veiga, josé manuel da

22 Jan 2021 por "Porfírio Pinto"
Personalidades

O Comendador Dr. José Manuel da Veiga nasceu no Funchal, a 18 de outubro de 1794, e morreu de apoplexia em Lisboa, a 26 de setembro de 1859. Era filho de João Paulo da Veiga e de Jacinta Rosa Leça da Veiga.

Em 1816, matriculou-se na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra e, depois de um percurso académico brilhantíssimo, foi ali professor durante alguns anos. Abandonou, porém, a cátedra de professor para estabelecer banca de advogado em Lisboa, onde granjeou fama de notável jurisconsulto.

Ainda como aluno da Universidade, terá recebido ordens sacras, inclusive a de presbítero, tendo depois deixado o estado clerical com autorização da Sé Apostólica e recebido a necessária dispensa para se casar. Ao doutorar-se, defendeu uma tese em que abordava precisamente a questão do celibato eclesiástico, condenando-o: Memoria sobre o Celibato Clerical, que deve Servir de Fundamento a uma das Theses dos Actos Grandes de seu Autor (1822). Esta obra teve grande impacto na época (e mesmo posteriormente, já que seria reeditada em 1864), chegando a ser proibida e confiscada.

José Manuel da Veiga publicou várias obras, a maioria das quais do âmbito jurídico. Segundo alguns autores, é também dele o opúsculo publicado sob o nome de sua filha: Elementos de Instrucção Moral para Uso da Mocidade Portugueza. Dedicados a Sua Alteza a Senhora Infanta D. Maria Anna, por Theodolinda Amelia Christina Leça da Veiga (1857).

Veiga foi um personagem importante no debate acerca do celibato eclesiástico em Portugal, sobretudo durante a primeira metade do séc. XIX. Imposto definitivamente no Concílio de Trento (1545 a 1563), o celibato eclesiástico havia sido posto em causa, já nos sécs. XVII e XVIII, por personagens de primeiro plano da vida pública e cultural portuguesa, como eram os diplomatas Duarte Ribeiro de Macedo e Luís da Cunha. Estes fizeram-no, na altura, em nome da questão demográfica e à luz do chamado direito natural. Quando a questão reaparece durante o Vintismo liberal, a argumentação, embora muito semelhante, está fortemente marcada pela tradição regalista, tal como o seu desenvolvimento posterior, ao longo de todo o séc. XIX, ficará associado à reação contra o ultramontanismo.

A questão do celibato eclesiástico foi um dos temas da contestação anticlerical oitocentista, e, no momento em que José Manuel da Veiga o faz, esta contestação é ainda, sobretudo, anticongregacionista. Na verdade, os primeiros liberais continuam a pensar que a Igreja e a religião católica são o fundamento moral e o instrumento de coesão da sociedade. Porém, em seu entender, é justo que o Estado (liberal) exerça pressão sobre certos pontos passíveis de reforma, como são o fim dos privilégios eclesiásticos ou a extinção das congregações religiosas, cujos votos contrariam o direito natural e impedem o exercício da plena cidadania.

José Manuel da Veiga é disso um bom exemplo. A sua argumentação contra o celibato eclesiástico visa essencialmente a secularização da sociedade e da Cultura, necessária à construção do Estado liberal e ao nascimento do “homem novo”: o cidadão livre. Ela gira, portanto, em torno a três elementos-chave: a defesa do direito natural, as necessidades demográficas e económicas do País e a construção de uma Igreja nacional.

Na sua tese de doutoramento, em Coimbra, José Manuel da Veiga defendia que os votos do clero regular e a disciplina do celibato eclesiásticos, sendo ambos impostos ao indivíduo, eram contrários “à liberdade individual e, com ela, às demais leis naturais”, nomeadamente aquela que ordena a reprodução da espécie; como eram ainda, consequentemente, contrários ao direito positivo, uma vez que a propagação da espécie, o direito de procriar e o de fundar família são direitos inalienáveis. Por outro lado, como o celibato não era muitas vezes respeitado, dando motivo a frequentes escândalos, tornava-se imperativo abolir tal disciplina: não o fazendo o Pontífice, era do interesse da religião, da moral e do bem público que o fizesse o poder civil. A crescente secularização fazia do padre “um estrangeiro no meio dos seus concidadãos”, sujeitado a viver (pela sua natureza humana) “consumindo-se no fogo impuro do desejo” (apud GARNEL, 2000, 101ss.).

