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doações

A doação é um ato pelo qual se transfere, gratuitamente, a posse total ou parcial de um bem a outrem, e reveste duas modalidades: inter vivos, quando o doador aliena irrevogavelmente o património, ou in mortis causa, quando a doação apenas se processa após a morte do doador, assumindo, assim, o carácter de um legado. Apesar do carácter gratuito da cedência, a doação não é, de modo geral, totalmente desinteressada, na medida em que pressupõe um objetivo que é importante para o doador, ainda que isso não lhe retire o estatuto de instrumento estruturante tanto na história do reino de Portugal como na do arquipélago da Madeira. A prática de se doarem parcelas de território a senhores nobres ou eclesiásticos surge cedo na Península Ibérica, muito como resultado do empreendimento da reconquista cristã, e destinava-se quer a recompensar serviços prestados ao Rei, quer a promover o repovoamento das áreas retomadas, quer a representar um simples ato da generosidade do Monarca. O próprio nascimento de Portugal radica numa doação feita por Afonso VI de Leão e Castela a seu genro, o conde D. Henrique, e, após a elevação do condado à categoria de reino, a prática continuou a ser seguida pelos Reis de Portugal, que abundantemente distribuíram terras a entidades civis e religiosas, de entre as quais avultam as concessões a ordens religiosas e a instituições conventuais. Esta estratégia visava, sobretudo, contribuir para a defesa, promover a fixação de povoadores, e assegurar a produtividade das terras entregues a mosteiros. Quando, cerca de 1419, se (re)descobre a Madeira, e se começa a pensar o seu povoamento, desenrolado a partir 1425, principia também a definir-se um modelo para a administração do território, o qual assentará, do mesmo modo, em sucessivos processos de doação. Com efeito, enquanto entre 1420 e 1425, a responsabilidade sobre o arquipélago permanecia inteiramente nas mãos do Rei, D. João I, a partir de 1425, ela é transferida para as do infante D. Henrique, sem que, no entanto, a posse das ilhas deixe de ser propriedade régia, pois enquanto foi vivo D. João sempre se considerou como “Rei e Senhor” delas. A morte do Soberano, ocorrida em 1433 vai alterar esta situação, na medida em que o novo monarca, D. Duarte, por carta de doação datada de 26 de setembro do mesmo ano, concederá ao infante D. Henrique o estatuto de “Senhor das Ilhas”, tornando-o, assim, e de facto, donatário do arquipélago. Na mesma data, D. Duarte atribuiu também à Ordem de Cristo “para todo o sempre o espiritual das Ilhas da Madeira, do Porto Santo e da Ilha Deserta” (FERREIRA, 1960, 35-36). Entre 1440 e 1450, o infante donatário, doará, por sua vez a Tristão Teixeira (8 de maio de 1440), a capitania de Machico, a Bartolomeu Perestrelo (1 novembro de 1446), a do Porto Santo e a João Gonçalves Zarco (1 de novembro de 1450), a do Funchal. Fica assim claramente estabelecido o papel que o mecanismo de doação ocupa na génese da administração do território insular. No próprio desenrolar do povoamento, as doações continuaram a desempenhar um papel importante no que concerne à cedência de propriedades em regime de sesmarias, como forma de garantir o arroteamento dos terrenos, seguindo-se aqui um procedimento muito equivalente ao que se passara no reino. Os beneficiados com a concessão de terrenos não foram, porém, apenas os senhores que receberam os terrenos para arrotear, mas também a própria Igreja, cuja implantação no arquipélago igualmente gozou do acesso a propriedades oferecidas para que nelas se pudessem edificar os necessários edifícios de culto. Com efeito, a construção dos templos requeria espaços, que foram disponibilizados quer a partir de contributos de particulares, que nas suas fazendas povoadas rapidamente erigiam capelas destinadas à celebração dos ofícios divinos, quer originados nas instituições que tutelavam o espiritual das ilhas: a Ordem de Cristo, primeiro, e, depois, a Coroa. As ordens monásticas foram igualmente beneficiadas por este sistema de doações, o que se verifica a partir da fixação definitiva dos Franciscanos no arquipélago. Tendo cabido à Ordem Seráfica a responsabilidade do pastoreio das almas dos primeiros povoadores, logo por volta de 1479 assiste-se à entrega de um terreno vinculado à capela de Clara Esteves, falecida, o qual, por ordem de D. Beatriz, à data administradora da Ordem de Cristo, foi entregue aos frades de Assis para edificação da sua casa conventual. O mesmo aconteceu com a construção do convento de N.ª Sr.ª da Piedade, em Santa Cruz, erigido em terrenos de Urbano Lomelino e com o convento de S. Bernardino, em Câmara de Lobos, para o qual contribuiu a doação do sítio operada por João Afonso, escudeiro do infante D. Henrique e senhor do lugar. A ereção dos conventos de Clarissas na Diocese do Funchal operou-se de acordo com os mesmos critérios. Assim, para o primeiro deles, S.ta Clara, fundado em finais do séc. XV, foi determinante o papel de João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do Funchal, que o mandou edificar em terrenos anexos à igreja de N.ª Sr.ª da Conceição de Cima, já fundada por seu pai, João Gonçalves Zarco. Aos Câmaras ficou, ainda, adstrito o padroado da instituição, a qual requeria, para ingresso, um dote avultado que reforçava o carácter elitista das suas freiras, decidido, de resto, por D. Manuel, quando a destinara a servir as “filhas e parentes dos principais da terra” (FONTOURA, 2000, 55). Com os conventos de N.ª Sr.ª da Encarnação e de N.ª Sr.ª das Mercês, o procedimento foi idêntico. Assim, o primeiro começou a erguer-se, a partir de 1645, graças ao empenho e financiamento do Cón. Henrique Calaça, e o segundo foi fundado em 1663, por iniciativa de Gaspar de Berenguer e sua mulher Isabel de França, que o dotaram de terreno e verbas destinadas ao seu funcionamento. No processo de construção da Sé do Funchal assiste-se igualmente à doação, por parte de D. Manuel, então ainda na qualidade de administrador da Ordem de Cristo, a cujo padroado pertencia a administração religiosa do arquipélago, de um canavial, conhecido como “campo do duque”, sobre o qual se haveria de erguer o templo (FERREIRA, 1963, 41). Para tornar mais expedito o procedimento, o duque doou ainda os rendimentos de penas criminais que lhe pertenciam, bem como a imposição sobre vinhos atavernados, ou seja, aplicou ao fim da construção da igreja impostos que normalmente seriam por ele recebidos. O desenrolar do processo de cobertura da Ilha por estruturas religiosas leva à criação de um conjunto de paróquias fora do Funchal – Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol, Calheta, Machico, Santa Cruz, e.g., cujas igrejas se tiveram de ir edificando, correndo as despesas com a capela-mor por conta da Ordem de Cristo, numa fase inicial, e da Coroa, numa fase posterior, ficando o restante corpo do templo por conta dos fregueses, que assim, e desde o início, se associam também à dinâmica de dotação da Igreja dos contributos indispensáveis à sua implantação em território insular. Este modus operandi que divide responsabilidades na construção e manutenção dos espaços sagrados vai manter-se ao longo do tempo, sendo frequente ver chamadas de atenção dos bispos, em sede de provimentos de visitação, nas quais se apelava aos paroquianos para que não descurassem as suas obrigações naquela matéria. Assim acontece, e.g., na Tabua, quando, em 1589, se assinala que o forro da igreja está danificado pela chuva, pelo que se solicita aos fregueses que, “por todo o mês de setembro” o mandem consertar (ACDF, Tabua, cx. 2, fl. 10). Nessa mesma freguesia, e por estar a igreja velha arruinada, provia o visitador, em 1590, que os fregueses edificassem um novo templo, de acordo com especificações deixadas, e, se assim não o cumprissem, ver-se-iam condenados. O visitador acrescentava, porém, que sendo “a capela e a sacristia da obrigação de Sua Majestade a quem se pagam os dízimos […] mandamos lhe requeiram provisão para as mandar fazer segundo o corpo da igreja e poder correr toda a obra juntamente” (Ibid., fl. 13v.). À medida que a determinação tridentina, que obrigava à residência paroquial, vai sendo implementada, também se pode acompanhar aquilo que as visitações iam provendo sobre o assunto, o qual implicava, igualmente, a contribuição direta dos paroquianos. Continuando na Tabua e em 1590, o prelado que pessoalmente visitava a freguesia pedia aos fregueses que “hajam assento e chão acomodado para casa do vigário perto da igreja e que lha ajudem a fazer e ponham da sua parte para isso toda a diligência e favor por ser importante a residência dele em a freguesia e igreja” (Ibid., fl. 15). O mesmo acontecia na Fajã da Ovelha, onde, também em 1590, o povo era solicitado a arranjar “chão” e ajudar o pároco na construção da casa (ACDF, Fajã da Ovelha, Provimentos de Visitações, 1591-1730, fl. 9), enquanto no Seixal, em 1591, os pedidos iam no sentido do fornecimento de “madeira, pedra e colmo”, bem como colaboração com mão de obra para a residência do clérigo (ACDF, Seixal, Livro de Provimentos, 1591-1756, fl. 3v.). Outra forma muito utilizada para induzir a doação de bens à Igreja era a do recurso aos peditórios que se faziam a propósito dos mais variados motivos: para se instituir uma confraria, por ocasião da festa do orago – neste caso normalmente organizados pela confraria da mesma invocação –, para ajudar as ordens mendicantes, e ainda para financiar os conventos cuja regra os impedia de possuírem bens próprios, como acontecia, e.g., com o de N.ª Sr.ª das Mercês. A exemplificar a primeira das situações (a que diz respeito à fundação de uma confraria), veja-se o que ficou exarado em 1590 na Ponta Delgada, em que o bispo, D. Luís Figueiredo de Lemos, interessado na fundação de uma Confraria das Almas ordena aos fregueses que “dentro em dois meses instituam a dita confraria das almas e para que mais comodamente o possam fazer lhes dou licença pera que tirem esmolas pelas eiras e lagares da freguesia.” (ARM, Ponta Delgada, Livro de Provimentos, 1589-1694, fl. 8). O exagero que, porém, por vezes se verificava nestas iniciativas levava os prelados a intervir procurando disciplinar aquela prática, para o que deixavam avisos tendentes à moderação, como se vê no que está vertido nos provimentos de S. Martinho exarados em 1587 e que dizem estar o antístite informado “que algumas pessoas vêm a esta freguesia pedir esmolas pera confrarias & os santos de outros lugares & freguesias havendo aqui os mesmo santos & confrarias o que é causa de se dividirem as esmolas & estarem tão pobres as próprias no que querendo nos prover mandamos que nenhum petitório geral ou particular de santo de fora se consinta na freguesia em que houver outro semelhante posto que para isso haja licença nossa porque não é nossa intenção concedê-la” (ARM, Registos Paroquiais, S. Martinho, liv. 9122, fl. 4-4v.). A instituição de confrarias veio a revelar-se um profícuo mecanismo de captação de bens para a Igreja, pois não só os irmãos contribuíam com verba anualmente paga para a sua manutenção, como a administração dos bens legados por particulares fazia confluir para os seus cofres um não despiciendo fluxo financeiro, que deveria ser gerido tendo em vista o fim que presidira à constituição do movimento confraternal: a celebração de ofícios divinos, a ajuda ao próximo e a salvação das almas. A responsabilidade da gestão destes fundos variava de acordo com o compromisso das diversas confrarias, e era objeto de inspeção nas visitas paroquiais, deixando os bispos, ou os visitadores, nos seus provimentos, muitas vezes críticas e recomendações sobre os procedimentos a seguir na apresentação dos resultados da contabilidade confraternal. Outro recurso que muito contribuiu para a sustentação económica da Igreja surge sob a forma de doações in mortis causa, ou seja, aquelas que eram feitas em testamentos e se destinavam a assegurar a prestação continuada de cuidados à alma do falecido que, para tal, doava terras ou rendimentos a serem aplicados em missas para resgate da sua alma. Sendo esta uma prática transversal a todos os grupos sociais, os montantes legados variam, contudo, e como seria de esperar, em função da capacidade económica dos doadores, constatando-se situações em que se fundam capelas de missas, com obrigação de celebração diária enquanto “o mundo for mundo”, a par de outras que apenas solicitam os ofícios divinos que os herdeiros acharem possíveis. O facto de os rendimentos afetos às capelas se tornarem insuficientes mercê do decurso do tempo, da desvalorização, ou de outros fatores, vai estar na origem de múltiplos conflitos que irão opondo bispos a testamenteiros e a juízes dos resíduos e capelas, sendo fonte de inesgotáveis processo em tribunais e de preocupações no tocante ao incumprimento das últimas vontades dos instituidores. A emergência deste fenómeno, que impossibilitava a cabal satisfação dos legados, é muito antiga na Madeira, estando já contemplada nas Constituições Sinodais de 1615, onde se referia ter o bispo sido informado de que “muitas capelas se não cumprem por as propriedades e bens sobre que foram instituídas renderem hoje tão pouco que não basta para se dizerem as missas […] que os instituidores mandam dizer”, “pelo que se autorizava aos administradores em incumprimento que pudessem satisfazer apenas dois terços do inicialmente previsto” (COSTA, 1987, 19). As dificuldades na satisfação de encargos pios, o devir histórico e, até, as alterações da conjuntura política motivadas pelo liberalismo, com a consequente diminuição do peso institucional da Igreja, foram, aos poucos, diminuindo a prática dos legados testamentários, sem que, no entanto, se possa falar de uma completa extinção do procedimento. No começo do terceiro milénio, as doações na Igreja Católica estão sujeitas às normas do Código de Direito Canónico (liv. V) e das normas particulares das dioceses.   Cristina Trindade (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social História Política e Institucional

estancos ou monopólios

Por estanco entende-se uma forma de monopólio legal, exercida pelo Estado ou concedida por este a um particular, para produção ou venda de um determinado produto, como aconteceu com o tabaco, o sal, o sabão, a urzela e os diamantes. Estancar é impedir a venda livre de um produto. No caso de exercício do monopólio ou estanco de venda por particular, estamos perante uma doação como forma de mercê ou uma concessão, a troco de uma renda fixa. Estanco também pode significar o armazém onde se encontra depositado e para venda o produto do monopólio, como sabão, pólvora, charutos, cigarros e rapé, aguardente, chocolate, outras bebidas (1677) e sal (1631). O contratador do estanco providenciava estes espaços nas diversas localidades, através do sistema de subarrendamento, sendo conhecidos os seus proprietários como estanqueiros. Na toponímia do arquipélago, ainda subsistem vestígios desta situação. Assim, no Funchal, existiu uma rua com a designação de Estanco Velho, cuja referência mais antiga é de 1572, enquanto no Porto Santo existe o sítio do Estanco Velho. A situação de estanco ou monopólio aconteceu também no séc. XV, com as cartas de doação das capitanias madeirenses, em que estes capitães usufruíam dos direitos exclusivos de venda do sabão e sal. O do sabão persistiu até 25 de abril de 1857, altura em que se declarou livre o seu fabrico e comércio. Com a subida ao trono de D. Duarte iniciou-se uma nova era no sistema de governo das ilhas. O infante D. Henrique recebeu, por carta de 26 de setembro de 1433, o governo das ilhas da Madeira, Porto Santo e Desertas. Mediante esta carta, o infante é o senhorio e os escudeiros, que haviam dado início ao povoamento do arquipélago, são capitães subordinados à sua alçada, pelo que ficaram conhecidos como capitães do donatário, permanecendo como tal até finais do séc. XV. As cartas de doação da posse das áreas jurisdicionais, conhecidas como capitanias, confirmaram a situação. Nelas ficaram estabelecidos a alçada e os privilégios do capitão, bem como a forma de definição do poder na Ilha: o senhor, o capitão e o município. O senhor intervinha através da delegação de poderes nos capitães ou em funcionários, como o ouvidor, o contador, os tabeliães e o almoxarife. O concelho era a estrutura de poder local, a expressão dos interesses das populações, sendo representado pelos homens-bons, que tinham uma relação de subordinação ao senhor. Foi o infante D. Henrique quem, ao assumir de pleno direito a posse das ilhas, estabeleceu a estrutura administrativa, os seus direitos e os dos seus capitães. De acordo com a doação régia de 1433, ele detinha a seguinte capacidade de intervenção: o usufruto de rendas e direitos, exceto o foro e o dízimo do pescado. Os documentos que estabelecem juridicamente as capitanias, conhecidos como cartas de doação, não foram concedidos ao mesmo tempo para as três áreas, existindo entre eles alguns anos de