coper, kurt
Professor de química alemão de origem judaica que trabalhou no Laboratório de Química da Universidade de Coimbra no período entre 1929 e 1938. Nessa altura mudou-se para o Funchal, onde trabalhou na indústria vinícola antes de emigrar para os EUA. Fez parte de um grupo de sábios judeus que muito poderia ter contribuído para o desenvolvimento do país, não fosse Portugal não os ter sabido fixar durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda que não se conheça bem a sua biografia, sabe-se que nasceu em Berlim em 1903 e que estudou na Universidade de Berlim onde se doutorou. Nos anos 20, trabalhou em colaboração com um eminente químico alemão da área dos coloides, o Professor Herbert Freundlich (1880-1941), no Kaiser Wilhelm Institute para Química-Física e Eletroquímica, em Berlin-Dahlem, no âmbito da química dos coloides. Em 1929, Coper candidatou-se ao lugar de professor no Laboratório Químico da Universidade de Coimbra. Nessa cidade, foi colega de um outro alemão que trabalhava ao lado, no Laboratório de Física, Walter Wessel. Em Coimbra, ensinou como professor, primeiro contratado e depois auxiliar, Noções Gerais de Química Física (1931-1933 e 1937-1938), Química (1933-1937) e Química Orgânica (1937-1938). Até 1938, Coper continuou em Coimbra a sua investigação em coloides, em particular sois e géis, tendo publicado três artigos científicos, um deles resultante da colaboração com Freundlich: “The Formation of Tactoids in Iron Oxide Sols”, Transactions of the Faraday Society (1937) (o endereço do primeiro era o Laboratório Químico de Coimbra e o do segundo The Sir William Ramsay Laboratories of Inorganic and Physical Chemistry, University College, em Londres, uma vez que Freundlich tinha abandonado a Alemanha em 1933 como muitos outros cientistas). Foi na Lusa Atenas que Coper encontrou a sueca Ruth Hildur Bugner, com quem casou em 1935. Um tanto ou quanto inesperadamente, talvez receando medidas discriminatórias contra judeus, Coper demitiu-se, a 10 de março de 1938, do seu lugar na Universidade de Coimbra para embarcar para a ilha da Madeira com a sua esposa. Aí permaneceu até ao final da Segunda Guerra Mundial, trabalhando numa empresa de vinhos de proprietários judaicos, a Leacock’s (posteriormente associada com a Blandy na Madeira Wine Company). Foi também na Madeira que nasceu o seu filho Gunnar. Aparentemente, não desenvolveu atividade científica na Ilha, o que aliás seria difícil naquela época. No fim da guerra, emigrou para Filadélfia, nos EUA, tendo morrido com 62 anos num hospital de Livingston, New Jersey, em 1966. Trabalhou como engenheiro químico para a empresa Hepco Inc., embora não se conheça bem a atividade que desenvolveu nos EUA. Gunnar Coper deixou, em 2011, num boletim de uma igreja presbiteriana norte-americana (Collenbrook United Church, em Filadélfia), um depoimento onde faz um resumo da história do seu pai: “Em 1 de setembro, deflagrou a Segunda Guerra Mundial. Nos próximos seis anos, ficámos retidos na ilha da Madeira; Meu pai, sem cidadania, minha mãe, fora da Suécia, e eu num limbo. Não era nem sueco, nem alemão, nem reconhecido como português. [...] Os meus pais estavam preparados para morrer, mas para me salvarem fizeram um acordo com uma família portuguesa segundo o qual ela me aceitava como membro. A guerra finalmente acabou e os meus pais decidiram que era hora de partir. Para onde? Para os Estados Unidos” (COPER, 2011, 4). Carlos Fiolhais (atualizado a 31.12.2016)
conde da calçada (diogo de ornelas de frança carvalhal frazão e figueiroa)
Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa era filho de Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa e de Ana Emília de França Dória e Andrade. Casou com uma prima, Carlota Augusta de Freitas Albuquerque, sobrinha de Daniel de Ornelas e Vasconcelos, futuro barão de S. Pedro, que o deve ter encaminhado para a carreira política. Em junho de 1851 já era membro do concelho do distrito e, embora lhe não conheçamos filiação partidária, a 4 de outubro de 1882, teve carta de governador civil substituto do Funchal, lugar que ocupou inúmeras vezes. Foi agraciado entretanto com o título de visconde da Calçada, em 1871, e, com o de conde, em 1882, em homenagem à casa em que vivia na Calçada de Santa Clara, hoje casa-museu Dr. Frederico de Freitas. Palavras-chave: eleições; governador civil; visconde da Calçada; Heráldica; Morgados e titulares; Museus; partidos políticos; casa-museu Dr. Frederico de Freitas. Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa era filho de Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa e de Ana Emília de França Dória e Andrade. Seu pai era proprietário da chamada Casa da Calçada, abaixo do convento de Santa Clara, e também do morgado de Gaula e de outros nos Açores. Sua mãe era filha do morgado Bartolomeu de França Dória da Conceição, proprietário do morgado da Conceição, no Estreito da Calheta, que o neto haveria de herdar. O conde nasceu a 29 de agosto de 1812, na freguesia de Santa Luzia, no Funchal, e casou-se na Sé, a 14 de maio de 1831, com sua prima Carlota Augusta de Freitas Albuquerque (1817-?). Esta era filha do Cor. de milícias João Agostinho de Brito Figueiroa de Freitas Albuquerque (1793-1862), que também usava o nome de João Agostinho de Figueiroa