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silva, henrique figueira

Apesar de haver opiniões divergentes sobre o que originou a saída do pai e dos sogros de Henrique Figueira da Silva da Madeira para Demerara, podemos comprovar, pela distância dos acontecimentos, que esta não está relacionada com a questão religiosa que preocupou os madeirenses em meados do séc. XIX. Concretamente, a saída compulsiva do reverendo presbiteriano Robert Kalley aconteceu a 9 de agosto de 1846, quando este deparou com a indignação dos madeirenses e se viu perseguido por uma horda de populares. Algum tempo depois, após aturados episódios nas imprensas local e continental, e por influência diplomática, o Governo de Lisboa viu-se obrigado a enviar para a Madeira dois políticos experientes, cuja função consistia em averiguar os acontecimentos e apurar uma conveniente indemnização. Como desfecho, o médico escocês recebeu, faseadamente, um montante de 7084$631 (sete contos, oitenta e quatro mil seiscentos e trinta e um réis), o equivalente a 1574 libras, 7 shillings e 3 pence. O Estado português iniciou o pagamento a 25 de junho de 1851 e o interessado foi totalmente ressarcido em 1853. Deste modo, só resta uma explicação para o êxodo. As famílias Figueira da Silva e Pereira partiram da Madeira rumo a Demerara à procura de melhores condições de vida, que o regime de propriedade e sistema de exploração da terra, devido à colonia, não lhes permitia. É presumível que Luiz Figueira da Silva, pai de Henrique, tivesse embarcado como passageiro clandestino, pois era prática frequente à época, sendo solteiro e já adulto, com idade compreendida entre os 26 e os 36 anos. Verifica-se, por exemplo, que a barca portuguesa Três Amigos, que saiu da baía do Funchal pelas 11.45 h do dia 22 de abril de 1865, levava a bordo “Luiz J.e [José] Figueira J.or [Júnior]”, solteiro, de 24 anos, referindo ser natural da Madeira; contudo, o facto de não constar o apelido Silva impossibilita-nos de afiançar ser este o emigrante que procurávamos. Concluiu-se pois que Luiz Figueira da Silva, filho de Francisco Figueira da Silva e de Maria de Jesus Silva, natural de Câmara de Lobos, saiu da Madeira entre 1850 e 1860. Em Demerara, Luiz Figueira da Silva casou-se com uma natural da terra, Maria Figueira, antes “Maria Olim Gonçalves Santos”, como consta do registo de batismo do filho Henrique, nascido a 8 de agosto de 1867 em Georgetown (ARM, Governo Civil, cx. 266, proc. n.º 48, passaporte). No entanto, no assento do seu óbito, Maria Figueira é identificada como “Dona Maria Isabel Figueira da Silva” (ARM, Judiciais, cx. 1978, proc. n.º 8, Inventário). Era filha legítima de João Gonçalves dos Santos e de Joaquina Rosa Gonçalves dos Santos, naturais da freguesia e concelho de Câmara de Lobos. O filho mais velho do casal, também Luiz, nasceu em Georgetown, a 12 de março de 1862, conforme o registo do Vicariatu Apostolice Guianae Britanicae, assinado pelo padre que o batizou (ARM, Governo Civil, cx. 26, proc. n.º 83, passaporte). Certo é que Luiz Figueira da Silva partiu de Demerara a 15 de abril de 1869 e chegou ao Funchal a 21 de maio seguinte, na barca inglesa E. W Cohoon, que teve a visita sanitária pelas 12 h daquele dia, depois de fundear na baía do Funchal. Da lista de passageiros constam Luiz Figueira, de 45 anos, Maria, a mulher, de 24, e os filhos Luiz, 6, Guilhermina, 4, Henrique, 2, e Matilde, de 2 meses. Assim, ficamos a saber que o filho mais novo do casal, João Damasceno, nasceu na freguesia de São Pedro, no Funchal. A 2 de janeiro de 1869, na mesma cidade, nasceu Maria Benvinda Pereira, cujos pais haviam saído da capital madeirense em meados de 1866. Na verdade, João Anselmo Pereira e Maria Joaquina Pereira partiram para Demerara no patacho inglês Annie Vail, que zarpou da baía do Funchal pelas 11.45 h do dia 12 de julho de 1866. Do registo n.º 34 do Livro de Saídas da Administração do Concelho do Funchal, constam os nomes de João Pereira, de 29 anos, e, na linha seguinte, de Maria Joaquina Pereira, sua mulher, de 25 anos. Não se conhece a atividade que aquele lá desenvolveu, mas só poderia ter sido no comércio, uma vez que sabia escrever, ou na agricultura. João Anselmo Pereira voltou a Demerara a 13 de março de 1874, em outubro de 1879, a 1 de julho de 1884 e a 1 de dezembro de 1889. Para todas estas viagens foram emitidos passaportes, o que não acontecera na viagem de 1866, tendo viajado em navios de vela portugueses e num vapor inglês, respetivamente o “mui veleiro e muito bem construído patacho Argonauta”, a barca portuguesa Ligeira (duas viagens) e o Nonpareil, agenciado no Funchal pela Blandy Brothers & C.º (ARM, Governo Civil, cx. 75, proc. n.º 115, passaporte). Estas quatro viagens indiciam, pela periodicidade e até nova informação, interesses ou investimentos em Demerara, cujo resultado foi a aquisição de alguns bens na Madeira e, por isso, a denominação de proprietário em documentos oficiais. Mais tarde, Henrique, o n.º 4 da catequese e já com 13 anos de idade, frequentava a capela de N.ª Sr.ª da Penha de França, o que se confirma pelo prémio de aplicação das leituras religiosas populares, em janeiro de 1881. Não é certo, mas o relacionamento das duas famílias pode ter tido origem naquela colónia inglesa ou por questões de vizinhança, uma vez que ambas viviam na R. Imperatriz Dona Amélia. O facto é que Henrique Figueira da Silva, aos 21 anos, casou-se com Maria Benvinda Pereira, de 20. A cerimónia realizou-se na “Igreja paroquial de São Pedro, Concelho e Diocese do Funchal”, a 28 de janeiro de 1889. Da certidão de casamento consta que ambos foram batizados na “Igreja Católica Apostólica de Demerara, província da Guiana Britânica” (Ibid., cx. 210, proc. n.º 36, passaporte). João Anselmo Pereira, sogro de Henrique, faleceu no dia 26 de dezembro de 1901 e deixou a duas sobrinhas de sua mulher os bens que recebera pelo falecimento de seu sogro. Assim, Isabel d’Assunção Nunes, por falecimento do testador, recebeu um oitavo de dois prédios, um à R. das Maravilhas e o outro à Calç. da Cabouqueira, onde morava com a irmã Carlota, que entretanto morrera a 5 de agosto do mesmo ano. Por esta razão, através do casamento, ao invés do inicialmente suposto, Henrique Figueira da Silva não teve acesso a património algum, pois não se encontrou inventário nem testamento, para além do já referido. A herança que recebeu pelo falecimento de sua mãe, Maria Isabel, teve de reparti-la com o pai, que ficou com a meança (metade), e o remanescente com os irmãos, Luiz, Guilhermina, Matilde e João Damasceno. De facto, aos 31 dias de outubro de 1905, faleceu, “pelas duas horas da manhã, na Idanha lugar desta freguesia de Nossa Senhora da Misericórdia da Vila de Belas, Concelho de Sintra, Dona Maria Isabel Figueira da Silva = casada com Luiz Figueira da Silva Sénior, governo de casa, de cinquenta e sete anos de idade, natural de Demerara”. O local do falecimento justificava-se por, conforme o auto de juramento do cabeça-de-casal, ser “onde se achava por motivo de doença” (ARM, Judiciais, cx. 1978, proc. n.º 8, Inventário). Na casa de saúde de Belas também estava internada a filha Matilde, que se casara com Francisco Dias Tavares. A filha mais velha, Guilhermina, casara-se com António Silvino d’Araújo e vivia na R. Imperatriz Dona Amélia, no Funchal, tal como Henrique, casado e negociante, e João Damasceno, solteiro e empregado de comércio. O irmão mais velho, Luiz Figueira da Silva Júnior, casado, residia no Funchal, à R. das Hortas, e tinha um “administrador de massa falida”, razão pela qual, no inventário por morte de seu pai, em 1915, constava “reabilitado”. A 10 de dezembro de 1904, o pai Luiz formalizou um valor de “sete contos trezentos e três mil seiscentos sessenta e cinco réis”, notarialmente e como credor, de montantes e juros até à data, que emprestara ao Júnior, entre abril de 1901 e 1904, sendo o filho ainda residente na R. das Hortas. Esse auxílio destinava-se à “loja de fazendas” sob a firma Lacerda & C.ª, na R. Direita, que entrara em insolvência (Ibid., cx. 491, proc. n.º 12, Inventário). Do inventário de 1905, na parte imobiliária, constavam três prédios urbanos na R. Imperatriz Dona Amélia, um nos Ilhéus, um à R. dos Ferreiros e outro na R. do Sabão, para além de um foro em terreno no sítio das Madalenas (Santo António) e uma campa no cemitério das Angústias. O pai Luiz, inventariante, ficou com a meança, e o co-herdeiro Henrique recebeu de outros irmãos, em “tornas”, o que dificulta o apuramento dos montantes. O certo é que consta uma verba de 2731$395 réis da “propriedade dos bens licitados com o inventariante seu pai e irmãos D. Guilhermina e João”. Verificando a numeração atribuída, estes três co-herdeiros só não tiveram direito aos prédios urbanos localizados nas ruas dos Ferreiros e do Sabão (Ibid., cx. 1978, proc. n.º 8, Inventário). Em 1898, Henrique Figueira da Silva fundou uma casa de câmbios, à R. dos Murças, que em breve passou a ser conhecida por Casa Bancária de Henrique Figueira e também denominada, pela população, Banco Henrique Figueira. De facto, oficialmente o banco não existia, pois o banqueiro, como era conhecido no primeiro quartel do séc. XX sempre dirigiu os seus diversos negócios como “empresário em nome individual” (Carta de Henrique Figueira da Silva de 12 fev. 1930, acervo da família Pontes Leça). No início do séc. XX foi também cônsul do México no Funchal. Em poucos anos, Henrique aumentou o património através de vários investimentos, principalmente pelo vencimento das hipotecas feitas para garantia dos empréstimos bancários. Outro negócio estava relacionado com a venda de penas de água (uma pena = 10 l/min). Temos o exemplo da ação judicial, em 1903, quando o casal Figueira da Silva pediu o embargo à construção de alicerces, numa extensão de 30 m, no sítio da Ribeira de São João, uma vez que estes iriam interromper o caudal de uma nascente no terreno contíguo dos suplicantes. O segundo processo, entre vários, data de 1910, o qual passou em 1914 no Tribunal da Relação de Lisboa e transitou para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido concluído a 28 de julho de 1916, nomeadamente “mantendo o acórdão em recurso e condenando a recorrente nas custas deste processo” (ARM, Judiciais, cx. 2815, proc. n.º 9). De facto, a 13 de maio de 1902, Henrique Figueira da Silva e sua mulher venderam 10 penas de água da nascente de um dos três prédios à R. Imperatriz Dona Amélia. Quando o caudal mingou, situação frequente e normal, a firma Cory’s Madeira Coaling Company Limited sentiu-se prejudicada, tendo de adquirir a terceiros, em 1906 (segundo os “recorridos” argumentam no processo), a quantidade de água suficiente para o abastecimento dos vapores que escalavam o porto do Funchal (Ibid.). Ao longo da atividade bancária, seria incomportável identificar tantas hipotecas, penhoras, arrestos, etc., nos inúmeros atos notariais que localizámos. Realce-se no entanto, e como exemplo, a compra do prédio n.º 12 ao Ministério do Exército, cujas confrontações (norte, edifício da Companhia da Luz Elétrica; leste, campo Almirante Reis; sul, praia; oeste, ribeira de João Gomes) indicam ser contíguo ao local onde se construiu uma moagem e engenho de cana sacarina, bem visível em fotos da época e imponente na marginal funchalense. Aliás, após a terraplanagem, a Câmara Municipal do Funchal (CMF), em carta dirigida à firma A. Giorgi & C.º, datada de 12 de abril de 1908, solicitava a satisfação do respetivo pagamento aos empreiteiros. Pelas dificuldades inerentes à Primeira Guerra Mundial, o edifício foi adquirido pelo maior banqueiro do Funchal, onde, a 8 de novembro de 1915, passaram a funcionar os “escritórios da casa Bancária do sr. Henrique Figueira da Silva, no rés-do-chão do elegante prédio que mandou construir na Avenida Oeste”. É o que se conclui quando, em novembro desse ano, os vereadores da CMF propõem “um voto de louvor a V. Ex.ª pelo bom gosto e verdadeira conceção artística que presidiu à construção do seu novo prédio na parte da Avenida Oeste, contribuindo assim V. Ex.ª valiosamente para aformosear aquele sítio tão central e concorrido da cidade”. Este louvor, espécie de prémio não pecuniário, ficou a dever-se à situação financeira da CMF, confirmada pelos vereadores em ata da sessão de 12 de novembro de 1915 (ARM, cota 181, liv. n.º 10, Câmara Municipal do Funchal, ata n.º 287). A 5 de agosto de 1935, este edifício foi adquirido em hasta pública pela W.m Hinton & Sons, no frenesim da Comissão Liquidatária do Banco Henrique Figueira, como veremos. É necessário realçar que “um requerimento da firma W.m Hinton & Sons, pedindo autorização para estabelecer ao longo da ribeira de Santa Luzia, no espaço compreendido entre as suas muralhas, um cabo aéreo destinado a pôr em comunicação a sua Fábrica do Torreão com a foz da mesma ribeira no Pelourinho” (DN, Funchal, 10 nov. 1908, 2). Quando, em 1915, Henrique Figueira da Silva comprou a Fábrica de São Filipe à A. Giorgi & C.ª, recorreu judicialmente para impedir a utilização do referido cabo, o que Hinton nunca lhe perdoou, mas sentiu-se compensado pela referida hasta pública. Exterior das fábricas de Henrique Figueira da Silva, Funchal (Fábrica de São Filipe) Em meados de janeiro de 1920, Henrique Figueira da Silva, na qualidade de moageiro e agente de navegação, interpôs um processo cível que originou a “ação executiva” para penhorar o navio americano City of Galveston, procedente de Buenos Aires, onde carregara “38.866 sacas de trigo” para o porto do Funchal. O vapor chegou a 4 de janeiro desse ano e duas semanas volvidas concluiu a descarga, mas verificou-se que faltavam “968 sacas”. A companhia e o comandante do navio eram os responsáveis, e Henrique Figueira da Silva, com essa ação, pretendia ser ressarcido do valor correspondente, 20.711$70 (vinte mil, setecentos e onze escudos e setenta centavos), o que aconteceu em abril de 1922. Exterior das fábricas de Henrique Figueira da Silva, Funchal (Fábrica de São Filipe). Fonte: Jornal da Europa Do seu casamento com Maria Benvinda, a avaliar pelos registos de nascimento, nasceram três filhas – Maria Albertina (08/05/1894, batizada a 13 de junho seguinte), Maria Judite (01/12/1900, batizada a 6 de janeiro seguinte) e Maria Cecília (23/08/1907, batizada a 15 de setembro seguinte) –, todas naturais da freguesia de São Pedro. No entanto, pelo registo de batismo, a filha mais velha, Belmira, nasceu a 15-03-1892, sendo batizada no dia 27 seguinte, apesar de, na notícia da morte do pai, constar o nome de Maria Ester. No entanto, será aquele o verdadeiro nome da filha mais velha, segundo o registo de batismo acima referido. Por outubro de 1921, através da Comarca do Funchal, Henrique Figueira da Silva emancipou seu filho João Anselmo, que nascera em São Pedro pelas 11 h de 21 de abril de 1903, sendo batizado a 21 de maio seguinte. À data do falecimento do pai, João Anselmo era diretor da Companhia Vinícola da Madeira. Em setembro de 1921 e outubro de 1924, Henrique Figueira da Silva, casado, banqueiro, com 54 e 57 anos, respetivamente, requereu passaportes para visitar vários países da Europa. Nos dois anos anteriores, já tinha viajado para as ilhas Canárias. Desses documentos constam traços fisionómicos com os seguintes sinais particulares: 1,72 m de altura, cabelos grisalhos, sobrancelhas castanhas, olhos azuis e nariz regular. Um acontecimento pouco conhecido foi a violenta explosão ocorrida na sua residência na madrugada de 28 de junho de 1926. Um estupendo estampido acordou em sobressalto toda a urbe. Nos jornais, os títulos eram semelhantes, expressando a gravidade da situação e o desconhecimento dos seus autores e objetivos: “Lançamento duma bomba na residência do conceituado banqueiro e industrial sr. Henrique Figueira da Silva. O alarme – Estragos importantes – Ação policial” (DN, 29 jun. 1926, 1). A população, indignada e receosa, conformou-se ao ler a notícia de que a Qt. da Penha, à R. Imperatriz Dona Amélia, “residência do sr. Henrique Figueira da Silva e sua família”, tinha “os seus quartos de dormir nos compartimentos interiores do prédio”, pelo que “se deve o não termos hoje que registar e lamentar uma verdadeira desgraça, um terrível acontecimento lutuoso” (Ibid.). Nos dias imediatos, o banqueiro foi alvo de manifestações de apoio e, doutros sectores, com reações de inveja e até de ódio, expressas em epítetos, divulgados nos jornais funchalenses, como “o maior ricaço da Madeira” e “o traça-mor” (A Batalha, 3 jul. 1926, 1). Depois de persistentes investigações, concluiu-se que estiveram diretamente envolvidos três elementos da Casa Sindical, instalada nos três andares do n.º 5 da R. Dr. Vieira (depois R. da Carreira). Tidos por anarquistas, houve mais nove implicados em atividades estranhas ao sindicalismo, que foram presos e seguiram para Lisboa. Entretanto, a casa bancária passou a denominar-se, popularmente, Banco Henrique Figueira. A sede era na Av. Arriaga, onde, depois da liquidação da casa bancária, se instalou a filial da Caixa Geral de Depósitos (CGD), que seria posteriormente uma das suas agências urbanas. Escritórios de Henrique Figueira da Silva, Funchal. Fonte: Jornal da Europa Foi como consequência dos acontecimentos da Quinta-Feira Negra na Bolsa de Wall Street, em Nova Iorque, que a banca e a economia madeirenses sofreram alguns desaires. Mas não só. Na verdade, as firmas locais estavam mal estruturadas e eram geridas de forma displicente. Exemplo disso foi o crédito, ou melhor, o pagamento de dívidas deixadas por Luiz Portugal, um amigo de João Damasceno (irmão e colaborador do banqueiro), totalmente cobertas por Henrique Figueira da Silva, julgando haver património suficiente, na verdade fictício (porque estava todo empenhado), quando aquele partiu para França, investindo fortemente em dois estabelecimentos na capital francesa. Houve situações semelhantes, embora de menor monta, mas que se presume ao lermos a correspondência privada de Henrique Figueira da Silva, a que tivemos acesso. Para agravar a situação, a inveja e os boatos aceleraram o descalabro. Nessa perspetiva, também a imprensa funchalense, em geral, publicava notícias bombásticas, e, especialmente no Re-Nhau-Nhau, apareceram as caricaturas dos moageiros e de alguns boateiros, destacando-se dois. Um deles, o principal, foi Harry Hinton, que mobilizou seis dos seus empregados para espalharem o boato pela cidade. Mas houve um corresponsável, Manuel Maria de França, que foi acompanhado por dois familiares e dois guardas cívicos para cumprir prisão domiciliária, em São Vicente, depois de ter tentado uma viagem ao Porto Santo. Mas o mal estava feito, e nem a prisão dos boateiros solucionou coisa alguma. Depois, houve os interesseiros, como Simão Correia Neves, diretor da casa bancária da firma Blandy Brothers & C.