diferença. O primeiro foi o de Tristão Vaz que, em 8 de maio de 1440, recebeu o carrego das terras situadas entre o Caniço e a Ponta de Tristão, área que ficou conhecida como a capitania de Machico. Tristão Vaz exercia o governo em nome do infante, com alguns privilégios de fruição própria, como o domínio exclusivo dos moinhos, exceto nos braçais, a posse dos fornos de poia, exceto fornalha para uso próprio, e o exclusivo, sob condições, da venda de sal. Embora o sal tenha gerado alguns diferendos, esta situação continuou e foi confirmada no caso do Funchal, em 1663, 1675 e 1694. O infante, como detentor dos meios de produção e guiado pelo objetivo de promover a cultura, permitiu que os povoadores construíssem engenhos para a laboração do açúcar, sujeitando-se ao pagamento de 1/3 da produção. Destes, temos notícia apenas do de Diogo Teive, conforme autorização do próprio duque – o senhorio da Ilha –, de 1452. O fabrico do açúcar fazia-se, em exclusivo, no lagar do senhorio já existente e no novo engenho de água, pois “[...] a ninguém que possa fazer outro semelhante e não se podendo todo fazer que eu dê lugar a quem me prover que faça outro” (VIEIRA, 1987, 129). As serras de água não são criação madeirense, pois a tecnologia foi importada do reino. Estas surgem, por vezes, ligadas aos engenhos de açúcar. É o caso de Diogo de Teive, em 1452, com engenho na Ribeira Brava, então conhecida como Ribeira da Serra de Água e, em 1492, de Bartolomeu de Paiva, na Ribeira de São Bartolomeu. As serras de água tiveram um grande incremento no início da ocupação da Ilha, fruto da exploração das madeiras, para exportação para o reino, uso nos engenhos e construção de habitações. Nas cartas de doação das capitanias, as serras de água são consideradas uma fonte de receita para o capitão, que recebe duas tábuas por semana ou dois marcos de prata ao ano, e a dízima para o senhorio. A importância dos cereais na dieta alimentar dos madeirenses, desde a ocupação da Ilha, conduziu à valorização dos meios de transformação dos cereais em farinha. No arquipélago, assinalam-se quatro meios distintos de transformação: moinhos de mão, atafonas, azenhas e moinhos de vento. Até 1821, os moinhos continuaram a ser um privilégio exclusivo dos capitães do donatário. Resquício disso é o Lg. dos Moinhos, no Funchal, onde o capitão detinha um conjunto de azenhas, que se serviam da água da ribeira de Santa Luzia. O último moinho foi destruído em 1910, restando deles apenas a memória na toponímia do local. Os capitães cobravam a maquia, i.e., um alqueire em doze, sobre todos os que aí moessem cereais. Desde o início do povoamento, são insistentes as queixas dos moradores pelo mau funcionamento destas infraestruturas. Em 1461, a falta e a má qualidade do serviço levou o infante D. Fernando a recomendar aos capitães mais cuidado neste serviço. A situação deverá ter perdurado até 1821, altura em que se abriu à iniciativa particular a construção de novos moinhos. Em 1863, temos, em toda a Ilha, 365 moinhos, sendo 79 no Funchal. No séc. XIX, surgiram algumas unidades industriais motorizadas e depois, com o advento e a expansão da energia elétrica, a partir dos anos 40, a eletrificação de muitas unidades. No princípio do séc. XX, era evidente uma tendência para a centralização da indústria de moagem nas unidades que souberam inovar. Foi o caso da Companhia Insular de Moinhos, no Funchal, alvo da fúria dos populares, em 1931, contra o decreto que regulava o comércio e a transformação de cereais, que foi entendido como uma forma de apoiar outra situação de monopólio, criando condições para essa situação para a Empresa Insular de Moinhos, e acabando com os concorrentes e as pequenas moagens artesanais. Assinale-se, ainda, a firma Viúva de Romano Gomes & Filhos Lda., dedicada à moagem do milho, conjuntamente com a de Marques Teixeira & Co. Lda, na Ponta de Sol. O sistema de monopólio não se fica apenas pelas forças de produção, alarga-se também ao comércio dos produtos. As questões em torno da produção e comércio do açúcar foram uma preocupação permanente de D. Manuel enquanto senhor e Rei. A partir dos anos 80 do séc. XV, o mercado do açúcar madeirense enfrenta uma crise de crescimento. Primeiro, a procura europeia conduzira a que se colocasse no mercado açúcar de má qualidade. Depois, o alargamento da área produtiva e do açúcar disponível não foi acompanhado pelo aumento da procura. A crise obrigou a Coroa a intervir, em 1498, no sector comercial, estabelecendo um sistema de contingentamento dos valores de exportação para os principais mercados, que passa a ser feito sob o regime de monopólio da Coroa. A medida justificava-se, pois o açúcar era “huma das mays proveytosas de nosos reygnos se poderia perder”, sendo “proveyto de bem comum da dita ylha mays ainda de todos nosos reygnos” (VIEIRA, 2014, 191). Na verdade, a Madeira era uma das principais joias da coroa. Por outro lado, os problemas do mercado açucareiro na déc. de 90 do séc. XV conduziram ao ressurgimento da política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre abril e meados de setembro, para comercializar os seus produtos, não podendo dispor de loja ou feitor. Apenas em 1496 D. Manuel reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou as interdições anteriormente impostas. As facilidades concedidas à estadia dos agentes forasteiros conduziriam à assiduidade da frequência na praça, bem como à fixação e intervenção, de modo acentuado, na estrutura fundiária e administrativa. O regime do comércio do açúcar madeirense nos sécs. XV e XVI, tal como assevera Vitorino Magalhães Godinho “vai oscilar entre a liberdade fortemente restringida pela intervenção quer da Coroa quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o monopólio global, primeiro, posteriormente um conjunto de monopólio cada qual em relação com uma escápula de outra banda” (VIEIRA, 1987, 129). O comércio apenas se manteve em regime livre até 1469, altura em que a baixa do preço veio condicionar a intervenção do senhorio, que estipulou o exclusivo aos mercadores de Lisboa. Isto não agradou aos madeirenses, habituados que estavam a negociar diretamente com os estrangeiros. Mesmo assim, o infante D. Fernando decidiu, em 1471, estabelecer o monopólio a uma companhia formada por Vicente Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo e Martim Anes Boa Viagem. Da decisão resultou um aceso conflito entre a vereação e os referidos contratadores. Passados 21 anos, a Ilha debatia-se ainda com dificuldades no comércio açucareiro, pelo que, em 1488 e 1495, a Coroa retomou a pretensão do monopólio, mas apenas conseguiu impor um conjunto de medidas regulamentadoras da cultura, safra e comércio, que ocorrem em 1490 e 1496. A política, definida no sentido da defesa do rendimento do açúcar, saldou-se num fracasso, pelo que, em 1498, foi tentada uma nova solução, com o estabelecimento de um contingente de 120.000 arrobas para exportação, distribuídas pelas diversas escápulas europeias. Estabilizada a produção e definidos os mercados do açúcar, a economia madeirense não necessitava de tão rigorosa regulamentação, pelo que, em 1499, o monarca acabou com algumas das prerrogativas estipuladas no ano anterior. Manteve-se, no entanto, o regime de contrato para venda até 1508, data da revogação da legislação anterior, iniciando-se o trato em regime de total liberdade. Assim o definiu o foral da capitania do Funchal, em 1515, ao enunciar que “os ditos açúcares se poderão carregar para o Levante e Poente e para todas outras partes que os mercadores e pessoas que os carregarem aprouver sem lhe isso ser posto embargo algum” (VIEIRA, 1987, 130). Também com o vinho se encontram situações e ideias que visam o estatuto de monopólio para o seu comércio, como forma de superar dificuldades comerciais. Sucedeu assim em 1784 e 1816, mas estas propostas não avançaram, deixando livre o seu comércio. Na segunda metade do séc. XIX, a crise da produção do vinho fez com que a cultura sacarina se apresentasse como a resposta adequada à perda de importância da vinha, assumindo o papel de “cultura rica” na agricultura madeirense. A intervenção deu lugar ao chamado “protecionismo sacarino”, que desembocou naquilo que ficou depois conhecido como a “questão Hinton”, outra situação de monopólio na produção de aguardente e açúcar a partir da cana sacarina. A conturbada situação política de finais do séc. XIX e princípios do séc. XX favoreceu o debate político em torno da questão sacarina e esta só foi apaziguada pelo Estado Novo. A lei de 24 de novembro de 1904 resolvia a querela, ao estabelecer a matrícula das fábricas de aguardente por um período de funcionamento de 15 anos. Com a queda da monarquia, instaurou-se a república, que parecia querer fazer ouvidos moucos às regalias conquistadas no anterior regime. São várias as manifestações dos madeirenses contra o monopólio sacarino. Em 6 de abril de 1910, os madeirenses fizeram um comício, no Teatro D. Maria Pia, a reclamar contra este monopólio, onde marcaram presença Manuel José Vieira e Leite Monteiro. A imprensa faz eco de queixas dos agricultores, que acusam o Hinton de pagar a 13 meses e de negociar o resultado disto a 90 dias. As dificuldades do comércio do vinho repercutiam-se no sector, com a diminuição do consumo de álcool – usual no sistema de tratamento do vinho Madeira para exportação –, que era a principal fonte de lucro das fábricas matriculadas. Em outubro de 1905, o conhecido enólogo Batalha Reis visitou a fábrica Hinton e teceu os melhores elogios ao álcool aí produzido. Todavia, insistiu na necessidade de introduzir os vinhos de Portugal, o que não agradou aos planos dos anfitriões. A situação não fez perigar a posição hegemónica da casa Hinton que se mantinha confortavelmente como o único produtor de açúcar. Com o Estado Novo, as medidas resultantes dos decretos n.ºs 14.168, 15.429, 15.831, 16.083 e 16.084 (1928), embora restritivas dos antigos privilégios, favoreceram Hinton, impedindo a instalação de novas fábricas e determinando o fecho de algumas em funcionamento. O ano de 1928 foi fulcral para a afirmação desta estratégia hegemónica. O engenho de Hinton, consolidada a posição dominadora do mercado local, manteve-se como a referência da cultura da cana-de-açúcar até que, em 1985, agonizou em definitivo o seu império do açúcar. Outros produtos tiveram uma exploração e um comércio sujeitos ao regime de monopólio. A urzela – da qual se extraía uma cor amarela, ocre e castanha – foi um dos primeiros produtos a ser comercializado nas ilhas. A sua exploração manteve-se ativa até ao séc. XIX, mas foi no séc. XVIII que se revelou de grande importância económica, sendo exportada para Inglaterra e a Flandres. A planta era abundante nas Selvagens, nas Desertas, no Porto Santo e na Madeira, nomeadamente na Ponta de São Lourenço. A sua apanha e o seu comércio estavam também sujeitos a um regime de contrato e monopólio. Temos ainda notícia do estanco do comércio do sal para o Brasil, que persistiu até 1801, não obstante inúmeros protestos. Outro estanco, não menos importante, foi o das cartas de jogar, surgido em 1630. Desta forma, estava proibido o fabrico e a venda de cartas, pertencendo ao estanqueiro esse direito, mediante uma renda cujo contrato era feito por arrematação. No séc. XVIII, o meirinho do estanco estava autorizado a fazer buscas a navios, barcos e quintas, quando houvesse suspeita da existência de cartas falsas ou da sua venda sem licença do contratador. Ao contratador ou estanqueiro das cartas de jogar era reconhecido o direito de ter mestres de fazer cartas, situação que estava vedada aos particulares. No séc. XVI, o baralho de cartas custava 80 réis. O mais importante de todos foi o estanco do tabaco, que perdurou desde do séc. XVII (a primeira notícia de contrato é de 1639) até à publicação da lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitida a plantação de tabaco nas ilhas da Madeira e dos Açores, o seu livre fabrico e o seu comércio. Com efeito, o estanco do tabaco foi estabelecido em 1639 e extinto a 23 de agosto de 1642; porém, o contrato foi renovado em 26 de junho de 1644 e adjudicado o contrato por sete anos a 14 de maio de 1650, ficando dele excluídos a Índia, o Brasil e certos lugares de África. O estanco foi restabelecido por decreto de 21 de abril de 1832, sendo contratado a 10 de dezembro de 1832 ao barão de Quintela, sendo definitivamente abolido pela lei de 13 de maio de 1864. Nesta altura foi permitido o cultivo da planta do tabaco na Madeira e nos Açores. O tabaco chegou a Portugal no séc. XVI, a partir do Brasil, e começou por ser um produto de uso medicinal. Na época filipina, principiaram a estabelecer-se contratos de arrematação para a comercialização do tabaco, com a criação dos chamados estancos para a sua venda. O monopólio ou estanco do tabaco estava sob a superintendência da chamada Junta da Administração do Tabaco, que foi extinta em 15 de janeiro de 1775, ficando, a partir desta data, o serviço de estanco a depender da Junta da Real Fazenda. Note-se que na Madeira, em 1855, eram 362 os estancos em toda a Ilha para venda de tabaco. A política monopolista atingiu também os espaços oceânicos. Após a restauração da independência de Portugal, o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações. Primeiro, com a criação do monopólio do comércio, através da companhia criada para o efeito e, depois, com o estabelecimento do sistema de comboios, para maior segurança da navegação. Ressalva-se o caso particular da Madeira e dos Açores que, a partir de 1650, passaram a poder enviar isoladamente dois navios com capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, depois trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Ficou estabelecido que os mesmos não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar. O movimento das duas embarcações da Madeira fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda. Em 1678, há referência a outro contrato de estanco, por nove anos, do fabrico de aguardente, chocolate, cerveja, grosa solis, cidra, sorvetes, limonada e mais bebidas desta qualidade, no valor de 600$000 reais ano. Em 1894, temos o monopólio dos fósforos à Companhia dos Fósforos, que tinha em Francisco da Costa & Filhos a sua representação na Ilha. De referir igualmente o estanco da pólvora que, em 1951, ainda persiste, como se poderá verificar pela imprensa local. Outros mecanismos institucionais e jurídicos, ainda que não sejam guiados por orientações monopolistas pretendem estabelecer regras reguladoras do sector produtivo ou comercial, que podem ser entendidas como orientações no sentido de políticas monopolistas. Foi o que aconteceu em 1931 com os cereais, como já se referiu, e em 1936 com o leite. As autoridades determinaram, pelo dec.-lei n.º 26.655, de 4 de junho de 1936, a criação da Junta de Lacticínios da Madeira, com o objetivo de estabelecer regras no sector. A ela ficou atribuída a missão de administrar os postos de desnatação, proceder ao pagamento do leite e ao seu rateio pelas fábricas. A primeira medida foi a fixação do número de postos de desnatação em 320, com o encerramento de 788. Contra o decreto, levantou-se uma onda de protestos em São Roque do Faial, Machico e Ribeira Brava, que ficou conhecida como a Revolta do Leite. A A Revolução Liberal permitiu acabar com os estancos, primeiro do sabão, do tabaco, do sal e dos moinhos. Em diversos momentos, foi evidente a reação dos madeirenses a esta tendência monopolista, quer ao nível do sector produtivo, quer comercial. É evidente, em termos históricos, uma atitude da população da Ilha contra os monopólios, quer através de reclamações, quer do recurso ao comércio ilícito com base no contrabando. Desta forma, podemos afirmar que as ideias monopolistas não fazem parte do dicionário histórico dos madeirenses, que sempre revelaram uma atitude contrária em reivindicações, memórias e textos.   Alberto Vieira (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social

estufas