Albuquerque e Freitas – nome segundo o qual se mandou pintar por volta de 1822, “em uniforme rigoroso” (SAINZ-TRUEVA, 1999, 62), por João José do Nascimento (1784-c. 1850) – e de sua mulher, Carlota Amália de Ornelas e Vasconcelos, irmã do futuro barão de S. Pedro, Daniel de Ornelas e Vasconcelos (1800-1878) (S. Pedro, barão de). A entrada de Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa para a vida política deve ter sido feita pelo tio de sua mulher, o advogado e futuro barão de S. Pedro, senador pela Madeira na legislatura de 1838 a 1840, lugar para que foi eleito numa vaga, em abril de 1839, e depois par do reino, etc. (Eleições). Na sua residência do Funchal, na rua dos Ferreiros, onde se instalou depois a Direção Regional dos Assuntos Culturais, faziam-se reuniões de carácter político, pois Daniel de Ornelas passava então mais tempo em Lisboa que no Funchal. As primeiras informações recolhidas sobre o mesmo são sobre a sua presença no concelho do distrito em junho de 1851, quando com os membros do senado camarário assina uma petição, solicitando a D. Maria II (1819-1853) a manutenção como governador do conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891) (Ribeiro, José Silvestre). Não se lhe conhece especial filiação partidária, embora nas eleições de maio de 1870 pareça ter apoiado o morgado Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901) (Ornelas e Vasconcelos, Agostinho de); este era membro destacado do então Partido Popular, que se opunha ao Fusionista (Partidos políticos). Nas contas dessas eleições, há documentos que comprovam pagamentos de despesas feitas por Diogo de Ornelas, documentos que se encontram nos arquivos da família Ornelas e Vasconcelos. Não terá sido assim por acaso que, por decreto de 17 de janeiro e carta de 25 de fevereiro de 1871, foi agraciado com o título de visconde da Calçada, em homenagem à casa secular em que vivia na calçada de Santa Clara, onde depois se instalou a casa-museu Dr. Frederico de Freitas (Freitas, Dr. Frederico de, e Museus). Por essa altura, em 5 de março de 1871, o deputado Agostinho de Ornelas refere numa carta enviada ao irmão, D. Aires de Ornelas (1837-1880), bispo do Funchal em maio desse ano, mas já administrador apostólico (Ornelas e Vasconcelos, D. Aires de), estar em Lisboa a tratar de um título para o morgado Diogo Berenguer de Freitas Neto (1812-1875), depois visconde de S. João (S. João, visconde de). O visconde da Calçada foi agraciado com o título de conde a 4 de outubro desse ano, data em que também foi oficialmente nomeado governador civil substituto, situação não muito comum. Tomou posse desse lugar a 10 do mesmo mês. Era governador civil substituto na altura das célebres eleições suplementares de 1882. Nestas eleições concorreram o advogado açoriano e republicano Manuel de Arriaga (1840-1917) (Arriaga, Dr. Manuel de), que se apresentou na Madeira, e, por indicação do líder do Partido Regenerador e presidente do conselho de ministros, António Maria de Fontes Pereira de Melo (1819-1887), o líder da oposição, o conselheiro Anselmo José Braamcamp (1819-1885), à frente do Partido Progressista, depois de já ter sido líder do Partido Histórico. A estranha imposição das cúpulas partidárias continentais levou a que a maior parte dos eleitores madeirenses, inclusivamente monárquicos e ligados ao Partido Regenerador, colocasse abertamente a hipótese de apoiar o candidato republicano. Efetivamente, estava em causa o funcionamento do sistema parlamentar e o conselheiro Braamcamp havia perdido as eleições pelo seu círculo, sendo importante para o parlamento a sua presença no mesmo como deputado; mas tal era um problema de Lisboa, e não da Madeira. Na primeira volta adivinhava-se já o desastre e o Diário de Notícias, que indiciava o visconde da Calçada como apoiante da situação, escreveu o seguinte: “Os regedores de paróquia que trabalham ostensiva e declaradamente contra a monarquia e pelo candidato republicano ainda não foram demitidos. Parece que o sr. administrador do concelho ficou muito satisfeito com este serviço e que o sr. governador civil substituto também ficou muito contente” (DN, 8 nov. 1882). Os resultados dessa primeira volta foram comunicados a Lisboa a 13 de novembro pelo governador substituto, que continua a assinar visconde da Calçada, do que se pode pensar que a informação da atribuição do título de conde só foi conhecida depois, embora Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa continuasse a utilizar, mesmo nos anos seguintes, somente o título de visconde. O governo de Lisboa enviou ao Funchal o governador efetivo, o juiz conselheiro António de Gouveia Osório (1825-1915), visconde de Vila Mendo (Vila Mendo, visconde de), que voltou a tomar posse do lugar temporariamente; o que não impediu a vitória final de Manuel de Arriaga, retirando-se de novo o governador civil para Lisboa, onde então era conselheiro do Tribunal de Contas, e entregando outra vez o governo ao visconde da Calçada. Foi este que depois suspendeu os direitos dos cereais importados, assunto que atravessou a política dos anos 1883 e 1884. O visconde continuaria a ocupar o lugar na vigência do governador, uma vez que o juiz conselheiro Tomás Nunes de Serra e Moura (c. 1840-1917) (Moura, Dr. Tomás Nunes de Serra e), nomeado