ª Ldª, e Garcia da Silva, que não se consegue relacionar com qualquer sociedade, mas que, segundo o referido periódico, era um banqueiro com interesses no Brasil, informações confirmadas na correspondência de Henrique Figueira da Silva. É curioso registar que, na imprensa funchalense, tenha aparecido quem se descartasse publicamente ameaçando com processo judicial os que insistissem nas insinuações. No entanto, politicamente, houve tratamento privilegiado, se pensarmos que, em 1929, o ministro das Finanças do Governo de Lisboa, António de Oliveira Salazar, aprovou o financiamento de 75.000.000$00 à Casa Bancária Henrique Totta, com sede na R. do Ouro, em Lisboa, e que isso evitou a corrida dos aforradores para levantamento das suas poupanças nesse banco. Não houve a mesma preocupação com os dois principais bancos da praça do Funchal, e foi óbvia a influente amizade entre Juvenal Henriques de Araújo e as duas figuras gradas do regime português em ascensão, Oliveira Salazar e o futuro cardeal Cerejeira. Na verdade, a informação que chegou ao então ministro das Finanças não foi abonatória e baseou-se em simples e peculiar modus vivendi da sociedade insular, a citada inveja e a divisão sectária. Por isso, a maioria dos madeirenses foi apanhada de surpresa quando, no dia 21 de novembro de 1930, o Diário da Madeira publicou um grande título de primeira página, “A Situação do Comércio da Madeira”, e uma “Nota Oficiosa” do governador civil referia que “Por dificuldades do momento, a Casa Bancária Henrique Figueira da Silva foi forçada a suspender as suas operações até que o Governo nomeie Delegado Especial para resolver a sua situação de crise, certamente transitória, como todas as razões o fazem crer. Estão sendo, entretanto, tomadas providências no sentido de bem salvaguardar todos os interesses” (Diário da Madeira, 21 nov. 1930, 1). Depois, vários telegramas foram transmitidos para Lisboa, entre outros, pelos presidentes da CMF e da Junta Geral do Distrito do Funchal, a Comissão Organizadora da Liga da Ação Regional e a Associação de Socorros Mútuos, que alertavam para a gravíssima situação da economia madeirense. No dia seguinte, vinha um grande título no Diário da Madeira – “O Banco de Portugal Vem em Auxílio da Nossa Praça” –, mas as medidas do ministro das Finanças, Oliveira Salazar, foram adversas, assim como o desenrolar dos acontecimentos. Na realidade, mesmo “estabelecendo imediatamente todas as facilidades”, disponibilizando “dois inspetores do Banco de Portugal” para irem até à Madeira e remetendo “grande quantidade de numerário” (Ibid.), de nada adiantou, uma vez que a falência fora oficializada por portaria do próprio ministro das Finanças. Na capital, da situação de crise latente passou-se rapidamente às notícias das falências de casas bancárias no Funchal, tendo uma delas sido confirmada pela portaria de 22 de novembro de 1930 do Ministério das Finanças, o que comprova a urgência com que o titular da pasta as fez publicar, entre elas: “Tendo a casa bancária Henrique Figueira da Silva, com sede na cidade do Funchal (Ilha da Madeira), deixado de satisfazer, desde a manhã do dia 20 do corrente, as obrigações contraídas no exercício das suas operações: manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro das Finanças, de conformidade com o artigo 61.º do decreto n.º 10:634, de 20 de março de 1925, nomear, sem encargo para o Estado, comissário do Governo junto da referida casa bancária o cidadão Eduardo Simões Dias Paquete” (Portaria do Ministério das Finanças de 22 nov. 1930, Diário do Governo, Lisboa). Nessa mesma data, o Diário da Madeira transcreveu um artigo publicado no jornal lisbonense Novidades com o argumento de que “se ajusta integralmente à atual situação da Madeira”, pois “A campanha de insinuações e boatos, que nos últimos dias tem alarmado os depositantes dos Bancos, representa, no fundo, uma exploração criminosa da credulidade pública contra a economia da nação. Os que supõem que os Bancos de verdade podem ter em caixa todo o dinheiro que lhes confiam os seus depositantes, fazem deles a ingénua ideia de simples cofres para guardar valores. Um banco forte, sério, honesto, traz em circulação a maior parte dos capitais próprios e daqueles que lhe são confiados” (Diário da Madeira, 22 nov. 1930, 1). Efetivamente, só assim se poderia gerar lucros, através do crédito concedido às empresas, para fomento da economia, sendo a única forma de criar riqueza no país. Na “Nota do Dia”, o articulista “João Mistério” tentou acalmar os ânimos, em vão, e da mesma forma o ministro das Finanças, no telegrama dirigido ao governador civil, dizendo que “bem procedeu V. Ex.ª aconselhando calma, pois o pânico agravará inutilmente a situação geral. Se o pânico for invencível, e não puderem ser realizadas as operações que facilitem a vida dos estabelecimentos, será preferível V. Ex.ª ordenar o encerramento dos Bancos por um ou dois dias com o fim de evitar maiores ruínas, Recomendei à Caixa Geral de Depósitos os casos da Associação de Socorros Mútuos e do Montepio Madeirense” (Ibid.). No entanto, e ao invés da atenção governamental para com Henrique Totta, de Lisboa, deu-se novamente a declaração de falência da Sardinha & C.ª, também, por ter “deixado de satisfazer, desde a tarde do dia 21 de novembro do ano findo, as obrigações contraídas no exercício das suas operações” (Diário da Madeira, 23 nov. 1930, 2). Portanto, isto aconteceu no dia seguinte à portaria que ditou a falência da Casa Bancária Henrique Figueira da Silva. No dia 23, na primeira de oito páginas do mesmo diário, a “Nota do Dia”, de “João Mistério”, justificava a situação por “causas diversíssimas, umas fomentadas por nós próprios e, outras, que são cá dentro o reflexo das crises de diferente natureza e que de fora indiretamente nos atingem” (Ibid.). No dia seguinte (segunda-feira), contrariando o referido despacho, a “Nota Oficiosa da Inspeção do Comércio Bancário” autorizava a abertura das duas casas bancárias funchalenses e outra do Comando da Polícia de Segurança Pública alertava que os que tentassem adquirir valores por quantias inferiores ao seu valor real seriam “rigorosamente castigados” (Ibid.). Na mesma data, numa reduzida notícia, acima do título anterior, o Diário da Madeira informava que “Encontra-se detido um capitalista desta cidade, indigitado como propalador de boatos tendenciosos contra a Casa Bancária Henrique Figueira da Silva” (Ibid.). A 3 de janeiro de 1931, foi publicada uma portaria com a nomeação do mesmo comissário do Governo, Eduardo Paquete, que estivera em funções junto da Casa Bancária Henrique Figueira da Silva, para a mesma função na falência da outra casa bancária. Na mesma data, foi publicada outra portaria com a substituição do referido comissário e surgiu o nome de Óscar Baltazar Gonçalves, que esteve no cargo até 2 de agosto de 1932, altura em que foi substituído por Carlos Gomes de Araújo. Sob a sua direção, realizou-se uma reunião de credores no dia 31 de outubro de 1931, com a presença de 50 dos 60 maiores depositantes do banco e de outros de menores montantes. Após a ordeira votação, que teve lugar na sede do Montepio Madeirense, à R. dos Murças, foi eleito António Augusto da Silva Pereira, representando créditos no montante de 1.171.486$99, valor que incluía também o seu próprio capital. A 25 de novembro de 1931, o Diário de Notícias do Funchal regozijava-se pela nomeação de Juvenal Henriques de Araújo, sócio gerente da Casa Bancária Rodrigues, Irmãos & C.ª, como representante do Banco de Portugal e da CGD na Comissão Liquidatária da Casa Bancária Henrique Figueira da Silva. A 27 do mesmo mês, pelas 15 h, tomaram posse os elementos da referida comissão: Juvenal de Araújo (presidente), Óscar Baltazar Gonçalves (comissário do Governo), António Augusto da Silva Pereira (representante dos credores) e Manuel Pedro Nolasco de Pontes Leça (genro do banqueiro e representante da casa em liquidação), todos advogados da praça funchalense. Na imprensa local, as notícias tinham acalmado, mas continuaram as iniciativas governamentais. A 2 de agosto de 1932, foi publicada a portaria que exonerava Juvenal de Araújo de presidente da Comissão Liquidatária do banco Henrique Figueira. Este cargo, porventura, não lhe era interessante por ser de exigência e dedicação extremas. Na verdade, Juvenal de Araújo fora nomeado a 21 de novembro de 1931 e pouco depois de oito meses sucedeu-lhe no cargo José Braz Alves. Este, por sua vez, tendo sido nomeado por portaria do Ministério das Finanças a 15 de janeiro de 1933, foi substituído por Fernando Martins Costa, a 2 de agosto desse ano. No entanto, após o seu pedido de demissão, foi nomeado Artur Gonçalves da Silveira, que, por motivo de doença, não aceitou. Assim, pela portaria de 29 de setembro de 1933, foi nomeado, segundo o próprio texto, para o “mesmo cargo, em comissão de serviço, o Juiz Carlos Henrique da Silva e Sousa, sem prejuízo das regalias inerentes à sua situação de magistrado, nos termos legais” (Portaria do Ministério das Finanças de 29 set. 1933, Diário do Governo, Lisboa). Será curioso registar uma avaliação de janeiro de 1933, sobre os 44 prédios rústicos e urbanos da relação de propriedades pertencentes a Henrique Figueira da Silva, num valor global de 19.557.000$00. Contudo, não foram estes os valores considerados nas arrematações, sujeitas à impiedosa Lei da Oferta e da Procura. Por ingenuidade, supostamente, o articulista de A Tribuna questionou a venda em hasta pública da Fábrica de São Filipe, pois “Não pode, evidentemente, um tão valioso organismo industrial ser vendido em obediência a um critério acanhado de mero interesse particular”. E concluiu que uma “sociedade madeirense compensará dos prejuízos sofridos, com o rodar dos tempos, os depositantes que confiaram à casa bancária de Henrique Figueira da Silva as suas economias”. Segundo a sua opinião, a Fábrica de São Filipe deveria “ser a última coisa a liquidar” (A Tribuna, 18 mar. 1933, 2). Porém, não foi assim que aconteceu, como mais adiante relataremos. Assim, por meados de dezembro de 1933, realizaram-se arrematações (intituladas na imprensa por “almoeda”), três por semana, para aquisição de ações, a 100$00, das seguradoras Aliança Madeirense e Garantia Funchalense, a 50$00 (seu valor real), ou caixas para vinho, por metade do preço, e ainda uma terceira praça de quadros de pintura. Mas a maior riqueza estava nos imóveis que durante mais de três anos estiveram a ser licitados em hasta pública. Fez-se também a distribuição de 10 % para os clientes que tinham depósitos até 5000$00. Um dos locais de pagamento foi a Fábrica de São Filipe, que fora de Henrique Figueira da Silva, feito entre as 10 h e as 15 h, em dias estipulados para os moradores nas diversas freguesias do Funchal e, noutras datas, para os residentes noutros concelhos do arquipélago. No dia 16 de dezembro de 1933, pelas 13 h, na antiga residência de Henrique Figueira da Silva, à R. Imperatriz D. Amélia, n.º 92, no Funchal, o juiz-presidente da Comissão Liquidatária, Silva e Sousa, realizou a primeira praça dos móveis, loiças, cristais, faqueiros, carpetes e vários objetos do banqueiro. Pelo exposto, só se pode concluir que os depositantes do Banco Henrique Figueira da Silva foram ressarcidos, pelo menos, parcialmente. Foi este juiz que permaneceu mais tempo no cargo, e na portaria de 16 de maio de 1935, que ditou a sua substituição, constava que o “exerceu com muito zelo e distinção” (Portaria do Ministério das Finanças de 16 mai. 1935, Diário do Governo, Lisboa). O seu substituto foi Carlos Gomes de Araújo, que se manteve no cargo até 7 de setembro do mesmo ano, sendo nomeado nessa data o diretor das Finanças do distrito do Funchal, José de Viveiros Ferreira Júnior, elemento que compareceu como primeiro outorgante no cartório do notário do Funchal. Na escritura de venda de 18 de outubro de 1935, lavrada pelo mesmo notário do Funchal e que envolveu “o banqueiro da praça do Funchal, Henrique Figueira da Silva”, consta que a “liquidação dos seus haveres patrimoniais foi ordenada pelo Decreto número vinte mil trezentos e dezasseis de dezasseis de setembro de mil novecentos trinta e um e para isso a Portaria de vinte e um de novembro do mesmo ano (publicada no Diário do Governo, segunda série, de vinte e três do mesmo mês)” (ARM, 6222, liv. 290 A, Notário do Funchal, Frederico Augusto de Freitas). Mas os últimos presidentes da Comissão Liquidatária foram determinantes, visto que concluíram dois grandes “negócios”. Na verdade, as fábricas de São Filipe, adquirida pela W.m Hinton & Sons, e Lealdade, comprada pela Companhia Insular de Moinhos, Ldª (CIM), se fossem vendidas em situação normal, e por um valor justo, teriam certamente rendido o quádruplo do seu rateio em hasta pública. Se dúvidas houvesse, bastaria verificar os nomes dos que usufruíram de tão valioso pecúlio, sendo um deles o principal boateiro, já referido. Na escritura de venda, conjunta, consta o valor de “três mil contos, sessenta e seis escudos sessenta e sete centavos” (ARM, cota 6198, liv. 266, Not. Frederico Augusto de Freitas), que foi quanto pagou a Wm. Hinton & Sons firma pela Fábrica de São Filipe, mais quatro camiões, um rebocador e outros apetrechos (um guincho, duas caldeiras a vapor, etc.). Para além destes três prédios, entre as fozes das ribeiras de João Gomes e de Santa Luzia, foi vendido outro à Levada de Santa Luzia (Consolação) e ainda um armazém no porto da Calheta. Para percebermos a importância destes prédios, o primeiro tinha seis pavimentos e confrontava, a norte, com o Lg. do Pelourinho, a sul, com o calhau do mar e, a leste, com a ribeira de João Gomes. Era uma fábrica de moagem de cana sacarina e, num dos pisos, também havia moagem de trigo e de milho. O segundo prédio servia de arsenal, confrontando, a norte e a leste, com The Madeira Electring Lighting (1909) C.º (sucessivamente CAAHM, EEM e Eletricidade da Madeira) e, a sul, com o calhau do mar, onde fora construído o denominado cais de São Filipe. O terceiro prédio confrontava, a sul, com a Fábrica de São Filipe, a leste, com o Lg. do Pelourinho e, a oeste, com a ribeira de Santa Luzia (Ibid). Na mesma escritura, os terceiros outorgantes, dois diretores da CIM, Ldª, assinaram para adquirir a fábrica Lealdade “com todas as suas máquinas e utensílios de moagem de trigo e os direitos industriais respetivos” (Ibid.). Esta fábrica, que fora de A. Giorgi & C.ª, localizava-se na R. Arcebispo D. Aires. O segundo prédio da referida escritura tinha acessos, a norte, pela Trav. da Malta e, a oeste, pelo Lg. do Pelourinho. Juntamente com estes prédios, em cláusula especial, a CIM, Ldª. adquiriu também os equipamentos de moagem de trigo da fábrica de São Filipe. Tudo por “mil e quinhentos contos, trinta e três escudos e trinta e três centavos” (Ibid.). Como curiosidade, este conjunto de prédios foi destruído por um incêndio a 22 de outubro de 1974. Para além dos Bombeiros Voluntários Madeirenses, estavam lá instaladas quatro empresas. Uma delas, a Socarma, porventura a mais importante, era importadora e armazenista de víveres. Nesta época, a proprietária deste conjunto de imóveis ainda era a firma W.m Hinton & Sons. Passados cerca de 15 anos, em julho de 1989, estes escombros foram removidos para reabilitação de espaço urbano, onde ressurgiu o antigo Lg. do Pelourinho e foi criada a Pç. da Autonomia. A 29 de julho de 1989, o Diário de Notícias do Funchal referia que a aquisição do que restava dos prédios, a limpeza da área e a construção da Pç. da Autonomia haviam custado à CMF 220 mil contos. Outra operação demorada, de montante significativo, teve desfecho a 6 de maio de 1941. Na verdade, perante o notário bacharel Frederico Augusto de Freitas foi assinado o derradeiro ato respeitante àquela falência, a “Quitação e desobrigação: Entre a Com. Liquidatária da Casa Bancária H. F. da Silva e Blandy Brºs & Compª”. Nesse cartório, perante os legítimos representantes, consumou-se um longo processo que foi acompanhado pela firma Blandy Brothers & Companhia Limitada, sendo parte interessada como financiadora, tentando minimizar as perdas numa “indemnização dos prejuízos (lucros cessantes e danos emergentes) mandada pagar nos autos da ação com processo ordinário distribuída, em dezasseis de abril de mil novecentos e trinta e quatro e a requerimento da sociedade ‘J. M. Brito & Companhia (Porto da Cruz)’” (ARM, cota 6222, liv. 290 A, Notário do Funchal, Frederico Augusto de Freitas). Esta transcrição é parte da escritura acima referida, e a verba de duzentos mil escudos foi entregue à firma Blandy Brothers & Companhia Limitada. Assim, a empresa produtora dos derivados da cana sacarina, utilizando equipamento do engenho do Porto da Cruz, que tivera, inicialmente, outra denominação e depois se chamou Companhia dos Engenhos do Norte, foi ressarcida pelo saneamento das suas dívidas, pelo acerto das contas na secção bancária da BB&C.ª, Ldª. No entanto, a Companhia dos Engenhos do Norte, em contratos de 8 de maio de 1944 e de 7 de junho de 1945, cobriu o remanescente com um empréstimo de 550 mil escudos, à taxa de 4 % ao ano, que, em caso de mora, “assim sofrerão as modificações que da lei resultem eventualmente” (Ibid.). Com estes novos contratos, a administração do engenho quitou os anteriores encargos, libertando-se das hipotecas e penhoras realizadas na déc. de 1930. Outro edifício importante que fazia parte do património do banqueiro foi alienado, a 16 de fevereiro de 1933, à CGD, onde, durante várias décadas, funcionou a filial do Funchal desta instituição do Estado português (ARM, 6187, liv. 255 A, Notário do Funchal Frederico Augusto de Freitas). Em suma, foi em meados de 1941 que a Comissão Liquidatária da Casa Bancária de Henrique Figueira da Silva concluiu a tarefa para a qual fora criada a 22 de novembro de 1930. Segundo a opinião de descendentes, ainda vivos, das duas instituições bancárias madeirenses mais lesadas pelas medidas do ministro das Finanças, o único mandatário do Governo que não usufruiu da situação foi Óscar Baltazar Gonçalves. Do mesmo modo, defendem ainda que, naquela época, teria sido importante a integração do Banco Henrique Figueira no reestruturado Banco da Madeira, que só incluiu o antigo Banco da Madeira, a casa bancária Reid, Castro & Companhia e o Banco Sardinha. O argumento para a referida integração baseava-se na implantação na praça funchalense e nos depósitos que tinha em carteira. Ainda no fervilhar dos acontecimentos, a corroborar esta ideia e realçando o carácter de Henrique Figueira da Silva, o trimensário humorístico funchalense Re-Nhau-Nhau escrevia: “Um verdadeiro homem de bem e madeirense de lei, que pela sua honradez é merecedor da confiança de todos os madeirenses. Embora houvesse uns ‘cães’ que o tentassem morder, não o puderam conseguir, porque os cães ladram à lua e a caravana passa” (Re-Nhau-Nhau, 30 nov. 1930, 1). Quando Henrique Figueira da Silva foi preso, o seu estado de saúde não lhe permitiu enfrentar tamanha adversidade e teve de ser internado no Hospital de São José, em Lisboa. Depois de sair do hospital, foi para o afago do lar da filha mais nova, Maria Cecília, na companhia da mulher. Depois, alugou uma casa no Campo Pequeno e, mais tarde, foi viver para um primeiro andar da R. da Alegria. Morreu na capital portuguesa, a 5 de abril de 1946, dizimado por um cancro na boca, em consequência de antiquado sistema de dentadura que lhe feriu um maxilar e que ele, persistentemente, procurava consertar para não gastar dinheiro que poderia fazer falta aos familiares sob a sua dependência. O Jornal, em pequena notícia do dia 8 desse mês, referia que, em 1898, Henrique Figueira da Silva tinha “fundado a sua pequena casa bancária à rua dos Murças, deu-lhe depois maior amplitude e importância, estabelecendo-a à avenida Arriaga num edifício novo de aspeto elegante que muito contribuiu para embelezar o local” (O Jornal, 8 abr. 1946, 2). O Diário de Notícias do Funchal realçou as suas qualidades de homem honrado e sério, que lhe granjearam grande prestígio no meio comercial funchalense. Segundo este periódico, Henrique Figueira da Silva pertenceu “a uma geração de individualidades que há cerca de cinquenta anos imprimiram grande desenvolvimento aos diversos sectores do comércio do Funchal e constituída por um grupo de homens de negócios que se fizeram, sobretudo, por si próprios, pelas suas qualidades de trabalho e pela posse de invejáveis predicados de ação, de carácter e de tenacidade, mercê dos quais conquistaram posição social de justo e marcado relevo”. E complementava afirmando que, “em face de um pânico infundado, teve de assistir à liquidação da sua casa bancária, conservou a maior coragem perante os acontecimentos que tão fortemente o abalaram, certo e consciente sempre da correção e probidade do seu procedimento” (DN, 7 abr. 1946, 1). Em trabalhos que vieram a público, como os de José Luís Ferreira de Sousa (2012 e 2015) e de João Abel de Freitas (2014), constam os montantes depositados no Banco de Henrique Figueira pelos aforradores madeirenses, com informação devidamente documentada. A visão destes autores é complementar, visto que a sua formação académica, em História e em Economia, respetivamente, proporciona profícuas perspetivas e análises diversificadas.   José Luís Ferreira de Sousa (atualizado a 03.02.2017)