De entre todos os vinhos, o Madeira é o único que dispõe de um sistema de vinificação singular em que o calor exerce o papel principal no processo de envelhecimento. A tradição diz-nos que o processo começou com o vinho da roda, considerado um feliz acaso das viagens transoceânicas. De acordo com esta versão, os marinheiros começaram a notar que o vinho embarcado para o serviço de bordo, que fazia o percurso entre a Madeira e a Índia e retornava a Inglaterra, com duas passagens pelos trópicos, melhorava. O calor dos porões obstruía-lhe um rápido envelhecimento, que cedo se tornou notado pelos Ingleses. A este propósito, referia John Barrow, em 1792: “Este vinho tem a fama de possuir muitas qualidades extraordinárias. Tenho ouvido dizer que se Madeira genuíno for exposto a temperaturas muito baixas até ficar congelado numa massa sólida de gelo e outra vez descongelado pelo fogo, se for aquecido até ao ponto de fervura e depois deixado arrefecer ou se ficar exposto ao sol durante semanas seguidas em barris abertos ou colocado em caves húmidas não sofrerá o mínimo dano apesar de sujeito a tão violentas alterações” (VIEIRA, 2003, 234). No mercado britânico, desde finais do séc. XVIII, o Common Madeira, o London Market e o London Particular (vinhos de exportação direta que seguiam o sistema tradicional de vinificação imposto pelos Ingleses) foram preteridos em favor do novo East India Madeira. As pipas embarcadas no Funchal com este destino e processo eram marcadas com as seguintes iniciais: V. O. W. I. (Very Old West Indies Madeira). O vinho de torna-viagem – o East India Madeira – apresentava o dobro do preço do outro, algo resultante dos custos do transporte, da elevada procura e da reputação que o mesmo adquirira no Reino Unido, onde teve um estatuto especial. A primeira referência ao comércio do vinho retornado das Índias surge em 1722. Nos meses de setembro e novembro de 1790, A Christie’s – que se tornaria uma famosa casa de leilões em Londres – colocou à venda no mercado britânico 3 pipas de vinho Madeira provenientes da Índia e 39 do Brasil. Daqui, terá sido um passo rápido para o estabelecimento e a afirmação do processo de estufagem do vinho Madeira. O sistema de estufa foi considerado oficialmente como um método de tratamento do vinho, mas apenas foi usado para o vinho das castas autorizadas, nomeadamente as de tinta negra mole. De acordo com a tradição, a estufa é entendida como o resultado de um feliz acaso que terá surgido numa conjuntura favorável ao escoamento rápido do vinho, que adveio com as guerras napoleónicas, com o consequente esgotamento dos stocks, criando a necessidade de um trato rápido dos vinhos novos para satisfazer as encomendas do mercado, apenas possível com as estufas. Em todo o caso, é certo que os madeirenses não desconheciam o sistema de tratamento pelo calor já usado pelos antigos; os Gregos e os Romanos tinham conhecimento da ação do calor dos porões dos barcos e dele se serviram para o trato dos vinhos, tal como refere Plínio, entre outros. Na Madeira, a prática parece ser tardia. A primeira informação de que dispomos data de 1550 e refere a despesa de dois vinténs feita pela Misericórdia de Machico relativamente à lenha para cozer o vinho. Não se sabe, na verdade, a que se reporta esta situação específica: poderá ser referente ao fabrico de aguardente. A tradição alega que a primeira estufa terá sido construída por Pantaleão Fernandes em 1794, mas a primeira referência documental a tais estruturas é de 1730. Foi a partir da década final do séc. XVIII que as estufas e o processo de vinificação com o seu uso se generalizaram. Mas, antes do aparecimento das estufas, existiu o chamado vinho de sol. A referência mais antiga ao processo de tratamento do vinho mediante a exposição solar surge em 1687. De acordo com H. Sloane, o vinho beneficiava com a exposição ao sol: “[…]tem a propriedade curiosa, muito especial de se tornar melhor quanto mais exposto estiver ao sol e ao calor. Assim, em vez de o levarem para uma adega fresca expõem-no ao sol e ao calor” (Id., Ibid., 236). A mesma constatação foi assumida por John Ovington que, em 1689, referia: “O vinho Madeira tem a qualidade muito peculiar de, quando está a fermentar, ser melhorado pelo calor do sol se o batoque for desviado da abertura da pipa e, desta madeira, o vinho ficar exposto ao ar” (Id., Ibid., 237).  A solução para acelerar o processo de vinificação e de envelhecimento representava uma maior economia de tempo e de custos, permitindo colocar, em cerca de três meses, à disposição do cliente, um vinho prematuramente envelhecido com propriedades semelhantes ao que tinha estagiado cinco anos no casco. O uso das estufas generalizou-se. Era vulgar ver-se as pipas jacentes nos fornos de pão da cidade, ou simplesmente ao sol. Mas o vinho estufado, para além de ter gerado uma acesa polémica em princípios do séc. XIX, não mereceu a mesma referência por parte dos consumidores. O vinho da roda, aquele que seguia nas pipas, ao sol, a bordo dos navios que faziam o percurso de ida e volta ao Pacífico, com duas passagens pelo calor tórrido dos trópicos, era considerado diferente; para muitos, este tratamento tinha o condão de melhorar as qualidades organoléticas sem o degradar, o que não sucedia, com o vinho estufado. Em 1818, a própria Junta deu o exemplo desta prática do vinho da roda, ao carregar 50 pipas no brigue-escuna Mariado do Cap. José A. Martim de Sá, tendo-se dado ordem de embarque a 21 de abril. Em aviso ao deputado-escrivão da Junta de Cabo Verde, informou-se sobre a remessa de vinho que deveria “envelhecer e depois ser dado o destino que S. M. desejar, recomendando o cuidado e vigilância de sua existência, de maneira que receba o muito calor possível de Verão futuro e não haja extravio”. Noutro aviso a J. de Araújo Barros, em Cabo Verde, dá-se conta de outra remessa com o fim de se colocarem os vinhos nessa ilha e de eventualmente regressarem à Madeira, depois de passado o verão: “[...] lhe rogo o maior desvelo e cuidado na boa guarda e vigilância do dito vinho a fim de que não haja extravio casual nem voluntário e obtenha aquele grau de melhora que se espera” (Id., Ibid., 231). Nos registos de embarque de vinho de entre 1823 e 1830, assinala-se a presença do vinho da roda que, durante a fase a fase em que esta prática foi permitida, atingiu grandes proporções. Em 1823, saíram 1650 pipas e, em 1824, 366. Aqui, destacaram-se os comerciantes ingleses John Howard March & Ca. e Philip Noailles Searle, e também alguns portugueses das casas madeirenses mais importantes, como Monteiros & Ca., Luís de Ornelas Vasconcelos, e João Oliveira & Ca. Em 1826, a prática de embarque de vinhos para envelhecer havia-se generalizado e todo o vinho de roda era reembolsado dos direitos pagos à saída ou levantava fiança até ao retorno. Em 21 de fevereiro, Philip Noailles Searle solicitou o desconto dos direitos de 3 quartos e 10 meias quartolas de vinho de roda, autorizado em 8 de junho de 1825. Um ano depois, a generalização e a prática causou graves incómodos à administração da Alfândega, pelo que se determinou o seu embargo. A Junta da Real Fazenda, reconhecendo os percalços que a situação causava à arrecadação dos direitos, decidiu colocar um fim em tal prática. Daqui resultou a perda de importância do vinho da roda na Ilha e a sua consequente valorização no mercado britânico, onde as pipas da roda passaram a afluir com uma maior assiduidade. Ficou célebre, entre os apreciadores, o vinho que o cônsul inglês H. Veitch ofereceu, em 1815, a Napoleão Bonaparte, aquando da sua passagem pelo Funchal com destino ao exílio de Santa Helena. O antigo Imperador não bebeu o vinho e este regressou à Ilha, onde foi engarrafado a partir de 1840, com o título de Battle of Waterloo. Winston Churchill, de visita à Ilha em 1950, foi um dos poucos contemplados com uma garrafa. Em 1992, recriou-se a referida rota e a técnica de envelhecimento com o embarque de 600 l de Boal a bordo do veleiro Kaisei, que participou na regata Colombo 1992. Nem todos reconheceram o vinho da roda e as estufas como meios adequados ao processo de vinificação e de envelhecimento do vinho. Instalou-se o debate e, por vezes, a confusão. O Gov. José Manuel da Câmara, por editais de 23 de agosto de 1802 e de 6 de novembro de 1803, proibiu o funcionamento das estufas por serem prejudiciais à boa reputação dos vinhos. Mas, em face da reação da maioria dos comerciantes nacionais e estrangeiros da Região e do Senado da Câmara, foi obrigado, em 14 de fevereiro de 1804, a oficiar ao conde de Anadia, referindo o sucedido e a pretensão dos locais para que fosse levantada a suspensão de modo a poderem aviar as encomendas. Em representação dos comerciantes locais, pedindo a revogação, dizia-se que: “São três, os pontos principais, que servem de matéria para se atacar a existência, continuação e conservação das estufas. Eles abrangem diversos argumentos, que serão todos destruídos. O primeiro é o descrédito dos vinhos resultantes do benefício artificial, que se lhes quer fazer por meio das estufas. O segundo, o perigo iminente e continuado dos incêndios, em consequência dos fogos mais violentos e aturados, com que se trabalhavam as estufas. O terceiro, o prejuízo grave dos fumos, que originam de arder carvão de pedra, que dizem, atacam, alteram, e incomodam a saúde dos povos” (Id., Ibid., 250). Por ordem régia de 7 de maio do mesmo ano, foi expedido um aviso para ser levantada a proibição. Na verdade, o perigo de incêndios era uma constante, sendo de assinalar os incêndios de 1846 e de 1898. A polémica estava definitivamente instalada. O próprio Senado da Câmara, cuja composição, aliás heterogénea, mudava com assiduidade, assumiu posições contraditórias. Os que comungavam da opinião desfavorável sobre o novo processo de estufagem destacavam que as estufas estavam na origem da decadência da fama e do comércio do vinho, sendo, igualmente, prejudiciais à preservação das suas propriedades, retirando-lhe as qualidades balsâmicas ou alterando-lhe o sabor, e atribuindo-lhe um gosto torrado, queimado e muito desagradável. Em oposição, tivemos a opinião dos que pugnavam pela qualidade do vinho estufado, destacando que a medida era útil e barata para o trato e a rapidez de escoamento do vinho para os centros consumidores. Assim o referem os comerciantes locais, em 1804: “Granjeou o comerciante o fruto preciso dos seus cuidados, dos seus cálculos, e da sua bem atendida vigilância, pois que com o novo método de melhorar, e adiantar os seus vinhos de 5 a 6 meses apronta toda a quantidade de vinho, que é preciso para os seus embarques, não sendo obrigados a esperar o espaço seguro de 4 a 5 anos”. Ainda em 1834, a Câmara do Funchal desfez as acusações que apontavam as estufas como a causa primeira da ruína do comércio local, apresentando o efeito benéfico e incentivador que representavam para o comércio: “Ora devendo-se considerar a invenção das estufas como admirável processo por meio do qual se melhora rapidamente a qualidade dos vinhos, apressando sua maturação, ao mesmo passo que se evitam grandes embates de capital; e sendo este aliás o único método que nos pode habilitar a competir com os vinhos de outras nações nos quais a cultura dos vinhos é mui pouco dispendiosa [...]”(Id., Ibid., 238). Em 1819, a opinião da Câmara era diferente. Em representação à Junta de Melhoramento, deu a conhecer a quebra do vinho no mercado exportador, como consequência da perda de qualidade resultante do uso generalizado das estufas, “que degradando o vinho das suas virtudes essenciais, só lhe dão o cheiro postiço e uma aparência de bondade momentânea, tudo o que era sumo de parreira sem seleção alguma se preparava para o embarque. O que abertos, com a paz, os diques da guerra, os mercados se inundaram de vinhos; já o nosso deixou de servir a necessidade e parto ordinário, contrariando o seu consumo as mesas de luxo aonde o capricho e delicadeza faz aparecer algumas boteilhas de vinho Madeira”. O vinho estufado foi rejeitado pelo mercado e as estufas passaram a ser consideradas prejudiciais, estando na origem da decadência e do descrédito. “São as estufas, pois sabe-se pela experiência que tiram ao vinho as partes balcânicas, de sorte que em muitas praças já os médicos o não aplicam a certas moléstias em que tinham cura feliz e um desse conte desagradável, causa sede e dores de cabeça, sem beneficiar a digestão, de maneira que na terra se não faz uso desta bebida” (Id., Ibid., 250). Daqui resulta a necessidade de interdição ou de regulamentação do uso da estufagem no trato do vinho para que os donos fossem obrigados a manter o cozimento por 10 meses. Idêntica petição surgiu em 1821, clamando-se contra as “pérfidas estufas”. Os comerciantes, em 1834, reiteraram as afirmações de 1803 e, mais uma vez, manifestaram-se contra o decreto que introduziu o imposto sobre as estufas. Ao mesmo tempo, desfazia-se a argumentação que afirmava que as estufas seriam a causa da decadência do vinho, pois, fora da Ilha, também se estufava o vinho e tal não sucedia: “As ilhas dos Açores, Canárias e Cabo da Boa Esperança, têm estufas e estas livres de todo o tributo, ora se os vinhos estufados tivessem perdido o crédito decerto ali não haveria. Em todos países onde há vinhos está a exportação deles livre e livres de impostos todos aqueles que por meio da sua indústria promovem o consumo deles” (Id., Ibid., 250). Em meados do século, com o agudizar da crise, reacendeu-se a questão das estufas na imprensa local. Nas páginas do Correio da Madeira, afirmava-se, em 1851: “O vinho bom não carece de estufa, logo as estufas só servem para o ordinário, que se deve fazer para aguardente e consumir nas tabernas [...]. É uma calamidade pública esta funesta descoberta, que fazendo exportar o vinho mau, deixa o bom e óptimo estagnado, arruinando o nosso crédito”. Contra esta opinião manifestou-se um leitor, anotando que a origem da crise emanava da Pauta Aduaneira. Quanto às estufas, referia que era uma questão de prática, pois o que estava mal eram os abusos praticados, ou seja “o estufar o vinho ruim que deve ir para o alambique e só para o alambique, o envasilhar o vinho em pipas não avinhadas, o meter vinho em estufa forte de 3 meses, o embarcar o vinho antes de passar o tempo que é mister esta sobre o canteiro” (Id., Ibid., 251), uma vez que a uma estufagem bem feita deveriam seguir-se dois anos de descanso no canteiro para o vinho adquirir o aroma. João da Câmara Leme tinha uma opinião semelhante, acabando por estabelecer um novo processo de tratamento, conhecido como o método de canavial, um sistema eficaz e capaz de manter as qualidades do vinho. Eduardo Grande, em 1865, no relatório sobre a situação da Ilha após a crise de 1852, salientou que a crise não se deveu única e exclusivamente à moléstia da vinha, apresentando subjacentemente o dedo acusador às estufas. No Funchal, o principal centro vinícola da Ilha, procedia-se ao tratamento do vinho por meio das estufas. O sistema de tratamento pelas estufas generalizou-se a partir de finais do séc. XIX. As estufas distribuíam-se indiscriminadamente por toda a cidade, situando-se nos terrenos anexos às adegas, na área circunvizinha do cabrestante. O processo de estufagem tinha lugar em edifícios construídos para tal, ou em cima dos fornos de cal ou de cozer pão. Em 1861, a estufa existente na R. dos Moinhos foi demolida por não ter conseguido melhorar o vinho. Para o período entre 1739 e 1872, assinala-se o uso de um forno de cal à R. do Hospital Velho e de 12 fornos de cozer pão, com idênticas funções, nas ruas do Aljube, da Ponte Nova, da Sé, das Queimadas, dos Ingleses, do Capitão, da Bela Vista, do Castanheiro, dos Pintos, Nova de Santa Maria, do Esmeraldo, e no Lg. da Sé. Por editais de 23 de agosto de 1802 e de 6 de novembro de 1803, proibiu-se a construção de estufas no recinto da cidade, tendo o juiz do povo argumentado sobre os inconvenientes que daí advinham para a saúde pública, devido ao fumo e ao constante perigo de incêndio no período de laboração. Os comerciantes da praça do Funchal manifestaram-se contra, alegando os prejuízos referentes à deslocação das estufas para os subúrbios da cidade e contrariando os argumentos infundados do referido juiz do povo; o seu intento acabou por vencer. Na realidade, como referiam, só tinham existido, até 1803, três ameaços e apenas um incêndio na estufa de Phelps Page & Ca., em 29 de outubro de 1806. As estufas deste último foram alvo de um novo incêndio na noite de 10 para 11 de novembro de 1846, mas as perdas foram apenas nas instalações, uma vez que se conseguiu salvar o vinho. Depois disso, só existem referências a três incêndios na última década da centúria: a 20 de janeiro de 1894, o fogo devorou a estufa da firma de vinhos Araújo & Henriques, seguindo-se, a 15 de dezembro de 1898, outro incêndio na estufa do conde de Canavial, na R. 5 de Julho, onde estavam mais de 100 pipas de diversos proprietários; o último incêndio noticiado sucedeu a 11 de julho de 1900 num prédio da R. do Esmeraldo, propriedade dos herdeiros de Júlio Henriques de Freitas, que tinha no primeiro andar uma estufa com 49 pipas, que se salvaram. Tendo em consideração que estas estufas podiam laborar até seis meses, o gasto em lenhas era elevado, criando, certamente, dificuldades no seu abastecimento na cidade. Desta forma, em 27 de abril de 1835, surgiu a notícia de uma reclamação ao perfeito, reivindicando a substituição das lenhas pelo carvão. Esta medida não se concretizou, uma vez que, em 1919, apareceram anúncios nos jornais relativamente à venda de lenhas para queimar nas fornalhas das estufas. Assim, em 1919, foram anunciados serviços de venda de lenhas para cozinhas, estufas e engenhos em armazéns no Campo da Barca e no Calhau. Se as estufas não eram um perigo para a saúde e a segurança públicas, tornavam-se, no entanto, prejudiciais à pouca salubridade do burgo oitocentista, atingindo o centro do mesmo e as ruas de maior movimento em redor do porto do