branco, josé de sousa de castelo
Nasceu em Leiria a 2 de novembro de 1654, sendo filho de Heitor Vaz de Castelo Branco, “senhor do Lagar do Rei e comendador de Santa Marinha”, e de sua mulher, D. Luísa Maria da Silva Arnault, senhora de morgado (NORONHA, 1996, 126). Tal como o seu antecedente, D. Fr. José de Santa Maria, este prelado foi recrutado nas fileiras da pequena nobreza de província.
Enquanto jovem, foi para Coimbra estudar, e aí se formou em teologia, tendo, de seguida, ocupado um canonicato na sé de Leiria. Encetou, depois, uma carreira na Inquisição, instituição que serviu como deputado em Évora, como promotor em Lisboa, como inquisidor, de novo em Évora, e, finalmente, como presidente do tribunal de Coimbra. Nessa posição se encontrava quando, em 1697, foi designado por D. Pedro II para bispo do Funchal. A sagração aconteceu em Lisboa, no oratório de S. Filipe de Nery, a 28 de junho de 1698, ano em que se deslocou para a diocese, fazendo, na viagem, um desvio por Mazagão, onde se deteve “a ensinar os moradores” e a crismar 1400 pessoas (Id., Ibid., 127). Ainda durante a viagem, começou, de acordo com um manuscrito intitulado Memorias sobre a Creacção e Augmento do Estado Eccleziastico na Ilha da Madeira, a dar indícios de um comportamento singular, pois, segundo reza o texto, “foi este Bispo o Prelado mais amante da nobreza que tem vindo a esta Ilha”. A fundamentação desta apreciação encontra-se, logo de seguida, na descrição de um episódio com Gaspar Mendes de Vasconcelos, cujo pai, o Ten.-Gen. Inácio Bettencourt de Vasconcelos, o mandara para o reino assentar praça; segundo se conta, o bispo logo o trouxera para bordo, atribuindo-lhe no caminho uma conezia, tendo mandado, assim que chegou a terra, o mordomo avisar o general que “ali lhe mandava o filho cónego” esperando que ele lhe perdoasse “o vir contra as suas determinações” (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 273, fl. 93v.). O mesmo documento insiste nesta tónica quando acrescenta que não “houve casa que não beneficiasse, criando-lhe alguns dos seus filhos em cónegos da catedral”, e, de facto, é possível constatar que da família dos Correias e da dos Ornelas saíram três capitulares, da dos Freitas dois e da dos Berengueres um, registando-se, ainda, a atribuição de benefícios que favoreceram outros agregados nobres da Ilha. Com efeito, as Memorias acrescentam que “continuamente lhe estava fazendo a eles presentes de trastes e ainda cortes de vestido” e que ia “passar dias de verão nas quintas dos Cavaleiros da terra e com todos fez uma boa harmonia (Ibid., fl. 97).
Se esta era uma estratégia de minimização de conflitos, não resultou em pleno, porque o episcopado de D. José não foi isento de confrontos que opuseram o bispo a mais do que uma entidade na Ilha. Um dos cenários dessa conflitualidade ocorreu com dois dos três governadores com quem se cruzou no exercício de funções, sendo que, logo com o primeiro, João da Costa Ataíde, se registaram atritos que também envolveram o provedor da fazenda, Manuel Mexia Galvão. Este último, acusado de mancebia pelo vigário-geral, virou-se contra aquele eclesiástico “mais por vingança e por ódio que por defensa […] com ânimo vingativo de injuriar a pessoa de um prelado […] a quem devia tratar com respeito de Pai”, o que determinou a apresentação de queixas mútuas para o reino. Do reino veio, assim, um desembargador, Diogo Salter de Macedo, incumbido de averiguar o que na realidade se passara. Em virtude da sua ação, o provedor foi chamado à câmara a fim de lhe ser aplicada pública e áspera repreensão, e o mesmo teria acontecido ao governador, não fosse ter falecido entretanto. Quanto aos autos do processo, determinou o desembargador que se queimassem para “que de tão estranho modo de recusa não haja em tempo algum memoria nem lembrança”. Em contrapartida, as referências contidas na provisão trazida por Diogo Salter de Macedo dizem que ao bispo se deveria dar notícia da anterior resolução, a fim de que “reconheça a consideração que a minha Real justiça [tem] a quem com menos decoro fala em autos públicos das pessoas dos prelados que justamente se queixam das ofensas que lhes fazem”, o que é o bastante para se perceber que o bispo saiu com grande vantagem desta contenda (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 270, fl. 7).
