se registaram atritos que também envolveram o provedor da fazenda, Manuel Mexia Galvão. Este último, acusado de mancebia pelo vigário-geral, virou-se contra aquele eclesiástico “mais por vingança e por ódio que por defensa […] com ânimo vingativo de injuriar a pessoa de um prelado […] a quem devia tratar com respeito de Pai”, o que determinou a apresentação de queixas mútuas para o reino. Do reino veio, assim, um desembargador, Diogo Salter de Macedo, incumbido de averiguar o que na realidade se passara. Em virtude da sua ação, o provedor foi chamado à câmara a fim de lhe ser aplicada pública e áspera repreensão, e o mesmo teria acontecido ao governador, não fosse ter falecido entretanto. Quanto aos autos do processo, determinou o desembargador que se queimassem para “que de tão estranho modo de recusa não haja em tempo algum memoria nem lembrança”. Em contrapartida, as referências contidas na provisão trazida por Diogo Salter de Macedo dizem que ao bispo se deveria dar notícia da anterior resolução, a fim de que “reconheça a consideração que a minha Real justiça [tem] a quem com menos decoro fala em autos públicos das pessoas dos prelados que justamente se queixam das ofensas que lhes fazem”, o que é o bastante para se perceber que o bispo saiu com grande vantagem desta contenda (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 270, fl. 7). Com o governante seguinte, Duarte Sodré Pereira, gozou o prelado da melhor das relações, chegando, inclusivamente, a ser padrinho de um dos seus filhos e estabelecendo-se, portanto, entre os dois, uma relação de compadrio. Já com o seu sucessor, Pedro Alves da Cunha, voltaram as coisas a correr mal, designadamente por terem surgido diferendos quanto ao lugar que o governador pretendia ocupar na sé. Terminada a comissão de Pedro Alves da Cunha, foi o prelado cumprimentar o novo governador, João Saldanha da Gama, mas, da conversa que tiveram, ficou o bispo com a impressão de que o novo titular do cargo seria “do mesmo caráter” do anterior, e essa constatação terá apressado a decisão de D. José de Castelo Branco abandonar a diocese. Com efeito, e embora publicamente evocasse razões de saúde como motivo da ida para Lisboa, a verdade é que ficaram registos de que a bordo da nau “ia aquele por cuja causa ele largava o bispado”, ou seja, Pedro Alves da Cunha, o que motiva alguma dúvida sobre as reais motivações do abandono episcopal. A confirmar esta asserção, acrescentam as Memorias que, a bordo, o ex-governador fez ao bispo “muitos obséquios, de sorte que ele se arrependeu de ter partido”, mas, apesar deste sentimento, e de se ter mantido como titular da diocese por mais sete anos, nunca mais regressou à Madeira. Embora tivesse renunciado à mitra do Funchal em finais de 1721, por, segundo afirma Noronha, os médicos considerarem que o clima da Ilha não era favorável à sua doença, a verdade é que D. José só veio a falecer bastantes anos mais tarde, em 1740, facto que contribui para infirmar a tese da doença como real motivo para a saída do arquipélago (NORONHA, 1996, 128). Para além dos dois governadores, outra das entidades com quem D. José registou desentendimentos graves foi com a comunidade franciscana, a qual, em consequência disso, se viu quase completamente destituída de confessores. O desaguisado começou com a determinação exarada pelo bispo de que todos os clérigos, regulares e seculares, do bispado teriam de se fazer examinar para confessores, do que discordou o custódio de S. Francisco, padre frei Jacinto da Esperança, que recorreu ao rei por causa da “perseguição” que considerava estar a ser-lhe movida pelo prelado. Queixava-se, então, o custódio, em seu nome e no dos religiosos da Ordem, “da notória força e violência com que os oprime o reverendo bispo da dita Ilha”, consubstanciada na privação da autorização para confessar sem se submeterem a novo exame, o que se repercutia negativamente não só na reputação da Ordem, como nos proventos arrecadados (PAIVA, 2009, 37). Além disso, acrescentava, estas ordens do prelado tinham levado à suspensão de todos os frades da Calheta, e não se poderia aceitar a ideia de que fossem “todos criminosos” (DGARQ, Cabido da Sé..., mç. 12, doc. 34, fl. n.n.). A estes argumentos contrapunha D. José o de que “como os confessores tratam de matéria mais arriscada não só pelo foro da consciência e utilidade, ou prejuízo das Almas, mas também porque doutrinam em segredo, é mais perigosa e mais arriscada esta matéria que a dos pregadores”, pelo que não podia ser “tão liberal” neste tema quanto era na concessão de licenças para pregar. A isto acrescia o bispo que poderia acontecer que desta sua “severidade” resultasse estímulo para aplicação ao estudo de que “até aqui pouco se cuidava”, e, usando de uma ironia fina, ainda fazia notar que, sendo os franciscanos pobres, “pelos pregadores haveriam os proventos temporais que das confissões não podem tirar; e da suspensão destes [confessores] lhes resultará viverem com mais descanso que sempre é apetecido da natureza” (Ibid.). Os antecedentes deste conflito derivariam, possivelmente, de uma pastoral publicada a 20 de dezembro de 1699, na qual o prelado derrogava todas as facilidades anteriormente concedidas a pregadores e confessores, condicionando-as, agora, à realização de novo exame. Esta atitude decorria do facto de ter o prelado sido informado de que alguns clérigos, “esquecidos de suas obrigações”, se não aplicavam no estudo da Moral, “não usando do sacerdócio mais que só na missa, pelo interesse temporal que dela tiram”, situação que lhe parecia intolerável, e à qual procurava, então, obviar (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx, 45, doc. 8). Porém, se as relações com os franciscanos foram tensas, o mesmo não se passou com os jesuítas, cujo reitor, o padre Miguel Vitus, era, nas palavras endereçadas pelo prelado à inquisição de Lisboa, “coisa muito singular em tudo, na capacidade, letras, virtude e ardente zelo na conversão dos hereges, e no cuidado que tem nos reduzidos”, pelo que seria homem a quem se poderia fiar tudo e “só a ele se devem cometer os negócios de maior importância e risco” (FARINHA, 1993, 887). Vinha este elogio a propósito daquela que, no entender do prelado, seria a melhor opção para se tratar dos assuntos respeitantes ao Santo Ofício na Ilha, pois, apesar de na Madeira haver dois comissários, os desentendimentos entre eles poderiam comprometer a objetividade necessária nos julgamentos. Durante este episcopado, e por razões que se poderão atribuir, por um lado, ao facto de o bispo ter sido recrutado das fileiras da Inquisição, e, por outro, à recente reativação do funcionamento do tribunal, assiste-se a um certo aumento das denúncias apresentadas, cujo número, para o período de 1690 a 1719, se cifra em 59 casos. Apesar de o bispo ter referido a meritória ação do reitor do colégio no combate aos hereges, ou talvez por isso, as ocorrências de heresia são escassas, pois só aparecem dois suspeitos, enquanto a grande incidência das faltas se dá nos domínios das curas supersticiosas e das blasfémias, com 13 acusados em cada área. O saldo final destas denúncias cifra-se em apenas 3 processos, 1 de judaísmo e 2 de bigamia, mas a correspondência trocada entre o bispo e a Inquisição, em Lisboa, permite saber-se que a boa opinião que o prelado tinha da nobreza insular não se estendia ao resto da população da Ilha. Assim, em carta escrita a 11 de novembro de 1707, D. José lamentava-se, dizendo que “a assistência de dez anos e o trabalho de sofrer esta gente me tem dado conhecimento do seu orgulho, e dos seus atrevimentos. Saiba Vossa Senhoria que não estou entre gente, senão em um bosque de feras sem nenhum conhecimento, sem obediência da razão, levados tão-somente de suas paixões como brutos sem temor de Deus, nem honra nem previsão de futuros” (Ibid., 887), o que, por sua vez, se harmoniza com a impressão que colhe dos seus fregueses, os quais, em visita a Ponta Delgada, considera “muito rudes” na doutrina, não só os meninos, como também os pais que, se falhassem no envio dos filhos à estação da missa, deveriam ser publicamente inquiridos sobre os ensinamentos religiosos (ARM, Paroquiais, Livro 116-B, fl. 5). Num outro sítio e num outro contexto, expandia ainda o prelado a má opinião que tinha dos ilhéus, que considerava, pela sua ambição “fáce[i]s de levantar testemunhos uns aos outros para melhorarem as suas pretensões” (ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Eusébio, mç. 1, doc. 21). Para tentar obviar às falhas de caráter e às omissões de doutrina, envidou D. José alguns esforços, traduzidos na realização de um plano de visitação com a periodicidade devida, complementado por missões de interior, para as quais recorria aos meios ao seu dispor. Assim, em 31 de janeiro de 1700, enviava para as paróquias rurais, “armados de todos os poderes da sua jurisdição”, dois jesuítas, os padres mestres Inácio de Bulhões e Domingos de Melo, a fim de que, por ser o tempo de “grande calamidade de doenças e mortes”, ajudassem os vigários nas confissões. A esses missionários cometia, ainda, a responsabilidade de “aprovar e reprovar confessores na forma que lhes parecer”, voltando a demonstrar a preocupação que a correta prática do sacramento da penitência lhe despertava. Como nota curiosa, pode ainda acrescentar-se o facto de, para além da saúde moral das populações, o prelado zelar, ainda, pela cura dos males do corpo, pelo que, a acompanhar os jesuítas, ia também um cirurgião “aprovado para que visite os enfermos e lhes aplique os remédios necessários” (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx. 45, doc. 9). No mesmo ano, mas em agosto, realizava-se nova missão, desta vez resultante da oferta dos serviços de um frade, frei João de Santo Ambrósio, que “movido do fervor do seu zelo e caridade determina fazer missão em todas as freguesias deste nosso bispado” (Ibid., doc. 10). Os cuidados que o bispo dispensava à qualificação dos ministros autorizados a confessar voltam a evidenciar-se em edital publicado em 1710, onde se determinava que se não lançassem no rol dos habilitados a apresentar-se a exame os indivíduos que não mostrassem certidão de matrícula, ou aprovação, na aula de moral do colégio da Companhia “por serem muito poucos os sacerdotes capazes de servir a Igreja no exercício do confessionário” (Ibid., cx. 32, doc. 39). Para além disso, destaca-se uma lista dos clérigos do bispado feita em 27 de agosto de 1715, onde constam para a freguesia da sé, por exemplo, 131 eclesiásticos, dos quais apenas 24 estão habilitados a confessar, o que vem, mais uma vez, demonstrar que os critérios para acesso àquele ministério eram severos (Ibid., Livro 2.