Funchal. Assim acontecia na área da Sé do Funchal, próxima da Alfândega e do cabrestante, onde, entre 1809 e 1834, laboraram as estufas de Gordon Duff & Ca., respetivamente no beco do Assucar e na R. do Esmeraldo. Aliás, considerando que a freguesia da Sé se situava na área central da cidade, surgirá uma ideia clara da implantação, pois entre 1839 e 1840 existiam 15 estufas, a que se seguiram 9 na freguesia de S. Pedro, denotando uma forte concentração na área circunvizinha da Alfândega e do porto do Funchal, concentração que, em parte, se justifica com base no objetivo de se conseguir um fácil transporte do vinho de embarque. De notar, entre 1839 e 1840, a também elevada concentração de estufas no beco dos Aranhas (4 e 5) e em S. Paulo (3 e 1), uma área ribeirinha ao mar pelo lado da Pontinha e sobranceira à ribeira de S. João. No termo da cidade, as estufas localizavam-se em Santa Luzia, em Caminho da Torrinha, em Torreão e, em Santa Maria Maior, na R. dos Balcões, na R. Bela de Santiago e na Rochinha. Fora da área do Funchal, encontravam-se apenas duas em Santa Cruz, em 1840, uma em S. Fernando, de Joaquim Telles de Menezes, e outra na R. Direita, de Augusto César de Oliveira. Entre 1805 e 1816, notava-se uma estabilização no número de estufas: era uma altura de medidas proibitivas e de discussão contrária à implantação e à utilidade daquelas. Passado este período, o número estabilizou-se, a que se seguiu, depois de solucionada a crise, um forte impulso entre 1817 e 1829. A década de 30 foi marcada por uma queda, que se acentua a partir de 1832. O período que decorreu entre 1834 e 1844 foi de certa estabilidade no número de estufas em laboração, apenas se notando um salto isolado em 1839. Desde 1845, a tendência era para subir, atingindo-se, em 1851, o número máximo de estufas (42); mas a situação vivida a partir de 1851 inverteu o processo, que se acentuou a partir de 1860. O primeiro dado surgiu num momento em que a discussão em torno das estufas se havia atenuado, estando a própria Câmara do Funchal de acordo com a sua utilização; mas, em 1851, o assunto volta a ser objeto de intensa discussão. Depois disto, só existem dados sobre as estufas em relação ao ano de 1905, em que estão contabilizadas 35, sendo 1 mista de fogo e sol, e 7 de sol. A crise do comércio do vinho ocorrida em finais do séc. XIX contribuiu para o lento desaparecimento do número de estufas, tal como vinha sucedendo com as empresas do sector. No entanto, a tradição de estufar o vinho não se perdeu, passando a fazer parte do processo de vinificação. Nota-se que esta é uma característica do processo de vinificação que só acontece com o vinho Madeira, podendo ser considerado um processo de criação regional. João da Câmara Leme, especialista em assuntos enológicos, teve oportunidade de, em França, entrar em contacto com os sistemas de aquecimento usados desde o primeiro quartel do séc. XIX, nomeadamente com os sistemas em vaso fechado concebidos por Appert, Ervais, Verguette, Cemotte e Pasteur. De regresso à Madeira, foi confrontado com o processo de estufagem em uso, notando que o “sistema de aquecimento lento com comunicação com ar ambiente” dava ao vinho um “sabor torrado de queimado muito desagradável”, ao mesmo tempo que lhe retirava as propriedades essenciais: “Um sistema que priva os vinhos novos das suas melhores qualidades naturais e lhes introduz efeitos persistentes; que lhes tira o açúcar, álcool, óleos essenciais, e lhes introduz, um sabor desagradável que o carvão vegetal empregado lhes não pode nunca tirar de tudo, e que os impede de adquirir a finura tão assinalada nos antigos vinhos de canteiro. Na destilação do vinho de garapa despreza-se o vinhão e guardam-se líquidos alcoólicos, éteres, e sais e guarda-se o vinhão” (Id., Ibid., 241). Perante a constatação, houve que tomar providências, optando-se por um sistema de aquecimento em vaso fechado, segundo o método de Pasteur, conhecido por pasteurização. Feitas as devidas experiências, João da Câmara Leme concluiu “que o gosto de novo desaparecia muito pouco para que o vinho Madeira pudesse ser embarcado em pouco tempo como vinho mais velho, e que os seus outros caracteres não tinham suficientemente melhorado”. Em 1889, ao fim de seis anos de estudo e 10 anos de ensaios e de experiências, estabeleceu um sistema de aquecimento e de afinamento dos vinhos que tomou o nome de sistema canavial. Adotava o novo método de aquecimento rápido e arrefecimento lento em recipiente fechado. Assim, “o vinho que vai ser aquecido entra, depois de medido, num reservatório superiormente disposto, donde desce, pelo seu próprio peso, por um cano de estanho, […] continuando depois a descer, sem encontrar nada no caminho que lhe apresse o aperfeiçoamento; e chegando finalmente, depois de ter marcado num termómetro a uma temperatura adquirida, ao fundo da mesma pipa d’onde sairá pouco antes, e cuja boca, disposta de modo a impedir perda de vapores, é fechada logo que termina a operação” (Id., Ibid., 242). O autor do sistema anota que, com este processo, o vinho não perde qualquer nível do teor alcoólico e apresenta melhorias; que não há indícios de presença de enxofre e tem um aroma muito agradável, o que significa que o processo permite um notável melhoramento da qualidade do vinho. A singularidade do processo assenta no facto de se tratar de um sistema estar hermeticamente fechado, no qual “cinco fornalhas introduzem ar quente em canos que dão três voltas nas estâncias; e que são guarnecidos de chapas de ferro para facilitarem a transmissão do calor, sempre bem regulado e facilmente observado por termómetros que se podem bem ler de fora”. Daqui resulta que “o vinho assim aquecido e afinado conserva todas as qualidades naturais, apresenta qualidades próprias do vinho de canteiro que tem cinco ou seis anos e uma notável finura muito apreciável; sem apresentar nenhum mau sabor, nem defeito algum, sendo convenientemente tratado, pode logo ser lotado com outros vinhos aquecidos e conservados livres de fermentos, e mesmo ser embarcado, sem risco de se alterar, e com grande economia de álcool” (Id., Ibid., 243). O método era considerado o único processo de tratamento por estufa que animava a qualidade do vinho fazendo-o adquirir características e qualidades próprias, podendo rivalizar com os melhores vinhos de canteiro, ou seja, os vinhos que não passavam pelas estufas, envelhecendo em pipas nos chamados canteiros, os assentos do vasilhame. O vinho canavial era normalmente preparado com o boal, apresentado as seguintes propriedades: digestivo, antisséptico, medicinal e alimentício. Assim, no primeiro quartel do séc. XX, a imprensa funchalense, através de anúncios que publicitavam a sua atividade, referia dois sistemas distintos de estufagem: o canavial e o de Pasteur. O sistema canavial foi iniciado por João da Câmara Leme e foi seu privilégio durante 15 anos, sendo usado em várias estufas. Estas ofereciam aos interessados os serviços de aquecimento e de afinamento dos vinhos. O aquecimento de uma pipa de vinho ficava por apenas 1$200, enquanto o afinamento por 3 meses era de 4$500, custando 6$000 o período de 6 meses. De acordo com anúncio que publicitava o sistema de Pasteur, encontrado nas estufas das ruas 5 de Junho e dos Aranhas, o custo era de 1$500 por pipa, sendo a quebra do volume do vinho baixa e implicando, para uma pipa, a poupança de 12.000 reis a 15.000 reis. Entre 1888 e 1920, verificaram-se diversos anúncios na imprensa que publicitaram o serviço de estufagem em que os serviços disponibilizados para o efeito eram de 3, 4 e 6 meses. Mas também surgiram anúncios sobre a liquidação de três estufas de vinho, o que poderá sugerir uma crise no sistema, por força dos constrangimentos do mercado. Muito antes de João da Câmara Leme, já tinha surgido uma notícia sobre outro invento de estufagem. O novo método adequava-se aos vinhos, “comunicando-lhes o calor internamente” e tornando-os “vermelhos em pouco tempo” (Id., Ibid., 243). Tudo indica que tal processo tenha sido uma importação francesa de Severiano Ferraz, uma vez que foi a França várias vezes, donde trouxe alambiques de destilação contínua, tendo travado contacto com as inovações da técnica francesa de destilação e de aquecimento do vinho. Em 1917, sabe-se que Salomão Veiga França (1893-19??) registou a patente de um aparelho de aquecimento de vinho, mas não temos qualquer informação sobre o mesmo e se funcionou. No período entre 1806 e 1872, através da documentação disponível, podemos acompanhar o número de pipas de vinho submetidas ao tratamento de estufagem por ambos os sistemas. A primeira conclusão possível é a de que até meados do século era reduzido o número de pipas de vinho estufado, quando comparado com os valores da produção e da exportação. A estufagem só se generalizou a partir da década de 50 no processo de vinificação do vinho Madeira. O período que decorreu entre 1856 e 1865 pode ser considerado um momento crítico. A crise do oídio refletiu-se nas produções e nas exportações, fazendo com que a oferta de vinhos já estufados fosse muito inferior à colheita e à procura. Isto poderá ser a prova da existência, em armazém, de elevados stocks de vinho de colheitas anteriores. As estufas, na verdade, não morreram, apenas foram aperfeiçoadas com o tempo. Os mecanismos a vapor e a moderna tecnologia elétrica substituíram as fornalhas de lenha, propiciando uma temperatura constante de 45 a 50 ºC por um período de três meses. No início do séc XXI, o sistema de canteiro convive de modo cordial com o das estufas; ambos persistem e são usados pelas empresas de acordo com o tipo de vinhos que se pretende fazer. Os chamados vinhos novos de cinco anos são quase sempre de estufa, enquanto os demais são de canteiro. Apenas uma empresa, Artur Barros & Sousa Lda., continua fiel à tradição do sistema de canteiro em todos os vinhos que comercializa. De acordo com a legislação em vigor nesta época, o vinho deverá manter-se nos recipientes a uma temperatura constante até 55º C, por um prazo de 90 dias. Anteriormente, o vinho sofria uma evaporação de cerca de 15 %, mas, com a nova tecnologia, as perdas tornaram-se reduzidas. A disponibilização no mercado só poderá acontecer após dois anos de estágio no canteiro. Nesta altura, a Madeira Wine Company Lda. dispõe, nas suas instalações, ao Lg. Severiano Ferraz, de dois tipos de estufas tradicionais: a estufa de cimento e a de madeira, usando, ali e na R. de S. Francisco, o chamado sistema de armazém de calor. Nas demais empresas, usam-se estufas modernas, com sistemas que permitem um melhor controlo de calor.   Alberto Vieira (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social

clero (católico)

A chegada de elementos do clero à Madeira é tão antiga quanto a dos (re)descobridores, que aportaram na Ilha em 1419. Assim, quando João Gonçalves Zarco empreende a viagem que o há de conduzir ao arquipélago, faz-se, naturalmente, acompanhar de frades franciscanos, que se encarregariam não só de prestar apoio aos navegantes, como de consagrar as terras descobertas e também de garantir o pastoreio espiritual dos primeiros povoadores. O acompanhamento de Franciscanos poder-se-á explicar não só pela proximidade destes em relação aos centros do poder – eram os confessores da família real, por exemplo – mas também pela sua experiência missionária e pela sua preparação intelectual. Quando os escudeiros do infante desembarcaram em Machico, a 2 de julho de 1419, traziam consigo dois frades da Ordem de S. Francisco, embora noutras versões do sucedido se refira a presença de outros dois Franciscanos encontrados no Porto Santo, onde se teriam abrigado após um naufrágio. A questão do número de frades que estariam com Zarco e Tristão no momento do desembarque não é consensual entre os vários autores que estudaram esta questão. Segundo Henrique Henriques de Noronha, nas suas Memorias Seculares e Ecclesiasticas para a Composição da Historia da Diocesi do Funchal, Zarco e Tristão teriam encontrado os dois religiosos no Porto Santo, onde os teriam recolhido e trazido para a Madeira, para celebrar a primeira missa. Esta versão não parece muito credível, pois supõe que a expedição teria partido de Lisboa sem nenhum membro do clero e só o acaso seria responsável pela presença dos frades na altura da chegada à Madeira. Jerónimo Dias Leite, por seu lado, nas suas Notas do Descobrimento da Ilha da Madeira, afirma que com o capitão vinham “frades […] da Ordem de S. Francisco”, e remete a recolha dos dois frades encontrados no Porto Santo para o momento da segunda viagem de Zarco à Madeira, afirmando que, no Porto Santo, os navegantes “vieram dar num porto da banda leste, onde acharam uns frades da Ordem de S. Francisco, que escaparam de um naufrágio”(LEITE, 1947, 11). Esta versão é, igualmente, corroborada por Frei Manuel da Esperança, na sua História Seráfica. Celebrada a primeira missa, segundo rezam as crónicas, num altar “sobre a mesa de Machim”, e benzida a terra “como quem desfazia encantamento ou (dela) tomava posse em nome de Deus” (FRUTUOSO, 2008, 35), Zarco e os companheiros prosseguiram o reconhecimento da Ilha, à qual voltam, mais tarde, acompanhados pelas famílias, a fim de dar início ao povoamento. A partir de 1425, data provável do início do povoamento, o acompanhamento espiritual dos habitantes esteve confiado a um reduzido número de frades, que celebravam os ofícios divinos numa pequena capela de S.ta Catarina, mandada construir por D. Constança Rodrigues, mulher de Zarco, e numa outra igreja, fundada pelo próprio capitão, um pouco mais para nascente – a de Nossa Senhora do Calhau. Em 1430, a presença franciscana na Ilha é reforçada com a chegada de Fr. Rogério, que levou consigo um conjunto de frades provenientes de “Espanha […] Castelhanos, galegos e biscainhos” (ESPERANÇA, 1666, II, 670), os quais se espalharam pela Ilha, vivendo uns retirados do mundo, em oração e penitência, enquanto outros optavam pela fixação junto dos poucos núcleos populacionais então existentes. A estes últimos se ficou a dever a fundação dos primeiros “gasalhados” franciscanos no Funchal: um, primitivo, “em casas de madeira defronte dos ilhéus” (ou seja, em Santa Catarina), e outro em São João Baptista “pela ribeira acima de Santa Catarina donde esses frades se agasalharam numas casas que apegado com a igreja fizeram” (LEITE, 1947, 14). Pouco tempo, depois, porém, em fins de 1433 ou inícios de 1434, chegou à Madeira Fr. João Gonçalves, da Ordem de Cristo, à qual, a 26 de setembro de 1433, fora confiada a posse do espiritual no arquipélago. A acompanhá-lo ia um capelão, com a incumbência de visitar e ministrar sacramentos aos núcleos populacionais mais afastados. Este novo rumo imprimido aos destinos religiosos na Ilha, que agora cometia à Ordem de Cristo privilégios que os Franciscanos tinham por seus, apoiados numa bula que os autorizava a administrar sacramentos enquanto para a Ilha não fosse clero secular, acabou por ditar a incompatibilidade entre os representantes das duas ordens e forçar à retirada provisória dos Franciscanos para Xabregas, em 1459. Ainda antes de se atingir essa rutura, porém, os Franciscanos alargaram a sua ação a novas zonas, como Câmara de Lobos, cujo crescimento populacional terá promovido a fixação de alguns frades naquela parte da Ilha, criando-se, deste modo, o embrião do que viria a ser o Convento de S. Bernardino. Estima-se que, por volta de 1440, vivessem em São João da Ribeira cerca de 12 religiosos, levando uma vida de pobreza e austeridade extremas. Esta comunidade não obteve, logo de início, licença apostólica, a qual só 10 anos depois, em 1450, lhe viria a ser atribuída, pela bula Iniunctum Nobis de Nicolau V. Depois de uma ausência de cinco anos, no reino, os Franciscanos acabaram por regressar à Madeira, sobretudo como resultado da morte do infante, em 1460, a passagem do mestrado da Ordem de Cristo para as mãos de seu sobrinho D. Fernando e de desentendimentos internos em Xabregas. Assim, em 1464, desembarcam na Ilha Fr. Rodrigo de Arruda e Fr. Jorge de Sousa, com a missão de restaurar os ermitérios, respetivamente, de São João da Ribeira e São Bernardino. Considerando o mau estado das instalações, o isolamento do sítio, de tal forma intenso que terá provocado o enforcamento de um frade “por induzimento do demónio, que sempre urde semelhantes teias” (FRUTUOSO, 2008, 66), e o crescimento que a vila do Funchal já apresentava, Fr. Rodrigo decidiu deslocar as instalações dos Franciscanos mais para o centro da povoação. A oportunidade surgiu com a possibilidade de uma permuta dos terrenos de São João por outros que, devido à influência de D. Beatriz, mãe de D. Manuel, foram cedidos por João Porto, administrador dos bens de Clara de Esteves, aos quais estava vinculada uma capela de S.ta Ana. Em 1473, graças aos bons ofícios de Luís Álvares da Costa, dado como fundador do novo Convento de S. Francisco, Fr. Rodrigo de Arruda pôde materializar o seu desejo, ainda que se não possa precisar a