História Económica e Social Personalidades

mercearia de santa catarina

A mercearia de S.ta Catarina foi uma instituição criada no séc. XV, provavelmente cerca de 1484, por Constança Rodrigues, mulher de João Gonçalves Zarco, junto à ermida sob a mesma invocação, na zona alta, sobranceira ao mar, na parte oeste da baía do Funchal. De forma a contextualizar a criação desta instituição, podemos referir que o estabelecimento da mercearia de S.ta Catarina foi assente na área onde Zarco e a sua família tiveram a primeira morada, aquando da sua chegada à Ilha, para dar início ao povoamento. Posteriormente, Zarco construiu nova moradia, fixando-se numa zona mais alta da vila do Funchal. A dinamização do povoamento da ilha da Madeira, após a redescoberta, em 1419, coube ainda a D. João I, provavelmente a partir de 1425. O povoamento recebeu, no entanto, um impulso decisivo a partir do momento em que o Rei D. Duarte, que sucedeu, em 1433, a seu pai D. João I, concedeu ao infante D. Henrique o senhorio do arquipélago, a 26 de setembro de 1433. D. Henrique instituiu a Capitania do Funchal, a 1 de novembro de 1450, ficando João Gonçalves Zarco com o cargo de capitão do donatário. O primeiro capitão e a sua família fixaram-se já no Funchal, sede da Capitania, cujo território, mais fértil e com condições favoráveis, começou a atrair um maior número de povoadores. Começou, desde então, a desenhar-se o crescimento económico em torno do cultivo da terra, para a produção, dominante e indispensável, do trigo e de outros cereais, e ainda da exploração das madeiras e das plantas tintureiras, que haviam constituído a origem dos primeiros rendimentos dos povoadores. O séc. XV foi também marcado pelos males que mais contribuíam para que se caísse na pobreza e na marginalidade: as fomes, as epidemias, a carestia das subsistências. Aliás, entre os fatores que tinham impulsionado muitos povoadores a procurar novas oportunidades nas terras descobertas, como era o caso da Madeira, conta-se a necessidade de procurar meios de subsistência e de algum enriquecimento, ou de condições para uma maior garantia de sobrevivência e para uma melhoria da condição social. A organização social dos primeiros tempos do povoamento fez-se em torno dos modelos tardo-medievais, enquadrando uma população ainda escassa, constituída pelos vários estados sociais caraterísticos da sociedade de então (o clero, a nobreza e o povo). Podemos afirmar que as condições difíceis não deixaram de marcar o destino dos habitantes, independentemente da sua condição social, tendo sido confrontados com a doença, a insegurança, e os acidentes e as intempéries naturais. Os primeiros tempos do povoamento do arquipélago da Madeira registam a presença cíclica dessas dificuldades. Na sociedade tardo-medieval, no dealbar da Idade Moderna, entre os grupos mais fragilizados, para além das crianças e dos doentes, contavam-se as mulheres, sobretudo as solteiras, as viúvas e as mais idosas, incluindo as de famílias nobres, que não tinham proteção ou sustento e que não podiam acolher-se em alguma instituição religiosa, como um convento, por não terem dote suficiente. Entre os povoadores teriam ido elementos da pequena nobreza, companheiros de Zarco, acompanhados das mulheres e da família, tal como fizera o capitão. Constança Rodrigues, mulher de João Gonçalves Zarco, a instituidora da mercearia de S.ta Catarina, poderá ser natural de Matosinhos e filha de Rodrigo Annes de Sá e de Cecília Colona, em título de Sás, embora não se tenham encontrado provas documentais desta filiação nem desta naturalidade. Era irmã de João Rodrigues de Sá, camareiro-mor do Rei D. João I. O sogro de Zarco teria origem nobre e desempenharia o cargo de alcaide-mor do castelo de Gaia, no arrabalde do Porto, detendo ainda rendas em Gaia e Vila Nova. Constança Rodrigues, a exemplo de outras senhoras e senhores nobres que, preocupados com a salvação da alma, desejavam deixar o seu nome ligado a uma obra pia, quis instituir uma obra piedosa. A mercearia foi a instituição escolhida, e tinha a finalidade de acolher algumas mulheres idosas em cinco casas térreas construídas junto à ermida de S.ta Catarina, sem dúvida das mais antigas construídas na Capitania do Funchal, que, ao longo dos séculos, seria mantida no local original, embora, naturalmente, com alterações. A referência documental da instituição da mercearia de S.ta Catarina é de 1484. Trata-se de um documento de aforamento, concretamente um traslado do aforamento, datado de 22 de abril de 1484, em que se refere “um chão” (VERÍSSIMO, 2000, 113) que Constança Rodrigues arrenda ao escudeiro João de Canha, com uma pensão de 5000 réis destinada às cinco mulheres idosas que tinham sido acolhidas na mercearia. Constança Rodrigues, que nesta altura já era viúva, instituíra esta obra de beneficência para, porventura, acudir a viúvas de antigos companheiros de Zarco que teriam ficado sem amparo por o tempo não lhes ter permitido arrecadar fortuna suficiente para garantir a sobrevivência nos últimos tempos de vida. Sem referências documentais não se pode acrescentar nada sobre a identidade das merceeiras de S.ta Catarina, sendo apenas corrente dizer-se que era tradição as mercearias acolherem mulheres de condição honrada que tinham ficado pobres. A notícia histórica sobre a mercearia de S.ta Catarina remete-nos, assim, para o tipo de instituição com fins religiosos e caritativos, comum na Idade Média em Portugal, que era destinada ao recolhimento de idosos que, apesar de terem uma origem social nobiliárquica, tinham ficado pobres e, por isso, necessitavam de ajuda piedosa e caritativa para subsistir no final da sua vida. Os que beneficiavam da possibilidade de ser recolhidos nessa instituição ficavam com o encargo de rezar e assistir a missas por alma dos benfeitores que lhes tinham concedido tal mercê, i.e., tal benefício. A criação da instituição implicou que a sua posse passasse, como padroado, para o donatário do Funchal e os seus sucessores, com a obrigação de mantê-la e conservá-la, de forma adequada, para o culto e para a função para a qual fora instituída. No entanto, provavelmente após a morte da instituidora, a conservação e o cuidado devido à obra da mercearia de S.ta Catarina teria entrado em declínio, pelo que, nos anos subsequentes, as construções entraram em degradação. Por outro lado, a substituição das pequenas instituições assistenciais por outras de maior envergadura e com melhores condições, no contexto de uma maior centralização e um maior controlo das instituições desse tipo, quer pelos reis, quer pela Igreja, tornaram a mercearia de S.ta Catarina uma instituição obsoleta, mantendo, no entanto, o seu funcionamento, mesmo que precário, com base na pensão de 5000 réis que lhe fora atribuída pela instituidora (informação que, na ausência de referências documentais, não foi possível confirmar). Mais tardiamente, cerca de 1567-1570, a planta do Funchal, de Mateus Fernandes, apresenta a localização da capela e das casas anexas. No séc. XVII, podemos referir que a notícia do estado da capela era “de ruína” (VERÍSSIMO, 2000, 114), conforme foi registado pelo visitador da paróquia de São Pedro, onde a capela e a antiga mercearia se enquadravam. Finalmente, podemos registar que a última referência documental às casas da mercearia de S.ta Catarina é de 1942, quando ocorreu a expropriação da área para a construção do parque da cidade, que recebeu o nome de Prq. de S.ta Catarina, com a indicação da demolição das casas anexas à referida capela. No entanto, é de crer que, em 1834, com as reformas liberais, quando foi decretada a extinção das ordens religiosas e a confiscação dos seus bens, as mercearias que porventura ainda estivessem em funcionamento foram encerradas, com a sua provável integração nos asilos de mendicidade criados na época, como ocorreu igualmente no Funchal em 1847, embora os estudos e a documentação disponível até começos do séc. XXI não permitam referir quaisquer dados quanto à integração de instituições herdadas do Antigo Regime, ou, sequer, no caso particular da antiga mercearia de S.ta Catarina, quanto ao facto de já ter sido suspensa em época anterior.   Fátima Freitas Gomes (atualizado a 05.02.2017)