º da Câmara Eclesiástica, fls. 17-17v.). Para além dos cuidados já expressos com alguns aspetos do exercício do múnus episcopal no tocante à formação dos clérigos, D. José ainda dedicou uma atenção particular ao seminário, o qual fez transferir das antigas instalações no paço onde residia para um novo espaço, situado na rua que passou a chamar-se “do Seminário”, e onde se situavam uns aposentos inicialmente destinados a um mosteiro, o “Mosteiro Novo”, que nunca chegou a funcionar para o fim a que se destinara. O bispo dotou, ainda, o seminário de novos estatutos. Outra das tarefas com as quais se comprometeu o antístite foi a de provedor da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, a cujos destinos presidiu nos anos de 1704 e 1709. Depois de 15 anos em que esteve presencialmente à frente da diocese do Funchal, retirou-se, então, o prelado para Lisboa, conforme já se viu, mantendo-se em funções por mais sete anos, findos os quais renunciou, ficando o bispado à guarda de um governador, Pedro Álvares Uzel, que dele se ocupou até à chegada do novo titular da mitra, D. frei Manuel Coutinho.     Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 22.12.2016)

História Política e Institucional Religiões

braga, teófilo

Filho de aristocratas liberais açorianos, Joaquim Manuel Fernandes Braga e Maria José Albuquerque, nasceu em Ponta Delgada, ilha de São Miguel, Açores, a 24 de fevereiro de 1843. Começou a atividade literária ainda muito jovem, na tipografia A Ilha, colaborando nos periódicos açorianos O Meteoro e O Santelmo. Cessados os estudos em Ponta Delgada, matricula-se em Direito na Universidade de Coimbra, vindo a doutorar-se em 1868. Toma parte na célebre polémica Questão Coimbrã com o texto Teocracias Literárias, colocando-se ao lado de Antero de Quental e opondo-se, assim, a António Feliciano Castilho. Em 1872, foi admitido como lente na cátedra de Literatura Modernas no Curso Superior de Letras, cargo disputado por Manuel Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro. Teófilo de Braga torna-se uma das figuras mais respeitadas nos círculos intelectuais da segunda metade do séc. XIX e inícios do XX em Portugal. Trabalhador incansável, escritor prolífero, deixou uma vasta obra multidisciplinar, tanto a nível literário como científico, reveladora do seu génio brilhante e determinado. Como escritor, destacou-se na poesia, no conto fantástico e no romance histórico, realizando também algumas traduções. Enquanto académico, dedicou-se aos Estudos Literários, História da Literatura, Filosofia e Etnografia, sendo um precursor dos estudos sociológicos em Portugal. O seu pensamento científico estava imbuído da doutrina positivista de Auguste Comte, da qual Teófilo de Braga foi arauto em Portugal, dirigindo, em parceria com Júlio de Matos, a revista O Positivismo (1878-1882), órgão de divulgação da filosofia positivista. Dedicou-se à política, em particular à causa republicana, mais intensamente entre 1870 e 1890, atingindo a sua carreira política dois pontos altos, o primeiro momento em 5 de outubro de 1910, na ressaca do sucesso da revolução republicana, sendo nomeado para a presidência do Governo Provisório da República, e o segundo em 14 de maio de 1915, quando substitui na presidência da república Manuel de Arriaga, após um levantamento militar, tornando-se o segundo presidente da República Portuguesa. Relativamente à Madeira, Teófilo de Braga consagra o segundo capítulo do livro Os Poetas Palacianos aos poetas madeirenses presentes no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Este capítulo aparece transcrito por Álvaro Rodrigues de Azevedo nas suas anotações no livro Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso (1873). Teófilo de Braga refere, assim, autores como Manoel de Noronha, Tristão Teixeira das Damas, João Gonçalves e Pero Correia, observando que estes constituem uma escola poética madeirense que germinou no tempo do rei D. Duarte. O insigne académico intitula tal escola “Ciclo Poético da Ilha da Madeira”, defendendo que esta foi influenciada pela poesia aragonesa, com impressões da tradição lendária inglesa denunciadas pela lenda de Machim e Ana de Arfet, e que constituiu um ramo diferente dos poetas palacianos do continente do reino presentes no Cancioneiro Geral. Contudo, o anotador de Saudades da Terra, Álvaro Rodrigues de Azevedo, faz alguns reparos às ideias de Teófilo de Braga, escrevendo que “o grupo dos poetas madeirenses deste período não constitui ciclo distinto, é apenas ramo do ciclo continental, porque não tem tipo próprio” (FRUTUOSO, 1873, 173). Não obstante, Teófilo de Braga tem o mérito de lançar as bases de uma historiografia literária madeirense. Apesar de tal desacordo, Teófilo de Braga manterá com Álvaro Rodrigues de Azevedo correspondência e amizade. No seu livro Quarenta Anos de Vida Literária (1860-1900) (1902), podemos ler um total de 12 cartas, com datas compreendidas entre 1861 e 1880, enviadas por Álvaro Rodrigues de Azevedo. Do conteúdo das cartas, destaca-se a influência e inspiração que Teófilo de Braga exerceu em Álvaro Rodrigues de Azevedo, nomeadamente na sua recolha etnográfica e folclórica dos contos e cantigas populares da ilha da Madeira, que originou o livro Romanceiro do Arquipélago da Madeira (1880). Ao mesmo tempo, pela leitura das missivas, acompanhamos o processo de elaboração do livro por Álvaro Rodrigues de Azevedo, as reflexões, dúvidas e constantes pedidos de orientação a Teófilo de Braga. Teófilo de Braga morre em Lisboa a 28 de janeiro de 1924.     Carlos Barradas (atualizado a 12.10.2016)

História Política e Institucional

arguim

A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha ficaria dependente da Diocese do Funchal, que para ali nomeava capelão e ouvidor, sendo depois sucessivamente ocupada por Holandeses, Ingleses, prussianos e Franceses, até ser por fim abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios das antigas fortificações, com uma pequena povoação de pescadores-recoletores, sendo objeto de diversas lendas e narrativas. Palavras-chave: comércio; Descobrimentos; escravatura; feitorias fortificadas; tradição oral. Arguim é uma ilha na baía do mesmo nome, situada na extremidade norte da República Islâmica da Mauritânia, na costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprimento por 2 km de largura. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes. A ilha faz parte do Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona protegida, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas. Vista aérea do Banco de Arguim. Arquivo Rui Carita. A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa da costa ocidental de África (África Marrocos). Na sequência da passagem do cabo Bojador, em 1434, as embarcações portuguesas ao serviço do infante D. Henrique (1394-1460) prosseguiram para o Sul, passando ao largo da costa saariana e atingindo a costa da Mauritânia. Estas navegações, que de início se revelaram lucrativas, em virtude de atos de corso e de razias, chegaram ao golfo de Arguim na déc. de 1440; e.g., a caravela de Nuno Tristão (c. 1410-1446) tê-lo-á alcançado em 1441, embora outros navegadores ali tenham passado por esses anos, como Gonçalo de Sintra (c. 1400-1444) e Diniz Dias (há divergências entre os vários cronistas quanto à sua ordem de chegada). Em 1443, voltava àquela área Nuno Tristão, então já acompanhado de um mouro, dado como Sanhaja Berber, que servia de intérprete; aí, adquiriu 28 escravos, que levou para Lagos, no Algarve. É desse ano o pedido oficial de carta de corso do infante D. Henrique ao seu irmão D. Duarte (1391-1438), passando aquele a usufruir de 1/5 das capturas efetuadas – que, em princípio, pertenciam ao Rei –, pedido também posteriormente feito pelo infante D. Pedro (1392-1449). Banco de Arguim. Em 1444, a expedição de Lançarote de Lagos a Arguim, na qual participaram forças da Madeira e, provavelmente, o sobrinho de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), Álvaro Fernandes, conseguiria recolher 240 escravos. As relações da Madeira com estas navegações vão manter-se nos anos seguintes, tendo Álvaro Fernandes e Lançarote de Lagos, em 1446, a explorado a embocadura do rio Senegal e a área de Cabo Verde. Este navegador, que já comandara uma caravela de Zarco em 1444, dirigiu a expedição que em 1447 ultrapassou Cabo Verde e que se supõe ter atingido a ilha de Goreia. As relações da ilha da Madeira com este tipo de comércio e com esta área – Arguim, depois Cabo Verde, Guiné, Angola, etc. – vão manter-se nos anos seguintes. Na Furna de Arguim, como era por vezes chamada esta baía de recifes, ficava a ilha dos Coiros, principal centro de comércio de peles de toda a costa e, para o