data em que as novas instalações passaram a ser habitadas. É, contudo, relativamente seguro afirmar que, em 1481, os frades já lá viviam e a igreja estava aberta ao culto, pois foi nela que se deu o milagre do desprendimento do braço direito de Cristo, que, ao soltar-se da cruz, ficou pendente ao longo do corpo, conforme testemunho de Helena Gonçalves, filha de Zarco, tendo a imagem onde ocorreu no milagre sido posteriormente exposta na Sé do Funchal. Por seu lado, Fr. Jorge de Sousa dirigiu-se a Câmara de Lobos, onde se dedicou à reconstrução e à ampliação do primitivo ermitério que, anos antes, fora parcialmente destruído por uma enchente da ribeira. Tornou-se seu guardião e contribuiu para o engrandecimento daquela casa, que se virá a celebrizar por nela ter vivido Fr. Pedro da Guarda, também conhecido como o “santo servo de Deus”, irmão leigo cujas virtudes e cuja fama de santidade o transformaram numa das mais veneradas figuras da Ilha. Alguns dos frades regressados tomaram, contudo, um rumo diferente e foram instalar-se em Machico, numa “palhoça repartida ao modo de celas” (NORONHA, 1996, 232) a qual, talvez pela precariedade da construção, foi destruída por uma aluvião no inverno de 1467. Para além das fundações referidas, no Funchal e em Câmara de Lobos, os Franciscanos vão continuar a expandir-se ao longo dos séculos seguintes com a criação de novas casas, nomeadamente em Santa Cruz, onde, graças a bens legados por Urbano Lomelino, se construirá o Convento de Nossa Senhora da Piedade, inaugurado em 1527. Na zona oeste, nascerão, na Ribeira Brava, o oratório da Porciúncula, fundado em 1581 e que nunca chegará a ter estatuto de convento, e na Calheta, em 1670, junto à ermida de S. Sebastião, um convento da mesma invocação, financiado por esmolas do povo. Como já se referiu, pouco tempo depois do início do povoamento do arquipélago, o espiritual das ilhas foi concedido à Ordem de Cristo, por doação que fez o Rei D. Duarte a seu irmão, o infante D. Henrique, oitavo mestre da dita Ordem. Foi, portanto, ao infante que se dirigiu João Gonçalves Zarco “logo que fundou a vila do Funchal e viu que não tinha ainda sacerdotes com jurisdição paroquial”, pedindo que os mandasse. O infante acedeu ao pedido e deu instruções a D. Fr. Pedro Vaz, Prior de Tomar, no sentido de colmatar aquela falta. O prior enviou “um sacerdote com título de vigário e outros com título de beneficiados; e da mesma sorte proveio com outros semelhantes a vila de Machico” (CORDEIRO, 1866, 129). Estes teriam, pois, sido os primeiros eclesiásticos indigitados para a Madeira, a seguir ao apontado por Pita Ferreira, e ao qual ninguém mais se refere. Dos nomes destes dois freires de Cristo apenas se sabe o que foi para Machico e que, segundo Jerónimo Dias Leite, se chamaria João Garcia (Vaz) (LEITE, 1947, 18); em relação ao do Funchal, aparecem referências, mas sempre como sendo o “vigário velho”, sem mais elementos que possibilitem a sua identificação (PEREIRA, 2001, 16). Por morte do infante D. Henrique, em 1460, o mestrado da Ordem de Cristo passara para seu sobrinho e herdeiro, o infante D. Fernando, a quem emissários de João Gonçalves Zarco apresentaram queixa da falta de clérigos em número suficiente para fazer face às necessidades dos já muitos habitantes da Ilha. A esta petição respondeu o infante, em agosto de 1461, dizendo que sabia que o seu antecessor não havia colocado mais que um capelão “em essa parte Da ylha […] porque entam agemte era pouca. E agora he em mays multiplicaçam asy que hũ soo capellam nom pode abramger atodollos logares õde convem serem Ditas myssas e Dados hos sacramemtos asy como Em Camara De lobos E en a Ribeyra brava e pomta Do soll E Do arco, nesto vos Respomdo que vos requeraees ao vigairo Da ylha que vos proveja Dos Ditos capellãees que vos necessarios forem”, acrescentando que da resposta do vigário lhe dessem notícia, a fim de sobre o assunto poder decidir (MELO, 1972, 11-12). Apesar de esta resposta se referir apenas à capitania do Funchal, é de crer que algo de semelhante tivesse ocorrido com a de Machico, o que demonstra a crescente complexidade da administração eclesiástica da Ilha, provocada pelo constante aumento populacional, o qual, por sua vez, radicava no ciclo de riqueza insular proveniente do açúcar. A capitania do Porto Santo não é referida na documentação coeva, mas é de supor que andasse a par com o sucedido nas outras duas, ou seja, que tivesse sido dotada de vigário. Segundo os Anais do Porto Santo, o primeiro sacerdote conhecido daquela ilha seria Nuno Vaz, que paroquiou na ilha a partir de 1572 (Anais…, 1989, 20). No entanto, a documentação do tombo da Câmara do Funchal menciona um Vasco Afonso, “vigayro de Santa Maria da Compçeçam da ylha do Porto Samto e beneficiado na ygreja mayor da villa do Fumchall e ouvydor por nos [D. Diogo] em a jurdiçam de Machiquuo e Porto Sancto e bem asy juiz dos resydos”, datada de 1 de fevereiro de 1500 (MELO, 1973, XVII, 397-399). Em 1472, e na sequência da criação do bispado de Tânger, dá-se o bem conhecido episódio da pretensão de D. Nuno Álvares, prelado da nova Diocese, à apropriação do arquipélago da Madeira para sobre o mesmo exercer igualmente a sua jurisdição, intenção prontamente rejeitada por D. Prior de Tomar. Àquela atitude de repúdio se juntou D. Beatriz, tutora do duque D. Diogo, menor e mestre da Ordem de Cristo. Embora sem outras consequências, o referido episódio serviu para chamar a atenção para o estado de relativo abandono espiritual em que se encontrava o arquipélago, pelo que, pouco depois, a mesma D. Beatriz se apressava a enviar carta, com data de 30 de outubro de 1476, na qual apresentava como vigário, Fr. Nuno Gonçalves, capelão de D. Diogo, antigo criado de seu marido, o duque D. Fernando, pessoa da sua confiança pessoal. Apesar das recomendações que trazia, Fr. Nuno Gonçalves não se deu bem com a população da Ilha, que em breve instava junto de D. Beatriz para que mandasse recolher o vigário ao reino, o que veio a acontecer quatro anos depois, em 1485, por intervenção de D. João II. Atendendo a uns “apontamentos” apresentados a D. Manuel, duque de Beja e mestre da Ordem de Cristo, a 22 de março de 1485, por procuradores do Funchal, que indicavam que “frey Nuno Gonçalvez vygairo que hora foy na dita ilha veeo caa chamado e lhe foy depois enviado outro de que atee agora sam contentes” (PEREIRA, 2001, 17), pode pôr-se a questão de, imediatamente a seguir a Fr. Nuno Gonçalves, ter havido novo vigário. A existência dessa personagem volta a ser referida em outra carta de D. Manuel, de 17 de julho de 1488, quando, a propósito da instituição de um mosteiro de freiras, se declara que o mesmo pode ser edificado ou em Santa Maria de Cima, ou em “Santa Maria do Calhau ou em Sam Sebastião, omde mjelhor parecer ao vigayro e ao capitam ou a vós” (PEREIRA, ibid., 18). Na realidade, a presença de um vigário interino entre Nuno Gonçalves e Nuno Cão, chamado Vasco Afonso, provavelmente o vigário do Porto Santo atrás referido, está atestada nas vereações da Câmara do Funchal, onde é mencionado a 25 de julho de 1488. Insofismável é a nomeação de Fr. Nuno Cão, mestre em Teologia, e membro na Ordem de Cristo, indicado por carta de D. Manuel com data de 30 de março de 1490, documento que igualmente estabelece os rendimentos do nomeado. Este Fr. Nuno Cão veio exercer funções de vigário na igreja de S.ta Maria, também conhecida por Nossa Senhora do Calhau, mas a sua longa permanência na Madeira (até 1431) e as transformações porque passou a administração religiosa do território, elevado à condição de bispado em 1514, acabaram por transformá-lo em primeiro deão da Catedral. Com efeito, com a constituição do cabido, Fr. Nuno Cão viu-se promovido, ficando os 3 beneficiados mais antigos com as posições de arcediago, chantre e tesoureiro, sendo os restantes 12 investidos na dignidade de cónegos. Enquanto vigário, Fr. Nuno Cão acompanhou a primeira visita que um bispo fez pessoalmente à Ilha. Tratou-se de D. João Lobo que, em 1508, se deslocou à madeira para crismar, ministrar ordens e benzer a a futura Sé da Diocese. Em 1516, já como deão, Fr. Nuno Cão surge a assessorar outro bispo, D. Duarte de Dume, que foi à Madeira enviado pelo bispo e vigário da Ordem de Cristo, D. Diogo Pinheiro, com a missão de, mais uma vez, crismar e ordenar, além de consagrar a Sé e benzer a igreja de S. Roque. Esta referência à igreja de S. Roque remete para a problemática da criação das primeiras paróquias, que atestam a progressiva complexificação das estruturas eclesiásticas no arquipélago. As paróquias A paróquia configura-se como a unidade mais básica da divisão eclesiástica de um território. Esta demarcação administrativa caracteriza-se por incluir um determinado conglomerado de fiéis – residentes no espaço delimitado –, encontrando-se subordinada ao governo de um pároco e de uma mitra e possuindo uma sede dedicada a um orago singular onde se celebram os ofícios divinos e se administram os sacramentos. Denota-se, claramente, o carácter geográfico desta definição, que delimita parcelas distintas de um espaço e lhes atribui uma administração específica; porém, a paróquia extrapolava a territorialidade e possuía importantes competências religiosas, socioeconómicas e culturais (Paróquias). A Diocese do Funchal foi evoluindo e foi-se complexificando. A sua divisão em espaços jurisdicionais mais reduzidos, através do incremento do número de paróquias, é disso um sintoma. Todas estas circunscrições tiveram origem em ermidas ou capelas. Instituídas pelos primeiros povoadores ou pelos mais possidentes, as capelas que constituíram um polo aglomerador de população com condições económicas favoráveis e algum prestígio, foram elevadas à categoria paroquial. Antes de haver paróquias, os Franciscanos celebravam missa nas capelas existentes, como se disse. A carta do infante D. Fernando, de 3 de agosto de 1461, é deveras clara em relação ao serviço eclesiástico, ao referir que “hũ soo capellam nom pode abramger atodollos logares õde convem serem Ditas myssas e Dados hos sacramemtos” (MELO, 1972, 12). Quer isto dizer que era um capelão, e não um vigário, um pároco ou um reitor – tudo designações utilizadas normalmente para o presbítero responsável por uma paróquia – que oficiava os serviços em diversos sítios da Ilha, nomeadamente em Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e no Arco da Calheta. Deduz-se, então, que este serviria nas principais capelas dos ditos sítios e que uma análoga situação deveria ocorrer na capitania de Machico e na do Porto Santo. Logo, o clero seria itinerante, sem obrigatoriedade de residência, pelo que não acompanharia os crentes diariamente. Esta ausência de um eclesiástico exclusivo para cada um dos sítios referidos parece indicar que estes locais ainda não constituíam paróquias, mesmo que a residência só fosse obrigatória após o Concílio de Trento (1545-1563). Apenas a partir de 1466 se tem a certeza da criação de três paróquias na Madeira, correspondentes às vilas que são sedes de capitania. Estas paróquias iniciais foram criadas ex nihilo, ou seja, originaram-se de ermidas já erigidas, mas num espaço sem divisões eclesiásticas pré-existentes. Por seu turno, as seguintes serão fundadas por desmembramento, desintegrando-se de uma paróquia já existente, como acontece com a maioria das paróquias reinóis e europeias. Cada uma destas fases – ermidas, paróquias ex nihilo e paróquias por desmembramento – correspondem à gestão por entidades distintas, sendo quase certo que as primeiras foram administradas pelos seus fundadores, ainda que sob a tutela da Ordem de Cristo. Em 1474, foi pedido a D. Beatriz, regente da Ordem de Cristo por seu filho D. Diogo, que expulsasse uns “galegos” que ocuparam umas terras em Santa Maria do Anjos, perto da Ponta do Sol. Nesse espaço ocorreram “eujdentes mjlagres” que geraram uma devoção popular; e os moradores das redondezas pretendiam que se erigisse uma ermida em honra de Nossa Senhora. A duquesa acedeu ao pedido e procedeu à expropriação da terra, tendo ordenado que esta fosse desimpedida para se construir a ermida e “fazer latada E pumar E Seu cercoyto comujnhauell” para abastecer o ermitão. A restante terra poderia permanecer nas mãos dos donos, desde que se não trouxesse para elas cabras, ovelhas e porcos, que destruíssem as culturas (MELO, 1972, 75). Apesar de este sítio nunca ter chegado à categoria paroquial, é um exemplo de um dos motivos para se erigir ermidas. Todavia, é de crer que as capelas iniciais foram fundadas devido à falta de lugares de culto num novo espaço povoado e não graças a legados pios ou situações milagrosas, como aconteceu neste caso. No que concerne à constituição de paróquias ex nihilo, Fernando Jasmins Pereira defende que as três primeiras teriam sido fundadas entre 1433 e 1460. Ainda que nenhum documento o prove, poder-se-ia sustentar que o estado das estruturas camarárias, económicas e demográficas implicaria a existência de uma paróquia ou uma proto-paróquia que assegurasse o serviço religioso, embora só se consiga obter a certeza em 1466. Numa resposta a diversos apontamentos, o infante D. Fernando refere por duas vezes o título de vigário. Em primeiro lugar para descartar a obrigatoriedade de o “vigayro”, provavelmente o do Funchal, dizer missas além das de domingo e dias de festas, por não ser sua obrigação nem ser o costume do reino. Posteriormente, referindo-se à “vigaria Do machico”, estipula que o vigário possa colocar outro que o substitua no canto, desde que seja “home honesto E De booa vida” (MELO, 1972, 39-40). A utilização destes vocábulos confirma a existência de uma paróquia em Machico e, por semelhança, no Funchal e no Porto Santo. Por último, as paróquias constituídas por desmembramento são essencialmente da responsabilidade da Coroa e a da Igreja, pela mão do bispo. As últimas constituídas no séc. XV foram ainda criações da Ordem de Cristo; porém, na sua maioria, as paróquias foram fundadas pelo grão-mestre da Ordem, como monarca ou por decisão do prelado, ainda que este consultasse o Rei. Um bom exemplo deste caso é a paróquia de S. Pedro e as sucedâneas de S. Roque e S. Martinho. Criada em 1566, a paróquia de S. Pedro pretendia acolher os fiéis da enorme paróquia da Sé, que não conseguia acudir a todos os paroquianos. Assim, após a aprovação régia, de 20 de julho de 1566, o bispo D. Jorge de Lemos fundou a paróquia de S. Pedro, desmembrando-a da da Sé e afirmando querer “que nela se ministrem os santos sacramentos como em cada uma das outras igrejas curadas do dito bispado e que haja na dita igreja cura d'almas que ministre os ditos sacramentos aos fregueses dela” (ANTT, CSF, mç. 2, doc. 14). Porém, esta divisão também gerou uma paróquia de grande dimensão, cujo crescimento e dispersão populacional impediam um correto acompanhamento espiritual. Logo em 1579, D. Jerónimo Barreto, extinguiu, pois, a paróquia de S. Pedro, dividindo-a em duas, sediadas nas ermidas de S. Roque e de S. Martinho. Anos mais tarde, em 1588, D. Luís de Figueiredo e Lemos, em visitação à paróquia da Sé, declarou que esta era muito grande e populosa, necessitando de a dividir novamente. Constitui-se, então, novamente a paróquia de S. Pedro, perfazendo o total de oito paróquias na cidade do Funchal, no séc. XVI: S.ta Maria Maior/do Calhau, S.to António, Sé, S. Pedro, Nossa Senhora das Neves/S. Gonçalo, Nossa Senhora do Monte, S. Martinho e S. Roque. Os estudiosos são unânimes no que concerne ao número de paróquias criadas no séc. XV: seriam 10 e coincidiriam com os aglomerados populacionais e as fazendas povoadas primordiais, escolhidas pelos povoadores para fixar residência. O que tem feito divergir os historiadores são as datas de elevação a paróquias. Como se demonstrou, só há a certeza da existência de três paróquias, cada uma na sede de capitania, no ano de 1466. As restantes sete – Calheta, Câmara de Lobos, Caniço, Ponta de Sol, Ribeira Brava, Santa Cruz e São Vicente – só terão sido criadas posteriormente a 1485. A 22 de março desse ano, D. Manuel responde a alguns apontamentos que lhe tinham sido feitos, esclarecendo, num deles, os vencimentos dos vigários da ilha da Madeira: 50.000 reais anuais para o vigário do Funchal, 20.000 para o vigário de Machico e 8000 reais para cada um dos nove beneficiados existentes nas duas paróquias. O documento não refere outra paróquia na Ilha. Assim, é de presumir que as restantes terão sido constituídas entre 1485 e o início do séc. XVI. Já a centúria de quinhentos foi uma das mais profícuas no que respeita à fundação de paróquias. O aumento populacional e a mobilidade dessa população obrigaram à criação de 26 novas demarcações, todas desmembradas de outras paróquias maiores: Água de Pena, Arco da Calheta, Canhas, Caniçal, Estreito da Calheta, Estreito de Câmara de Lobos, Faial, Fajã da Ovelha, Gaula, Madalena do Mar, Nossa Senhora do Monte, Nossa Senhora das Neves/S. Gonçalo, Ponta Delgada, Ponta do Pargo, Porto da Cruz, Porto