em finais de dezembro de 1883 e que tomou posse nos primeiros dias de janeiro seguinte, após ter organizado a coligação monárquica que fez frente aos candidatos republicanos nas eleições desse ano, também se retirou para o continente. Foi, por isso, o visconde da Calçada, já velho, a ver-se na contingência de ter de requisitar o vapor de fiscalização da Alfândega, em agosto de 1884, para transportar para a Ribeira Brava uma força de 20 praças que tinha como objetivo reforçar o destacamento militar local face ao tumulto ali ocorrido e que tivera como resultado 7 mortos. Nos anos seguintes a política madeirense foi varrida pela figura contundente e truculenta do visconde do Canavial (1829-1902) (Canavial, conde e visconde do), que levou ao levantamento popular da Parreca; talvez o mais importante levantamento ocorrido no séc. XIX. Perante a contestação geral, o visconde do Canavial veio a apresentar a sua demissão a 26 de março de 1888, tendo o governo sido entregue, uma vez mais, ao visconde da Calçada, pois o governador civil seguinte, João de Alarcão (c. 1850-1917), embora nomeado a 5 de abril, só tomaria posse a 8 de maio seguinte. Nos anos seguintes pouco sabemos da atuação política do conde da Calçada, que parece ter-se retirado para a sua residência, de onde pouco teria saído. Na visita régia de 1901 (Visita régia), por exemplo, não é mencionado. O interessante edifício da calçada de Santa Clara teve obras em 1851, conforme consta no empedrado da entrada, logo a seguir ao portão gradeado com as suas armas de conde, que usam brasão esquartelado de Ornelas (moderno), Carvalhal (Benfeito), Frazão e Franqui (por França?), com timbre de Ornelas, tendo-se escrito ser de uso muito antigo nesta família, mas ignorando-se a quem foi concedido (CLODE, 1983, 87). Pensa-se que o projeto de reforma da casa foi do arquiteto e egiptólogo George Somers Clarke (1841-1926), que trabalhava em parceria com John Thomas Micklethwaite (1843-1906), e que passou pela Madeira em 1890. Os trabalhos deste arquiteto seguiam os modelos revivalistas em uso na época, mas com abundante utilização de estruturas de ferro fundido e pintado, tendo sido da sua autoria a reformulação e ampliação do Reid’s Palace Hotel e da nova residência da quinta do Palheiro Ferreiro, já então propriedade da família Blandy, atribuindo-se-lhe também a antiga residência do Santo da Serra, depois Estalagem Serra Golf. O conde da Calçada faleceria na sua residência, a 18 de setembro de 1906, não tendo o título, dado que concedido em sua vida, sido revalidado. Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)
terra, miguel ventura
Desde meados de Oitocentos que a cidade do Funchal se afirmou como importante local de turismo, procurado sobretudo para fins terapêuticos. Com efeito, o clima ameno da Madeira cedo atraiu muitos visitantes. A Ilha era então uma referência para as viagens de lazer e uma estância especialmente acreditada e recomendada para a cura das moléstias do foro pulmonar. Por esse e outros motivos, ao longo daquela centúria, passaram pelo Funchal importantes membros da realeza europeia, como a arquiduquesa da Áustria, D. Leopoldina, que viria a tornar-se imperatriz do Brasil, a rainha Adelaide, de Inglaterra, ou o príncipe Maximiliano, duque de Leuchetenberg. A Imperatriz D. Maria Amélia de Beauharnais, viúva de D. Pedro IV, também para aí se dirigiu, em 1852, trazendo por companhia a sua filha, a jovem, mas debilitada, princesa D. Maria Amélia, que, não obstante algumas melhorias iniciais, ali veio a sucumbir em fevereiro de 1853. Também pela Madeira passou, no inverno de 1860 e em finais do séc. XIX, a imperatriz Elizabeth, mais conhecida por Sissi da Aústria. Hospedados em antigas quintas madeirenses, como a Quinta Vigia e a Quinta das Angústias, outros visitantes menos ilustres beneficiaram da estadia em infraestruturas de apoio ao turismo na periferia da cidade, como a família Waxel e Faria e Castro, que por aí passaram no séc. XIX. As transformações que paulatinamente ocorriam no Funchal ofereciam melhores condições a uma cidade já muito visitada por estrangeiros. O Conselheiro Dr. José Silvestre Ribeiro (1807-1891), enquanto governador civil, e face à animação turística da baixa do Funchal, implementou a iluminação pública na cidade. Em finais daquela centúria surgiu a construção do elevador do Monte, que permitia o transporte de visitantes e gentes locais, desde a Estação do Pombal à pitoresca freguesia de Nossa Senhora do Monte. Por outro lado, a edificação do Teatro Municipal, concluído em 1887 e na época batizado de D. Maria Pia, e a construção do Hospício Princesa D. Maria Amélia eram exemplos pontuais de modernização da paisagem urbana funchalense. Com a implementação da República, os novos poderes locais contactaram um dos mais prestigiados arquitetos portugueses da época, Miguel Ventura Terra (1866-1919), para elaborar um projeto de urbanização que dotasse a cidade com as melhores condições para que pudesse responder aos desafios do novo século. Com efeito, a total reformulação da cidade do Funchal fazia parte das intenções dos recém-eleitos deputados pela Madeira, o Dr. Manuel de Arriaga (1840-1917), o Dr. Francisco Correia Herédia (1852-1918), ex-visconde da Ribeira Brava, pois abdicara do título em 1910, sendo mais conhecido entre os deputados como senhor Ribeira Brava, o Dr. Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969) e o Dr. Carlos Olavo Correia de Azevedo (1881-1958). Em agosto de 1911, Manuel de Arriaga foi eleito primeiro presidente da República e certamente terá mantido estreita relação com os deputados madeirenses e com o Arq. Ventura Terra. Este último fora eleito em 1908 para a primeira vereação totalmente republicana da Câmara de Lisboa, cargo que manteve até 1913. Podemos constatar essa convivialidade política numa tela de 1913, do pintor e amigo do Arq. José Maria Veloso Salgado, intitulada O Sufrágio, onde nos surge, num primeiro plano, Manuel de Arriaga a colocar o seu voto à boca da urna e, num plano mais recuado, o arquiteto usando um chapéu de palha. Por outro lado, sabemos que o ex-visconde da Ribeira Brava, Francisco Correia Herédia, viveu largo tempo em Paris, onde possivelmente terá desenvolvido laços de amizade com o então estudante de arquitetura Miguel Ventura Terra. A amizade e os contactos terão certamente ficado fortalecidos agora que ambos frequentavam e se cruzavam em Lisboa. Assim, a nova comissão administrativa da Câmara Municipal do Funchal, na sua sessão de 19 de setembro de 1912, encarregou o deputado madeirense, senhor Ribeira Brava, de contactar aquele arquiteto, que à época apelidavam de “engenheiro” Ventura Terra, perguntando-lhe se aceitaria a missão de vir ao Funchal elaborar um Plano Geral de embelezamento da cidade. Para custear a sua vinda, a Câmara contou com um subsídio concedido pela Junta Agrícola, organismo criado em 1911 para incremento das obras públicas, sendo então presidido pelo ex-visconde da Ribeira Brava, Dr. Francisco Correia Herédia. Acedendo ao convite das entidades funchalenses, o arquiteto desembarcou no Funchal a 10 de fevereiro de 1913. Viera pelo vapor inglês Ambroze sendo acompanhado pelo seu irmão, António Joaquim Terra, como veio a noticiar o Heraldo da Madeira. Sabe-se que no dia seguinte visitou o Terreiro da Luta, tendo-se “demorado longamente na varanda do Restaurante Esplanada, extasiado ante o espetáculo do pôr do sol” (“Architeto Ventura Terra”, Heraldo da Madeira, 13 fev. 1913, 1). A comissão municipal encarregou o seu vice-presidente, o ex-visconde da Ribeira Brava, também deputado na Assembleia da República e velho amigo dos tempos de estudo em Paris, de ultimar com Ventura Terra a execução do Plano Geral de Melhoramentos para a cidade. Ventura Terra nasceu em Seixas, no Minho, a 14 de julho de 1866, no seio de uma família bastante humilde e numerosa. Terra foi o décimo terceiro e último filho de João Bento Terra e de Maria Victória Affonso Lindo. Os seus pais possuíam uma casa no Lugar do Sobral, em Caminha, onde iniciou os estudos primários. Ingressou, mais tarde, na Academia Portuense de Belas Artes, onde frequentou o curso de Arquitetura, entre 1881 e 1886. Completou os seus estudos na École Nationale et Speciale des Beaux-Arts, em Paris, como bolseiro do governo português, tendo frequentado o atelier dos Arqs. Jules André e Victor Laloux. Alcançou o estatuto de arquiteto de primeira classe diplomado pelo Governo francês, em 1894, tendo regressado definitivamente a Portugal em 1896, após conquistar o concurso internacional para a reconversão do edifício das Cortes na Câmara dos Deputados em Lisboa, atual Palácio de São Bento, sede da Assembleia da República, inaugurado em 1903. Neste mesmo ano, o arquiteto formou a Sociedade dos Arquitetos Portugueses, sendo o seu primeiro presidente. Em entrevista ao Heraldo da Madeira, aquando da sua passagem pelo Funchal, em fevereiro de 1913, explicou que a sua viagem se destinava a contactar com a Madeira, quer com a sua beleza, quer com os seus problemas. Quanto à cidade, comentou ser bastante confusa, com ruas horrivelmente calcetadas, muito irregulares e acidentadas, pelo que a considerava completamente “destituída dos requisitos que faziam a formusura e a comodidade dos sistemas de viação das cidades modernas”(“Melhoramentos Locais...”, Heraldo da Madeira, 21 maio 1913, 1). Lamentou, ainda, que, sendo a Madeira uma das “mais belas regiões do mundo”, a sua cidade não aproveitasse os esplêndidos pontos de observação de que poderia tirar partido. Durante esta visita à Madeira, Ventura Terra terá obtido conhecimento dos trabalhos desenvolvidos para a zona marítima da cidade realizados pelo Eng. Adriano Augusto Trigo (1862-1926), através do seu irmão, Eng. Aníbal Augusto Trigo (1865-1944), que era o diretor da Repartição Técnica da Câmara Municipal do Funchal. Com efeito, o Anteprojeto de Março de 1905, para o Prolongamento da Estrada da Pontinha à Alfândega e Construção de uma Avenida Marginal entre o Cais e o Forte de S. Tiago, da autoria do Eng.