História Económica e Social

genealogias

A genealogia é uma ciência auxiliar da história que estuda a origem, evolução e disseminação das famílias, articulando as várias gerações, os nomes, sobrenomes ou apelidos utilizados, os locais de nascimento e morte, registando casamentos e filhos, tal como, quase sempre, as funções desempenhadas e as instituições criadas, muito especialmente os morgadios e capelas, essenciais à manutenção, antigamente, de determinado estatuto social. Desde os tempos bíblicos que todas as culturas, em todos os continentes possuem genealogias, com pequenas variantes de forma, dado assentarem na constituição e desenvolvimento da família. Sendo um estudo, ou um simples elenco de parentesco, desenvolve-se no âmbito da história da família, sendo assim uma peça fundamental para a grande maioria das ciências sociais e, de forma muito especial, para a grande área da história social, mas não só. Assim, ao elencar os elementos de determinadas famílias, das suas relações e do seu património, a genealogia torna-se também importante para os estudos de economia, de direito, de história da arte e de heráldica, entre outros. A genealogia, no entanto, é também um vasto campo de dúvidas, voluntárias e involuntárias, face ao levantamento dos antepassados, sobretudo, quando se mudavam quase sistematicamente os nomes ao longo do percurso de vida, quando não se respeitavam, muitas vezes, os habituais apelidos de família, recuperando-se os apelidos dos avós e outros, e ainda devido a dificuldades de registo ortográfico e de posterior leitura, p. ex.. Acresce que, nos inícios do povoamento da Madeira, não estava instituído o hábito do apelido de família, optando-se geralmente por utilizar o nome da localidade de origem ou patronímicos, como Fernandes, filho de Fernando ou Gonçalves, filho de Gonçalo, entre outros. Mais tarde, a repetição dos mesmos nomes, quase de geração em geração, nem sempre acompanhados dos elementos “o velho” e “o novo”, gerou também inúmeras dificuldades de identificação da pessoa em questão. Os documentos fundadores da história da Madeira, salvo a Relação de Francisco Alcoforado, que é somente um texto descritivo, nomeadamente, o Descobrimento da Ilha da Madeira e Discurso da Vida e Feitos dos Capitães da Dita Ilha, do cónego Jerónimo Dias Leite (c. 1537- c. 1593), e Saudades da Terra, do doutor Gaspar Frutuoso (1522-1591), a que o texto anterior serviu de base, são também trabalhos, de certa forma, de genealogia, como o próprio título do cónego Dias Leite indica. Baseado nos arquivos da família Câmara, dos capitães-donatários do Funchal, logicamente, ignora quase por completo os capitães de Machico. Mais tarde, na Ribeira Grande da ilha de São Miguel, o doutor Gaspar Frutuoso não deixou de acrescentar às Saudades da Terra dois longos capítulos dedicados às grandes figuras que estavam, na altura, à frente dos destinos da Madeira: o governador Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) e o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), sobre os quais teceu os mais altos elogios, demonstrando a parcialidade deste género de trabalhos. O principal problema das genealogias, essenciais para a maioria dos estudos de história, é serem quase sempre um instrumento panegírico das linhas de descendências sobre as quais se debruçam, obrigando a ter para com as mesmas os maiores cuidados. Outras vezes, as genealogias foram feitas para apagar determinadas “nódoas”, como a persistência de sangue judaico, conceito hoje mais do que discutível, em muitas famílias madeirenses, mas perfeitamente compreensível no parco espaço geográfico da Ilha e na época então vivida pela sociedade católica europeia. Os judeus desempenharam um papel relevante nos inícios da economia insular, prosseguido, depois, sob a vaga capa de cristãos-novos, após a forçada conversão dos inícios do séc. XVI. A capacidade por eles demonstrada para o desenvolvimento de diversas atividades económicas cedo criou descontentamento e resistências, patentes nos pedidos insulares para o afastamento dos mesmos e consubstanciada, também, na deslocação à Madeira de quadros da Inquisição, o que veio a acontecer nos finais do século, entre 1591 e 1592, com uma visitação do Santo Ofício que executou diversas prisões e elaborou depois uma listagem dos descendentes dos cristãos-novos, que vieram a ser indexados num célebre rol dos judeus, de que existiram inúmeras cópias. Este rol destinava-se à recolha da finta, o imposto determinado pelo perdão geral concedido pelo papa Clemente VIII, em agosto de 1604, a troco de um donativo de mais de milhão e meio de cruzados que a “gente de nação” se havia proposto pagar à coroa, publicado em janeiro de 1605 (BARROS e GUERRA, 2003, 11). A reputação de cristão-novo ou a afirmação contrária passou a condicionar quase todas as genealogias insulares. Os cristãos-novos não eram somente mercadores, eram também boticários, almoxarifes e escrivães da alfândega, licenciados em leis e mercadores de grosso trato em geral, pelo que, desde muito cedo, estiveram presentes em quase todos os estratos sociais, inclusivamente e como forma de silenciar essa origem, na Igreja. Entre os descendentes, cite-se, p. ex., o licenciado Gaspar Leite (1551-1620) e o seu irmão, o cónego e cronista Jerónimo Dias Leite; os licenciados António Lopes da Fonseca (1571-1636) e Bento de Matos Coutinho (c. 1587-1651); o irmão Lourenço de Matos Coutinho (c. 1590-1654); os médicos Jorge de Castro e Luís Dias Guterres; o mercador e intérprete dos navios estrangeiros, e poeta, Manuel Tomás (1585-1665), tal como o seu sócio Mateus da Gama (1624-1683), contratador do estanco do tabaco, e o pai deste último, João Rodrigues Tavira (fal. 1649), administrador e agente, no Funchal, da Companhia Geral do Comércio do Brasil. Foi, aliás, pela intervenção deste grupo de cristãos-novos que se expandiram as redes comerciais atlânticas, numa triangulação estabelecida entre a Madeira, Angola e o Brasil, depois ampliada, nos meados do séc. XVII, se não o estava já antes, a Amesterdão e às Antilhas, pelo menos. Nesse quadro emergiu o cónego António Lopes de Andrada (1640-1704), representante do cabido da sé para inúmeros negócios em Amesterdão e o irmão Cap. Gaspar de Andrada, filhos do almoxarife Diogo Lopes de Andrada e netos do célebre boticário João Mendes Pereira (c. 1570-c. 1642), para além de muitos outros. A má reputação e conotação associada a ter ascendência cristã-nova atravessou todo o séc. XVII e ainda o XVIII, só perdendo importância, progressivamente, a partir da lei de 2 de maio de 1768, elaborada pelo gabinete pombalino, que eliminou essa distinção. Dessa verdadeira contenda social resultou, e.g., que o original de Saudades da Terra tenha sido recolhido no Colégio dos Jesuítas de Ponta Delgada, segundo registou o P.e Sylvio Mondanio na sua Crónica dos PP. Jesuítas de Portugal, pois arrancavam-lhe folhas quando as referências não convinham a determinados elementos; do mesmo foi acusado, depois, o próprio genealogista Henrique Henriques de Noronha, que abordaremos em seguida. A fama atingia, assim, inúmeras famílias madeirenses, nomeadamente os Andrada, Araújo, Dias, Henriques de Noronha ou os Ornelas e Vasconcelos, daí ser nessas famílias que apareceram, no século seguinte, os principais genealogistas madeirenses. O marquês de Pombal ainda tentou aproveitar a situação, em carta de lei de maio de 1773, acusando os padres da Companhia de serem os autores da “funesta maquinação” que ocasionou a “sediciosa distinção de cristãos-novos e cristãos-velhos” (Id., Ibid., 232). Mas, se consultarmos muitas das genealogias, inclusivamente dos meados do séc. XX e mesmo nos dias de hoje, a distinção está ainda muito presente. Com a emergência do barroco, a partir dos inícios do séc.XVII, o culto das genealogias estendeu-se também à Igreja, como prova a nova voga das árvores de Jessé, em homenagem às tribos de Israel ascendentes da Virgem Maria e de Jesus, de que um dos exemplares, dos meados dessa centúria, subsiste no convento de Santa Clara do Funchal. Conhecem-se outros, em concreto, no retábulo da antiga capela de Santa Isabel, hoje remontado na igreja do Sagrado Coração de Jesus e na tela do camarim do retábulo da matriz de Machico. As representações destas árvores remontam ao românico e o nome de Jessé, pai de David, já aparece citado no Antigo Testamento, depois incorporado na Bíblia, sendo referido pelo profeta Isaías. Inicialmente simples, com quatro a seis figuras, com o advento do protobarroco tornaram-se mais densas, multiplicando-se a presença dos ancestrais, assumindo, inclusivamente os elementos heráldicos das genealogias góticas e renascentistas iluminadas, numa verdadeira colagem entre o sagrado e o profano, numa apropriação pela iconografia sagrada da linguagem então assumida pela genealogia e pela heráldica. Os trabalhos sobre genealogia interessaram, assim, inúmeros elementos da Igreja, como aconteceu entre os madeirenses, pois alguns prelados são referenciados no Funchal como tendo-se dedicado a esse tipo de trabalhos. O bispo D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), de quem se diz ter sido o “prelado mais amante da nobreza” que veio à Madeira (ARM, Arquivo do Paço Episcopal..., doc. 273, Memorias sobre..., fl. 92v.), dedicou-se a estudos genealógicos e terá deixado algumas obras inéditas, enumeradas na Bibliotheca Lusitana, mas de que desconhecemos o paradeiro e se eram relacionadas com as famílias madeirenses, embora pensemos que não. Este prelado chegou a emitir opiniões muito pouco abonatórias sobre o meio social local e, como ministro e ex-presidente do Tribunal do Santo Ofício, em carta de 11 de novembro de 1707 dirigida ao seu superior em Lisboa, referiu a sociedade madeirense nos seguintes termos: “A assistência de dez anos e o trabalho de sofrer esta gente, me tem dado o conhecimento do seu orgulho e dos seus atrevimentos. Saiba vossa senhoria, que não estou entre gente, senão em um bosque de feras sem nenhum conhecimento, nem obediência da razão, levados somente de suas paixões, como brutos sem temor de Deus, nem da honra, nem previsão de futuros” (ANTT, Inquisição de Lisboa, liv. 922, fls. 264-265v.). Os meados do séc. XVII e os inícios do XVIII marcam um novo interesse pelos trabalhos genealógicos, ainda que não tivessem especialmente esmorecido, mas então dotados de um outro sentido, mais institucional e nacional, se tal se pode escrever. A época foi marcada, depois, a nível nacional e internacional, pela instituição das academias, em Portugal, principalmente pela da história. A Academia Real da História Portuguesa foi criada por D. João V, por decreto de 8 de dezembro de 1720, recebendo o encargo de compor a “história eclesiástica destes reinos e depois tudo o que pertencer à história deles e de suas conquistas”, como se lê no decreto (Collecçam dos Documentos..., 1721). Ao mesmo tempo, no seu seio e através de D. António Caetano de Sousa (1674-1759), foi sendo elaborada a Historia Genealogica da Casa Real Portugueza. Tendo começado pela recolha de dados para uma história eclesiástica de Portugal, face à morosidade do processo em relação à expansão portuguesa, em 1725, comunicou aos membros da academia que tinha passado a ocupar-se, essencialmente, da genealogia da casa real portuguesa, vindo a obra a ser publicada em 19 volumes, entre 1735 e 1749, juntamente com provas e índices. Logo na altura da fundação, foi intenção real e dos seus colaboradores alargar os trabalhos a outras áreas, procedendo ao levantamento e publicação das crónicas dos antigos reis e ao desenvolvimento das ciências auxiliares da história, como a numismática e esfragística. Salvaguardaram-se assim importantes códices, papéis avulsos, inscrições e outros achados arqueológicos, especialmente, com base no alvará de 14 de agosto de 1721. Por este diploma, D. João V determinava a defesa do património cultural, a fim de impedir perdas, que eram “prejuízo tão sensível e tão danoso à reputação e glória da antiga Lusitânia, cujo domínio e soberania foi Deus servido dar-me” (Id., Ibid.). Não se podia assim destruir monumentos, estátuas e mármores, nem estragar moedas e medalhas, ficando as câmaras e vilas do país responsáveis “em conservar e guardar todas as antiguidades sobreditas, já descobertas ou que venham a descobrir-se nos terrenos do seu distrito”, estendendo estas ações à investigação a nível regional, de modo a fazer-se da história o espelho da grandeza do reino (Id., Ibid.). Neste sentido, escreveu o presidente da Academia, o conde de Vilar Maior, Fernando Teles da Silva (1662-1731), à Câmara do Funchal, a 19 de maio de 1722, transmitindo a ordem real para, dentro da brevidade possível, dado dever possuir a Câmara interessantes documentos em arquivo, ser organizada uma “história eclesiástica e secular deste reino e suas conquistas” (ARM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, cx. 2, doc. 319). Saliente-se, mais uma vez, a delimitação de poderes, com a Academia a solicitar a elaboração de uma história eclesiástica à Câmara e não à diocese, ou ao cabido da sé do Funchal. Enviou-se então uma memória para a organização do trabalho, voltando-se a referir que o assunto era muito “do serviço e agrado de Sua Majestade, que Deus guarde” (Id., Ibid.). A Câmara delegou o trabalho a Henrique Henriques de Noronha (1667-1730), que já teria entrado para a Academia como sócio correspondente e que viria a elaborar as Memórias Seculares e Ecclesiásticas para a Composição da Historia da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, com data de 1722, atestando no rosto: “Distribuídas na forma do sistema da Academia Real da História Portuguesa por [....] Académico Provincial” (NORONHA, 1996): trata-se de um estudo ainda hoje de consulta obrigatória para quem trabalhar nessa área. Tal como acontecera em Lisboa com D. António Caetano de Sousa, os trabalhos na Madeira, organizados por Henrique Henriques de Noronha, eram essencialmente genealógicos, conhecendo-se mais algumas das suas produções, como o Nobiliario Genealogico das Famillias que passaram a viver à Ilha da Madeira, datado de 1700, mas com informações até ao ano de falecimento do autor e inclusivamente posteriores, acrescentadas pelos possuidores das cópias seguintes, Horóscopo Genealógico: Árvore da Casa de Henriques, Senhor das Alcáçovas em Portugal, datado de 1710 e Livro da Família Freyes de Andrada, Non plus ultra da Nobreza. Fidalgos da Ilha da Madeira, de 1717, variante dos trabalhos anteriores. Todas estas obras permanecem inéditas, salvo o Nobiliario, que foi editado no Brasil, nos finais dos anos 40 do séc. XX e as Memórias Seculares e Eclesiásticas, nos finais de 90 da mesma centúria. A divulgação dos trabalhos de Henrique Henriques de Noronha foi enorme, conhecendo várias versões, como a do Nobiliário, publicado no Brasil, em 1948, que seguiu o exemplar existente na Biblioteca Municipal do Funchal (BMF). Também há uma versão dessa obra na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, tal como existe aí o Livro de Arvores das Familias da Ilha da