Moniz, S. Jorge, S. Martinho, S. Pedro. S. Roque, S.ta Maria Maior, Santana, S.to António, Seixal e Tabúa. Enquanto no séc. XVI as fundações decorreram ao longo do tempo, na centúria seguinte só em 1680 é que se constituíram novas paróquias. Nesse ano, denotando o “descómodo” dos paroquianos em se deslocarem às igrejas paroquiais, D. Fr. António Teles da Silva constituiu cinco novas freguesias: Arco de S. Jorge, Camacha, Prazeres, S.ta Luzia e Serra de Água (ANTT, CSF, mç. 2, doc. 27). Já o Paul do Mar deverá ter sido fundado nos finais desse século ou no dealbar do seguinte, ainda que se desconheça a data exata. Será, no entanto, necessário esperar mais de um século para que se eleve uma nova paróquia, no caso a do Curral das Freiras, que ganhou independência em 1790. De igual modo, outras ermidas viram a sua categoria elevada no séc. XIX, ainda que tenham sido curatos, mais ou menos independentes na centúria de setecentos. Assim, ganharam autonomia o curato de Boaventura, em 1836, e os curatos do Jardim do Mar, S. Roque do Faial e S.to António da Serra, em 1848; a Quinta Grande foi curato desde 1820 e elevada a paróquia em 1848 e a Ribeira da Janela foi constituída como curato em 1733 e ter-se-á autonomizado no século seguinte, ainda que se desconheça quando. Novamente, muito tempo depois das constituições anteriores, em 1954, a ermida do Imaculado Coração de Maria ascendeu a paróquia. Por decreto de 24 novembro de 1960, o bispo D. Fr. David de Sousa procurou solucionar a falta de efetivos clericais, tentando, segundo diz Eduardo Pereira, “suprir a reduzida existência de clero e providenciar o preenchimento das igrejas novas” (PEREIRA, 1989, II, 430), pelo que, a 1 de janeiro de 1961, 51 novas paróquias foram constituídas. Sete anos mais tarde, elevou-se a ermida da Abegoaria, com o que se passou a um total de 102 paróquias, divididas nos 5 arciprestados existentes: Calheta, Câmara de Lobos, Funchal, S.ta Cruz e S. Jorge. Em 2015, o número destas circunscrições era menor: um total de 96, distribuídas pelos 7 arciprestados existentes: Calheta (13 paróquias), Câmara de Lobos (8), Funchal (26), Machico e S.ta Cruz (18), Ribeira Brava e Ponta do Sol (12), Santana (7) e de S. Vicente e Porto Moniz (12). É necessário distinguir algumas destas paróquias de acordo com a sua hierarquia e os elementos clericais presentes no passado; todas as circunscrições citadas são paróquias, embora, como se disse, tenham começado por ser capelas, com o seu capelão pessoal. Este clérigo não era efetivo nestes sítios, podendo, no passado, mudar anualmente. Nas paróquias, o pároco tem uma função importante, pois ele é o pastor e governa a paróquia. Em algumas, criaram-se curatos, entregues a curas, responsáveis por coadjuvar o pároco, celebrando os ofícios na sede paroquial ou em ermidas específicas distantes da sede. As paróquias de maior importância, essencialmente devido ao número de paroquianos que nelas assistia à missa, foram constituídas em colegiadas. Estas colegiadas eram compostas pelo pároco e por um conjunto, em número variável, de ajudantes, designados, quer pelo título de beneficiados ou raçoeiros, quer pelo ofício exercido, como é o caso de tesoureiro ou organista. Assim, foram colegiadas as paróquia da Calheta, de Câmara de Lobos, de Machico, da Ponta do Sol, do Porto Santo, da Ribeira Brava, de S. Pedro, de S.ta Cruz e de S.ta Maria Maior. Como se disse, à cabeça desta circunscrição religiosa encontrava-se um pároco, que estava encarregado da cura de almas – cura animarum – e da administração da paróquia. Para os crentes, o pároco era também um dos símbolos da religião que professavam. A presença deste no quotidiano das populações fazia-se pela celebração dos ofícios divinos, pela administração dos sacramentos e pelo conhecimento e registo das faltas e pecados dos paroquianos. Para além destas, ao ministro religioso estavam confiadas outras funções importantes: era o difusor da cultura, o transmissor de conhecimento e o modelador de comportamentos, pelo que a sua permanência na vida pública e política fez dele uma personalidade influente e respeitada no seio da comunidade. Nos começos do séc. XXI, registou-se na Madeira a presença de congregações religiosas masculinas não só no âmbito dos respetivos Institutos, mas também à frente de paróquias, nomeadamente da de Fátima, entregue aos Salesianos, das da Ribeira Brava, S. João e S. Paulo, e Serra de Água atribuídas aos Dehonianos e, por fim, a da Sagrada Família, entregue aos Franciscanos Menores. A paróquia dos Romeiros, no Monte, ainda que oficialmente não esteja nas mãos dos Dehonianos, tem os serviços religiosos assegurados por aquela congregação. Formação A formação do clero, embora encarada de modo mais formal após a determinação tridentina de instituição dos seminários, existia e importava muito antes disso. Em tempos medievais, as escolas que se responsabilizavam pela aprendizagem dos eclesiásticos eram as das sés catedrais, ou as monacais, nas quais os estudantes se familiarizavam com o trivium – gramática, retórica e dialética –, seguido do quadrivium – aritmética, geometria, astronomia e música –, matérias que, no seu conjunto, constituíam as chamadas artes liberais. Para além destes conhecimentos, exigia-se ainda aos candidatos à carreira sacerdotal que dominassem outras competências, nomeadamente as relativas à liturgia, à parenética e catequética, que os tornariam aptos à divulgação dos mandamentos da lei de Deus, das sete obras de misericórdia, dos sete pecados capitais, das virtudes teologais, dos livros litúrgicos a seguir, dos dias de jejum e das festas da Igreja. Indicações que remetem para este currículo encontram-se, por exemplo, nas determinações de um sínodo realizado em Braga, em 1281, onde se estatuía que todo o clérigo devia saber falar latim, e proibia que fosse incapaz nas áreas do canto e da música. Em 1380, com a fundação da Faculdade de Teologia na Universidade de Coimbra, dá-se mais um passo importante na senda da formação clerical, ainda que ao dispor de muito poucos, atentos os custos da permanência na cidade universitária. Em relação ao clero residente na Madeira nos tempos do povoamento e seguintes, na ausência de quaisquer informações concretas sobre o seu processo formativo, concluiu-se que era realizado nas Ordens a que pertenciam os primeiros eclesiásticos: de Cristo e de S. Francisco, às quais ficava cometida a função de passar aos futuros sacerdotes as habilitações necessárias, ainda que de forma bastante experiencial. A corroborar o papel dos Franciscanos na divulgação do conhecimento, diz a História Seráfica que no convento de S. Francisco do Funchal havia sempre “perto de cinquenta frades muito letrados” (COSTA, 1958, X, 153), o que os tornaria formadores credenciados. Em fins do séc. XV, mais concretamente cerca de 1490, quando foi provido Fr. Nuno Cão como vigário de S.ta Maria do Calhau, refere-se a ação de João Gonçalves, filho de Zarco e 2.º capitão do donatário, que estaria muito empenhado em fazer “prosperar a sua ilha com religiosos e clérigos letrados”, razão pela qual apelara para o Rei no sentido de prover a vigararia vaga com “clérigo letrado”, o que se materializaria com a nomeação do já referido Nuno Cão (LEITE, 1947, 26). É aqui bastante evidente a preocupação com as “letras” do clero, e com a importância que se lhes atribuía para o progresso da terra. Em princípios do séc. XVI, começam a surgir outras indicações respeitantes a procedimentos de cariz formativo, nomeadamente com recurso a pregadores, um dos quais é referido por D. Manuel I que, em carta com data de 26 de julho de 1512, informava da chegada à Madeira de Fr. Afonso, mestre em Teologia “de que podereis receber doutrina de suas letras e ciência” (MELO, 1974, 355). A 15 de janeiro de 1513, noutra missiva expedida pelo Rei e destinada a Fr. Nuno Cão, recomendava-se ao vigário que examinasse os candidatos ao estado clerical, tendo em conta se sabiam “algum latim” e se eram de vida honesta e bons costumes, pois só assim se poderia garantir a cedência de benefícios aos mais idóneos (MELO, 1999, 15-16). Com a passagem do Funchal à categoria de bispado, constituiu-se o cabido da Catedral, o qual incluía, a princípio, apenas quatro dignidades – deão, tesoureiro, chantre e arcediago –, mas, ainda em 1514, esse corpo dignitário foi acrescentado com o cargo de mestre-escola, cuja função era ministrar a educação religiosa aos clérigos. De um pouco mais tarde, com data de 5 de janeiro de 1516, encontra-se um novo documento proveniente das vereações de Santa Cruz, o qual informa que Fr. João, Franciscano e pregador, estava na disposição de ir pregar à dita vila, pelo que a vereação da Câmara, interessada, assumia as despesas com a deslocação e o incitava a que fosse, com os “seus livros” (COSTA, 2001, 24). De proveniência régia e, mais uma vez, destinada a Fr. Nuno Cão surge, a 20 de outubro de 1520, uma nova carta, em que o Rei recomenda que “aqueles cónegos e raçoeiros que forem aptos e bem assim os moços de coro que nela servem os façais aprender canto de orgão, para aos domingos e festas oficiarem as missas com canto de orgão” (ARM, APEF, doc. 104, fls. 155v.-156). Como se pode ver, apesar da inexistência de estruturas especificamente destinadas à formação clerical, esta era uma preocupação presente no espírito dos responsáveis, e ia sendo prodigalizada conforme as possibilidades. Com a ida para a Ilha do primeiro bispo residente, D. Fr. Jorge de Lemos (1556-1569), foram dados passos de relevo no tocante à educação do clero. O primeiro foi de imediato visível na determinação episcopal de conseguir renda para um mestre de capela que o bispo levara consigo do reino, a quem encarregou de proceder à reforma do coro da Catedral, e da formação dos moços de coro e outros clérigos que deviam abrilhantar as cerimónias com cânticos. O segundo operou-se quando o bispo, em uma deslocação que fez à corte, logrou obter de D. Sebastião a carta régia, datada de 20 de setembro de 1566, que autorizava a criação do Seminário da Diocese. A instituição dos seminários fora determinada já perto do fim do Concílio de Trento (1545-1563), pelo decreto Cum adolescentes aetas, datado de 15 de julho de 1563, o qual defendia a fundação daquelas instituições com o fim expresso de promover a formação de um clero mais competente e apetrechado para combater a difusão dos ideais protestantes, e construir uma comunidade de católicos mais esclarecida e consistente (Seminário). Fruto da receção excecionalmente favorável dos decretos tridentinos em Portugal, um pouco por todo o reino se foram sucedendo iniciativas para a fundação de seminários, e a Madeira seguiu a tendência nacional, embora à intenção de D. Jorge de Lemos se não tenha seguido de imediato a concretização do propósito. De facto, só em tempo de D. Jerónimo Barreto foi possível passar das intenções aos factos, o que veio a acontecer com a real instalação do Seminário, sobre cuja data exata não há certezas, sendo, porém, legítimo colocá-la à volta de 1575. Segundo Noronha, o “colégio” foi instalado em casas de aluguer, tendo-lhe sido fixado o número de “dez colegiais” mas sem “estatuto nem regimento” (NORONHA, 1996, 304). Continuando com Noronha, fica-se a saber que o Seminário só teve instalações próprias com o bispo seguinte, D. Luís de Figueiredo Lemos, mas foi preciso esperar por D. José de Sousa de Castelo Branco para surgir o primeiro regimento, com data de 3 de janeiro de 1702, que determinava os mesmos 10 estudantes e um número de porcionistas designado pelo bispo. Quanto ao perfil dos jovens alunos, pretendia-se que tivessem de 12 até 18 anos, fossem de sangue puro e se desse precedência aos mais nobres, ao contrário do que estipulava o concílio, que mandava preferir os mais pobres (O Sacrossanto…, II, 199). O plano de estudos que lhes estava destinado estendia-se por sete anos, sendo que, nos quatro iniciais, se ocupariam da aprendizagem de latim e solfa (i.e., solfejo), enquanto nos últimos três estudariam moral ou filosofia. A partir de 1570, a Madeira beneficiou da presença de Jesuítas que, logo a 6 de maio desse ano – ainda antes, portanto, de o seminário se encontrar em funcionamento –, iniciaram as suas aulas de latim e gramática. Nessa altura, ministrava-se também a “exposição de casos de consciência”, a cargo do P.e Pedro Quaresma, (SOUSA, 2003, 8), matéria que tinha por objetivo um maior esclarecimento do clero. Pouco depois, em inícios do séc. XVII, nas aulas do pátio do colégio da Companhia de Jesus, já havia lições de teologia e moral para os clérigos, e de latim e retórica para os leigos (FRUTUOSO, 2008, 294). Muito antes de todas estas estruturas estarem disponíveis em território madeirense, havia jovens, sobretudo filhos de famílias ricas, que conseguiam ir fazer os seus estudos no exterior, quer em Coimbra, quer no estrangeiro, embora nem todos se destinassem à vida religiosa. Entre os que se ausentaram, encontram-se os que demandaram Paris de 1520 a 1550, recenseados por Nuno Porto num total de 20, a maior parte dos quais não voltou sequer a Portugal. Dos que regressaram, porém, embora se tenham quedado pelo continente, há que destacar os nomes de Luís e Martim Gonçalves da Câmara, Jesuítas e, respetivamente, precetor e escrivão da puridade de D. Sebastião, que, apesar de não terem feito repercutir a sua formação diretamente sobre a Ilha, se tornaram figuras de incontornável importância no panorama nacional. Outro filho da terra que estudou em Paris e se revestiu de grande destaque foi o P.e Leão Henriques, que alcançou a posição de provincial da Companhia de Jesus (PORTO, 1953, 16-19). Em “Madeirenses na Universidade de Salamanca…”, Rui Carita recolheu os nomes dos estudantes madeirenses que estiveram matriculados em Salamanca entre 1580 e 1640, em número de 21, tendo-se perdido o rasto de muitos deles. De alguns, porém, sabe-se que antes de saírem para Salamanca receberam ordens no Funchal e, num caso, registou-se uma importante carreira eclesiástica no regresso. Alguns exemplos: António Lopes da Fonseca, que entre 1592 e 1600 foi aluno da universidade espanhola, recebeu ordens menores em 1588, após o que terá partido para Salamanca, onde se tornou bacharel em Cânones; Inocêncio de Barros, que recebeu as duas primeiras ordens menores no Funchal em 1594, rumou posteriormente para Espanha, onde se graduou, também em Cânones, em 1610, o que significa que, apesar de terem iniciado estudos na Ilha, preferiram e puderam sair dela para seguir outro destino. Há finalmente o caso de António Veloso de Lira, que recebeu os dois primeiros graus de ordens menores entre 1634 e 1636, aparecendo matriculado na faculdade de Artes de Salamanca em 1639, dando nesse ano início à frequência do curso de Teologia, que veio a completar em 1640. Regressa a Portugal nesse ano, por ser apoiante de D. João IV, e publica em Lisboa, em 1643, Espelho de Lusitanos, demonstrando a sua dedicação ao monarca. Voltou para o Funchal em data incerta, onde teve percurso de mérito, tornando-se cónego da Sé do Funchal em 1670 e cónego magistral em 1690. Para Coimbra também iam muitos madeirenses estudar, conforme se pode concluir da recolha operada por Fr. António do Presépio Moniz, sendo que desses se encontram 31, entre bacharéis e licenciados, a trabalhar na Madeira até 1640. Apesar do inegável progresso registado na habilitação dos clérigos madeirenses desde o início do povoamento, ainda se vão detetando lacunas na formação, e, a 13 de outubro de 1601, encontra-se registo, no livro de provimentos da Tabua, de uma estratégia para minorar as insuficiências formativas dos párocos espalhados por freguesias rurais. Assim, o bispo, D. Luís Figueiredo de Lemos (1585-1608), que pessoalmente fazia a visita, começava por informar que, em resposta a um relatório que mandara para Roma com os dados sobre o estado da Diocese, recebera da Sagrada Congregação dos ilustríssimos senhores cardeais uma instrução que se apressava a cumprir. Dizia a instrução que ordenasse aos párocos das freguesias “dos montes em que isto é mais necessário” que se juntassem para “praticarem as dúvidas e os casos de consciência que houverem na administração dos sacramentos”. Indicava, logo depois, como se devia proceder a essas reuniões: os párocos do Caniço, da Gaula, da Água de Pena e do Caniçal, bem como os curas de Machico e de Santa Cruz, deveriam juntar-se duas vezes por ano, uma em Machico e outra em Santa Cruz, para debaterem em conjunto os problemas surgidos. Caso os vigários de Santa Cruz ou de Machico não conseguissem esclarecer as questões, elas deveriam, então, ser remetidas ao próprio bispo (ACEF, Tabua, cx. 2, fl. 34-34v.). Mais adiante, esclarecia o critério geográfico para se juntarem as freguesias restantes. O cuidado que subjaz a estas determinações pressupõe que o prelado, em visita ad sacra limina, teria informado o Papa do fraco nível de conhecimentos do seu clero, o que motivara a referida resposta da Sagrada Congregação. Do périplo visitacional de 1601/1602 empreendido