mercearia de santa catarina

15 Dec 2020 por "Fátima Freitas Gomes"
História Económica e Social

A mercearia de S.ta Catarina foi uma instituição criada no séc. XV, provavelmente cerca de 1484, por Constança Rodrigues, mulher de João Gonçalves Zarco, junto à ermida sob a mesma invocação, na zona alta, sobranceira ao mar, na parte oeste da baía do Funchal.

De forma a contextualizar a criação desta instituição, podemos referir que o estabelecimento da mercearia de S.ta Catarina foi assente na área onde Zarco e a sua família tiveram a primeira morada, aquando da sua chegada à Ilha, para dar início ao povoamento. Posteriormente, Zarco construiu nova moradia, fixando-se numa zona mais alta da vila do Funchal. A dinamização do povoamento da ilha da Madeira, após a redescoberta, em 1419, coube ainda a D. João I, provavelmente a partir de 1425. O povoamento recebeu, no entanto, um impulso decisivo a partir do momento em que o Rei D. Duarte, que sucedeu, em 1433, a seu pai D. João I, concedeu ao infante D. Henrique o senhorio do arquipélago, a 26 de setembro de 1433. D. Henrique instituiu a Capitania do Funchal, a 1 de novembro de 1450, ficando João Gonçalves Zarco com o cargo de capitão do donatário. O primeiro capitão e a sua família fixaram-se já no Funchal, sede da Capitania, cujo território, mais fértil e com condições favoráveis, começou a atrair um maior número de povoadores. Começou, desde então, a desenhar-se o crescimento económico em torno do cultivo da terra, para a produção, dominante e indispensável, do trigo e de outros cereais, e ainda da exploração das madeiras e das plantas tintureiras, que haviam constituído a origem dos primeiros rendimentos dos povoadores.

O séc. XV foi também marcado pelos males que mais contribuíam para que se caísse na pobreza e na marginalidade: as fomes, as epidemias, a carestia das subsistências. Aliás, entre os fatores que tinham impulsionado muitos povoadores a procurar novas oportunidades nas terras descobertas, como era o caso da Madeira, conta-se a necessidade de procurar meios de subsistência e de algum enriquecimento, ou de condições para uma maior garantia de sobrevivência e para uma melhoria da condição social. A organização social dos primeiros tempos do povoamento fez-se em torno dos modelos tardo-medievais, enquadrando uma população ainda escassa, constituída pelos vários estados sociais caraterísticos da sociedade de então (o clero, a nobreza e o povo). Podemos afirmar que as condições difíceis não deixaram de marcar o destino dos habitantes, independentemente da sua condição social, tendo sido confrontados com a doença, a insegurança, e os acidentes e as intempéries naturais. Os primeiros tempos do povoamento do arquipélago da Madeira registam a presença cíclica dessas dificuldades.

Na sociedade tardo-medieval, no dealbar da Idade Moderna, entre os grupos mais fragilizados, para além das crianças e dos doentes, contavam-se as mulheres, sobretudo as solteiras, as viúvas e as mais idosas, incluindo as de famílias nobres, que não tinham proteção ou sustento e que não podiam acolher-se em alguma instituição religiosa, como um convento, por não terem dote suficiente. Entre os povoadores teriam ido elementos da pequena nobreza, companheiros de Zarco, acompanhados das mulheres e da família, tal como fizera o capitão. Constança Rodrigues, mulher de João Gonçalves Zarco, a instituidora da mercearia de S.ta Catarina, poderá ser natural de Matosinhos e filha de Rodrigo Annes de Sá e de Cecília Colona, em título de Sás, embora não se tenham encontrado provas documentais desta filiação nem desta naturalidade. Era irmã de João Rodrigues de Sá, camareiro-mor do Rei D. João I. O sogro de Zarco teria origem nobre e desempenharia o cargo de alcaide-mor do castelo de Gaia, no arrabalde do Porto, detendo ainda rendas em Gaia e Vila Nova. Constança Rodrigues, a exemplo de outras senhoras e senhores nobres que, preocupados com a salvação da alma, desejavam deixar o seu nome ligado a uma obra pia, quis instituir uma obra piedosa. A mercearia foi a instituição escolhida, e tinha a finalidade de acolher algumas mulheres idosas em cinco casas térreas construídas junto à ermida de S.ta Catarina, sem dúvida das mais antigas construídas na Capitania do Funchal, que, ao longo dos séculos, seria mantida no local original, embora, naturalmente, com alterações. A referência documental da instituição da mercearia de S.ta Catarina é de 1484. Trata-se de um documento de aforamento, concretamente um traslado do aforamento, datado de 22 de abril de 1484, em que se refere “um chão” (VERÍSSIMO, 2000, 113) que Constança Rodrigues arrenda ao escudeiro João de Canha, com uma pensão de 5000 réis destinada às cinco mulheres idosas que tinham sido acolhidas na mercearia. Constança Rodrigues, que nesta altura já era viúva, instituíra esta obra de beneficência para, porventura, acudir a viúvas de antigos companheiros de Zarco que teriam ficado sem amparo por o tempo não lhes ter permitido arrecadar fortuna suficiente para garantir a sobrevivência nos últimos tempos de vida. Sem referências documentais não se pode acrescentar nada sobre a identidade das merceeiras de S.ta Catarina, sendo apenas corrente dizer-se que era tradição as mercearias acolherem mulheres de condição honrada que tinham ficado pobres.