Madeira, “tiradas fielmente dos nobiliários que escreveu Henrique Henriques de Noronha”, datado de 1764 (BNP, res., Livro de Arvores..., 1764, f. I). Para além de outros escritos de Noronha, a BNP possui ainda uma outra versão das Memorias Seculares e Ecclesiásticas, talvez mais fiável do que a editada em 1996, que seguiu o exemplar da BMF, copiado em 1925-26, por João José Maria Rodrigues de Oliveira. A família de Henrique Henriques de Noronha é bem o espelho desta época e da necessidade dos trabalhos genealógicos para cimentar e justificar arranjos familiares e, acrescente-se, consequentes concentrações patrimoniais. Filho de Pedro Bettencourt Henriques (1632-1687), segundo descendente de António Correia Henriques (1601-1670) que, por falecimento do herdeiro, sucedera na casa dos seus avós e de D. Maria de Meneses (1632-1699), irmã da sua cunhada e filha de António Correia Henriques, seu tio, era o terceiro filho do casamento, que registou mais sete filhos e cinco filhas. Henrique Henriques estudou cânones na Universidade de Coimbra, entre 1682 e 1684, o que lhe abriu caminho para uma formação clássica e religiosa, patente nas suas obras. Casou a 26 de junho de 1692, na sé do Funchal, com sua prima D. Francisca de Vasconcelos, da qual teve uma filha, D. Antónia Joana Francisca Henriques de Noronha (1693-1746), que também veio a casar com um primo, António Correia Bettencourt Henriques (1690-1763). Figura de destaque da sociedade madeirense da época, membro e mordomo de várias confrarias, foi eleito provedor da misericórdia do Funchal, função que desempenhou entre 1706 e 1707, e foi ainda administrador do recolhimento do Carmo, cujo morgadio herdara pelo falecimento do seu tio Inácio Bettencourt da Câmara, tendo sido sepultado na capela-mor daquela igreja, no túmulo dos Brandão, fundadores daquele recolhimento (Igreja e recolhimento do Carmo). Todos os restantes filhos seguiram a carreira religiosa: António Correia Bettencourt (1664-1725), o segundo, foi um célebre deão da sé do Funchal; Fr. Pedro de Noronha (1670-?), foi religioso de São Jerónimo e depois reitor do colégio de Coimbra; Fr. Francisco de Bettencourt (1671-?), religioso da mesma ordem, em Belém; Gaspar de Bettencourt (gémeo do anterior), que professou na Companhia de Jesus, mudando o nome para Leão Henriques, em homenagem ao seu avô, foi principal dos Jesuítas em Portugal nos finais do séc. XVI (c. 1520-1589); Lucas de Bettencourt (c. 1673-1704), que professou na ordem de S. Francisco, mudando o nome para Fr. Henrique dos Serafins, foi aluno da Universidade de Coimbra, em teologia, entre 1728 e 1729, mas surge referido como padre religioso jerónimo, o que não confere com os dados fornecidos pelo irmão Henrique Henriques de Noronha, e depois pregador do convento do Funchal; e Tomás de Bettencourt Henriques (1675-c. 1720), o mais novo, mas que também chegou a cónego da sé do Funchal e tesoureiro-mor do cabido. Ao longo do séc. XVIII, o lugar de tesoureiro-mor da Sé do Funchal, esteve quase sempre ocupado por membros desta família, pois, em 1749, foi provido como mestre-escola da sé o cónego Francisco Cândido Correia Henriques que, em 1758, foi igualmente provido como tesoureiro-mor. Houve ainda as seguintes filhas: D. Mariana de Meneses (1668-1759), a mais velha, que casou com um dos netos do Ten.-Gen. Inácio de Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general), Pedro Júlio da Câmara Leme (1678-1742), irmão de D. Isabel de Castelo Branco, que tinha contraído matrimónio com o irmão mais velho dos Henriques de Noronha; e D. Maria, D. Teresa, D. Antónia, D. Filipa e D. Rosa, todas Meneses e freiras no convento de Santa Clara, posição bem sintomática da necessidade de concentração dos morgadios. Aliás, o mesmo acontecia nas casas continentais com as filhas que não era possível enquadrar na concentração dos morgadios. O governador da Madeira na época, Duarte Sodré Pereira, fidalgo e mercador, em carta de dezembro de 1711, escrita para o P.e Fr. Vicente Tavares, em Lisboa, para tratar, essencialmente, do resgate do seu irmão Fr. Francisco de Meneses, capturado por piratas argelinos, referiu: “É verdade que eu me tenho achado bem neste governo e, graças a Deus, não tenho queixa, nem da gente, nem da terra. Tenho dois filhos e cinco filhas, os mais deles ilhéus. Paguei as dívidas de meu pai e fica-me com que fazer minhas filhas freiras” (SILVA, 1992, 76). O já referido Nobiliario Genealogico das Famillias que Passaram a Viver à Ilha da Madeira, de Henrique Henriques de Noronha, foi a base de praticamente todas as genealogias seguintes, embora não se encontre isento de críticas, muitas delas hoje fundamentadas. Noronha encontrava-se muito bem informado, possuindo, inclusivamente na sua biblioteca, cópias dos principais trabalhos sobre a história da Madeira e mesmo outros, como o Nobiliário de Segredos Genealógicos, atribuído a Manuel de Carvalho e Ataíde (c. 1676-1720), uma obra que anotou diligentemente. Mas verifica-se que acabou por utilizar apenas o que lhe convinha. Foi assim acusado de ocultar, p. ex., a origem de um dos seus ascendentes, João Afonso, que se fixara na Madeira por volta de 1466, casado com Inês Lopes e que aponta como sendo João Afonso Correia, “dos primeiros e principais povoadores que passaram a viver nesta ilha no seu descobrimento; e entre os companheiros nobres de João Gonçalves Zarco” (NORONHA, 1948, 151-152), tendo sido tronco dos Correias e depois dos Torre Bela. Ora se João Afonso se fixou na Madeira em 1466, ainda poderá ter conhecido Zarco, falecido por volta de 1471, mas não foi, por certo, um dos seus companheiros de 1420. Uma carta divulgada pelo investigador Jorge Guerra, enviada pelo vigário da Fajã da Ovelha, Manuel Sulpício Pimentel da Area, natural do Funchal, a seu irmão, António Xavier Pimentel, é particularmente demolidora dos descendentes dos Correia de Câmara de Lobos. Em causa estava a nomeação de um bisneto de Henrique Henriques de Noronha, António João Correia Brandão Henriques e a eleição, provavelmente fraudulenta, em que este havia sido preferido, entre outros nomes, para a mesa da misericórdia do Funchal. O vigário da Fajã da Ovelha, que deveria ter queixas antigas dos Henriques, acusou-os então de serem descendentes de Inês Lopes, logo, de serem todos “tidos e havidos por cristãos-novos”, para além de não poupar o genealogista, que era também “descendente de uma negra” (BARROS e GUERRA, 2003, 218-219). Henrique Henriques de Noronha “para ofuscar as notas que padecia no sangue e na qualidade, destruiu e aniquilou com água-forte dois livros, um de casados, outro de batizados da freguesia da Sé”, para depois “fingir justificações e brasões perfumando-os com fumos de tabaco para lhes dar cor de antiguidade”, que introduziu “nos cartórios desta cidade, para ao depois tirar por certidão, enobrecendo desta sorte e falsamente aos seus avoengos” (Id., Ibid., 218-219). Jorge Guerra confirmou, efetivamente, as dificuldades dos citados livros de casamentos e batizados e que tinham sido arrancadas as folhas correspondentes às cartas de vizinhança de João Afonso, mercador e ainda o pormenor, mais estranho, de existirem cópias das mesmas nos arquivos da família Torre Bela, transladados pelo punho de Henrique Henriques de Noronha. Um desses documentos menciona um agravo efetuado pelo mercador João Afonso, em janeiro de 1477, afirmando-se “que havia dez anos, pouco mais ou menos, que ele vivia na dita ilha” (ARM, Arquivos particulares, Família Torre Bela), o que invalida a afirmação de Noronha sobre o seu remoto avô ter partido para a Madeira com Zarco, tal como a dele ter sido servidor da casa do infante D. Henrique. Por essas e outras razões, o investigador Dr. Ernesto Gonçalves (1898-1982), dentro da sua excecional e habitual polidez, haveria de o rotular de “rigoroso zelador da boa fama da nobreza instalada” (VAZ, 1964, 223). Idêntica situação se coloca com a família dos Ornelas de Vasconcelos, justificando dois volumes de genealogias do P.e José Francisco de Carvalhal Esmeraldo e Câmara (1728-1798), filho do 8.º morgado do Caniço, Aires de Ornelas e Vasconcelos (1677-1736) e de Cecília de Aguiar França: Noticia Breve mas Verdadeira das Illmas. Familias dos Ornellas, Cabrais, Carvalhaes e Esmeraldos, e Outras a Ellas Unidas, de 1766, onde o autor se intitula comissário do Santo Ofício. Mais uma vez, abundam os equívocos, logo no título dos volumes das genealogias, pois o clérigo em causa foi sendo preterido na nomeação como notário do Santo Ofício e só o foi após a abolição dos róis do finto, outorgada em 1768, tendo tido despacho favorável a 26 de setembro de 1769. O padre genealogista era filho de Aires de Ornelas e Vasconcelos (1677-1736), neto de Agostinho de Ornelas de Moura ou Agostinho de Ornelas de Vasconcelos (1650-1718) e de D. Beatriz de Mariz, filha do mercador Gaspar Fernandes Gondim, fundador da capela de N.ª S.ª dos Anjos da sé do Funchal e bisneto de Aires de Ornelas de Vasconcelos (1620-1689) e de D. Maria de Sande, com quem casara na Baía, filha do célebre Francisco Fernandes da Ilha ou Francisco Fernandes de Oucim (1591-1664). O Cap. Francisco Fernandes da Ilha, cedo saiu da Madeira. Esteve em Angola e fixou-se depois na Baía. Considerável produtor de açúcar, granjeou avultada fortuna, sendo cavaleiro da Ordem Militar de S. Tiago, dado ter combatido os holandeses em Angola e na Baía; foi também provedor da misericórdia da Baía, em 1656, ainda existindo o seu retrato a óleo e a corpo inteiro na sala de reuniões da confraria. Era filho de Simão Fernandes, fanqueiro, que casara em 1584, com Maria Dias, sendo todas as testemunhas do casamento “gente de nação” e então mercadores do Funchal. Os descendentes vieram a trocar as profissões do avô, passando fanqueiro a sirgueiro e a calceteiro, mas a marca de cristão-novo, numa sociedade limitada como a da Madeira, não era fácil de apagar. E isto para não falar já de outras linhas, como a dos Ornelas Rolim de Moura, pois eram descendentes do mercador João de Caus (m. c. 1622), de origem francesa, que chegou a ser cônsul de França no Funchal e casara com D. Maria de Moura, filha de Mem de Ornelas de Vasconcelos e de D. Antónia de Vasconcelos. Um dos filhos, João de Moura Rolim (m. 1640), mandou levantar a capela do Santíssimo da igreja matriz de São Pedro do Funchal, mas os livros de óbitos da Sé encontram-se cheios de acusações de que, para além de outros, “todos os Mouras Rolins eram cristãos-novos” (BARROS e GUERRA, 2003, 216-217). A partir dos finais do séc. XVIII, as genealogias entram um pouco em declínio, remetendo-se para uma ciência fechada sobre si própria, algo hermética e pouco acessível, muitas vezes reduzida a “árvores de costados” como as Genealogias Madeirenses de António Bettencourt Perestrelo de Noronha. Ao longo do séc. XIX, estes trabalhos conheceram, inclusivamente, reserva por parte de alguns historiadores, dada a repetição exaustiva e não referenciada dos sujeitos, dos casamentos e da descendência, não sendo fácil encontrar sequências, pessoas, funções ou outros. Pontualmente, no entanto, encontram-se referências a trabalhos mais desenvolvidos neste âmbito, como os colecionados pelo Dr. João Pedro de Freitas Drumond (1760-1825), conhecido como “Dr. Piolho”, dada a sua fraca estatura, “constitucional exaltadíssimo, advogado distinto e homem bastante erudito” (SILVA e MENESES, I, 1998, 381), mas de que pouco chegou até nós. Porém, ao longo do séc. XIX, continuaram os trabalhos genealógicos, devendo-se a Felisberto Bettencourt de Miranda (1816-1889), amanuense da Câmara do Funchal, o manuscrito Apontamentos para a Genealogia de Diversas Famílias da Madeira, Coleccionados de 1887 a 1888, hoje na BMF, por ventura o trabalho mais completo. Entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, os trabalhos de genealogia anteriores conheceram, inclusivamente, alguma rejeição por parte de determinados investigadores, que os acusavam de ser obras fascinadas “por vãs e ingénuas ficções com que se ornamentam origens familiares”, como referiu o Dr. Ernesto Gonçalves (VAZ, 1964, 9). No entanto, nos meados do séc. XX, este género de investigação disparou exponencialmente com a constituição do Arquivo Regional da Madeira e o trabalho do seu primeiro diretor, João Cabral do Nascimento (1897-1978), em especial, através da revista Arquivo Histórico da Madeira, cujo primeiro número saiu em 1931, no próprio ano da fundação da instituição, tendo aquele diretor contado com a colaboração do conservador Álvaro Manso de Sousa (1896-1953). Nos anos seguintes, as genealogias contariam ainda com o apoio de Luiz Peter Clode (1904-1990), um dos elementos fundadores da Sociedade de Concertos da Madeira, também através de uma revista, Das Artes e Da História da Madeira, cujo primeiro número saiu como suplemento semanal de O Jornal, nos anos de 1948-1949, passando depois a folheto colecionável e durando até 1971. A época do Estado Novo conheceu um alargado interesse por este tipo de trabalhos, destacando-se, entre outros e para além dos autores citados, os trabalhos de Eugénio de Andrea da Cunha e Freitas (1912-2000), que, embora não residente na Madeira, nutria pela Ilha uma muito especial admiração e interesse. O autor mais produtivo foi, sem dúvida, Luiz Peter Clode, que, progressivamente, coligiu e editou os seus trabalhos, inicialmente saídos na citada revista, entre eles Registo Genealógico de Famílias que passaram à Madeira, Andradas do Arco, Cabrais e Pontes de Gouveia, Genealogia da Família Clode, Genealogia da Família Andrade ou Andrada, Genealogia da Família Drummond e Descendência de D. Gonçalo Afonso D’Avis Trastâmara Fernandes, O Máscara de Ferro Madeirense. Estes trabalhos, no entanto, repetem-se exaustivamente e nem sempre tiveram boa aceitação por parte de alguns genealogistas, e, salvo o colossal trabalho de Fernando de Meneses Vaz (1884-1954) Famílias da Madeira e Porto Santo, de que, infelizmente, só foi publicado o primeiro volume, anotado por Luiz Peter Clode e por Ernesto Gonçalves, acrescentam muito pouca novidade à investigação genealógica, embora se mantenham como obras de referência. Entre os finais do séc. XX e os inícios do XXI, continuaram a aparecer trabalhos deste âmbito, tanto sobre determinadas famílias, como os Espinoza Martel ou os Perestrelo, como alargados a determinadas áreas locais, e.g. os trabalhos de Luís Francisco de Sousa Melo em relação a Machico e de Lourenço de Freitas em relação a Gaula. A partir dos finais do séc. XX, as genealogias democratizaram-se graças aos meios tecnológicos e à informática, ganhando outro tipo de base de apoio à investigação, e também se personalizaram e comercializaram, representando outra forma de ocupação e de lazer. No entanto, se, por um lado, disparou consideravelmente a divulgação das sequências genealógicas, por outro, também baixou de forma exponencial a fiabilidade geral dos trabalhos disponibilizados, muitas vezes sem indicações de fontes e com o recurso a dados pouco criteriosos.   Rui Carita (atualizado a 01.02.2017)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