pelo mesmo bispo ficaram idênticas determinações noutras freguesias, como aconteceu no Seixal, por exemplo. Apesar de todos os esforços empreendidos para melhorar a formação clerical, esta não deixa nunca de ser uma preocupação para os bispos que, em relação ao assunto, vão deixando, em pastorais, advertências que há que seguir. Assim, D. José de Sousa de Castelo Branco, em carta publicada a 20 de dezembro de 1699, alertava para a necessidade que havia de confessores, sobretudo nas zonas rurais, porque alguns beneficiados e muito clero extravagante “se não aplicam ao estudo da Moral […] por cuja razão lhe mandamos que sob pena de obediência se apliquem ao estudo para que sejam capazes de servirem em tudo a Igreja” (ACEF, cx. 45, doc. 8). Mais adiante, acrescentava que, em sede de visita, os havia de examinar a todos, e os que achasse insuficientes os havia de “penitenciar”, procurando “melhorar” outros conforme “merecerem suas capacidades”, sendo que para os beneficiados e os ecónomos haveria exames “mais rigorosos, pois são obrigados a ajudar os párocos na administração dos sacramentos e que juntamente hão de ser examinados de cantochão e cerimónias da Igreja” (Ibid.). Um edital do mesmo bispo, publicado em 1710, voltava ao assunto, afirmando que, por ter a ciência mostrado que os indivíduos que “se ordenam sacerdotes, depois de se ordenarem perdem totalmente a aplicação que devem ter nos estudos”, se estipulava que os candidatos a ordens menores tinham de estar matriculados no colégio da Companhia, enquanto os de ordens sacras eram obrigados a apresentar uma certidão de frequência das aulas com aplicação e aproveitamento em pelo menos dois anos letivos, sem o que não poderiam prestar provas para ingresso na carreira (ACEF, cx. 32, doc. 39). D. Fr. Manuel Coutinho (1725-1741) também se queixava da profunda ignorância do seu clero, afirmando que era “coisa lastimosa ver como muitos sacerdotes diziam a missa”, pelo que determinou exames gerais no bispado a todos os sacerdotes com menos de 60 anos, e “neste exame de cerimónias houve que reformar em todos, e alguns ficaram suspensos para sempre por não saberem ler a missa” (TRINDADE, 2012, 139). Em tempo de D. Fr. João do Nascimento (1741-1753), por uma pastoral de 5 de janeiro de 1742, o prelado exortava a todos os clérigos para que estudassem Teologia Moral, enquanto aos minoristas e aos estudantes estipulava a assistência à lição de Moral da Companhia de Jesus, advertindo que não seriam aceites em benefícios ou curatos sem apresentar uma certidão de frequência daquelas aulas pelo período de três anos (ACEF, cx. 45, doc. 17). Adiantava, depois, que a afetação aos lugares dependia de serem “bons latinos e Moralistas, mas também é necessário que tenham suficiente notícia da arte de solfa e cantochão e das cerimónias da Igreja” (Ibid.). D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1756-1784) também teve em consideração as necessidades formativas do clero madeirense, pelo que pediu insistentemente ao superior geral dos Lazaristas o envio de dois missionários, em princípio destinados a ocupar lugares de direção no Seminário do Funchal. Apesar de nunca terem chegado a cumprir esse desígnio, os padres João Alásio, piemontês, e José dos Reis demoraram-se na Ilha 10 anos, entre 1757 e 1767, período que dedicaram “à formação espiritual, intelectual e pastoral do clero madeirense, organizando conferências e retiros espirituais (ABREU, 2015, I, 755). Abordada de uma outra perspetiva, a formação do clero insular também ficou registada em testemunhos de estrangeiros que passaram pela Madeira e que sobre ela deixaram as suas impressões. Assim, Antoine Biet, que esteve na Ilha a caminho da Guiana francesa em 1652, achava o clero “pouco dado à devoção e muito ignorante em relação a assuntos religiosos” (FARIA, 2015, I, 528), enquanto, em 1689, John Ovington, um médico protestante, dizia a propósito dos Jesuítas, formadores de boa parte do clero insular, que tinham grande incapacidade cultural, pois “apenas um em cada três com quem conversei compreendia o latim” (ARAGÃO, 1981, 204) – ainda que aqui se deva ter em consideração que Ovington também era clérigo e forte crítico do catolicismo. Por haver consciência das limitações com que se debatia a questão da preparação clerical no séc. XIX, e mais uma vez com o intuito de tornar mais eficaz a formação eclesiástica, D. Patrício Xavier de Moura vai reformar o Seminário do Funchal, na sequência do que já havia sido decidido a nível nacional quando, após o encerramento daquelas escolas em 1834, uma lei de Costa Cabral, de 28 de abril de 1845, determinara a sua reabertura. À referida recuperação foi afetada uma parte dos rendimentos da Bula da Cruzada, para que se pudesse “educar e instruir alguns estudantes pobres que têm vocação para o estado eclesiástico e que, por falta de meios, não podem seguir a sua vocação”, medida com a qual o bispo logrou aumentar o número de alunos de 12 para 18, e melhorar os vencimentos dos mestres das “matérias teológicas e Morais” (ACEF, cx. 45, doc. 37). Em complemento destas inovações, publicou igualmente, por edital de 1 de outubro de 1865, um novo plano curricular que dividia o programa de estudos em três anos, no primeiro dos quais se aprenderia História Eclesiástica e Sagrada, Filosofia do Direito e Teologia Dogmática Geral; no segundo ano, estudar-se-ia Teologia Dogmática Especial, Direito Canónico e Teologia Moral; e no terceiro ano estavam novamente as matérias de Teologia Moral, bem como Teologia Pastoral e Eloquência Sagrada, e finalmente Hermenêutica, ministradas em aulas que decorreriam entre as 11.00 e as 14.00 h (ACEF, cx. 32, doc. 10) (Seminário). Cerca de 20 anos mais tarde, sendo bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1877-1911), o problema do Seminário voltará a estar na ordem do dia, empreendendo o prelado uma nova reestruturação que muito ficou a dever à intervenção do P.e Ernst Schmitz, coadjuvado por uma equipa de outros Lazaristas, que instituiu um ciclo de estudos preparatórios, até então inexistente. Em paralelo, introduziu no currículo estudos na área da Zoologia e da Física, matérias que nunca tinham figurado na preparação dos eclesiásticos. D. Manuel Agostinho Barreto também dotou o seminário de um edifício construído de raiz, o Seminário da Encarnação em Santa Luzia, promoveu a realização de retiros anuais para sacerdotes e aumentou, de novo, o número de alunos. Como fruto de todas estas alterações, pôde o Seminário tornar-se a escola responsável pelo “alto nível” de competência que foi apanágio do clero madeirense na primeira metade do séc. XX (COELHO, 2015, II, 580) Sensivelmente a meados do século, a 17 de outubro de 1947, os religiosos dehonianos, da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, inauguravam no Funchal outra estrutura também devotada à formação religiosa e sacerdotal, o Colégio Missionário do Sagrado Coração de Jesus. A sua abertura foi aprovada pelo bispo, D. António Manuel Pereira Ribeiro, e incentivada pelo cardeal madeirense D. Teodósio Clemente de Gouveia, arcebispo de Lourenço Marques, e destinava-se à formação de futuros missionários para as colónias portuguesas. (Dehonianos). Nos anos 60 do séc. XX, sentindo-se a necessidade de uma formação mais personalizada, D. David de Sousa, prelado diocesano (1957-1965), decidiu adquirir o Hotel Bela Vista, onde instalou o Seminário maior, reservando o Seminário da Encarnação para Seminário menor. (Episcopado católico, D. David de Sousa, Teologia, Pastoral). A D. David de Sousa sucedeu D. João António da Silva Saraiva (1965-1972), até então reitor do Pontifício Colégio Português em Roma, que procurou implementar as reformas do Concílio Vaticano II (1962-1965) nas diversas áreas da vida eclesial, nomeadamente nos seminários (D. João António da Silva Saraiva). Seguiu de perto a formação dos seminaristas e do clero, tendo para este último organizado conferências e outros encontros de atualização, convidando vários preletores. Também ele, à semelhança de D. David, mandou membros do clero especializarem-se nas universidades pontifícias de Roma e em universidades civis. De realçar que, quer os seminários diocesanos acima referidos, quer o Colégio Missionário, tinham o seu corpo próprio de formadores e professores, com aulas internas. Com a abertura da Faculdade de Teologia em Lisboa, em novembro de 1968, integrada na recém-ereta Universidade Católica Portuguesa, D. João António da Silva Saraiva tomou a decisão de encerrar os estudos filosófico-teológicos no Seminário Maior e de enviar os jovens seminaristas, acompanhados pelo P.e Doutor Sidónio Gomes Peixe, que lecionaria Teologia Moral, para a capital do país, a fim de cursarem os seus estudos superiores na dita Faculdade. Ficaram a residir no Seminário Nossa Senhora de Fátima, em Alfragide, pertencente aos padres dehonianos, cujos seminaristas maiores frequentavam a mesma instituição. Posteriormente, devido a vários problemas, entre os quais o abandono de alguns seminaristas e a sede vacante do Funchal (1972-1974), os seminaristas foram estudar nos Seminários Maiores do Porto e Braga e, mais tarde, nos Seminários do Patriarcado de Lisboa (Almada, Caparide, Olivais), sempre cursando os estudos na Faculdade de Teologia. Na segunda metade desse século, D. Francisco Santana (1974-1982) voltou a operar alterações na estrutura de formação eclesiástica madeirense, quando optou por, face ao processo revolucionário despoletado com o 25 de Abril, fechar o Seminário menor, passando esta escola a funcionar nas instalações do maior. Os estudos secundários dos seminaristas passaram a decorrer numa segunda fase na Associação Promotora do Ensino Livre, escola católica entretanto aberta. D. Teodoro de Faria (1982-2007) deu um grande impulso à formação dos seminaristas e do clero, tendo ordenado um número abundante de sacerdotes. A formação filosófico-teológica dos seminaristas realizava-se no Funchal (doisanos com aulas internas) e, em seguida, em Lisboa. Mandou também jovens padres especializarem-se em vários ramos das ciências sagradas, em Roma e em França, com benefício para a pastoral diocesana. A estrutura da formação eclesiástica não foi alterada com D. António Carrilho, que tomou posse do cargo em 2007. As carreiras eclesiásticas Na análise da sociedade, a tendência de agrupar o clero, enquanto grupo homogéneo, é constante. O estado eclesiástico apresenta, porém, uma heterogeneidade evidente quando estudado ao pormenor, consoante critérios de hierarquização como “a observância religiosa, o grau de sagração, as atividades desenvolvidas com a consequente distinta remuneração e a proveniência social” do clérigo; sublinhe-se ainda a “existência de hierarquias de função, de estatuto e de acção” (PAIVA, 2012, 174). O estudo das carreiras eclesiásticas terá de presumir estas distinções. Os clérigos faziam as suas carreiras consoante as escolhas próprias, as disponibilidades dos cargos e os entraves externos. Eram a possibilidade de usufruir de privilégios inerentes à clerezia, os interesses materiais decorrentes dos rendimentos que auferiam, a fuga ao exercício militar ou ao desprestigiante trabalho manual, e a vocação pessoal para servir a Deus e a Igreja que levavam muitas centenas de pessoas a procurar ingressar no estado eclesiástico. Os cadernos de ordens, como o elaborado no Funchal entre 1538 e 1558, demonstram essa afluência. A título de exemplo, nessas duas décadas registaram-se 1040 novos clérigos, pertencentes a 940 famílias. A transição entre o mundo laico e o eclesiástico era celebrada através da prima tonsura. Era, porém, obrigatório que os candidatos que pretendessem recebê-la respeitassem determinados requisitos, decorrentes dos decretos tridentinos e das constituições do bispado. É na primeira constituição do título IX, relativa ao sacramento da Ordem que, nas Constituições Sinodais de 1585, se estabelecem as condições que os futuros tonsurados devem preencher. Os candidatos teriam de ser maiores de sete anos, crismados e conhecedores da doutrina cristã, e deviam possuir uma instrução básica, sabendo ler, escrever e ajudar à missa. Por último, o texto aponta aos candidatos uma obrigação que tange uma das motivações da entrada no estado eclesiástico expostas anteriormente: “que não haja deles provável presunção que se ordenarão por fugir do foro e juízo secular, mas somente para servirem a Deus” (BARRETO, 1585, 44). Em 15 de abril de 1592, o bispo D. Luís de Figueiredo e Lemos estipulou que os aspirantes à tonsura não poderiam ter mais de 15 anos. Os decretos tridentinos acrescentam a necessidade de serem filhos legítimos, de não possuírem deformações físicas impeditivas do exercício do ministério sacerdotal ou que induzissem à zombaria pública, bem como de uma habilitação de genere, para averiguar a “limpeza do sangue” e a alvura da alma. Após a receção da prima tonsura seguiam-se as quatro ordens menores – ostiário, leitor, exorcista e acólito –, que não implicavam uma progressão na vida eclesiástica, pois nem todos os ordinandos pretendiam ascender às ordens seguintes, as sacras. Tal não os impediria de auferirem rendimentos ou estarem sob o direito canónico, em vez do secular, ou mesmo de executarem funções nos cabidos das colegiadas. A idade mínima para ascender a estas ordens situava-se nos 14 anos, obrigando a ter conhecimentos de latim, certificados pelo mestre-escola ou pelo cura da paróquia, além de um comprovativo da prática de bons costumes cristãos, comprovados por uma inquirição de vita et moribus – de vida e costumes – e por mais um processo de genere. Além disto, deveam confessar-se e comungar regularmente e “em tudo” deviam ter “honestidade e modéstia” (BARRETO, 1585, 44). O grau seguinte passava pela obtenção das ordens maiores, divididas em três níveis: subdiaconado, diaconado e presbiterado. A cada uma destas ordens correspondiam funções distintas: o subdiácono podia ajudar à missa e cantar a epístola; o diácono assistia o sacerdote, podendo batizar, pregar e ler o evangelho; enquanto ao presbítero competia a cura de almas, a “condução do rebanho” e a administração de alguns sacramentos. De modo semelhante ao das ordens anteriores, impunham-se determinados requerimentos aos que pretendessem sagrar-se, os quais acabavam por se transformar em autênticos “filtros”, obrigando a que imensos clérigos se perpetuassem na condição de minoristas (MORGADO GARCÍA, 2000, 49). Exigia-se a idade mínima de 22, 23 e 25 anos, respetivamente, para cada uma das três ordens, além do aprofundamento dos conhecimentos de gramática, de latim, de cantochão e dos relacionados com a doutrina, devendo os candidatos ser examinados para se saber se “entendem competentemente o latim, e o leem, acentuam, e pronunciam bem, e se sabem bem cantar por arte e reger bem o breviário que terão de seu” (BARRETO, 1585, 47). Requeriam-se novas inquirições e exigia-se o voto de castidade, que lhes impunha uma vida celibatária. Além disto, os futuros presbíteros teriam de exercer a função de diáconos pelo período mínimo de um ano e concretizar novos exames de conhecimentos e novas inquirições. A maioria dos minoristas não ascendia às ordens sacras pela impossibilidade de cumprir um requisito: a existência de um vencimento, tença, património, pensão ou foro a título perpétuo e pessoal. Para que os clérigos se autossustentassem, enquanto não encontrassem um ofício, e não tivessem de recorrer ao trabalho manual ou à mendicidade, as constituições obrigavam a que o candidato a ordens sacras possuísse uma pensão anual não inferior a 10.000 reais, valor que foi aumentado, a 1 de setembro de 1597, para 40 cruzados anuais, o equivalente a 16.000 réis. A impossibilidade de atingir este património excluía muitos clérigos dos cargos mais elevados, para os quais se necessitava das ordens maiores. Assim, se os minoristas eram em grande número, os ordenados in sacris escasseavam. As carreiras caracterizam-se igualmente pelo percurso, consoante as funções ou cargos que os clérigos ocupam e não só pelas ordens que obtêm. É necessário atentar que este percurso é distinto para cada clérigo, estando sujeito aos cargos disponíveis nas paróquias, nas catedrais ou mesmo nas capelas privadas. É igualmente fundamental distinguir entre os cargos inseridos no sistema beneficial e aqueles que não o são; as principais diferenças recaem na perpetuidade de cargos como os de vigário, cónego ou beneficiado, ao contrário dos de curas, capelães e outros, que continuamente têm de renovar as suas licenças para exercerem o cargo, ao que acresce a escolha para o desempenho de determinado ofício. Quase nenhum destes percursos será idêntico a outro, ainda que possa haver algum grau de semelhança. A Relação dos clérigos e respectivos cargos eclesiásticos nas diversas freguesias, com a indicação das datas de nascimento, das ordenações sacras e do emprego dos referidos clérigos, um documento datado criticamente do ano de 1848 e existente em microfilme no Arquivo Regional da Madeira (ARM, APEF, 