º Adriano Augusto Trigo, propõe algumas soluções que foram retomadas por Ventura Terra, nomeadamente a solução de avançar com a marginal sobre o mar. No entanto, o arquiteto vai mais além, propondo uma avenida que teria uma largura de 50 m e abrangeria toda a frente mar em contacto com a baixa da cidade, ou seja, desde as imediações do sítio das Angústias até ao Forte de S. Tiago, normalizando a irregularidade da costa. O Plano Geral de Melhoramentos Para o Funchal, de 1915, elaborado por Ventura Terra, surgiu da necessidade de reformular a cidade com modernos equipamentos urbanos e novas infraestruturas para o desenvolvimento da recente base económica do arquipélago da Madeira, o turismo internacional. Em linhas gerais, o projeto concretizou-se ao longo do séc. XX. O documento, constituído por duas enormes plantas de cinco por dois metros, é fundamental para um melhor entendimento das alterações urbanísticas que se operaram no Funchal ao longo daquela centúria, com maior incidência ao tempo do dinâmico autarca Fernão Ornelas Gonçalves (1908-1978) à frente da Câmara do Funchal. O Arqt. Ventura Terra, consciente das dificuldades de execução do seu “luxuoso” Plano Geral de Melhoramentos para a Cidade do Funchal, faseou a sua implementação a longo prazo tendo afirmado, em entrevista ao Heraldo, que o dividiria em três estudos. Ao primeiro traçado, Ventura faria corresponder aquilo que a atualidade de então permitia, privilegiando, para o segundo estudo, a construção de novas e largas avenidas de modo a arejar a cidade, como referiu na Memória Descritiva. À edilidade funchalense terão sido enviados planos parcelares, pois, em sessão camarária de 25 de setembro de 1913, o presidente da comissão administrativa daquele órgão de poder local afirmou ter recebido o projeto final de alargamento da R. da Carreira e a planta da Av. de Oeste, tendo em vista o desenvolvimento das obras em conformidade com o Plano de Melhoramentos. O segundo traçado contaria já com avenidas e ruas largas representando uma transição entre a condição inicial e a cidade que se pretendia obter. Por último, o terceiro traçado avançaria com propostas para um Funchal “definitivo, como o poderia ser daqui a uns cinquenta ou cem anos” (“Melhoramentos Locais...”, Heraldo da Madeira, 1). Atuando deste modo, o arquiteto afirmava entregar à Câmara do Funchal um Plano que a habilitaria a proceder metodicamente no seu crescimento urbanístico, o que colocaria o Funchal à frente de Lisboa. Em março de 1914, em vésperas da Primeira Grande Guerra, Ventura Terra oficiou à Câmara do Funchal a conclusão da sua obra, pedindo a esta entidade o pagamento dos seus honorários. O Projeto pretendia, principalmente, dotar a cidade do Funchal “dos requisitos que faziam a formusura e a comodidade dos sistemas de viação das cidades modernas mais adiantadas da época” (DRAC, 1915, 1), propondo uma nova forma de organizar a cidade com base na definição de largos eixos viários que confluíam em amplas praças ou rotundas para uma melhor redistribuição do tráfego. A nova estrutura viária equacionada por Ventura Terra propunha a abertura de uma ampla Av. Marginal que garantia o atravessamento da cidade no seu sentido longitudinal. A mesma estendia-se desde o Forte de S. Tiago até a Ribeira de S. João, prolongava-se depois por uma rua litoral, até ao Lg. António Nobre, naquilo que é, em parte, a Av. do Mar e das Comunidades Madeirenses. Em toda a sua largura estariam inscritas três faixas de rodagem, separadas por placas centrais arborizadas e com amplos passeios laterais. Paralelamente a esta avenida, Ventura Terra desenhou a Av. de Oeste. Esta resultava do prolongamento para oeste da Av. Arriaga e subia as Angústias até a Est. Monumental, naquilo a que mais tarde se designou por Av. Infante. No seu percurso para leste ia até ao Lazareto, percorrendo com a sua ampla largura o coração da cidade. Atravessava ainda uma ampla praça sobre a Ribeira de Santa Luzia e passava próximo do Campo da Barca. Do seu traçado destacou-se, na época, apenas a construção da parte compreendida entre a Sé e o Jardim Pequeno, troço que corresponde em parte à posterior Av. Arriaga, até a R. de S. Francisco, que, sendo iniciada na primavera de 1914, se concluiu em maio de 1916. Mantendo um traçado sensivelmente paralelo à linha da costa, Ventura Terra indicou no seu Plano outra via a resultar do alargamento da R. da Carreira e da R. do Bom Jesus, estabelecendo a conexão entre as duas através do alargamento da Praça do Município, o qual contribuiria para a valorização do edifício onde se encontrava instalada a Câmara do Funchal. Um conjunto de outras avenidas, sensivelmente perpendiculares à linha da costa, são indicadas para fazer a ligação da frente mar com o interior da cidade. A grande Av. de Santa Luzia, com 30 metros de largo, resultaria da cobertura da Ribeira de Santa Luzia por meio de uma abóbada de berço contínuo em betão armado, apresentada como a solução para o problema higiénico e estético que este curso de água constituía. As ruas que ladeavam esta ribeira, ruas da Princesa e do Príncipe, posteriormente designadas de R. 5 de Outubro e R. 31 de Janeiro, funcionariam como amplos passeios laterais que se estenderiam desde a Av. Marginal até uma praça ou rotunda a instalar próximo da estação do caminho-de-ferro do Monte, mais conhecida por Estação do Pombal. Deste modo, Ventura Terra orientava os viajantes para os pontos turísticos de maior interesse no Funchal. São indicadas outras avenidas que se apresentam perpendiculares à linha da costa e paralelas entre si: a que passa em frente à Sé do Funchal e desemboca no Lg. do Colégio, a que se estende desde a Calç. do Palácio de São Lourenço até à R. da Carreira e ainda a que se inicia no cais e sobe até à Av. Arriaga. Em todos os arruamentos o arquiteto propõe uma configuração