gárgulas

Designam-se por gárgulas as goteiras ou desaguadouros, que, na divisão e limites das águas dos telhados, se destinavam a escoar as águas pluviais para certa distância da parede. Eram elementos essenciais nas construções arquitetónicas dos sécs. XVI e XVII, quando as águas corriam em caleiras e no interior das empenas. Com a vulgarização da construção de cornijas e de beirais de telhas de várias ordens, o seu interesse diminuiu. Na Idade Média, eram esculpidas com figuras monstruosas, humanas ou animalescas, que celebrizaram algumas catedrais europeias. Subsistem quatro exemplares desse tipo de gárgulas, de grandes dimensões, na antiga alfândega do Funchal; a maioria das restantes, neste e em outros edifícios madeirenses, apresenta a forma de canhão. Palavras-chave: arquitetura; escultura; hidráulica. Na arquitetura, designam-se por gárgulas as goteiras ou desaguadouros que, na divisão e limites das águas dos telhados, se destinavam a escoar as águas pluviais para certa distância da parede. Eram elementos essenciais nas construções dos sécs. XVI e XVII, quando as águas corriam em caleiras e no interior das empenas (Arquitetura). Com a vulgarização da construção de cornijas e de beirais de telhas de várias ordens, o seu interesse diminuiu e, ainda mais, a partir dos meados do séc. XIX, com a construção dos algerozes no interior das paredes. Ao longo deste último século, foi costume adaptar, inclusivamente a algumas gárgulas, ainda ligadas a escoamento das águas pluviais, algerozes em folha-de-flandres pintados, muitos dos quais se mantiveram, que se destinavam essencialmente a proteger os transeuntes. Na Idade Média eram esculpidas com figuras monstruosas, humanas ou animalescas, comuns em algumas catedrais e outros edifícios, acreditando-se que a sua colocação lembrava que o demónio nunca dormia, exigindo a vigilância contínua das pessoas, mesmo nos lugares sagrados. Dado serem colocadas em locais pouco visíveis, assumiam aspetos inusitados e mesmo pornográficos, tal como ocorria, igualmente, nos cadeirais, no interior das grandes catedrais europeias, entre os finais da Idade Média e o Renascimento. Na Madeira, contudo, não esses exemplares subsistiram . As gárgulas que subsistiram na Madeira, essencialmente, apresentam a forma de um canhão, mais ou menos elaborado, como acontece na Sé do Funchal (Sé do Funchal), no baluarte joanino da fortaleza de S. Lourenço (Palácio e fortaleza de São Lourenço), na igreja e colégio do Funchal, entre outros. Na fachada norte da antiga alfândega do Funchal subsistem, no entanto, quatro fantásticas e grandes gárgulas profusamente esculpidas, com dois homens que levam ao ombro um canhão, um bobo e um galo (Alfândega Nova). Tendo a equipa de mestres pedreiros que trabalhou na alfândega estado antes ativa na Sé do Funchal, é muito provável que aí tenham existido realizações idênticas, entretanto apeadas, nas várias campanhas de obras posteriores, pois parece só ali ter ficado uma gárgula do período de obras inicial, do começo do séc. XVI, na fachada da R. do Aljube, na divisão das águas da torre e da nave lateral e em forma de canhão com tubo helicoidal. Subsistem em vários edifícios civis e religiosos gárgulas em forma de canhão, tal como em algumas das capelas mais antigas dispersas pela ilha da Madeira e do Porto Santo, embora não com a pujança decorativa das gárgulas antropomórficas e zoomórficas da alfândega manuelina do Funchal. Na igreja matriz da Piedade do Porto Santo ficou uma rara gárgula com forma de cabeça humana e, especialmente pela parte antiga da cidade do Funchal, ficaram inúmeras outras com forma de canhão, de secção redonda, quadrada, sextavada, etc., algumas das quais, inclusivamente, fora do local e prédio a que teriam pertencido.   Rui Carita (atualizado a 01.02.2017)