O argumento demográfico é apresentado como um benefício coletivo, causa de desenvolvimento e motivo de emergência da família burguesa. Nas sociedades populosas, diz José Manuel da Veiga, a necessidade obriga os indivíduos “a serem industriosos, procurando uma subsistência difícil no apuro de agricultar as terras ingratas, no esmero das artes, e, florescente a agricultura, tendo no comércio sobeja matéria, necessariamente se há de tornar brilhante”. A supressão das ordens religiosas teria, portanto, consequências no desenvolvimento económico e na restruturação da família, da nova família nuclear burguesa, porque “são as famílias que compõem e sustentam o corpo político”, que promovem o respeito pela propriedade e a boa cidadania (Id., Ibid., 105).

Por último, a abolição do celibato eclesiástico seria condição essencial para a nacionalização da Igreja. Para José Manuel da Veiga, o celibato “é prejudicial ao Estado [...] [porque] diminui a representação política», ou seja, não fornece novos cidadãos ao Estado e à sociedade; ora, o casamento dos eclesiásticos celibatários, não só criaria condições para o fomento de bons cidadãos, de amor à pátria e de zelo pela segurança e moralidades públicas, como “os desviaria da dependência em que [estão] da Santa Sé; que permitir-lhe casar era o mesmo que destruir a hierarquia e reduzir o Papa a não ser senão Bispo de Roma” (Id., Ibid., 107).

Em suma, para os liberais do início do séc. XIX, os votos e a clausura religiosos não só atentavam contra a liberdade fundamental dos indivíduos (uma ideia que eles herdavam do Iluminismo), como pareciam ir contra o conceito emergente de cidadania: cidadãos livres, capazes de se comprometer e empenhar na construção social pelo seu contributo ao desenvolvimento da nação, e libertos de qualquer subserviência estrangeira.

Obras de José Manuel da Veiga: Medea, Ensaio Trágico (1821); Memoria sobre o Celibato Clerical, que Deve Servir de Fundamento a uma das Theses dos Actos Grandes de seu Autor (1822); Projecto de Codigo Criminal (1836); Controversia entre os Advogados, o Dr. Antonio Marciano de Azevedo e o Dr. José Manuel da Veiga, Sobre a Intelligencia da Ordenação... (1832); Apontamentos Juridicos sobre a Celebre Questão da Successão ab Intestato dos Prasos de Nomeação, com Representação ou sem ella (1845); Elementos de Instrucção Moral para Uso da Mocidade Portugueza. Dedicados a Sua Alteza a Senhora Infanta D. Maria Anna, por Theodolinda Amelia Christina Leça da Veiga (1857; autoria não confirmada); Os Aterros da Boa-vista, e o Dominio dos Confinantes (1858).

 

Porfírio Pinto

(atualizado a 31.12.2016)

Bibliog.: CATROGA, Fernando, “O Laicismo e a Questão Religiosa em Portugal (1865-1911)”, Análise Social, vol. 24, n.º 100, 1988, pp. 211-273; DIAS, Graça Silva, “Um Discurso do Celibato no Século XVIII em Portugal”, Análise Social, vol. 22, n.º 92-93, 1986, pp. 735-749; GARNEL, Maria Rita Lino, “A Polémica sobre o Celibato Eclesiástico (1820-1911)”, Penélope, n.º 22, 2000, pp. 93-116; SILVA, Fernando Augusto da e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, vol. III, Funchal, DRAC, 1998; SILVA, Innocencio Francisco da, Diccionario Bibliographico Portuguez, t. v, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860.

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