abaulada dos perfis de modo a obter uma inclinação suave destinada à drenagem das águas pluviais. No encontro dos grandes eixos de circulação viária seriam edificadas praças que, a par com as largas ruas e avenidas, contribuiriam para um maior arejamento da cidade, funcionando também como excelentes pontos de vista e ótimos locais para colocação de monumentos, um aspeto primordial no embelezamento urbano. Para o coração da cidade, o arquiteto contemplou um grande quarteirão para a instalação do Palácio das Repartições Públicas. Este ocuparia o edifício onde então se localizava o Hospital da Misericórdia do Funchal e implantar-se-ia na área definida pelas ruas de S. Francisco, parte da R. da Carreira, R. de João Tavira e Av. Arriaga, dando seguimento a indicações anteriores que remetiam para a zona do Monte as instituições de saúde, nomeadamente a construção de sanatórios para tratamento da tuberculose. Nos inícios de Novecentos, uma comitiva da Companhia dos Sanatórios da Madeira passou pelo Funchal a fim de proceder ao levantamento dos locais mais adequados à construção dos Sanatórios da Madeira, tendo sido a zona do Monte indicada como um dos lugares apropriados para a construção de sanatórios para tuberculosos. Iniciou-se, em 1905, a construção do edifício dos Marmeleiros destinado a sanatório para pobres. No entanto, vários contratempos impediam o seu funcionamento, situação que se mantinha à altura da passagem de Ventura Terra pelo Funchal. Em meados dos anos vinte daquela centúria, será leiloado todo o mobiliário, ficando aquele estabelecimento hospitalar completamente desocupado apenas em 1926, sendo posteriormente cedido à Irmandade da Misericórdia do Funchal, tendo para aí sido transferido, em 1930, o Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Este Plano previa também a construção de dois bairros na periferia da cidade. O Bairro Oriental estava destinado essencialmente às construções económicas das classes populares e operárias, disponibilizando-lhes bons terrenos e boas condições de habitabilidade, sem descurar a pronta acessibilidade aos locais de trabalho. O Bairro Ocidental estava “destinado às edificações luxuosas e artísticas das classes ricas e abastadas” (DRAC, 1915, 5). Esta previsão concretizar-se-á, passadas duas décadas, com a edificação, nas margens da Av. Infante, de habitações luxuosas próprias de uma cidade cosmopolita, embora de pequena dimensão, com risco de grandes nomes da arquitetura portuguesa, como Raul Lino (1879-1974), Carlos Ramos (1897-1969) e Edmundo Tavares (1892-1983). Nos anos 30 do séc. XX, o arquiteto modernista Carlos Chambers Ramos, a convite da Câmara e da Junta Geral do Funchal, desenvolveu o Plano de Urbanização para o Funchal de 1931-33, onde retomou algumas das propostas de Ventura Terra, com quem trabalhara. Na sequência do mesmo, a edilidade funchalense deliberou que, para a Av. Infante, apenas permitiria a construção de chalets e habitações dentro das normas que a vereação então estabelecia. Demonstrando preocupações de caráter paisagístico e ambiental, Ventura Terra projetou, ainda, junto de cada um dos novos bairros, parques ajardinados e arborizados de onde se poderia vislumbrar os bonitos panoramas da Ilha. Destinavam-se a desempenhar um papel importante e notável na vida da cidade, sob o ponto de vista da salubridade, recreio da população, conforto e receção de turistas. No Plano de Ventura Terra, o desenho destes espaços verdes urbanos aparecem apenas delineados de forma geométrica com a indicação dos percursos e das diferentes áreas. Para o cais de entrada da cidade do Funchal, o arquiteto propôs uma praça para a receção dos turistas. Sobre o cais seria edificado um espaço de entretenimento, o Casino Municipal. A construir num plano mais elevado, estaria especialmente destinado à multidão de visitantes que chegavam à Ilha pela navegação transatlântica. O cais seria desviado para nascente de modo a localizar-se em frente à Alfândega. Ventura Terra chamou a atenção da Câmara do Funchal para que contratasse profissionais devidamente qualificados para implementar o seu Plano. Apelou mesmo à formação de uma corporação especial, composta por entidades competentes e detentora de poderes para aprovar ou rejeitar os projetos públicos ou privados, à qual caberia ditar e fiscalizar a aplicação das leis ou normas a que deveriam obedecer as novas construções. Deste modo o arquiteto manifestava a sua preocupação com o controlo urbanístico que, até aí, apenas existira pontualmente na espontaneidade urbanística da cidade do Funchal. Algumas das propostas de Miguel Ventura Terra, falecido em Lisboa a 30 de abril de 1919, colidiram com as forças vivas da cidade do Funchal. A implementação integral do seu Projeto implicava a demolição de imóveis com forte valor histórico e patrimonial, como os baluartes da Fortaleza de São Lourenço ou a torre e o transepto da Sé. Ventura Terra considerava o património como herança a preservar, mas não como elemento limitativo do desenvolvimento urbano. Foi, sobretudo, a instabilidade política da época, com sucessivas quedas de governo, e a entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra que fizeram agravar as dificuldades já sentidas no arquipélago madeirense. Desta forma, este Plano revelou-se demasiado "luxuoso" para a época, mas serviu de modelo à atual morfologia urbana do Funchal, sendo por isso merecedor de destaque, tanto mais porque se completou, em maio de 2015, o primeiro centenário do seu risco. Teresa Vasconcelos (atualizado a 31.12.2016)