Arquitetura Património

festividades

A Madeira é um lugar em que se articulam bem as festividades tradicionais, aquelas que o povo celebra há centenas de anos, com as mais modernas, as que se ligam ao fluxo turístico, que busca coisas novas, diferentes, atrativas. As festividades começam, na Madeira, com a festa do panelo, um festival gastronómico que tem lugar no Seixal, nos finais de janeiro. Segue-se, por alturas de fevereiro, a festa dos compadres que começa dois domingos antes do Carnaval. Dura cerca de duas semanas e é essencialmente uma festa humorística em que se brinca com as mulheres (as comadres) e com os homens (os compadres), terminando com um julgamento, em que normalmente vence a comadre. Para os madeirenses, é uma oportunidade de anteciparem o calendário oficial e começarem os folguedos e as brincadeiras da quadra, a que os gigantones dão um toque burlesco. Há música tocada por instrumentos tradicionais, cantigas e danças populares, bailes, cortejos típicos com trajes regionais e um concorrido arraial onde se comem espetadas, bolos do caco, sonhos, etc.. O Carnaval do Funchal insere-se na antiga tradição de se celebrarem na folia os últimos dias antes do começo da Quaresma. É uma época em que se multiplicam os cortejos alegóricos e os desfiles de máscaras, aproveitados muitas vezes para se exprimirem críticas à atualidade ou a personalidades conhecidas. O cortejo principal é no sábado à noite, mas o desfile de terça-feira, o “Carnaval Trapalhão”, é um momento sempre bem vivido; como o nome indica, as máscaras são mais “trapalhonas” o que parece agradar a quem participa no cortejo e a quem a ele assiste. Em março, os eventos em torno da Semana da Árvore e da Floresta, celebrados maioritariamente no Parque Ecológico do Funchal, proporcionam um contacto e conhecimento próximos do meio ambiente, assim como aprendizagem de práticas para melhor o defender e preservar. Também durante o mês de março decorre, no Faial, a festa da anona. Como se revelará mais adiante outros produtos da terra e do mar justificam a realização de festas populares, um pouco por toda a parte. O Festival Literário da Madeira realiza-se no início da primavera. É essencialmente um conjunto de debates que têm lugar no Teatro Municipal Baltazar Dias, e reúne alguns dos melhores escritores de origem madeirense (e não só) com críticos e estudiosos de Literatura. Não se confina a um certame para eruditos, pois envolve a população em geral. Uma homenagem pública a um vulto relevante do panorama literário madeirense é sistematicamente incluída no programa. Em abril, realiza-se a festa da cana do açúcar na Ponta do Sol. Esta festa recorda que o açúcar foi uma das maiores riquezas da Ilha desde os primórdios do povoamento: o alfenim (massa de açúcar e óleo de amêndoa doce) era presente de elevado valor e chegou a ser moeda de troca para a aquisição de obras de arte. Na feira da cana do açúcar, é possível aprender como se recolhe e trabalha a matéria-prima, como se fabrica a aguardente, o melaço e os rebuçados, para além de se poder visitar exposições e participar em atividades de vária ordem. Além das festas típicas da gente madeirense e que, com mais ou menos alterações, se têm mantido ao longo dos tempos, outras há que, embora envolvam e entusiasmem as populações locais, nasceram como consequência da força de atração turística. Esta é uma realidade a que os madeirenses se foram habituando (há registos muito antigos de visitantes ilustres nestas paragens), e ocorreu de forma fulgurante a partir da segunda metade do séc. XX. Destas festividades, o lugar de honra vai para a famosa Festa da Flor. Na Madeira florescem flores raras e variadas, como as orquídeas, as estrelícias e os antúrios, as poinsétias, os lilases, os jasmins, os hibiscos, as hortênsias e os agapantos; e há as árvores carregadas de flores: os jacarandás, as mimosas, as árvores de fogo. Tudo isto se celebra na Festa da Flor que todos os anos, em abril, enche as ruas do Funchal e possibilita o contacto direto com tão grande e diversificada beleza. Nesta ocasião, as ruas encontram-se engalanadas, tal como o chão, os arcos e as paredes das casas; podem ver-se exposições temáticas; sucessivos cortejos; carros enfeitados; e trajes alegóricos. Do programa anual consta sempre a construção do “Muro da Esperança” pelas crianças do Funchal. Quase em simultâneo com a Festa da Flor realiza-se o Festival dos Jardins do Funchal, concurso de jardineiros encartados, mas também de particulares, comerciantes e artistas amantes de flores, que apresentam minijardins para serem apreciados e classificados pela população. No final, são atribuídos prémios às melhores e mais originais produções. As paisagens naturais da Ilha favorecem propostas de contacto com a natureza, através de caminhadas que se organizam ao longo das levadas e das veredas das montanhas. Assim, em abril, tem ainda lugar uma prova de trilho pedestre que atravessa toda a Ilha, proporcionando aos participantes uma passagem por paisagens e ambientes muitos diversos até no que respeita às condições atmosféricas. Em maio, realiza-se nova prova pedestre, com percursos mais curtos e exigindo competências de orientação. O apóstolo S. Tiago Menor é o padroeiro principal da cidade do Funchal, que o celebra no dia 1.º de maio e a cada ano lhe agradece o tê-la salvo da peste que, no séc. XVI, causou grande mortandade entre a população. As festas, que duram vários dias de música e folguedo, integram uma procissão com a imagem do santo e muitos fiéis enfeitados com cordões feitos de flores amarelas, os “maios”. Neste mês de maio, há também várias festas agrícolas: a festa da cebola, no Caniço, com cortejo de tratores e carroças enfeitadas e leilões do produto em destaque; e a festa do limão (na paróquia da Ilha), marcada pela mostra de doçaria e outros pratos feitos a partir do referido citrino, bem como pelo célebre despique de quadras populares criadas a partir dos mais variados temas e cantadas à desgarrada nos ritmos típicos da região. A Ribeira Brava assiste uma vez por ano, ainda em maio, ao encontro das bandas de música, um acontecimento cultural que permite defender e valorizar as antigas tradições musicais da Ilha e que se transforma num animado despique em que cada um quer mostrar o seu melhor, para alegria dos executantes e orgulho dos que, às vezes de longe, os vêm apoiar. É também nesta vila que se realiza, por ocasião das festas de S. Pedro, uma exibição de fogo de artifício. Acrescenta-se a esta lista de eventos a exposição de automóveis, motos e scooters antigos que se organiza em maio ao longo da estrada Monumental. Apresentam-se máquinas extraordinárias e bem tratadas, que cruzavam as estradas da Ilha nos tempos passados, quando a maioria das pessoas se deslocava a pé ou, quando muito, em carros puxados a bois. Também em junho, é possível ver muitas dessas máquinas afoitarem-se pelas estradas da Ilha numa corrida sui generis de curtas etapas, o chamado Classic Rally. O mês de maio termina com as festas da Sé, que por vezes se prolongam até ao início de junho. São festas de rua mais do que celebrações religiosas, que se realizam à volta da Sé mais do que no seu interior. De toda a cidade, “desaguam” na baixa centenas de pessoas que enchem os bares, que dançam na rua, que provam carne de vinha de alhos, sarapatel, bolo do caco ou bolo de mel, que sugam rebuçados de funcho, que bebericam malvasia e grogue, poncha e jaqué, quando não um dos licores feitos a partir do maracujá, do araçá ou da goiaba, etc. As ruas estão enfeitadas com flores e com luzes que, quer de dia quer de noite, transformam aquele espaço num cenário de festa que os grupos musicais e os ranchos folclóricos se encarregam de animar num rodopio contagiante. Em junho, realiza-se a festa da cereja, no Jardim da Serra, à qual se associa a ginjinha. Ainda neste mês, mas na Câmara de Lobos, terra de pescadores que entusiasmou Churchill pelo seu pitoresco, bem junto ao mar, festeja-se um produto deste rico manancial madeirense: o peixe-espada preto. Esta festa constitui simultaneamente um tributo a quantos labutam na pesca e, assim, aumentam a fama do arquipélago. No Funchal, os santos populares também são celebrados com pirotecnia. As celebrações de S.to António, S. João e S. Pedro animam as noites e os dias da Madeira durante o mês de junho, um dos mais animados do ano. Os bailinhos, as barracas de vinhos e petiscos, as exibições de música folclórica pelas ruas, largos e jardins e ainda o fogo de artifício que ilumina as noites do Festival do Atlântico envolvem quantos por ali se encontram. Em julho, na Madalena do Mar, faz-se a festa da banana; a abundante produção local explica que neste lugar se organize há muito tempo tal evento, famoso em toda a Ilha. Também em julho festeja-se outro produto, outra vez do mar e não da terra: as lapas, no Paul do Mar, servidas na grelha, temperadas com manteiga, alho e limão. Ainda neste mês tem lugar em vários pontos do mar da Madeira o campeonato de pesca grossa; entre as diversas provas do campeonato, conta-se a pesca do espadim azul, que ocorre simultaneamente em vários locais do Oceano Atlântico. É igualmente em julho que se realiza a Semana do Mar, em Porto Moniz, na costa Norte, com atividades e jogos variados, passeios de barco, regatas e exibições de folclore, provas desportivas, e outros acontecimentos culturais. Também em julho, vivem-se em simultâneo o festival de folclore e a festa da maçaroca. O primeiro atrai a Santana grupos folclóricos de toda a Ilha (e de Porto Santo), que se apresentam com um desfile nos seus coloridos trajes; estes variam conforme a localidade de onde são provenientes e do estatuto social que representam. O conjunto de exibições inclui, frequentemente, a de um grupo estrangeiro, vindo de um dos países que acolhe mais emigrantes madeirenses. O desafio que é feito é o de se passarem 48 horas a bailar – e há resistentes que o conseguem. A outra festa acima referida pretende apresentar o artesanato confecionado a partir das folhas do milho e da própria maçaroca, que abunda nas freguesias de Santana e São Jorge. A cidade de Machico tem festas enraizadas na cultura popular. A enseada desta urbe é considerada o local do primeiro desembarque dos Portugueses na região, em julho de 1419. A povoação de Machico é tão antiga como a do Funchal e as duas cresceram lado a lado, repartindo entre si a missão de colonizar a Ilha. Foi sede de uma das três capitanias em que o arquipélago foi dividido no tempo do infante D. Henrique (a terceira é Porto Santo), e ali se realiza o mais típico mercado medieval de toda a região. Dura uma semana e inclui diversões e entretenimentos que se considera já existirem na Idade Média: cortejos, teatros de rua, exibições de acrobatas e malabaristas, jogos pirotécnicos, entre outras atividades. Os participantes usam trajes da época e as barracas proporcionam comidas e bebidas de cariz medieval, bem como artesanato local. As ruas, à volta da igreja dos inícios do manuelino, são engalanadas com bandeiras e colgaduras. No Funchal, o festival de jazz, que se realiza ao ar livre, no parque de Santa Catarina, durante o mês de julho, congrega melómanos que se juntam para ouvir os melhores grupos nacionais e muitos estrangeiros. Também em julho, no parque de Santa Catarina, tem lugar a abertura oficial das festas de verão, com bandas e grupos instrumentais, cantores e intérpretes de várias origens. Realiza-se ainda o Festival Raízes do Atlântico, provavelmente uma das mais antigas apresentações de músicas do mundo em território nacional, que coloca frente a frente grupos tradicionais de distintos países. A romaria da Sr.ª do Monte realiza-se no dia 15 de agosto, perto do Terreiro da Luta, um dos miradouros sobre o Funchal. O motivo da romaria é a veneração de uma imagem muito antiga, alegadamente encontrada por uma pastorinha ainda nos finais do séc. XV, i.e., pouco tempo depois de iniciado o povoamento. A festa é uma das mais famosas da ilha da Madeira e atrai gente vinda de todo o mundo, designadamente das paragens por onde se encontra a diáspora madeirense, sobretudo desde que, em 1803, o bispo do Funchal colocou a cidade e a Ilha sob a proteção da Senhora. A igreja, que data do séc. XVIII e substitui a do séc. XVI, que era demasiado acanhada para tão grande devoção, é ricamente adornada e a procissão conduz multidões de fiéis por ruas engalanadas e caminhos cobertos de flores. Entre as festas citadinas destaca-se o Dia da Cidade do Funchal, instituído para celebrar as memórias daquela que é a mais antiga cidade europeia fora do continente e a sede da outrora maior Diocese do mundo inteiro. Ainda em agosto realiza-se a semana gastronómica de Machico, que junta cozinheiros de toda a Ilha, os quais apresentam os seus pratos mais emblemáticos à apreciação (e julgamento) dos muitos turistas que ali acorrem. Nova mostra gastronómica ocorre por ocasião da festa do Senhor dos Milagres, uma festa essencialmente religiosa com missa e procissão de velas. A capela do Senhor dos Milagres encontra-se na localização provável dos túmulos de Robert Machim e Anne d’Arfet, os jovens ingleses que, fugindo de quem perseguia os seus amores proibidos, ali teriam sido desembarcados no séc. XIV, i.e., antes da chegada dos Portugueses. A capela primitiva foi destruída pela força das águas no início do séc. XIX, e posteriormente reconstruída; no entanto, a imagem de Cristo é a original, uma vez que foi recuperada no mar uns dias depois por um navio americano. O facto foi considerado milagroso e a festa realiza-se em memória do dia em que a imagem foi retirada das águas. Outro núcleo temático festivo liga-se ao mar, que exerce um poderoso fascínio sobre quem vive ou visita a Madeira. Um dos eventos relacionados com este tema é a volta à Ilha de canoa, que ocorre habitualmente em agosto, e que propõe uma ida do Funchal ao Funchal, seguindo a costa. Neste mês realiza-se ainda, no Paul do Mar, uma prova de desporto radical, misto de ciclismo e mergulho. A Camacha é rica em artesanato e nela se realiza, normalmente em agosto, o Festival de Arte que, além de mostrar o que se produz na vila, em vime e giesta, constitui uma exibição de produtos tradicionais de toda a Ilha, designadamente bordados. Esta festa é acompanhada pelas atividades do rancho folclórico local. O tema “Vinho da Madeira” é celebrado nos inícios de agosto com o rally que leva esse nome e que, desde meados do séc. XX, atraiu à Ilha famosos pilotos europeus, para quem o traçado das estradas e a incerteza das condições atmosféricas constituem um verdadeiro desafio, bem como numerosos aficionados do desporto automóvel. Também nos finais de agosto, mas em Porto Santo, realiza-se a festa das vindimas que, sem o fulgor e a divulgação da do Funchal, permite celebrar um vinho diferente, generoso, produzido nas encostas quentes do sul da ilha a partir de uvas grandes, ricas em açúcar. O evento inclui manifestações culturais, provas de vinho de diversas castas e bailes populares. O Instituto do Vinho da Madeira criou o Festival do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira, em fevereiro, em ordem a divulgar estas e outras manifestações da cultura popular. Trata-se de um festival urbano, com um programa multifacetado que inclui oficinas de experimentação artesanal (tapeçaria, pintura de azulejo, etc.), manifestações culturais e propostas de divertimento. A festa do Vinho da Madeira tem lugar normalmente nos últimos dias de agosto e prolonga-se por setembro. A festa do vinho é um acontecimento de grande relevo, com programas diversificados que vão desde a participação em atividades rurais, como a vindima, a pisa da uva à volta da cidade de Câmara de Lobos e o respetivo cortejo dos vindimadores, até às visitas guiadas organizadas pelas adegas regionais, as provas de vinho das diferentes castas, propostas um pouco por toda a cidade do Funchal, e às manifestações folclóricas, espetáculos de luz e som, cortejos, bailes e petiscos tradicionais. Setembro é um mês muito fértil em celebrações populares. Neste mês celebram-se três das mais concorridas romarias da ilha da Madeira: a do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada; a de N.ª Sr.ª do Loreto, no Arco da Calheta; e a de N.ª Sr.ª da Piedade, no Caniçal. Ponta Delgada nasceu à volta de uma pequena capela do séc. XV que o fogo destruiu no início do séc. XX. A romaria é uma das mais frequentadas do norte da Ilha, por peregrinos vindos de muito longe, por vezes a pé. A festa tem lugar nos primeiros dias de setembro, mas desde meados de agosto que começam os preparativos, cobrindo-se as ruas com flores coloridas, fazendo-se os bolos tradicionais, construindo-se barracas de louro, montando-se arcos de buxo, etc. A terra enche-se de vendedores ambulantes que se preparam para expor os seus produtos regionais, nomeadamente os colares de peras passadas. As últimas horas são dedicadas a atapetar de flores e folhagens o percurso por onde há de passar no dia maior a procissão do Bom Jesus, na sua volta pela localidade. A capela do Loreto fica perto do Arco da Calheta, terra que foi rica em açúcar e onde morou Gonçalo Fernandes, grande senhor de sesmaria, muito provavelmente filho do Rei D. Afonso V, ali exilado por razões de Estado. O pequeno templo, dos inícios do séc. XVI, foi restaurado mas guarda traços manuelinos de razoável interesse. À sua volta, realiza-se todos os anos, a 8 e 9 de setembro, uma romaria muito animada e concorrida, preparada com devoção e cuidado pelos habitantes da terra, que também cobrem as ruas com dosséis floridos em honra da Mãe de Jesus, na sua invocação da Casa Santa. Quando o calendário permite, a proximidade das duas festas faz que os romeiros do Bom Jesus vão diretamente para o Loreto. O Caniçal é terra de pescadores, típica nas suas casas garridas, situada no extremo leste da Ilha. Bem perto do cabo de São Lourenço, no alto de uma escarpa elevada, fica a capela de N.ª Sr.ª da Piedade, padroeira dos homens do mar, edificada como preito de gratidão de marinheiros aflitos. A festa consta essencialmente de duas grandes procissões de barcos, uma que vai buscar a imagem da Senhora e a leva até à igreja matriz, dedicada a S. Sebastião; a outra procissão devolve-a à sua capela. As embarcações são festivamente engalanadas, destacando-se a que transporta o andor, escolhida por sorteio uns dias antes. Nos percursos a pé, no Caniçal, entre o cais e a igreja, a Virgem é acompanhada pelos fiéis, com cânticos e bandas filarmónicas. Na festa profana não faltam naturalmente os petiscos nem as bebidas tradicionais. A cidade de Vila Baleira inspira-se nos tempos antigos do povoamento para a temática das suas celebrações. De facto, foi ali que os Portugueses primeiro chegaram, em 1418, e tudo leva a crer que Cristóvão Colombo, casado com Filipa Moniz, filha do primeiro capitão donatário da ilha, Bartolomeu Perestrelo, terá vivido no Porto Santo, onde nasceu seu filho Diogo, nos finais do séc. XV. É esta presença do grande navegador de renome mundial em terras madeirenses que a cidade comemora alegremente no mês de setembro, com cortejo histórico, eventos culturais e uma reconstituição cénica da chegada de Colombo à ilha. O pero e a maçã têm as suas festas em setembro, o primeiro na Ponta do Pargo e a maçã, sob a forma de cidra, no Santo da Serra. Por toda a parte, há cortejos, degustações de produtos locais, tendas de artesanato e festa. Outra forma de contactar com a natureza é proposta pelo festival de todo-o-terreno que também se realiza em setembro, no qual pode participar qualquer pessoa que queira aprofundar a sua descoberta da Madeira. Neste conjunto de realizações, podemos ainda incluir o torneio de golfe, disputado no Santo da Serra e no Porto Santo, pelo que esta prática desportiva tem de relação estreita com os espaços naturais em que se realiza. As iniciativas incluídas no Madeira Nature Festival, tais como passeios, caminhadas, voos em parapente, experiências de vela em mar aberto, são outras tantas possibilidades de se conhecer a Madeira no mês de outubro. Na vila da Camacha, a festa da maçã ocorre igualmente em outubro, com possibilidade de se assistir ao fabrico da cidra a partir de frutos acabados de colher. Neste mês, ainda o Festival de Órgão da Madeira, que atrai organistas de todo o mundo para executarem, a solo ou acompanhados por coros locais, peças dos mais variados compositores. As peças são executadas nos órgãos de origem portuguesa, italiana e inglesa e nos muitos locais que a isso se propiciam – desde o Colégio de S. João Evangelista à igreja de S. Pedro, do convento de S.ta Clara à Sr.ª de Guadalupe. Novembro é o mês da castanha, e o Curral das Freiras e o Campanário da Ribeira Brava fazem questão de mostrar as suas especialidades com provas não só dos frutos em si, como também dos doces e licores que eles proporcionam. A Madeira tem uma sólida tradição de fotografia; as paisagens da Região inspiraram gente como os Vicentes, que as fixaram em verdadeiras obras de arte. As mostras de cinema da Madeira são por muitos consideradas uma homenagem àqueles percursores da arte da imagem. No Funchal há dois festivais de cinema: o Festival Internacional, em novembro, que apresenta no Teatro Municipal Baltazar Dias longas e curtas-metragens do mundo inteiro, dando particular relevo ao cinema independente e às produções madeirenses; e o Madeira Film Festival, em abril, que é menos divulgado mas envolve muitas outras atividades para além da simples mostra de novos filmes. Em abril tem também lugar a feira do livro que, para além da venda, tem associadas uma série de celebrações relacionadas com a leitura. Entre as festividades, o Natal tem um lugar de honra. Para o madeirense, a Festa é o Natal; é mesmo a única que é assim chamada – a “Festa” – sem precisar de mais especificações. A cidade do Funchal começa a engalanar-se logo em novembro. No campo, no entanto, perduram as velhas tradições, é por volta do dia 15 de dezembro que os preparativos têm lugar, envolvendo toda a população. Colocam-se mastros e bandeiras nas ruas, enfeitam-se as paredes das igrejas com folhagens, ornamentam-se os altares e, principalmente, começa a montar-se o presépio na igreja, repetindo hábitos de avós e bisavós. A Festa é normalmente anunciada com foguetes que convidam os fiéis para o início das “missas do parto”. A primeira é no dia 16 e, até ao dia 24, todas as madrugadas se celebra a iminente chegada do grande dia. E canta-se: “Virgem do Parto, oh Maria,/Senhora da Conceição,/Dai-nos as festas felizes,/A paz e a salvação”. Há costumes ligados a estes dias (cantos, danças, trajes, etc.), dos quais a matança do porco é, sem dúvida, um dos mais respeitados, juntando, em quase todas as freguesias, homens, mulheres e crianças numa celebração onde não falta a aguardente de uva ou de cana, nem os petiscos cozinhados no local. É também a altura de, por toda a parte, se amassar e cozer o “pão da Festa”, bem como de, em cada casa, se montar a “lapinha”, que é uma espécie de trono ao Menino Jesus, instalado em cima de uma mesa, normalmente com armações em escada de três degraus, enfeitadas com flores, ramagens, searinhas de lentilhas, trigo ou centeio, frutos coloridos, bolas e fitas, em que o Menino se representa em pé. O dia de Natal é vivido em família, demorando as celebrações populares até meados do mês de janeiro, pontuadas pelos cantos das janeiras, pelas tradições de dia de Reis (no Funchal, na Ribeira Brava, em Câmara de Lobos, entre outras localidades), pelas atividades típicas do fim da Festa: desmontar as lapinhas e “varrer os armários” (ritual que consiste em arrumar os locais onde se guardam os objetos ligados à festa de um ano para o outro), servindo estas ocasiões como novas oportunidades de folguedos e brincadeiras. Entretanto, a 28 de dezembro, realiza-se a corrida de S. Silvestre, uma das mais antigas da Europa, e, na noite do dia 31, aquele que é talvez o mais conhecido evento madeirense: a passagem do ano, festa que regularmente atrai ao Funchal largos milhares de turistas desejosos de ver o esplendoroso fogo de artifício, que ilumina toda a baía e que se derrama desde a montanha até ao mar, cobrindo a capital da Madeira com um manto de luz e de cor. No momento da passagem do ano, tocam os sinos e as sirenes dos paquetes estacionados no porto, e não são raras as famílias que lançam os seus foguetes ou acendem os fósforos coloridos na varanda ou no terraço, participando assim, à sua maneira, na grande celebração.     José Victor Adragão (atualizado a 31.01.2017)