Sul, localizavam-se as ilhas das Garças, de Naar e de Tider. Serviram as mesmas, com mar bonançoso, para abrigo e repouso das naus. Por ali passaram madeirenses, como os da caravela enviada por Zarco até ao cabo dos Matos, com seu sobrinho Álvaro Fernandes, depois o genro do capitão do Funchal, Garcia Homem de Sousa, e Diogo Afonso, Denis Eanes da Grã, João do Porto e outros. Deve datar de cerca de 1445 a substituição da pirataria, com uma função simultaneamente económica e bélica, pelo comércio pacífico – ou, pelo menos, mais pacífico, dado não ser nessa altura possível fazê-lo sem armas na mão. Em 1444, já se procurava estabelecer o tráfico com os nómadas cameleiros do rio do Ouro, tendo cabido a João Fernandes, um colaborador próximo do infante D. Henrique, beneficiando das informações de Ahude Meimão sobre a localização das principais povoações e o interesse comercial da região, concretizar esses planos. Em 1445, aquele navegador foi responsável pela realização das primeiras operações comerciais com as populações muçulmanas daquela região, promovendo a aquisição de ouro, de goma-arábica e de escravos, em troca de tecidos e de trigo. Em 1447, iniciaram-se as relações com o Suz, em Marrocos – grande mercado de escravos, de ouro e de açúcar –, tentando o infante D. Pedro, ainda nesse ano, estabelecer a paz e manter relações comerciais com o Bori-Mali e com os jalofos, na área da Guiné. Poucos anos depois, por volta de 1454-1455, o italiano Luís de Cadamosto (1432-1488) (Cadamosto, Luís de) explica, nas suas memórias, a propósito do contrato da feitoria de Arguim, que, quando esteve ao serviço do infante D. Henrique, as caravelas costumavam ir armadas de Portugal ao golfo de Arguim, umas vezes quatro, outras mais, “e de noite desembarcavam” e saíam sobre as aldeias costeiras de pescadores, “e faziam correria pela terra”, de modo que prendiam esses “árabes, tanto machos como fêmeas e os traziam a vender em Portugal” (GODINHO, 1956, III, 125-126). Pontão. Antigo embarcadouro. A ilha de Arguim veio a configurar-se como um local privilegiado para o estabelecimento de um posto comercial fixo, dado situar-se numa região esparsamente povoada, mas próxima dos circuitos comerciais percorridos pelas caravanas mercantis que atravessavam o Saara, as quais frequentemente se aproximavam da costa, devido à abundância de sal na região. Sendo um território dotado de um bom porto e de água potável, era facilmente defensável pela vantagem que a sua situação insular oferecia face à previsível hostilidade das populações autóctones, sendo por isso escolhido para centralizar o comércio da costa africana. Entre 1454 e 1455, já se tinha efetuado um contrato por 10 anos, explicando Cadamosto que ninguém podia entrar no golfo para traficar com os locais, “salvo aqueles que entrassem no contrato” celebrado com a Coroa para esse comércio, no qual se incluía a “feitoria na dita ilha, e feitores, que compram e vendem àqueles árabes, que vêm à marinha, dando-lhes diversas mercadorias, como são panos tecidos, prata e alquicéis, que são uma espécie de túnicas, tapetes e sobretudo trigo, do qual estão sempre famintos, e recebem em troca negros, que os ditos alarves trazem da Negraria, e ouro Tiber” (Id., Ibid.). Acrescenta o navegador italiano que o infante fazia então levantar “uma fortaleza na dita ilha, para conservar este comércio para sempre; e por esta razão todos os anos vão e vêm caravelas de Portugal à ilha de Arguim” (Id., Ibid.). O castelo só seria terminado após o falecimento do infante, em 1461, sendo a capitania entregue a Soeiro Mendes de Évora, o vedor da construção, que viria a ter carta de 26 de julho de 1464, de D. Afonso V (1432-1481), a conferir-lhe, a si e aos seus descendentes, a capitania-mor da ilha. Saliente-se, no entanto, que o estatuto comercial de Arguim conheceu variantes. Assim, por volta de 1455, aquando da visita de Cadamosto, a feitoria era administrada por uma sociedade privada, que tinha obtido do infante D. Henrique esse monopólio por um período de 10 anos, provavelmente entre 1450 e 1460. Mais tarde, segundo o cronista João de Barros (1469-1570), Fernão Gomes da Mina (c. 1425-c. 1485), após ter assumido o mercado de exploração do comércio da Guiné, que dominou entre 1468 e 1474, conseguiu também obter o de Arguim, ao preço de uma renda anual de 100$000 réis. A área em torno de Arguim era habitada por berberes e negros islamizados, chamados “mouros” pelos Portugueses, sendo uma importante zona de pesca. Da parte portuguesa, esperava-se intercetar o tráfego do ouro que as caravanas transportavam de Tombuctu para o Norte de África; contudo, foi o comércio de escravos que mais prosperou, recebendo Portugal de Arguim, aproximadamente a partir de 1455, cerca de 800 escravos por ano, na sua maioria jovens negros, feitos prisioneiros durante razias conduzidas no interior do continente pelos líderes tribais da região costeira vizinha. No decurso do mandato de Fernão Soares como capitão e feitor, entre maio de 1499 e dezembro de 1501, obtiveram-se 668 escravos e 12.558 dobras e meia de ouro – moeda que, em 1472, valia 327 reais brancos, na razão 1$896 reais brancos por marco (cerca de 235 g de prata) –, sendo parte deste convertida em escravos, totalizando 840 indivíduos. O feitor seguinte, Gonçalo Fonseca, conseguiria somente 406 escravos em dois anos e meio, mas o que se lhe seguiu, Francisco de Almada, entre 1508 e 1511, ultrapassaria a cifra de 1500 escravos. Em segundo plano estava o importante comércio da goma-arábica, produto que a região produzia em quantidade significativa e com qualidade superior, que se adquiria em Arguim a preços muito atrativos. O território conquistado em Arguim passou então a assumir-se como um centro de comércio, estabelecendo ligações comerciais com os portos de Meça, Mogador e Safim (Safim), em Marrocos. Destes lugares provinham os tecidos, o trigo e outros produtos que, na feitoria de Arguim, eram trocados por ouro e escravos; as mercadorias eram transportadas pela rota que ia de Tombuctu até Hoden. A criação desta feitoria representou um ponto de viragem na expansão portuguesa, assinalando o início da política de construção de feitorias fortificadas, dotadas de uma guarnição militar capaz de as defender contra os ataques dos povos autóctones. Em 1487, foi fundada uma feitoria no interior do continente africano, na localidade de Ouadane (ou Wadan), e, na mesma área, foram feitas outras tentativas de fixação de feitorias, e.g., na região de Cofia e junto à foz do rio Senegal, todas goradas face à hostilidade das populações locais e à dureza do clima. Nos anos de 1505 a 1508, a guarnição do castelo de Arguim era composta de 41 indivíduos, 18 dos quais eram soldados e 5 marinheiros. O comércio da feitoria estava sob o controlo da Coroa, sendo os capitães nomeados pelo Rei, habitualmente para comissões de três anos. Tinham direito a arrecadar 25 % dos lucros do comércio realizado na feitoria, sendo assistidos por um feitor, que arrecadava 12,5 % daqueles, e por um escrivão assalariado, que recebia 20.000 réis na fase inicial dos trabalhos. Em finais de 1555, ou em princípios de 1556, a feitoria de Arguim foi atacada pelo pirata português Brás Lourenço e, em 1569, a guarnição tinha-se reduzido a 30 pessoas. A manutenção da guarnição de Arguim não era fácil, tendo de recorrer-se às vizinhas ilhas Canárias ou à Madeira, como aconteceu em 1513, quando era capitão de Arguim Fernão Pinto (que deve ter sucedido a Francisco de Almada, capitão entre 1508 e 1511, embora o seu nome não conste das listagens geralmente divulgadas, que referem apenas o Cap. Pero Vaz de Almada, em 1514-1515). O mestre do navio enviado às Canárias pelo capitão de Arguim acabou por aportar a Machico, tendo requerido ao almoxarife Antão Álvares a compra de diversos mantimentos – 30 moios de trigo, 20 quintais de biscoito e uma parte de remel (possivelmente o açúcar local) –, deixando como pagamento a João de Freitas (c. 1470-1533), executor das dívidas à Fazenda, seis escravos, marco e meio de ouro, e meia onça de ouro em pó e em pedaços, e tendo sido lavrada quitação com data de 3 de maio de 1513. Três dias depois, o mestre do navio São Miguel Fadigas entregava mais 78 dobras de ouro, em pó e em pedaços, para pagamento de novos mantimentos. Não se conhece qualquer descrição do castelo henriquino de Arguim, nem da sua reformulação na época de D. Afonso V, embora a carta de alcaidaria-mor refira ter havido então obras, nem também das remodelações da déc. de 80 do séc. XV, se bem que se saiba que, ao passar, em 1481, a monopólio régio, sob D. João II (1455-1495), o castelo foi aumentado. Arguim foi perdendo a sua importância ao longo dos anos seguintes, à medida que os interesses comerciais portugueses se transferiam para regiões localizadas a sul (e, depois, para a Índia). Desconhece-se a data em que Arguim passou a estar na dependência da Diocese do Funchal, mas julga-se ter isso ocorrido com o abandono de Safim, em 1541, de cuja Diocese deveria depender, embora não houvesse uma clara definição dos seus limites. A referência a Arguim como pertencente à Diocese do Funchal parece datar da bula do Papa Júlio III, de 1550, que separou da antiga Arquidiocese (Diocese e arquidiocese do Funchal) os territórios das novas dioceses dos Açores, de Cabo Verde, etc., que passaram à jurisdição eclesiástica de Lisboa. A referência à integração da ilha de Arguim na jurisdição do Funchal dá-se com o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), que recebeu a doação de Arguim, do seu castelo e do produto das pescas na costa de Atouguia e que, em 1601, nas Extravagantes que adicionou às anteriores Constituições Sinodais, refere que “dispondo os casos da sua jurisdição nela colocava Ouvidor Eclesiástico” (LEMOS, 1601, título 16, const. 