Com o governante seguinte, Duarte Sodré Pereira, gozou o prelado da melhor das relações, chegando, inclusivamente, a ser padrinho de um dos seus filhos e estabelecendo-se, portanto, entre os dois, uma relação de compadrio. Já com o seu sucessor, Pedro Alves da Cunha, voltaram as coisas a correr mal, designadamente por terem surgido diferendos quanto ao lugar que o governador pretendia ocupar na sé. Terminada a comissão de Pedro Alves da Cunha, foi o prelado cumprimentar o novo governador, João Saldanha da Gama, mas, da conversa que tiveram, ficou o bispo com a impressão de que o novo titular do cargo seria “do mesmo caráter” do anterior, e essa constatação terá apressado a decisão de D. José de Castelo Branco abandonar a diocese. Com efeito, e embora publicamente evocasse razões de saúde como motivo da ida para Lisboa, a verdade é que ficaram registos de que a bordo da nau “ia aquele por cuja causa ele largava o bispado”, ou seja, Pedro Alves da Cunha, o que motiva alguma dúvida sobre as reais motivações do abandono episcopal. A confirmar esta asserção, acrescentam as Memorias que, a bordo, o ex-governador fez ao bispo “muitos obséquios, de sorte que ele se arrependeu de ter partido”, mas, apesar deste sentimento, e de se ter mantido como titular da diocese por mais sete anos, nunca mais regressou à Madeira. Embora tivesse renunciado à mitra do Funchal em finais de 1721, por, segundo afirma Noronha, os médicos considerarem que o clima da Ilha não era favorável à sua doença, a verdade é que D. José só veio a falecer bastantes anos mais tarde, em 1740, facto que contribui para infirmar a tese da doença como real motivo para a saída do arquipélago (NORONHA, 1996, 128).
Para além dos dois governadores, outra das entidades com quem D. José registou desentendimentos graves foi com a comunidade franciscana, a qual, em consequência disso, se viu quase completamente destituída de confessores. O desaguisado começou com a determinação exarada pelo bispo de que todos os clérigos, regulares e seculares, do bispado teriam de se fazer examinar para confessores, do que discordou o custódio de S. Francisco, padre frei Jacinto da Esperança, que recorreu ao rei por causa da “perseguição” que considerava estar a ser-lhe movida pelo prelado. Queixava-se, então, o custódio, em seu nome e no dos religiosos da Ordem, “da notória força e violência com que os oprime o reverendo bispo da dita Ilha”, consubstanciada na privação da autorização para confessar sem se submeterem a novo exame, o que se repercutia negativamente não só na reputação da Ordem, como nos proventos arrecadados (PAIVA, 2009, 37). Além disso, acrescentava, estas ordens do prelado tinham levado à suspensão de todos os frades da Calheta, e não se poderia aceitar a ideia de que fossem “todos criminosos” (DGARQ, Cabido da Sé..., mç. 12, doc. 34, fl. n.n.). A estes argumentos contrapunha D. José o de que “como os confessores tratam de matéria mais arriscada não só pelo foro da consciência e utilidade, ou prejuízo das Almas, mas também porque doutrinam em segredo, é mais perigosa e mais arriscada esta matéria que a dos pregadores”, pelo que não podia ser “tão liberal” neste tema quanto era na concessão de licenças para pregar. A isto acrescia o bispo que poderia acontecer que desta sua “severidade” resultasse estímulo para aplicação ao estudo de que “até aqui pouco se cuidava”, e, usando de uma ironia fina, ainda fazia notar que, sendo os franciscanos pobres, “pelos pregadores haveriam os proventos temporais que das confissões não podem tirar; e da suspensão destes [confessores] lhes resultará viverem com mais descanso que sempre é apetecido da natureza” (Ibid.).