A notícia histórica sobre a mercearia de S.ta Catarina remete-nos, assim, para o tipo de instituição com fins religiosos e caritativos, comum na Idade Média em Portugal, que era destinada ao recolhimento de idosos que, apesar de terem uma origem social nobiliárquica, tinham ficado pobres e, por isso, necessitavam de ajuda piedosa e caritativa para subsistir no final da sua vida. Os que beneficiavam da possibilidade de ser recolhidos nessa instituição ficavam com o encargo de rezar e assistir a missas por alma dos benfeitores que lhes tinham concedido tal mercê, i.e., tal benefício.

A criação da instituição implicou que a sua posse passasse, como padroado, para o donatário do Funchal e os seus sucessores, com a obrigação de mantê-la e conservá-la, de forma adequada, para o culto e para a função para a qual fora instituída. No entanto, provavelmente após a morte da instituidora, a conservação e o cuidado devido à obra da mercearia de S.ta Catarina teria entrado em declínio, pelo que, nos anos subsequentes, as construções entraram em degradação. Por outro lado, a substituição das pequenas instituições assistenciais por outras de maior envergadura e com melhores condições, no contexto de uma maior centralização e um maior controlo das instituições desse tipo, quer pelos reis, quer pela Igreja, tornaram a mercearia de S.ta Catarina uma instituição obsoleta, mantendo, no entanto, o seu funcionamento, mesmo que precário, com base na pensão de 5000 réis que lhe fora atribuída pela instituidora (informação que, na ausência de referências documentais, não foi possível confirmar). Mais tardiamente, cerca de 1567-1570, a planta do Funchal, de Mateus Fernandes, apresenta a localização da capela e das casas anexas. No séc. XVII, podemos referir que a notícia do estado da capela era “de ruína” (VERÍSSIMO, 2000, 114), conforme foi registado pelo visitador da paróquia de São Pedro, onde a capela e a antiga mercearia se enquadravam.

Finalmente, podemos registar que a última referência documental às casas da mercearia de S.ta Catarina é de 1942, quando ocorreu a expropriação da área para a construção do parque da cidade, que recebeu o nome de Prq. de S.ta Catarina, com a indicação da demolição das casas anexas à referida capela. No entanto, é de crer que, em 1834, com as reformas liberais, quando foi decretada a extinção das ordens religiosas e a confiscação dos seus bens, as mercearias que porventura ainda estivessem em funcionamento foram encerradas, com a sua provável integração nos asilos de mendicidade criados na época, como ocorreu igualmente no Funchal em 1847, embora os estudos e a documentação disponível até começos do séc. XXI não permitam referir quaisquer dados quanto à integração de instituições herdadas do Antigo Regime, ou, sequer, no caso particular da antiga mercearia de S.ta Catarina, quanto ao facto de já ter sido suspensa em época anterior.

 

Fátima Freitas Gomes

(atualizado a 05.02.2017)

Bibliog.: impressa: NASCIMENTO, João Cabral do, “Constança Rodrigues, a velha, dona viúva do capitão Zarco”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. iv, 1934-35, pp. 101-103; SILVA, Josette, “Mercearias”, in SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário de História de Portugal, vol. iv, Porto, Livraria Figueirinhas, 1990, p. 275; TEIXEIRA, Maria Anita, A Família e a Casa de João Gonçalves Zarco, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 2000; digital: CARITA, Rui, “Capela de Santa Catarina do Funchal, 1680 (c.), ilha da Madeira”, Arquipélagos, 2 maio 2010: http://www.arquipelagos.pt/arquipelagos/newlayout.php?mode=imagebank&details=1&id=34939 (acedido a 23 nov. 2016); GOMES, José Vieira, “Do asilo de mendicidade e órfãos do Funchal ao abrigo infantil de Nossa Senhora da Conceição (1847-1959). Contributos para a história da assistência na Madeira”, Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, 2010, pp. 69-114: https://app.box.com/s/oofkdm5622p6mpmxwxnh, (acedido a 9 mar. 2015); GRAÇA, Luís, “Hospitais e outros estabelecimentos assistenciais até ao final do século xv”, Escola Nacional de Saúde Pública, 28 mar. 2005: http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos71.html (acedido a 9 mar. 2015); VERÍSSIMO, Nelson, “Nascimento e morte da Capitania do Funchal”, Atas do colóquio internacional. O Espaço Atlântico de Antigo Regime. Poderes e Sociedades: http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/nelson_verissimo.pdf (acedido a 9 dez. 2014).

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