2). Aliás, antes de ser meio-cónego da Sé, o cronista Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) foi vigário de Arguim, em 1567, na ausência do P.e António Fernandes, sinal de que a freguesia já existia e dependia do Funchal (embora pouco tempo ali estivesse, passando rapidamente a Lisboa e aí conseguindo a indigitação para uma futura eleição como meio-cónego da Sé do Funchal).   Voyages en Afrique- Asie-Indes orientales et occidentales-Jean Mocquet-1617 Arguim seria visitada por Jean Mocquet (1575-1617) (Mocquet, Jean), aventureiro francês, em 1601, na sua primeira viagem de recolha de objetos exóticos e curiosos, que lhe permitiu ocupar o boticário régio de Henrique IV (1553-1610) e organizar um gabinete de curiosidades (Colecionismo) nas Tulherias para o seu sucessor, Luís XIII (1601-1643). Jean Mocquet conta nas suas memórias que, na sua primeira viagem, em que visitou o Funchal, seguiu “o desejo que tinha há muito tempo de viajar pelo mundo: quis começar pela África”. Partira de Saint Malo a 9 de outubro de 1601, em La Syréne, que se destinava à Líbia (nome pelo qual se designava a costa marroquina à época e, assim parece, também as ilhas atlânticas e da Mauritânia), e que era um “navio carregado de sal e bem equipado de víveres e munições para a guerra” (MOCQUET, 1830, 27). A embarcação passou por diversas peripécias, chegando a ter de combater com vários corsários; passado o cabo de São Vicente, dirigiu-se ao Norte de África, e depois de dobrar o cabo Branco visitou a velha feitoria de Arguim. Conforme se usava à época (como referido), Jean Mocquet refere-se à região como “Líbia”, contando que “de toda a Líbia vão buscar água ao porto de Arguim”, que se situa sobre uma pequena ponta relevada, a seis léguas de cabo Branco. A fortaleza tinha então alguns soldados portugueses e um capitão. Mocquet menciona que os Portugueses eram amigos dos chefes da região, que não eram todos negros, havendo chefes brancos, mas que eram todos muçulmanos. Faziam comércio de plumas de avestruz e de peixe, “que aqui usam como moeda de troca” (Id., Ibid., 34). Mocquet já não refere o rendoso comércio de escravos e de ouro.     Arguim estava a entrar em franca decadência; embora periodicamente visitada pelos pescadores da Madeira e sob a jurisdição do bispo do Funchal, a sua situação militar era muito precária e a guarnição insustentável. A fortaleza de Arguim teve, em 1612, um projeto de reconstrução, a cargo do arquiteto-mor Leonardo Turriano (1559-1628), e elaborado com base nos dados que este recolhera quando estivera em idêntica função nas Canárias, entre 1588 e 1590, sendo muito provável que se tenha deslocado a Arguim. O projeto, no entanto, não passou do papel: não há registo de qualquer despesa ou movimentação de pessoal nesses anos.     A pequena fortaleza de Arguim acabaria por ser conquistada, em 1638, por forças holandesas e, alguns anos mais tarde, por forças inglesas, sendo posteriormente recuperada pelos Holandeses, até que, em setembro de 1678, foi arrasada por forças francesas, embora depois tenha sido pontualmente reconstruída pelos Franceses. Devem datar de meados do séc. XVII (de cerca de 1665) os dois desenhos flamengos de Johannes Vingboons (1616/1617-1670) que sobreviveram e que parecem representar já a remodelação de Arguim pelos Holandeses. Em 1685, estava quase abandonada, sendo então ocupada por tropas brandeburguesas, transformando-se Arguim na primeira colónia do principado de Brandeburgo. Em 1701, com a incorporação do principado no reino da Prússia, Arguim transitou para o controlo prussiano. Em 1721, perante o desinteresse da Prússia pelas suas colónias africanas, o território voltou à posse da França, momento a partir do qual se fazem muitas representações cartográficas e, inclusivamente, um levantamento planimétrico de Arguim, com Perrier de Salvert, a 8 de março de 1721.   Mapa de Arguim de Gerard van Keulen-1720   A praça seria novamente perdida para os Holandeses no ano subsequente, voltando todavia à posse dos Franceses em 1724, que ali permaneceram até 1728, ano em que abandonaram a ilha ao controlo dos líderes tribais mauritanos. Fez-se explodir a fortificação por ocasião da retirada, pouco devendo ter restado dela. A ilha regressou ao controlo francês nos princípios do séc. XX, quando foi incorporada no então protetorado da Mauritânia; em 1960, com a independência da Mauritânia, Arguim passou a fazer parte do território do novo Estado.       Teatro. A Ilha de Arguim, de Francisco Pestana Durante a sua conturbada história, a ilha foi sempre um dos centros do comércio de goma-arábica e, durante muitos anos, um importante local de caça de tartarugas marinhas e de outras atividades mais ou menos artesanais, em que estavam inclusivamente envolvidos pescadores madeirenses – isso justifica a existência de várias pequenas embarcações, quer no Funchal, quer em Câmara de Lobos, com o nome de Arguim. Embora alguns dos seus proprietários não saibam onde fica, e se tenham limitado a repetir os nomes que já os pais e avós tinham utilizado para as embarcações, subsistem lendas e narrativas populares sobre a ilha – que aparecia e desaparecia, que era o local para onde teria ido viver D. Sebastião, etc. –, que foram inclusivamente objeto de peças de teatro. Na época moderna, a dificuldade de navegação dos navios de algum calado nesta área, em razão dos bancos de areia e dos afloramentos rochosos, é patente no desastre ocorrido em julho de 1816 com a fragata francesa La Méduse, que transportava pessoal para a colónia do Senegal e que encalhou na região, sendo abandonada com grande perda de vidas. O acontecimento ficou imortalizado na obra Le Radeau de la Méduse (A Jangada da Medusa), do pintor francês Théodore Géricault (1781-1824), de 1818-1819. Arguim encontra-se ainda na base da fundação do Convento franciscano da cidade da Baía, no Brasil, como resultado da influência da lenda de S.to António de Arguim: nos inícios do séc. XVII, terá aparecido na costa brasileira, roubada por corsários franceses, uma imagem de S.to António, proveniente da antiga praça africana, pelo que o santo foi eleito padroeiro da cidade (padroado que perderia por proposta dos padres jesuítas, em 1686, passando para S. Francisco Xavier). Em suma: foi em Arguim que se localizou a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha foi sucessivamente ocupada por Portugueses, Holandeses, Ingleses, Prussianos e Franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios da antiga fortificação, tendo uma pequena povoação, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recoletores da etnia imraguen, sendo, para os madeirenses, provavelmente até aos inícios ou meados do séc. XX, um destino de pesca, e permanecendo no seu imaginário como uma antiga lenda. Pesacadores. Arguim. 2006   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017) Imagens: Arquivo Rui Carita

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aluviões

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, o termo “aluvião” pode significar inundação muito grande, grande cheia ou enxurrada. Este é o significado atribuído na ilha da Madeira. A rede hidrográfica da Madeira, composta por ribeiras que se desenvolvem da cordilheira montanhosa central para a costa, em vales profundos, estreitos e de declive acentuado, com regime de escoamento intermitente e torrencial, quando associada a eventos de precipitação intensa dá origem a inundações repentinas designadas por aluviões, correntes de detritos ou debris flow. Estas cheias caracterizam-se por concentrações elevadas de material sólido, incluindo blocos de grandes dimensões, que conferem ao escoamento um enorme poder destrutivo. As características geológicas e geomorfológicas das bacias hidrográficas, e das respetivas ribeiras, potenciam a ocorrência de fluxos muito significativos de materiais sólidos, os quais constituem o componente mais perigoso das aluviões. Esta produção de sedimentos é desencadeada pela ação da precipitação e da consequente ocorrência de escoamentos líquidos que mobilizam grandes quantidades de material sólido com elevado potencial geomórfico. A produção dos fluxos de material sólido resulta de diferentes processos, tais como a erosão distribuída nas vertentes, a erosão em sulco e ravinamento, movimentos de massa, e a erosão fluvial nos fundos e margens dos leitos das ribeiras. Segundo a bibliografia, ocorreram no arquipélago da Madeira, desde o início do séc. XVII até 2013, 42 aluviões de intensidade significativa, constituídas por cheias rápidas e violentas com transporte de concentrações elevadas de material sólido. É de destacar, neste contexto, o ano de 1803, no qual se verificaram inundações catastróficas em toda a Ilha, particularmente na região sudeste, entre o Funchal e Machico, tendo perecido cerca de 1000 pessoas. Em consequência desta aluvião, as ribeiras da cidade do Funchal foram canalizadas, sob a direção do Brig. Reinaldo Oudinot, entre 1804 e 1806, continuando uma considerável extensão desta obra a cumprir, no início do séc. XXI, a sua função de canalização dos cursos de água. Já no séc. XXI, merece destaque o dia 20 de fevereiro de 2010, em que, na sequência de um prolongado período chuvoso na ilha da Madeira, aliado a um cenário meteorológico adverso, se gerou uma aluvião excepcional que atingiu, com elevada intensidade, alguns concelhos da vertente Sul da Ilha, em particular o Funchal e a Ribeira Brava. São de lamentar 51 vítimas mortais, bem como os elevados danos materiais e a destruição de muitas infraestruturas públicas e privadas. O quadro que apresentamos (fig. 1) compila os registos