Os antecedentes deste conflito derivariam, possivelmente, de uma pastoral publicada a 20 de dezembro de 1699, na qual o prelado derrogava todas as facilidades anteriormente concedidas a pregadores e confessores, condicionando-as, agora, à realização de novo exame. Esta atitude decorria do facto de ter o prelado sido informado de que alguns clérigos, “esquecidos de suas obrigações”, se não aplicavam no estudo da Moral, “não usando do sacerdócio mais que só na missa, pelo interesse temporal que dela tiram”, situação que lhe parecia intolerável, e à qual procurava, então, obviar (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx, 45, doc. 8).
Porém, se as relações com os franciscanos foram tensas, o mesmo não se passou com os jesuítas, cujo reitor, o padre Miguel Vitus, era, nas palavras endereçadas pelo prelado à inquisição de Lisboa, “coisa muito singular em tudo, na capacidade, letras, virtude e ardente zelo na conversão dos hereges, e no cuidado que tem nos reduzidos”, pelo que seria homem a quem se poderia fiar tudo e “só a ele se devem cometer os negócios de maior importância e risco” (FARINHA, 1993, 887). Vinha este elogio a propósito daquela que, no entender do prelado, seria a melhor opção para se tratar dos assuntos respeitantes ao Santo Ofício na Ilha, pois, apesar de na Madeira haver dois comissários, os desentendimentos entre eles poderiam comprometer a objetividade necessária nos julgamentos. Durante este episcopado, e por razões que se poderão atribuir, por um lado, ao facto de o bispo ter sido recrutado das fileiras da Inquisição, e, por outro, à recente reativação do funcionamento do tribunal, assiste-se a um certo aumento das denúncias apresentadas, cujo número, para o período de 1690 a 1719, se cifra em 59 casos. Apesar de o bispo ter referido a meritória ação do reitor do colégio no combate aos hereges, ou talvez por isso, as ocorrências de heresia são escassas, pois só aparecem dois suspeitos, enquanto a grande incidência das faltas se dá nos domínios das curas supersticiosas e das blasfémias, com 13 acusados em cada área. O saldo final destas denúncias cifra-se em apenas 3 processos, 1 de judaísmo e 2 de bigamia, mas a correspondência trocada entre o bispo e a Inquisição, em Lisboa, permite saber-se que a boa opinião que o prelado tinha da nobreza insular não se estendia ao resto da população da Ilha. Assim, em carta escrita a 11 de novembro de 1707, D. José lamentava-se, dizendo que “a assistência de dez anos e o trabalho de sofrer esta gente me tem dado conhecimento do seu orgulho, e dos seus atrevimentos. Saiba Vossa Senhoria que não estou entre gente, senão em um bosque de feras sem nenhum conhecimento, sem obediência da razão, levados tão-somente de suas paixões como brutos sem temor de Deus, nem honra nem previsão de futuros” (Ibid., 887), o que, por sua vez, se harmoniza com a impressão que colhe dos seus fregueses, os quais, em visita a Ponta Delgada, considera “muito rudes” na doutrina, não só os meninos, como também os pais que, se falhassem no envio dos filhos à estação da missa, deveriam ser publicamente inquiridos sobre os ensinamentos religiosos (ARM, Paroquiais, Livro 116-B, fl. 5). Num outro sítio e num outro contexto, expandia ainda o prelado a má opinião que tinha dos ilhéus, que considerava, pela sua ambição “fáce[i]s de levantar testemunhos uns aos outros para melhorarem as suas pretensões” (ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Eusébio, mç. 1, doc. 21).
Para tentar obviar às falhas de caráter e às omissões de doutrina, envidou D. José alguns esforços, traduzidos na realização de um plano de visitação com a periodicidade devida, complementado por missões de interior, para as quais recorria aos meios ao seu dispor. Assim, em 31 de janeiro de 1700, enviava para as paróquias rurais, “armados de todos os poderes da sua jurisdição”, dois jesuítas, os padres mestres Inácio de Bulhões e Domingos de Melo, a fim de que, por ser o tempo de “grande calamidade de doenças e mortes”, ajudassem os vigários nas confissões. A esses missionários cometia, ainda, a responsabilidade de “aprovar e reprovar confessores na forma que lhes parecer”, voltando a demonstrar a preocupação que a correta prática do sacramento da penitência lhe despertava. Como nota curiosa, pode ainda acrescentar-se o facto de, para além da saúde moral das populações, o prelado zelar, ainda, pela cura dos males do corpo, pelo que, a acompanhar os jesuítas, ia também um cirurgião “aprovado para que visite os enfermos e lhes aplique os remédios necessários” (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx. 45, doc. 9). No mesmo ano, mas em agosto, realizava-se nova missão, desta vez resultante da oferta dos serviços de um frade, frei João de Santo Ambrósio, que “movido do fervor do seu zelo e caridade determina fazer missão em todas as freguesias deste nosso bispado” (Ibid., doc. 10).