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estufas, impostos sobre as

Era um imposto especial e privativo da Madeira, sendo uma receita da Junta Geral, usada, entre outras coisas, para a construção e a preservação das estradas. Foi instituído em 1805 e terá sido extinto em 1856 – tendo a Junta deixado de usufruir da sua receita, única fonte de financiamento que tinha para as obras públicas –, certamente devido às dificuldades por que passara a cultura da vinha, com o aparecimento, em 1852, do oídio; com efeito, em 1857, Francisco Correia Herédia referia que o imposto nada produzia. Todavia em 1888, vemos publicitada a cobrança do imposto na imprensa, de acordo com uma tabela de 1837, o que pode significar que o mesmo foi restabelecido. De facto, num regulamento da Câmara do Funchal de 1919, aparece uma taxa sobre as estufas de sol e as de calor artificial, sendo, respetivamente, de 8$05 e 30$00. Tratava-se de uma contribuição distrital, sendo a arrecadação e a aplicação da receita feita na área do distrito. Em 1806, a sua receita foi usada para financiar a construção da cadeia pública. Em 1838, usou-se 67 % da quantia na construção e na reparação de estradas. Depois, tornou-se o suporte financeiro dos melhoramentos da agricultura e das estradas, sendo apresentada, em 1843, como a única receita da Junta Geral. Nesse ano, a Junta encarregou um empregado seu da função de arrecadar este direito e de fiscalizar a contribuição das estradas e a escrituração da receita e da despesa. Todavia, em 1844, refere-se que o ato de carregamento da estufa deveria ser comunicado à secretaria do Governo e, em 1906, que o engenheiro agrónomo do distrito deveria ser informado desse facto. Nos inícios do séc. XIX, as estufas haviam proliferado por toda a cidade do Funchal, anichando-se nas imediações das ribeiras e das respetivas lojas. A Fazenda Real viu aqui mais um meio de receita, estabelecendo um imposto mensal de 16.000 reis, por cada estufa, sem ter em conta o tamanho ou o número de pipas que aí se cozia. Em março de 1806, a Junta dava conta da resolução régia de 12 de junho de 1805, propondo que o imposto, aplicado a todas as estufas, o fosse de acordo com a capacidade de cada uma. Mas, noutra conta, de 23 de agosto de 1806, em resposta à provisão do Erário Régio de 24 de julho, a Junta propõe o lançamento de um imposto de 12.000 reis, por pipa, em cada mês, de acordo com o que já havia deliberado numa reunião de 26 de março. No entanto, a 25 de fevereiro de 1807, a Junta fez o assento de um novo decreto, de 15 de dezembro de 1806, comunicado por provisão do Erário Régio de 16 de fevereiro de 1807, e alterou o imposto, de 16.000 reis mensais por cada pipa, para 1.920 reis por pipa cozida. Por isso, ordenou ao deputado corregedor da Câmara que vistoriasse as estufas, verificasse a capacidade e cobrasse a soma respetiva, impondo-se a pena de imposto dobrado para aqueles que fizessem novas entregas e as não manifestassem. Tudo isto foi regulamentado publicamente por edital de 28 de fevereiro de 1807, em que se tinha em conta, não só a medida de cada estufa, mas, igualmente, o número de pipas carregadas por temporada lançando-se, depois, mensalmente, a respetiva imposição. Por decreto de 23 de julho de 1834, sucedeu nova alteração, passando a imposição a ser cobrada mensalmente a partir de então, à taxa de 200 reis, por pipa de vinho cozida. A medida era considerada lesiva da qualidade do vinho submetido às estufas, uma vez que os proprietários procuravam acelerar o processo de aquecimento, de forma a diminuir o período de maturação. De acordo com o decreto de 1805, que fixava o imposto de modo genérico sobre cada estufa em laboração, apenas era necessário o conhecimento das estufas e dos proprietários, pelo que se mandou proceder a um inventário ou manifesto, por editais de 29 de outubro e de 26 de novembro de 1806. De acordo com os editais, o dono deveria dirigir-se à Junta para registar as estufas, pois, caso contrário, seriam encerradas. A partir de 1806, a imposição passou a ser lançada, mensalmente, sobre a capacidade, não se tendo em conta os meses de laboração e a quantidade de vinho. Apenas se tornava necessário vistoriá-las para dar conta do número de pipas que cada uma podia conter. Com a nova modalidade, a partir de 1807, tornava-se necessária uma maior vigilância na laboração e, ao mesmo tempo, era preciso uma ação de fiscalização nos momentos de carga e descarga, de forma a estabelecer-se o cômputo do número de pipas em laboração. Em 1831, estabeleceu-se que o imposto deveria ser lançado sobre todo e qualquer método de construção, sempre que se aproveitasse o calor do fogo artificial. Daqui resultou que a cobrança, feita em 1839 e em 1840, atingia o vinho que amadurecia ao ar livre, em cima dos fornos de cozer pão, o que foi considerado lesivo para o comércio do vinho, sendo apontado como o principal fator de entorpecimento das trocas. A estrutura administrativa para a cobrança do imposto era simples. A partir de 1807, a tarefa de vistoriar as estufas ficou a cargo do deputado executor ou corregedor da comarca, cargo que, em 1821, era ocupado por Luís António Oliveira, nomeado pela Junta, e em 1825 por João da Cruz Henriques. O administrador era coadjuvado por alguns fiscais. O imposto foi confirmado por carta de lei de 20 de fevereiro de 1835, sendo três os fiscais que o supervisionavam: José da Silva Lopes, Fortunato Ernesto Soares e Tude Fernando Carmo. A arrecadação era feita pelo sistema de arrendamento que, como se pode inferir por vários documentos, era muito morosa, tardando, frequentemente, os devedores a realizar o seu pagamento e obrigando a Junta a notificá-los por várias vezes, ou a proceder judicialmente. Em alguns casos, chegou-se mesmo a confiscar as estufas e a pô-las em hasta pública, para se poder reaver os direitos em dívida ou proceder à avaliação dos bens confiscados. A partir de 1843, a Junta Geral decidiu encarregar um seu funcionário da arrecadação da taxa. De acordo com determinação da mesma Junta, de 1844, todos os proprietários de estufas, no momento de proceder ao carregamento, que acontecia normalmente nos meses de novembro a fevereiro, deveriam dar conta do seu carregamento na secretaria da junta, para se proceder ao lançamento da taxa. Noutro aviso de 1906, refere-se que todo o movimento que aconteça nas estufas deverá ser comunicado ao engenheiro agrónomo do distrito. Esta fiscalização visava evitar abusos, nomeadamente na cobrança das taxas. Ainda em 1918, o diretor da Alfândega, em aviso de 18 de abril, informava que todos os mostos e vinhos que entrassem nas estufas deveriam ser fiscalizados no ato de entrada e só depois disso poderiam ser baldeados para as cubas de aquecimento. Depois, à saída para a Alfândega ou os armazéns, deveriam ser portadores de uma guia de trânsito. Também se informava que a delegação agrícola realizava análises dos vinhos estufados, tirando as amostras adequadas.     Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

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