históricos de aluviões ocorridas no arquipélago da Madeira entre o início do séc. XVII e o ano de 2013, e as suas principais consequências. [table id=75 /] Sucessivos eventos da mesma natureza têm ocorrido por toda a ilha da Madeira desde o início da sua história geológica, há cerca de sete milhões de anos, até a atualidade. Testemunhos de fluxos concentrados ou torrentes de escoamento bifásico com uma fase sólida muito abundante são visíveis em todos os complexos vulcânicos que constituem a Ilha. Como diz Susana Nascimento, “trata-se de espessos depósitos de enxurrada, bastante compactados e cimentados que se encontram intercalados nos complexos vulcânicos. [...] Formado em clima caracterizado por abundantes e concentradas chuvadas, estes depósitos conglomerático-brechóides, são constituídos por, aproximadamente, 95 % de clastos, em geral mal calibrados, com dimensões que vão, desde escassos milímetros, até cerca de 2 metros” (NASCIMENTO, 1990, 36). O fenómeno das aluviões na Madeira tem sido referenciado em vários trabalhos de carácter mais ou menos científico. Ao abordar os cursos de água da ilha da Madeira, Eduardo Pereira, em Ilhas de Zargo, sublinha a quase ausência de caudal das ribeiras na estação do verão, sendo que no inverno “crescem torrencialmente, transbordam das margens e arrastam das montanhas toneladas de penedos, rolando-os e batendo uns contra os outros num ruído sinistro e aterrador, ao mesmo tempo que arrebatam terrenos de cultura, derrubam pontes e chegam por vezes a causar enormes prejuízos em habitações, pessoas, terras e animais” (PEREIRA, 1989, I, 283) Orlando Ribeiro, ao comentar o regime das águas na ilha da Madeira, refere algumas “inundações catastróficas” que assolaram a Ilha. Tais calamidades estão associadas a “chuvas excepcionais [...] frequentemente desastrosas, que enchem as ribeiras, arrastam blocos com algumas centenas de quilos, destroem pontes, danificam casas, inundando a parte baixa das aglomerações situadas à beira-mar, e pondo em perigo bens e pessoas” (RIBEIRO, 1985, 33). Merece ainda destaque a descrição feita por Cecílio Silva de um cenário de aluvião num texto intitulado “Eu Tive Um Sonho”, publicado no Diário de Notícias da Madeira. Traumatizado pelo estado de desertificação das serras do interior da ilha da Madeira, nomeadamente da região a norte do Funchal, que constitui a cabeceira das bacias hidrográficas das três ribeiras que confluem para a capital, aliado a recordações da infância passada junto à margem de uma dessas ribeiras (Santa Luzia), o mundo dos seus sonhos, frequentemente tomado por pesadelos sempre ligados às enxurradas invernais e infernais dessa ribeira, descreve: “Tive um sonho […], subia a escadaria do Pico das Pedras, sobranceiro ao Funchal. Nuvens negras apareceram a Sudoeste da cidade, fazendo desaparecer o largo e profundo horizonte, ligando o mar ao céu… […] De repente, tudo escureceu. Cordas de água desabaram sobre toda a paisagem que desaparecia rapidamente à nossa volta. […] Repentinamente, como começou, tudo parou; as nuvens dissiparam-se, o vento amainou e a luz voltou. Só o ruído continuava cada vez mais cavo e assustador. Olhei para o Sul e qualquer coisa de terrível, dantesco e caótico se me deparou. A Ribeira de Santa Luzia, a Ribeira de S. João e a Ribeira de João Gomes eram três grandes rios, monstruosamente caudalosos e arrasadores. […] As águas efervescentes, engrossando cada vez mais em montanhas de vagas espessas, tudo cobriram até à Sé – único edifício de pé. Toda a velha baixa tinha desaparecido debaixo de um fervedouro de água e lama. [...] Acordei encharcado. Não era água, mas suor. Não consegui voltar a adormecer…” (SILVA, DN, 13 jan. 1985). O impacto que as aluviões têm no imaginário coletivo dos madeirenses é por demais evidente, ou não fossem estas um dos principais perigos naturais que os habitantes da Ilha enfrentam, sendo responsáveis pela maioria dos prejuízos, humanos e materiais, provocados por catástrofes desde o início da ocupação humana.   Susana Prada Celso Figueira (atualizado a 14.12.2016)

Física, Química e Engenharia Geologia

almeida, luís beltrão de gouveia e

O governo do Gen. Luís Beltrão de Gouveia e Almeida, nascido por volta de 1750, caracterizou-se por uma intensificação das dificuldades com as forças britânicas, que permaneciam na Ilha mesmo depois do retorno à soberania portuguesa e da assinatura dos acordos de paz com a França (Guerras napoleónicas; Ocupações inglesas). A época marcou o início de uma certa retração económica da Madeira no quadro do Atlântico, de que resultou também um menor interesse na posição estratégica da Ilha, pelo que os interesses ingleses e norte-americanos se transferiram para outros locais, como os vizinhos arquipélagos das Canárias e dos Açores. Acrescia que, com a presença das forças britânicas na Madeira, ficaram patentes uma série de problemas económicos e sociais e os atritos no relacionamento com a Igreja Católica, dificuldades que não deixaram de aumentar durante esses anos. O Gov. Pedro Fagundes Bacelar de Antas e Meneses (c. 1760-1813) (Meneses, Pedro Fagundes Bacelar de Antas e), após quatro anos de difícil governo, sofreu, a 4 de maio de 1813, “um ataque de paralisia” que lhe afetou o lado direito (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 3197-3198), ficando o governo entregue ao velho secretário João Marques Caldeira de Campos (c. 1760-1814), que estava em São Lourenço há 35 anos. A 4 de julho, o governador ainda mandou escrever que estava a recuperar e, optando por um período de recuperação em Lisboa, acabou por ali falecer a 1 de novembro seguinte. O Governo português, então no Rio de Janeiro, já a de 30 de janeiro de 1813 nomeara como governador o Ten.-Gen. Luís Beltrão de Gouveia e Almeida (c. 1750-1814), com patente de governador da Madeira e do Porto Santo por três anos. O tenente-general tinha foro de fidalgo da Casa Real e iniciou o seu notável percurso na Campanha do Rossilhão, para onde fora destacado em 1793, regressando em 1795, depois do que foi promovido a coronel. Em 1799, foi comandar as tropas de São Salvador da Baía, capital do Reino do Brasil, com a patente de marechal, assumindo logo funções de inspeção-geral. Regressado ao continente, foi promovido a tenente-general do Exército em 1805 e, no ano seguinte, nomeado governador da Beira, no âmbito de cujas funções ficava encarregado de mudar o quartel-general da praça de Almeida e o regimento de Penamacor para Viseu, seguindo depois com a corte para o Brasil. Luis Beltrão de Gouveia de Almeida. 1814. A 23 de abril de 1813, o Ten.-Gen. Luís Beltrão foi avisado para comparecer, a 27 seguinte, “às dez horas da manhã”, no paço do Rio de Janeiro, “para dar nas Reais Mãos” juramento de menagem pelo “governo de capitão da ilha da Madeira” (ABM, Governo Civil, liv. 200, fl. 4v.). O novo governador chegou ao Funchal a 7 de agosto – “depois de uma longa, mas feliz viagem” – e tomou posse no dia 10 seguinte na Câmara do Funchal, para a qual já no dia anterior tinha enviado a sua carta régia para transcrição (Ibid., liv. 202, fl. 1). Somente a 22 de março do ano seguinte, demonstrando já algum distanciamento de certas práticas anteriores, entrou como “irmão protetor e presidente” da Confraria de N.ª Sr.ª da Soledade do Convento de S. Francisco do Funchal (ABM, Governo Civil, liv. 235, fl. 7), coisa que os seus antecessores tinham feito quase logo após tomar posse.     Armas de Luís Beltrão de Gouveia de Almeida. 1814.   Chegado à Madeira, o novo governador tratou de montar o seu gabinete, pedindo a presença, como ajudante de ordens, do Cap. Joaquim de Freitas e Aragão, e, tal como os seus antecessores, comunicou imediatamente ao Rio de Janeiro as informações obtidas acerca da situação na Europa. Assim, a 10 de setembro, escrevia que “parece que os soberanos da Europa vão conhecendo à sua própria custa o despotismo da França”. Nessa altura, enviou para o Rio de Janeiro várias “folhas” inglesas, incluindo o periódico Star, de 21 de agosto, cuja leitura permitia depreender que Napoleão pretendia “vir a Espanha, reparar as perdas que fez seu irmão, e erros dos seus marechais”; Luís Beltrão rematava: “Agora, porém, com esta notícia do armistício roto, não lhe falta sarna com que se coce no Norte” da Europa (Ibid., liv. 202, fl. 2). A partir de 1812, desenvolveu-se na Ilha uma forte reação contra a presença inglesa, chegando mesmo, nos inícios desse ano, a pensar-se em enviar o Cor. Alberto Andrade Perdigão ao Rio de Janeiro para expor a situação, aproveitando a Câmara do Funchal a ida do coronel à corte para apresentar ali alguns assuntos e atribuindo-lhe para isso, inclusivamente, um subsídio de 1600$000 réis (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, liv. 1367, fl. 88); todavia, a deslocação não se concretizou. Ao fim de quatro meses na Ilha, a 1 de novembro, Luís Beltrão elaborou o ponto da situação militar insular, apresentando o que denominou por “considerações” para salvar a colónia “das mãos dos Ingleses”, uma vez que estes “já a devoram, com as suas vistas e medidas ambiciosas, enquanto não podem de outro modo” fazer, pois “aspiravam à sua posse absoluta” (ABM, Governo Civil, liv. 202, fls. 5v.-10). Assim, os Ingleses controlavam nessa altura toda a estrutura militar, tal como fizera Napoleão em Espanha e em Portugal, corrompendo mesmo “alguns desgraçados Portugueses”. Como exemplo, apresentava o Ten. Alexandre Teles de Meneses, filho de uma Inglesa “e péssimo Português, vendido aos Ingleses”, que nos anos seguintes não deixaria de criar problemas. O oficial empenhara-se em obter para os comandos ingleses – tanto para Robert Meade (1772-1852) como para Hugh Mackay Gordon (1760-1823) – informações sobre os vários trabalhos de levantamento das costas da Madeira efetuados pelo Cap. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832). Por esse serviço, Teles de Meneses “recebia 30$000 réis por mês, para fornecer as plantas”, entretanto copiadas pelo “paisano” Vicente de Paula Teixeira (1785-1855). Tenente-General Hugh Mackay Gordon-1823. Arquivo Rui Carita.     No “empenho” e no “mistério e na despesa” aí envolvidos, aos quais se uniam a “corrupção e compra dos seus assalariados”, não podia estar outra coisa senão um “interesse oculto” dos Ingleses em possuir todos os elementos necessários a uma mais profunda ocupação e domínio da Madeira (ABM, Governo Civil, liv. 202, fls. 5v.-10).       Charles Stuart-George Hayter-1830. Arquivo Rui Carita   Em relação ao contingente militar da Ilha, que lhes poderia resistir, tinha sido opção inglesa a sua diminuição (com o objetivo de o aumentar posteriormente, caso isso fosse favorável aos Ingleses). Luís Beltrão dava como exemplo a atitude do Gen. Robert Meade, anterior comandante das forças inglesas, que instara junto de Charles Stuart (1779-1845) – futuro conde de Machico e embaixador inglês na corte do Rio de Janeiro – para que se efetuasse um recrutamento de 3000 homens para o Exército de Portugal. Além disso, o governador anterior tinha entregado, lamentavelmente, o comando dos regimentos de milícias aos Ingleses, deixando assim que o comando dos regimentos dependesse deles; num quadro destes, o governador não sabia atempadamente quando se reuniam as milícias, por que o faziam, as ordens que tinham e o destino que se lhes dava. A despesa feita pela Fazenda portuguesa com a tropa inglesa, até ao final do ano de 1812, tinha ascendido aos 85.977$299 réis. A 5 e a 25 de novembro de 1813, Luís Beltrão enviou dois extensos relatórios sobre o “estado da agricultura da Madeira e as formas de promover o seu desenvolvimento”, o tipo de terrenos da Ilha e os aspetos do clima, por vezes sujeito a intensos nevoeiros que tornavam a subsistência difícil, pois “as névoas de S. João tiram o azeite e não dão pão”. A principal questão colocada era a da dificuldade dos caminhos – referindo o governador “que não uso o termo estradas, porque não existem” – a que acresciam os problemas das águas, da reflorestação dos picos da Ilha e do direito de propriedade dos terrenos. Escreve o governador que “todo o terreno desta Ilha, com pouquíssimas, ou talvez nenhumas exceções, tem três donos”: o primeiro dono era o senhor direto (quando havia emprazamento, o que raras vezes acontecia); o segundo era o senhor útil (quando o terreno não caía em comissão, o que também poderia acontecer); o terceiro era o colono, aquele que “cultiva de meias” o terreno (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3281). Estrada Norte da Ilha. Paulo Dias de Almeida. 1828   Curiosamente, e ao contrário do modo de ver do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), em meados do século anterior, Beltrão de Gouveia considera que o colono é o que tira maior benefício do solo, “porque come e cria todo o ano, de que não paga meação, porque só a devem dos géneros da colheita”. Acrescenta, no entanto, que “o colono é quase um servo da gleba, sem o saber e sem o ser por lei”. Como remate, o governador insiste no sistema de levadas (Levadas), sobre o qual deverá incidir um maior investimento insular, inclusivamente sob os auspícios da Fazenda Real (algo que só viria a acontecer algumas décadas mais tarde). Como refere o governador, enquanto a Ilha estiver enfeudada à “prestação à Inglaterra”, ele próprio não se arrisca a uma proposta desse género (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3281). Foi certamente nos inícios da construção do sistema de levadas que Beltrão de Gouveia encomendou a Paulo Dias de Almeida um estudo sobre a possibilidade de uma estrada que atravessasse a Ilha de Norte a Sul, desde a calçada de N.ª Sr.ª do Monte até às planícies das “freguesias do Norte, Porto da Cruz, Faial e Santana”, que o governador enviou a 24 de setembro de 1813, juntamente com um orçamento de 24.254$700 réis, tendo também começado a reunir várias informações sobre as levadas da ilha da Madeira (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 3282-3284), e cuja planta ficou conservada nos arquivos militares (DSI, GEAEM, cota 1337-1A-12-15). Neste contexto, nos inícios de dezembro de 1813, convocava a primeira reunião da Junta de Melhoramentos da Agricultura, estrutura anteriormente concebida, mas que ainda não havia sido possível reunir efetivamente. A principal tarefa de Luís Beltrão de Gouveia foi, no entanto, a de tentar travar a tentativa de implantação, na Ilha, de uma estrutura militar completamente controlada pelo comando inglês. Durante este período, o Cor. Gordon pressionara o governador por diversas vezes, no sentido de obter, para os oficiais que considerava afetos à Inglaterra, os lugares cimeiros nos principais corpos militares. Usando os mais diversos subterfúgios, Beltrão de Gouveia conseguiu sempre furtar-se às nomeações em causa. Nesse quadro de contínuo conflito, em meados de dezembro de 1813, o governador voltava a defrontar-se com o comandante inglês. De facto, tendo sido determinadas as salvas de ordenança pelas fortalezas do Funchal comemorativas do “dia de aniversário de Sua Majestade a Rainha” D. Maria I, o Cor. Gordon não as autorizara na totalidade. Como depois o governador informa para o Rio de Janeiro, encontrar-se-ia doente a mulher do médico inglês Shanthear e, para seu espanto, somente salvou a fortaleza do Ilhéu e metade do que lhe competia (ABM, Governo Civil, liv. 202, fl. 17), não tendo salvado a fortaleza do Pico , como também lhe competia. No final do mês, outro acontecimento veio azedar ainda mais as relações entre o governador e o Cor. Hugh Gordon. O Conselho de Guerra inglês condenara à morte um soldado que assassinara, num ato de insubordinação, um sargento. Ao saber do ocorrido e na iminência da execução, o Gov. Beltrão de Gouveia intercedeu junto do Cor. Hugh Gordon, referindo os inconvenientes de tal atitude, mostrando-lhe que essa execução “ofendia os direitos territoriais do soberano português, lembrando-lhe que Luís XIV expulsara a Rainha Cristina da Suécia, por mandar enforcar o seu secretário, quando se achava viajando naquele país e que no Rio de Janeiro, os senhores almirantes ingleses Curry e Dickson, respeitando o território português, mandavam cumprir as execuções capitais no alto do mar, a bordo de um navio de guerra” (ABM, Governo Civil, liv. 202, fls. 19v.-20). A indicação sobre a Rainha Cristina da Suécia não estaria correta, pois o seu secretário terá morrido noutras circunstâncias (salvo se o governador soubesse de outros pormenores que não sejam do domínio público). A execução, no entanto, acabou por ser cumprida no forte da Penha de França, tendo a ela assistido o Sarg.-mor do Batalhão de Artilharia, António Fernandes Camacho, em representação do comando português. A cerimónia foi feita perante a formatura geral das forças inglesas e do regimento de artilharia português, que, em conjunto, formaram um círculo em torno do local da execução. A sentença foi lida pelo major White, “achando-se armada uma forca, tendo-se exortado o soldado que ia ser enforcado por ter matado com um tiro de fuzil ao seu sargento. Ao meio-dia em ponto se enforcou o dito soldado, estando pendurado por espaço de uma hora”. As forças militares inglesas desfilaram perante o enforcado e só depois o carrasco cortou a corda, tendo o corpo caído para um carro e sido transportado para o Convento de S. Francisco (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 3313-3316). A reação de repulsa a este atropelo dos direitos dos Portugueses foi tal que nos princípios do séc. XX era ainda usual voltar a cara para o lado do mar quando se passava em frente dos muros desta velha fortaleza. Agravava ainda o facto ocorrido serem raríssimas as execuções capitais na ilha da Madeira, não havendo a elas qualquer outra referência nesta época. Os problemas entre o governador e as forças britânicas continuaram a existir e, em fevereiro de 1814, surgiram novas questões envolvendo a chegada ao Funchal de mais uma brigada de peças de artilharia. Londres, em vez de retirar as suas forças da Ilha, quando já se adivinhava o colapso de Napoleão em França, ainda as reforçava com mais armamento. A reação do governador foi protelar, como podia, o despacho do armamento, mandando inspecionar demoradamente todas as embalagens. Disso mesmo se queixou o Cor. Gordon a Londres: “todos” os artigos que chegavam à Madeira, destinados às forças britânicas, eram abertos e “demoradamente” examinados, o que o general entendia ser “contra a Convenção” entre os dois Governos e portanto uma “ofensa ao Governo britânico” (RODRIGUES, 1999, 398). A zona marítima da Madeira continuava, entretanto, a ser um dos palcos privilegiados da guerra de corso que opunha as potências marítimas, lideradas pela Grã-Bretanha, às continentais, lideradas pela França. A 6 de fevereiro de 1814, nomeadamente, entravam no porto do Funchal as naus S. Paulo, espanhola, com graves avarias, e a Magestic, inglesa, sob o comando do Cap. Hayes. O Gov. Luís Beltrão informava, então, que a nau inglesa estava transformada em fragata de guerra e que trazia, aprisionada, a fragata francesa Terpsichore, assim como 320 prisioneiros franceses. A fragata francesa tinha sido tomada no espaço marítimo compreendido entre a Madeira e a ilha de Santa Maria, nos Açores, e fazia parte de um conjunto de três fragatas que tinham tomado uma galera espanhola vinda de Lima, na América do Sul (na galera espanhola viajavam o marquês e a marquesa de Lima, que morreram na