vasconcelos, joaquim ricardo da trindade e
Filho de João José Sedrinho, de Machico, e de Joana de Jesus Álvares da Costa, de Santa Cruz, Vasconcelos nasceu na freguesia de Machico em 1825. Casou-se na freguesia de São Pedro, Funchal, a 23 de janeiro de 1864, com Maria do Monte Moniz de Vasconcelos, com quem teve dois filhos: Joaquim e Maria. Tornou-se bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra e foi, por largos anos, advogado na Comarca do Funchal. Foi também vice-presidente da Câmara Municipal do Funchal. Escreveu e publicou, em 1867, um folheto de 40 páginas intitulado Projecto de Lei Regulamentar do Contrato de Colonia ou Parceria Agrícola na Ilha da Madeira (Gazeta da Madeira, n.º 99), trabalho que teve a colaboração de José António de Almada e que foi oferecido à apreciação do júri nomeado pela Junta Geral. Também escreveu Resposta aos Fundamentos do Recurso Interposto Perante o Conselho de Estado por Sua Majestade a Imperatriz D. Amélia..., publicado pela Revista Judicial, n.º 14, em 1867. Ainda podemos acrescentar aos seus trabalhos publicados o Regulamento do Theatro Municipal D. Maria Pia da Cidade do Funchal, de 1894. Segundo Clode (1983), para além dos cargos políticos, Vasconcelos foi respeitado, no seu meio, como um dos advogados de mais nomeada do seu tempo, tanto no foro civil como no criminal. Chegou a ser considerado um dos mais importantes proprietários de Machico, mas teve a infelicidade de perder grande parte dos seus bens na fábrica denominada Companhia Fabril de Assúcar Madeirense, de que foi iniciador o Conde de Canavial. Contudo, nunca desanimou nem deixou de lutar nas fases mais críticas da sua vida. Como militante no partido progressista, desempenhou, por muito tempo, a função de presidente da Assembleia Geral. Para além de vice-presidente da CMF, foi também auditor junto do Tribunal Administrativo do distrito. Morreu no Funchal, em 1906. Obras de Joaquim Ricardo da Trindade e Vasconcelos: Projecto de Lei Regulamentar do Contrato de Colonia ou Parceria Agrícola na Ilha da Madeira (1867); Resposta aos Fundamentos do Recurso Interposto Perante o Conselho de Estado por Sua Majestade a Imperatriz D. Amélia e outros do Despacho pelo qual o Governador Civil Concedeo Licença para a Fundação duma Fabrica de Assucar e de Distiliação d`aguardente na Cidade do Funchal (1867); Regulamento do Theatro Municipal D. Maria Pia da Cidade do Funchal (1894). Lucinda Maria da Silva Moreira (atualizado a 31.12.2016)
vasconcelos, manuel de santana e
Nascido em 1798 e falecido a 23 de fevereiro de 1851, no Funchal, foi administrador do concelho e autor de várias obras acerca da realidade regional e do proselitismo protestante em vigor na ilha da Madeira à época. Escreveu, nomeadamente, Clamor aos Madeirenses e a notória Revista Historica do Proselytismo Anti-Catholico Exercido na Ilha da Madeira pelo Dr. Robert Reid Kalley. Esta última obra apresenta-se como uma crítica mordaz do autor ao médico escocês Robert Kalley, que se estabeleceu na Ilha e aí fundou uma pequena comunidade cristã protestante, sendo alvo de diversas perseguições religiosas que culminaram com a saída do médico da ilha da Madeira e com a imigração dos crentes para as Caraíbas ou para os Estados Unidos da América. Obras de Manuel de Santana e Vasconcelos: Clamor aos Madeirenses (1835); Revista Historica do Proselytismo Anti-Catholico Exercido na Ilha da Madeira pelo Dr. Robert Reid Kalley (1845). Amanda Coelho (atualizada a 31.12.2016)
veiga, josé manuel da
O Comendador Dr. José Manuel da Veiga nasceu no Funchal, a 18 de outubro de 1794, e morreu de apoplexia em Lisboa, a 26 de setembro de 1859. Era filho de João Paulo da Veiga e de Jacinta Rosa Leça da Veiga. Em 1816, matriculou-se na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra e, depois de um percurso académico brilhantíssimo, foi ali professor durante alguns anos. Abandonou, porém, a cátedra de professor para estabelecer banca de advogado em Lisboa, onde granjeou fama de notável jurisconsulto. Ainda como aluno da Universidade, terá recebido ordens sacras, inclusive a de presbítero, tendo depois deixado o estado clerical com autorização da Sé Apostólica e recebido a necessária dispensa para se casar. Ao doutorar-se, defendeu uma tese em que abordava precisamente a questão do celibato eclesiástico, condenando-o: Memoria sobre o Celibato Clerical, que deve Servir de Fundamento a uma das Theses dos Actos Grandes de seu Autor (1822). Esta obra teve grande impacto na época (e mesmo posteriormente, já que seria reeditada em 1864), chegando a ser proibida e confiscada. José Manuel da Veiga publicou várias obras, a maioria das quais do âmbito jurídico. Segundo alguns autores, é também dele o opúsculo publicado sob o nome de sua filha: Elementos de Instrucção Moral para Uso da Mocidade Portugueza. Dedicados a Sua Alteza a Senhora Infanta D. Maria Anna, por Theodolinda Amelia Christina Leça da Veiga (1857). Veiga foi um personagem importante no debate acerca do celibato eclesiástico em Portugal, sobretudo durante