Os cuidados que o bispo dispensava à qualificação dos ministros autorizados a confessar voltam a evidenciar-se em edital publicado em 1710, onde se determinava que se não lançassem no rol dos habilitados a apresentar-se a exame os indivíduos que não mostrassem certidão de matrícula, ou aprovação, na aula de moral do colégio da Companhia “por serem muito poucos os sacerdotes capazes de servir a Igreja no exercício do confessionário” (Ibid., cx. 32, doc. 39). Para além disso, destaca-se uma lista dos clérigos do bispado feita em 27 de agosto de 1715, onde constam para a freguesia da sé, por exemplo, 131 eclesiásticos, dos quais apenas 24 estão habilitados a confessar, o que vem, mais uma vez, demonstrar que os critérios para acesso àquele ministério eram severos (Ibid., Livro 2.º da Câmara Eclesiástica, fls. 17-17v.).
Para além dos cuidados já expressos com alguns aspetos do exercício do múnus episcopal no tocante à formação dos clérigos, D. José ainda dedicou uma atenção particular ao seminário, o qual fez transferir das antigas instalações no paço onde residia para um novo espaço, situado na rua que passou a chamar-se “do Seminário”, e onde se situavam uns aposentos inicialmente destinados a um mosteiro, o “mosteiro novo”, que nunca chegou a funcionar para o fim a que se destinara. O bispo dotou, ainda, o seminário de novos estatutos. Outra das tarefas com as quais se comprometeu o antístite foi a de provedor da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, a cujos destinos presidiu nos anos de 1704 e 1709.
Depois de 15 anos em que esteve presencialmente à frente da diocese do Funchal, retirou-se, então, o prelado para Lisboa, conforme já se viu, mantendo-se em funções por mais sete anos, findos os quais renunciou, ficando o bispado à guarda de um governador, Pedro Álvares Uzel, que dele se ocupou até à chegada do novo titular da mitra, D. frei Manuel Coutinho.
Ana Cristina Machado Trindade
Rui Carita
(atualizado a 22.12.2016)
Bibliog.: manuscrita: AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica do Funchal, cx. 32, doc. 39, Edital Determinando que não Fossem Lançados ao Rol dos Habilitados a apresentar-se a Exame para receber Ordens os Indivíduos que não mostrassem Certidão de Matrícula na Aula de Moral ou de Frequência com Aproveitamento da mesma aula [...]; AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica do Funchal, cx. 45, docs. 8, 9, 10; AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica do Funchal, Livro 2.º da Câmara Eclesiástica; ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 12, doc. 34, Questão entre o Bispo e os Franciscanos sobre o Exame para Confessor; ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Eusébio, mç. 1, doc. 21; ARM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 270, Memorias dos Acontecimentos Ocorridos no Episcopado do Bispo do Funchal, D. Frei Manoel Coutinho, 1725-1738; ARM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 273, Memorias sobre a Creação e Augmento do Estado Eccleziastico na Ilha da Madeira; ARM, Paroquiais, Ponta Delgada, Livro 116-B; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. iv, Funchal, SRE, 1996; FARINHA, Maria do Carmo Dias, “A Inquisição na Madeira no Período de Transição entre os Séculos XVII e XVIII (1690-1719), in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993, pp. 879-902; JARDIM, Maria Dina dos Ramos, A Santa Casa da Misericórdia do Funchal, Século XVIII, Funchal, CEHA, 1996; NORONHA, Henrique Henriques, Memorias Seculares e Ecclesiasticas para a Composição da Historia da Diocesi do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA 1996; PAIVA, José Pedro, “Episcopado e Pregação no Portugal Moderno: Formas de Atuação e de Vigilância”, Via Spiritus, n.º 16, 2009, pp. 9-44.