viagem). Em maio desse mesmo ano, o governador dava conta de que duas fragatas francesas (provavelmente as do conjunto de que fazia parte a fragata Terpsichore) haviam metido a pique o navio Conde das Galveias e o bergantim Bom Sucesso e Dois Amigos, cujos tripulantes e passageiros acabavam de chegar à Madeira, transportados pela galera portuguesa Comerciante. Esta época marca uma nova tentativa de abertura à Rússia, com a presença habitual de navios daquela nacionalidade no porto do Funchal, tendo-se o governador inclusivamente deslocado, logo em outubro de 1813, ano da sua nomeação, num bergantim russo, o Heleno, comandado pelo Cap. Drack Maschek, com 10 pessoas a bordo, o qual levara 60 dias de São Petersburgo a Portsmoyuth e 20 dias de Portsmoyuth ao Funchal. Em finais de 1812, tinha chegado à Madeira um “cônsul Ruciano”, o cavaleiro de Borel (ABM, Governo Civil, liv. 198, fl. 79v.), o qual em 1815 seria altamente elogiado pelo bispo de Meliapor, D. Fr. Francisco Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828) (Ataíde, D. Fr. Francisco Joaquim de Meneses e), vigário apostólico do Funchal. Em fevereiro de 1814, o governador informava o conde das Galveias, D. Francisco de Almeida de Melo e Castro (1758-1819), no Rio de Janeiro, que o Imperador da Rússia enviara a Henrique Correia de Vilhena Henriques (1769-c. 1830), irmão do visconde de Torre Bela (1768-1821), um magnífico anel de brilhantes em reconhecimento pelos serviços prestados em prol do estreitamento das relações comerciais entre a Rússia e a ilha da Madeira; em anexo à sua carta, envia a transcrição da carta do conde de Romanov, em francês, escrita em nome do Imperador, “mon maître” [“meu senhor”], no dizer do conde de Romanov, datada de 23 de outubro do ano anterior, bem como o anel para Henrique de Vilhena (ABM, Governo Civil, liv. 220, fl. 22v.). As relações intensificar-se-iam nos anos seguintes, com a estadia do futuro conde do Porto Santo, António de Saldanha da Gama (1778-1839), como ministro plenipotenciário na Rússia (que passaria pela Madeira entre finais de 1818 e inícios de 1819). Nos meses seguintes, avolumaram-se na Madeira as notícias das vitórias aliadas na Europa contra as forças napoleónicas, que o governador imediatamente comunicava, primeiro ao conde das Galveias e, em seguida, ao novo secretário de Estado, D. Fernando José de Portugal e Castro (1752-1817), marquês de Aguiar, na corte do Rio de Janeiro. Em abril e maio de 1814, e.g., comunicava ao Rio de Janeiro a entrada do “Exército Aliado do Norte” em Paris, os boatos de paz e as indemnizações de guerra pedidas pelos diversos Estados. Ainda nesse mês de maio, perante a confirmação da queda de Napoleão e o início das negociações de paz, o governador queixava-se da manutenção das forças inglesas na Madeira e manifestava os seus receios em relação às pretensões ocultas da Inglaterra sobre a Ilha (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 21v. e 22). Na sequência das informações recebidas sobre as futuras negociações a realizar em Paris, o Gov. Beltrão de Gouveia sugeria “que Sua Alteza Real tivesse também no Congresso quem o representasse com dignidade e interesse”, pois só dessa forma poderia salvar os seus Estados “de algum sacrifício”, numa provável alusão à situação da Madeira, ocupada por forças britânicas. Os receios do governador eram mais do que justificados, tendo este chegado a sugerir que um dos aliados de Portugal fosse o Imperador da Rússia, que tinha então três navios estacionados no Funchal. O Imperador era, porém, um dos aliados preferenciais da Inglaterra, que esta respeitava mas que também temia. O príncipe regente deveria, assim, fazer-se representar “com toda a sua luz naquele Congresso” por pessoas que o fizessem “com dignidade e muita fidelidade”, assim como interessar “eficazmente na nossa causa o Imperador da Rússia, que tem em vistas um mais intensivo comércio com o Brasil e com esta Ilha” (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 32v.-33). Nessa época, os navios espanhóis voltaram a fazer escala na Madeira, instalando-se novamente um consulado espanhol na Ilha. Entre problemas vários, refira-se a chegada da nau S. Paulo, comandada por D. António Pacaro. A nau arribara à Madeira devido a avarias sofridas no mar alto ao longo de uma viagem de 78 dias, encontrando-se a sua tripulação e passageiros, no total mais de 150 homens, atacados por escorbuto. Parte deles teve mesmo de ser transportada em padiolas para o Hospital da Misericórdia no Funchal. Com vista ao seu restabelecimento, o governador mandou alugar uma casa a Pedro Jorge Monteiro, afastada da cidade; e para o conserto da nau o morgado João de Carvalhal (1778-1837) (Carvalhal, 1º conde de) mandou cortar madeira nas suas vastas propriedades, e “não aceitou [o] preço dela” (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 29v.-30v.). Por outro lado, voltava a assumir um certo protagonismo o consulado norte-americano, cujo cônsul, Diogo Leandro Cathecart, se queixava, nos inícios de junho de 1814, de que a escuna britânica Ecclipse arvorara o pavilhão dos Estados Unidos por baixo do pavilhão inglês. De facto, “no dia 4, aniversário de Sua Majestade britânica, lembrou-se Guilherme Corneille”, comandante da referida escuna, de hastear desse modo as bandeiras. O governador refere que o assunto não tinha sido senão uma brincadeira, mas não deixava de ser uma ofensa à nação norte-americana. Na mesma altura, o cônsul comunica ao governador o interesse de um comerciante residente em Lisboa, Nicolau George Querk, “irlandês de um excelente carácter”, em adquirir alguns terrenos na Madeira, e também os receios que havia sobre as intenções inglesas a respeito da Ilha (ABM, Governo Civil, liv. 220, fl. 36).   George Day Welsh Também por essa altura, o governador informava o Rio de Janeiro de uma nova forma de posicionamento dos Ingleses na Ilha, que até essa data não tinha sido muito notória, mas que não escapara a Luís Beltrão, algo que, segundo o governador, “prova alguns temores que tenho exposto nos ofícios que tenho enviado a V. Ex.ª” (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 30v.-31). O assunto dizia respeito a D. Vicência de Freitas, filha de uma irmã do visconde de Torre Bela e viúva do Ten.-Cor. Francisco Anacleto de Figueiroa (c. 1760-1812), por sua vez primo de D. Antónia Basília de Brito Herédia, mulher de D. António de Saldanha da Gama (1778-1839), então ministro português na Rússia e futuro conde do Porto Santo. D. Vicência contraíra matrimónio com o súbdito inglês George Day Welsh (1776-c. 1830), natural dos Estados Unidos e residente na Ilha pelo menos desde 1808. O casamento ocorrera a bordo de uma nau inglesa, ao largo do Funchal, e segundo o rito anglicano, visto o bispo vigário apostólico do Funchal e o núncio de Lisboa se terem negado a conceder as necessárias licenças. Os nubentes haviam embarcado na nau e, “passadas quatro horas, voltavam ao porto” (Ibid.), casados. Acrescentava Luís Beltrão que “nem o visconde, nem outros poucos parentes aprovavam tal casamento e suas circunstâncias” (Ibid.); no entanto, os outros parentes (pelos vistos, a maior parte), sendo do seu interesse, não se importariam. Acontecia que George Welsh mantinha, por vezes, longas demandas com a vereação camarária, como acontecera em 1812, quando acusou o guarda da bandeira e intérprete da Casa da Saúde, José Joaquim da Costa, de carregar carne salgada em dois navios espanhóis que estavam de quarentena. Como alertava o governador, a comunidade inglesa começava, deste modo, a adquirir um vasto património imobiliário, o que envolvia problemas vários, entre os quais os decorrentes da venda de capelas, v.g., a capela pertencente a Bento da Veiga, fundada em 1580, em cujo terreno, adquirido pelo comerciante Robert Blackburn, teria origem a quinta da Palmeira, desaparecendo a capela. Ora, tais aquisições não se haviam registado até então, e os comerciantes estrangeiros não recusavam agora, inclusivamente, casar-se com elementos das principais famílias locais. Em meados desse ano de 1814, dois acontecimentos vieram, entretanto, possibilitar a alteração da forma de posicionamento do governo da Ilha em relação às pretensões inglesas. Em finais de janeiro, tinha adoecido gravemente o secretário do governador, João Marques Caldeira de Campos, uma das figuras mais importantes da Ilha e o grande apoio dos governadores anteriores. O secretário encontrava-se na Madeira há 36 anos e era um profundo conhecedor dos problemas da Ilha. No ano anterior, aquando da doença de Pedro Bacelar, assumira inclusivamente o gabinete do governador e tinha tido o cuidado de informar a corte do Rio de Janeiro de que essa seria a solução ideal até ser nomeado um novo governador, pois sobre a nomeação de um governo interino não tinha quaisquer dúvidas: “Que Deus nos livre” (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3197). Luís Beltrão não teve outra hipótese senão nomear um novo secretário interinamente, Gaspar Pedro de Sousa e Almada. Infelizmente, a doença era irreversível e a 5 de março o velho secretário falecia, pelo que o governador pediu a nomeação definitiva de Sousa e Almada, a que a corte anuiu a 6 de junho. A comunicação, com data de 10 do mesmo mês de junho, chegou ao Funchal a 9 de agosto de 1814, com uma rapidez muito pouco usual. Às duas horas da madrugada de 28 de junho de 1814, no palácio de S. Lourenço, repentinamente (o que gerou alguma celeuma), o Gov. e Cap.-Gen. Luís Beltrão de Gouveia e Almeida era “atacado de uma fortíssima apoplexia” que o levaria “à eternidade” a 1 de julho. Foi sepultado na capela do Santíssimo da Sé do Funchal (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 38v.). Aparentemente, abria-se uma brecha nas autoridades superiores da Madeira e seria de esperar que o comando inglês aproveitasse de imediato a situação para alargar a sua influência. No entanto, não foi isso que aconteceu, pois o governo interino não autorizou este tipo de manobra por parte do comandante inglês, além de que uma nova convenção, assinada com o Governo inglês, cessara com a paz recentemente assinada.   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