a primeira metade do séc. XIX. Imposto definitivamente no Concílio de Trento (1545 a 1563), o celibato eclesiástico havia sido posto em causa, já nos sécs. XVII e XVIII, por personagens de primeiro plano da vida pública e cultural portuguesa, como eram os diplomatas Duarte Ribeiro de Macedo e Luís da Cunha. Estes fizeram-no, na altura, em nome da questão demográfica e à luz do chamado direito natural. Quando a questão reaparece durante o Vintismo liberal, a argumentação, embora muito semelhante, está fortemente marcada pela tradição regalista, tal como o seu desenvolvimento posterior, ao longo de todo o séc. XIX, ficará associado à reação contra o ultramontanismo. A questão do celibato eclesiástico foi um dos temas da contestação anticlerical oitocentista, e, no momento em que José Manuel da Veiga o faz, esta contestação é ainda, sobretudo, anticongregacionista. Na verdade, os primeiros liberais continuam a pensar que a Igreja e a religião católica são o fundamento moral e o instrumento de coesão da sociedade. Porém, em seu entender, é justo que o Estado (liberal) exerça pressão sobre certos pontos passíveis de reforma, como são o fim dos privilégios eclesiásticos ou a extinção das congregações religiosas, cujos votos contrariam o direito natural e impedem o exercício da plena cidadania. José Manuel da Veiga é disso um bom exemplo. A sua argumentação contra o celibato eclesiástico visa essencialmente a secularização da sociedade e da cultura, necessária à construção do Estado liberal e ao nascimento do “homem novo”: o cidadão livre. Ela gira, portanto, em torno a três elementos-chave: a defesa do direito natural, as necessidades demográficas e económicas do País e a construção de uma Igreja nacional. Na sua tese de doutoramento, em Coimbra, José Manuel da Veiga defendia que os votos do clero regular e a disciplina do celibato eclesiásticos, sendo ambos impostos ao indivíduo, eram contrários “à liberdade individual e, com ela, às demais leis naturais”, nomeadamente aquela que ordena a reprodução da espécie; como eram ainda, consequentemente, contrários ao direito positivo, uma vez que a propagação da espécie, o direito de procriar e o de fundar família são direitos inalienáveis. Por outro lado, como o celibato não era muitas vezes respeitado, dando motivo a frequentes escândalos, tornava-se imperativo abolir tal disciplina: não o fazendo o Pontífice, era do interesse da religião, da moral e do bem público que o fizesse o poder civil. A crescente secularização fazia do padre “um estrangeiro no meio dos seus concidadãos”, sujeitado a viver (pela sua natureza humana) “consumindo-se no fogo impuro do desejo” (apud GARNEL, 2000, 101ss.). O argumento demográfico é apresentado como um benefício coletivo, causa de desenvolvimento e motivo de emergência da família burguesa. Nas sociedades populosas, diz José Manuel da Veiga, a necessidade obriga os indivíduos “a serem industriosos, procurando uma subsistência difícil no apuro de agricultar as terras ingratas, no esmero das artes, e, florescente a agricultura, tendo no comércio sobeja matéria, necessariamente se há de tornar brilhante”. A supressão das ordens religiosas teria, portanto, consequências no desenvolvimento económico e na restruturação da família, da nova família nuclear burguesa, porque “são as famílias que compõem e sustentam o corpo político”, que promovem o respeito pela propriedade e a boa cidadania (Id., Ibid., 105). Por último, a abolição do celibato eclesiástico seria condição essencial para a nacionalização da Igreja. Para José Manuel da Veiga, o celibato “é prejudicial ao Estado [...] [porque] diminui a representação política», ou seja, não fornece novos cidadãos ao Estado e à sociedade; ora, o casamento dos eclesiásticos celibatários, não só criaria condições para o fomento de bons cidadãos, de amor à pátria e de zelo pela segurança e moralidades públicas, como “os desviaria da dependência em que [estão] da Santa Sé; que permitir-lhe casar era o mesmo que destruir a hierarquia e reduzir o Papa a não ser senão Bispo de Roma” (Id., Ibid., 107). Em suma, para os liberais do início do séc. XIX, os votos e a clausura religiosos não só atentavam contra a liberdade fundamental dos indivíduos (uma ideia que eles herdavam do Iluminismo), como pareciam ir contra o conceito emergente de cidadania: cidadãos livres, capazes de se comprometer e empenhar na construção social pelo seu contributo ao desenvolvimento da nação, e libertos de qualquer subserviência estrangeira. Obras de José Manuel da Veiga: Medea, Ensaio Trágico (1821); Memoria sobre o Celibato Clerical, que Deve Servir de Fundamento a uma das Theses dos Actos Grandes de seu Autor (1822); Projecto de Codigo Criminal (1836); Controversia entre os Advogados, o Dr. Antonio Marciano de Azevedo e o Dr. José Manuel da Veiga, Sobre a Intelligencia da Ordenação... (1832); Apontamentos Juridicos sobre a Celebre Questão da Successão ab Intestato dos Prasos de Nomeação, com Representação ou sem ella (1845); Elementos de Instrucção Moral para Uso da Mocidade Portugueza. Dedicados a Sua Alteza a Senhora Infanta D. Maria Anna, por Theodolinda Amelia Christina Leça da Veiga (1857; autoria não confirmada); Os Aterros da Boa-vista, e o Dominio dos Confinantes (1858). Porfírio Pinto (atualizado a 31.12.2016)