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A apresentação no Funchal do Gov. Januário Correia de Almeida (1829-1901) ocorreu nas vésperas da cerimónia de aclamação do rei D. Luís, ainda determinada pelo anterior governador civil do Funchal, 2.º conde de Farrobo, mas que já não se encontrava na Madeira. O novo governador era engenheiro civil e militar, tendo deixado um interessante conjunto de Obras Públicas em Cabo Verde, mas poucos meses depois retirava-se para o continente e não regressaria à Madeira, aceitando o congénere lugar em Braga. Palavras-chave: Aclamação Régia; Engenheiros militares; Obras Públicas; Partidos políticos.   Januário Correia de Almeida. Arquivo Rui Carita. A apresentação no Funchal do Gov. Januário Correia de Almeida encontra-se ligada a uma das muitas histórias picarescas da política madeirense dos meados do séc. XIX. Nos inícios de janeiro de 1862, a Câmara Municipal do Funchal assumia as festas para a aclamação do Rei D. Luís (1838-1889), em moldes semelhantes ao acontecido anos antes com D. Pedro V (1837-1861) – sinal de que o governador civil do Funchal, 2.º conde de Farrobo (1823-1882) (Farrobo, 2.º conde de), já não se encontrava na Madeira, enviando o impresso o então presidente da Câmara, Marceliano Ribeiro de Mendonça (1805-1866). Embora o mesmo impresso informe que fora o governador civil do distrito a marcar o dia 20 de janeiro para “a grande festividade da inauguração do Reinado” de Sua Majestade “O Senhor Dom Luís Primeiro”, nem o governador nem o secretário-geral deviam estar na Madeira, saindo o “préstito para a aclamação do Nosso Augusto Senhor” dos Paços do Concelho “pelas 11 horas da manhã” em direção à Sé do Funchal (ABM, Alfândega do Funchal, liv. 679, impr. 14 jan. 1862), sem qualquer outra informação sobre o acompanhamento. Saindo o conde de Farrobo para Lisboa, foi nomeado (ou nomeou-se) governador interino o administrador do Porto Santo, João de Santana e Vasconcelos, membro influente local do Partido Regenerador. A sua receção no Funchal foi organizada pelos familiares, futuros viscondes das Nogueiras (Nogueiras, viscondes das), nessa noite, com um baile em S. Lourenço, na sequência das festas ali também dadas pelo conde de Farrobo e dentro da tradição de três dias de festas oficiais (previstos para os dias 18, 19 e 20), para no último dia ser então aclamado o Rei D. Luís. Decorria a receção em S. Lourenço, na noite de 18 de janeiro, quando entrou na baía do Funchal a embarcação que trazia o novo governador. Houve o prudente cuidado de não interromper a festa, guardando-se para o dia seguinte a entrada oficial de Januário Correia de Almeida, o futuro visconde de S. Januário em S. Lourenço; mas a oposição não deixou de fazer correr que o governador interino se preocupara de tal modo com a administração “que nem o tempo chegara para dormir enquanto ela durou” (SILVA e MENESES, I, 1998, 51), pois só durou a noite em que decorreu o baile. O novo governador era filho do homónimo Januário Correia de Almeida (c. 1805-1835), tesoureiro-geral da Armada, e de sua mulher, Bárbara Luísa dos Santos Pinto (c. 1800-1860), tendo nascido em Paço de Arcos, a 31 de março de 1829. Seguindo a carreira militar, assentou praça no Batalhão de Caçadores n.º 2, a 4 de novembro de 1842, e, passando depois a frequentar a Escola do Exército, foi promovido a alferes de Cavalaria, a 22 de dezembro de 1846. Frequentou a seguir a Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, onde se bacharelou em Matemática e em Filosofia, voltando à Escola do Exército, graduado no posto de tenente, concluindo o curso do Estado-Maior em 1856, como engenheiro civil e militar. No ano seguinte, seria nomeado diretor das Obras Públicas de Cabo Verde, percorrendo todas as ilhas do arquipélago e deslocando-se inclusivamente à costa da Guiné, de cuja estadia editaria em Lisboa um pequeno trabalho: Um Mês na Guiné. Em 1860, já com o posto de capitão, seria nomeado governador interino de Cabo Verde, deixando uma obra muito interessante como engenheiro, e.g. o cais do Porto da Praia e o liceu daquela cidade, na ilha de Santiago, bem como as alfândegas do Mindelo, em São Vicente, e de São Filipe, na ilha do Fogo. Regressaria ao continente em 1860, terminada a sua comissão de serviço de três anos, e, no início de 1862, seria nomeado governador da Madeira. O decreto de nomeação data de 15 de janeiro, tendo tomado posse a 19 seguinte, o que foi de uma rapidez inédita para a época sendo por essa razão que não era esperado no Funchal. Entretanto, havia sido nomeado novo secretário-geral para o governo civil do Funchal, António Lopes Barbosa de Albuquerque, que, por circular impressa em S. Lourenço, comunica às autoridades locais, pelo decreto de 8 de janeiro desse ano, a exoneração do 2.º conde de Farrobo e do ex-secretário-geral, António Correia Herédia (1822-1899) (Herédia, António Correia) – e, pelo mesmo decreto, a sua nomeação para o lugar deste último. Na data de 19 de janeiro de 1862, foi distribuída nova circular a informar que o Gov. Januário Correia de Almeida tomara posse nesse dia. Seria então o novo governador a presidir às cerimónias de aclamação do Rei D. Luís, assistido pelo novo secretário-geral, António Lopes Barbosa de Albuquerque. O Gov. Januário Correia de Almeida começou por solicitar às autoridades insulares elementos para elaborar o seu relatório para o Governo de Lisboa, que deveria seguir no início de cada ano civil, e que o seu antecessor não chegara a enviar. Em fevereiro nomeava o diretor da Alfândega, Diogo Teles de Meneses (1788-1872), posteriormente visconde Teles de Meneses (Teles de Meneses, visconde), para a presidência de uma comissão encarregada de propor medidas com vista à elaboração de um decreto sobre fiscalização marítima, mas logo em julho comunicava que, tendo de se ausentar para o reino, “com a devida autorização” de Sua Majestade, deixava em funções o secretário-geral António Lopes Barbosa de Albuquerque (ABM, Alfândega do Funchal, liv. 679, of. 19 jul. 1862). É provável que a deslocação ao continente tivesse a ver com o falecimento da mãe, que ocorre nesse mesmo ano; contudo, acabaria por não voltar à Madeira, pois seria, também nesse ano, nomeado governador civil de Braga. Tendo deixado um interessante conjunto de obras públicas em Cabo Verde, nada se conhece na Madeira da sua intervenção nessa área, nem sequer vistorias ou pedidos de informação a esse respeito. Não deixa de ser estranha a posição do Gov. Januário Correia de Almeida, uma vez que era homem do Partido Regenerador do também engenheiro civil e militar António Maria Fontes Pereira de Melo (1819-1887), filho do então governador de Cabo Verde, que ao passar pela Madeira em outubro de 1848 não deixara de ir ver as obras da Levada do Rabaçal, quando ali trabalhava o capitão Tibério Augusto Blanc (c. 1810-1875). Pensa-se que data da sua vigência como governador a revisão da nova divisão concelhia e paroquial, de que se conhecem, depois, alguns acertos. No dia 11 de setembro de 1862, e.g., após vários incidentes e peripécias, fez o secretário-geral do distrito, António Lopes Barbosa de Albuquerque, servindo de governador civil, reunir na Casa dos Romeiros do Santo da Serra representantes das câmaras municipais de Machico e Santa Cruz, administradores do concelho, diversos funcionários públicos e outras pessoas de representação; e foi nesse local que se assentou definitivamente a nova divisão, tendo deste modo terminado as reclamações e os protestos que duma e doutra parte se levantavam. O secretário-geral António Lopes Barbosa de Albuquerque, que entre maio e setembro de 1865 seria governador civil de Faro, também não estaria muito mais tempo na Madeira, pois em janeiro de 1863 tomava posse desse lugar Jacinto António Perdigão (Perdigão, Jacinto António), jurisconsulto que mais tarde haveria de ganhar alguma nomeada no continente e que ocupou assim o lugar de governador interino e, posteriormente, o de efetivo. Januário Correia de Almeida, entretanto membro do Partido Progressista (Partido Progressista), sairia da Madeira para idêntico lugar em Braga e, em fevereiro de 1864, era comissário régio em Vila Real e, depois, oficial às ordens do Rei D. Luís. Seria governador-geral da Índia em 1870, de onde passou a Macau e Timor, tendo sido ministro plenipotenciário na China, no Japão e no Sião. Regressando a Lisboa em 1875, seria um dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, à frente da qual teria uma ação francamente notável. Foi ainda, em 1878, encarregado de negócios junto de várias repúblicas da América do Sul e teve, depois, as pastas da Marinha e Ultramar e da Guerra, sendo barão por decreto de 10 de novembro de 1886 e conde pelo de 27 abril de 1889, desconhecendo-se a data do decreto de visconde. Foi promovido a general-de-brigada a 30 de junho de 1893 e a general-de-divisão a 13 de maio de 1896. Nesse ano de 1896, foi-lhe confiado o comando da 1.ª Divisão Militar, tendo sido ainda comandante do Estado-Maior e da Escola do Exército. Faleceu em Paço de Arcos, onde havia nascido, a 27 de maio de 1901. Obras de Januário Correia de Almeida: Um Mês na Guiné (1859).   Rui Carita (atualizado a 13.11.2016)

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