133, mf. 742), permite observar diversos aspetos das carreiras. Trata-se de um registo de 119 clérigos, contendo o nome de cada um, a sua data de nascimento, a data da obtenção do presbiterado, e as datas dos exames e das licenças de confissão e pregação, além de um registo sumário dos cargos ou funções exercidos e as respetivas datas de início. Só em 97 casos se podem tirar conclusões, pois 17 registos estão incompletos, contendo somente o nome, e 5 não permitem que se tire informações. Destes eclesiásticos, 43,3 % começaram como adidos nas diferentes paróquias, enquanto 16,5 % principiaram como curas e 15,5 % como ecónomos, correspondendo a 42, 16 e 15 indivíduos respetivamente. Trata-se de cargos situados na hierarquia mais baixa das carreiras, com a duração de um ano, podendo ser substituídos no seguinte. Igualmente se encontram referidos aqueles que iniciaram o seu percurso como sacristães (5 clérigos), capelães (4), meninos do coro (4), coadjutores (3) e vice-vigários (3). Mais raras são as referências ao início da carreira como escrivão, organista ou beneficiado, casos em que se encontra uma única referência. Restam ainda duas pessoas cujo registo começa com as funções de meio-cónego e cónego, que se pensa estarem incompletos, não apresentando os percursos anteriores dos indivíduos até atingirem os estatutos referidos. Por outro lado, 29,9 % (29 indivíduos) dos clérigos culminavam a sua carreira como vigários, 24,8 % (24) como curas e 11,3 % (11) como vice-vigários. Não é de estranhar tratar-se de lugares em paróquias e colegiadas, pois a quantidade de clérigos de que estas necessitavam era superior à das catedrais, pelo que aquelas disponibilizavam um número superior de benefícios a prover. Porém, é importante notar que 13,4 % dos clérigos referenciados acabaram em conezias e 3,1 % em dignidades capitulares. Refira-se ainda os que finalizaram a sua carreira como capelães (5 clérigos), beneficiados (3), ecónomos (2), encarregados da igreja ou da paróquia (2), meio-cónego (1), altareiro (1), organista (1) e sacristão-mor (1), e também um indivíduo que não ascendeu além do cargo de adido na paróquia de S. Pedro e na Sé. Como se disse, as ordens sacras não tinham um carácter obrigatório, podendo os clérigos ordenar-se se pretendessem e cumprissem todos os requisitos necessários. Assim, reconhece-se a existência de diversos clérigos que executavam funções clericais mesmo sem ter a ordem do presbiterado. Dos 97 eclesiásticos que se tem vindo a referir, 55 tiveram funções antes de receber a dita ordem, enquanto 32 só principiaram a sua carreira depois de obterem a ordenação, e sobre 10 os registos não permitem com claridade esclarecer a pergunta. Desses 55, 43 clérigos, ou seja, 78,18 %, foram adidos antes de serem presbíteros; outros foram ecónomos, capelães, sacristães, meninos do coro, organistas ou escrivães, havendo dois elementos que executaram as funções de meio-cónego e de cónego de prebenda inteira. Porém, não se pense que estes somente executavam um serviço. O chantre António Joaquim de Ferreira Pestana, antes de ser presbítero, executou as funções de adido na paróquia de S. Pedro, foi ecónomo na Ribeira Brava e beneficiado colado em Santa Maria Maior; e Augusto José de Faria foi adido e ecónomo em Santa Maria Maior, ecónomo na Ponta do Sol e capelão, por duas vezes, na Sé. Apesar de não serem exemplares, visto que não se seguia um arquétipo, estando subordinados à existência de cargos vagos, há diversos eclesiásticos que seguem percursos interessantes aos quais se poderia dar destaque. O P.e António Homem de Gouveia é um exemplo de um clérigo que se mantém numa igreja paroquial, ascendendo dentro da mesma. Após ter sido adido em S. Pedro, ainda antes de se ordenar presbítero e de ter portanto a possibilidade de confessar, exerce o cargo de cura na igreja da Fajã da Ovelha, passando depois para vice-vigário do Paul do Mar. A seguir, entre 1836 e 1842, foi cura, coadjutor, vice-vigário e vigário colado na paróquia da Fajã da Ovelha. Outros clérigos nunca deixaram de exercer o mesmo cargo em diversos sítios, como aconteceu com António de Pádua Pereira, que desde 1838 foi cura do Monte, da Ponta do Pargo, do Jardim do Mar, e novamente, desde 1844, da Ponta do Pargo. O registo mais completo é o de António Marcelino de Freitas, que exercia o ofício de adido desde 1800; em 1811, recebeu a última ordem sacra, e depois foi ecónomo na Ponta do Sol e na Ribeira Brava, cura em São Vicente, em Santa Maria Maior e no Porto Moniz, confessor extraordinário no Convento da Encarnação, beneficiado colado na Ribeira Brava, vice-vigário no Estreito da Calheta e vigário em Ponta Delgada. Além destes cargos, é referido que se candidatou aos concursos para outros no Estreito da Calheta, nos Canhas, na Fajã da Ovelha, em Santa Cruz. Porém, deteta-se a ambição deste eclesiástico que, mesmo depois de ser vigário em Ponta Delgada, foi vice-vigário de Câmara de Lobos e da Tabúa, procurando certamente outros lugares que fossem mais rentáveis que Ponta Delgada. Observe-se, igualmente, a ascensão de Gregório Nazianzeno Medina e Vasconcelos, que começou como menino do coro em 1801, passando por adido, ecónomo, capelão coadjutor do cura da Sé, capelão e cura ecónomo da Sé, atingindo em 1839 o estatuto de cónego; ou o arcediago José Luiz de Nóbrega, que começou como cura de Santa Luzia, em 1814, foi beneficiado colado em São Pedro e assumiu depois cargos na administração diocesana como vigário geral e promotor, ascendendo a meio-cónego em 1840, a cónego cinco anos depois e a arcediago em 1846. É importante salientar que este documento não é completo, pois apenas refere os elementos com a ordem de presbiterado, esquecendo todos os restantes, assim como não faz referência aos clérigos que se encontravam fora do sistema beneficial, de que são exemplo os capelães das ermidas particulares. A origem social do clero A entrada no estado eclesiástico era relativamente acessível, bastando que os candidatos à prima-tonsura cumprissem os requisitos estipulados. Por este motivo, poder-se-ão detetar as mais diversas categorias socioprofissionais nos pais e familiares dos tonsurados e dos candidatos a ordens menores. A entrada no clero consubstanciava uma estratégia familiar ou pessoal, correspondendo a um mecanismo de promoção social, essencialmente para os escalões mais baixos da sociedade. Para a fidalguia, a presença de um elemento da família no clero trazia duas vantagens: a renda perpétua de que este iria usufruir, principalmente encontrando-se posicionado nas hierarquias mais elevadas e nos cargos mais rentáveis, e a confirmação do estatuto de membro privilegiado da sociedade. Servia ainda para garantir um futuro digno às bastardias. Por outro lado, o ingresso na clerezia gerava “limpeza de sangue”, garantindo a “pureza” pessoal e familiar dos candidatos, em particular dos cristãos-novos presentes no espaço português (razão pela qual as famílias suspeitas de terem antepassados judeus empenhavam-se na entrada de um dos seus membros no clero, e conseguiam alcançar esse desígnio porque, quando se tratava de presbíteros destinados às paróquias – ao contrário dos destinados ao Tribunal do Santo Ofício –, os critérios eram menos rígidos, o que permitia a essas famílias “lavar” socialmente o sangue familiar). A maioria dos candidatos a clérigos tinha, todavia, a sua origem no terceiro estado. É de notar, porém, que, se muitos obtinham ordens menores, somente os que, dentro deste estrato social, pudessem dispor de algum património ou de fundos conseguiam dotar os filhos dos valores obrigatórios para ascenderem às ordens sacras. Por este motivo, Arturo Morgado García considera que a entrada no clero permite uma mobilidade social limitada, pois, apesar de permitir a existência de muitos minoristas, só alguns – aqueles que possuem rendimentos, conhecimentos, estatuto social e uma boa rede clientelar – ascendem na hierarquia religiosa. Pouco se sabe sobre a origem social do clero madeirense nos séculos passados. As fontes mais fiáveis consistem na lista de ordinandos de ordens menores ou sacras registados anualmente, que contêm informação relativa aos pais do candidato. Desde os finais do séc. XVI até a 1640, os livros de ordens registam perto de 1000 novos clérigos, representando somente uma ínfima porção dos eclesiásticos existentes nestes anos. Em 394 dos clérigos ordenados entre 1620 e 1640, sabe-se que 38 tinham ascendência fidalga, ainda que não pertencessem à mais alta hierarquia insular. Por outro lado, 59 ordinandos foram filhos e netos de artesãos, principalmente sapateiros (23) e tanoeiros (8). Interessante é o facto de alguns destes possuírem ofícios ainda antes de se ordenaram. E.g., Diogo de Araújo foi sapateiro em Santa Cruz, casando-se em 1605 com Isabel Favila; após a morte desta, em data incerta, ordenou-se padre, deixando o ofício anterior, recebendo os graus das ordens menores em 1622 e as de presbiterado em 1627. Noutras situações, os pais possuíam profissões liberais, como é o caso de notários, tabeliães e escrivães (12) ou de licenciados e advogados (3); e.g., Álvaro Vaz da Corte, falecido em 1611, foi licenciado, tendo três filhos que chegaram a clérigos. Outros tinham familiares com profissões ligadas à área da saúde, tendo os ofícios de cirurgião (4) e boticário (1). Também se detetam muitos clérigos cujos familiares pertenciam à governança local, enquanto os de outros seriam mercadores ou lavradores, ou praticavam ofícios ligados ao mar, como pescadores ou mareantes. Encontraram-se igualmente 7 clérigos que seriam filhos bastardos, incluindo 3 que seriam filhos de padres, 4 com ascendência mulata e 25 com antecedentes de cristãos-novos. Assim, facilmente se deteta a heterogenia presente na origem social do clero madeirense, e se conclui que, mais do que uma saída para os filhos segundos da nobreza, o ingresso no estado eclesiástico representava uma apetecível via de ascensão social para os descendentes do terceiro estado, desconsiderando, neste contexto, a questão da vocação, que apareceria em todos os escalões, mas que estava longe de ser o fator determinante. No começo do séc. XXI, a Diocese do Funchal contava com 87 sacerdotes do clero secular e vários do clero regular, estando estes últimos distribuídos por diversas congregações: Salesianos, Hospitalários de S. João de Deus, Franciscanos, Carmelitas descalços e Dehonianos. Uma vez que, nesta altura, se ingressava nesta carreira por razões vocacionais, a origem social dos presbíteros será transversal à sociedade. Do clero natural da Madeira, saíram alguns bispos, nomeados pelo Papa para pastores de Dioceses, de entre os quais se podem destacar D. Manuel de Noronha (m. 26/09/1569), neto de Zarco e bispo de Lamego, D. António de Aguiar, bispo de Ceuta na primeira metade do séc. XVII, D. Teodósio Clemente de Gouveia (13/05/1889-06/02/1962), bispo de Lourenço Marques, D. Manuel Ferreira Cabral (10/02/1918-12/12/1981), bispo auxiliar de Braga e depois bispo da Beira, Moçambique, D. Maurílio Jorge Quintal de Gouveia (n. 05/08/1932), arcebispo de Évora, D. Teodoro de Faria (n. 24/08/1930), bispo do Funchal, e D. José Alfredo Caires de Nóbrega (n. 12/04/1951), natural do Caniço, Dehoniano, Bispo de Mananjary, Madagascar. O comportamento do clero Atendendo ao enorme reforço do papel do clero para que apontam as determinações tridentinas, não surpreende o elevado valor que o mesmo texto confere ao comportamento exemplar dos eclesiásticos. Assim, enquanto responsáveis pela condução do rebanho do Senhor ao esplendor da vida eterna, não se poderia exigir aos pastores nada menos que a irrepreensibilidade da sua vida, em todos os momentos e ocasiões. Como forma de controlar essa mesma irrepreensibilidade, as habilitações de genere desde logo insistem em informações de vita e moribus, sem cuja abonação não poderão os candidatos à receção de ordens prosseguir na carreira, e, mesmo em sede de visitação, os editais são fortemente direcionados para o apuramento de dados relativos à atuação do vigário e dos curas e beneficiados, se os houver. Assim, dos 32 itens que integram o edital publicado em 1791, 14 versam a pessoa do pároco ou os coadjutores, procurando apurar se se entregam a negócios, se andam decentemente vestidos, se solicitam alguém em confissão, se dizem missa como devem e se vivem maritalmente com mulheres, e.g.. Na sequência dos interrogatórios, o povo da freguesia testemunha a respeito do seus clérigos, e pelo seu depoimento se fica a conhecer a existência de padres que se embriagam, que se recusam a confessar paroquianos que não lhes façam algum trabalho, que não ensinam doutrina, que vivem amancebados, que usam de violência física e verbal para com as suas ovelhas, ou que se comprometem com negócios. Outras visitas especificamente direcionadas para o cabido da Catedral detetam, entre os cónegos, comportamentos que estão longe do pretendido. Assim, em 1734, e no seguimento de problemas com um dos cónegos, D. Fr. Manuel Coutinho mandou devassar do cabido, a fim de apurar se havia inimizades entre os capitulares. Apurou-se que sim, mas entretanto também se concluiu haver vários cónegos freiráticos, ou seja, que mantinham relações inadequadas, nomeadamente de correspondência, com freiras de Santa Clara. Outra devassa ao cabido, mas esta com data de 1817, encontra os capitulares alvoroçados, e acusadores, recaindo sobre uns apontamentos de embriaguez – que levava um deles a andar a cavalo pelas ruas da cidade a gritar estrepitosamente –, e sobre outros notas de mancebia e paternidade ilícita, desentendimentos e cortes de relações entre alguns, tudo “com grande escândalo” do povo (ARM, APEF, doc. 136, fls. 33v.-81). Mesmo sem ser em contexto visitacional, é possível surpreender clérigos mal comportados, como aconteceu na Sé, em 1622, com dois cónegos que se agrediram mutuamente ao ponto de haver sangue. O bispo da altura, D. Jerónimo Fernando, cognominado Apóstolo Bravo, houve-se, porém, com contenção neste contexto, castigando-os com penas pouco relevantes. Se, porém, é relativamente comum encontrar razões de queixa dos clérigos, também não é menos verdade que aparecem com frequência comentários abonatórios a elogiar a prestação dos eclesiásticos. Em provimentos de visitações, por exemplo, acontece surgirem declarações em que muito se louva o empenho do vigário no asseio da igreja, no ensino da doutrina ou na boa ordem em que se encontram os livros de contas, conforme se constata nos provimentos de S. Jorge, de 1737, ou de S. Martinho, em 1738, por exemplo. Nas visitas ao cabido, por seu lado, também se acham registos encomiásticos do comportamento do clero, como o que resultou da devassa de 1835, realizada pelo governador do bispado, António Alfredo de Santa Catarina Braga, em cuja conclusão se pode ler que “com grande júbilo de nosso coração concluímos a visita da Santa Igreja Catedral, sem haver recebido a menor queixa dos reverendos Curas” (ARM, APEF, doc. 136, fl. 83). O séc. XIX será fértil noutras possibilidades de abordar o modo de estar dos clérigos que, a partir de 1820, se vão repartir, como de resto toda a sociedade, em liberais e absolutistas. Assim, será preciso filtrar a origem das declarações que ora consideram o clero progressista, e até condição sine qua non para vingarem as ideias constitucionais, ora o acusam do mais absurdo reacionarismo, como acontece com dois cónegos que o Patriota Funchalense apoda de “nada bem vistos aos olhos da opinião pública, por serem acusados de anticonstitucionais” (SOUSA, 1991, 181). A partir da revolução liberal, não mais cessará o clero de se envolver na evolução social e política da sociedade, o que causará apreciações muito divergentes da sua atuação, sendo então precisa uma atenção redobrada no que toca à abordagem do comportamento eclesiástico, pois as considerações tecidas poderão estar eivadas de preconceito. A Igreja sempre procurou acompanhar a formação dos candidatos ao sacerdócio nos seminários bem como a dos ministros já ordenados com a chamada formação permanente. Os Códigos de Direito Canónico (1917 e 1983), o Concílio Vaticano II e os documentos pós-conciliares, os documentos da Santa Sé, os dos bispos diocesanos e as orientações internas dos seminários traçam caminhos e metas exigentes para todas essas pessoas.   Ana Cristina Trindade  Bruno Abreu Costa (atualizado a 29.12.2016)

Religiões

economia

A definição da economia da Madeira convoca vários aspectos, desde o seu espaço e posicionamento no processo histórico peninsular e atlântico à preocupação das autoridades no sentido de assegurar a riqueza que torna sustentável a manutenção do espaço e da população. Teoria: os ciclos A primeira questão a merecer a nossa atenção prende-se com a tão celebrada teoria dos ciclos económicos da Madeira. De acordo com os seus arautos, o processo económico da Madeira articula-se de acordo com uma afirmação cíclica de produtos. Todavia, esta teoria, que teve o seu apogeu nas décs. de 50 e 60 do séc. XX, deixou de ter adeptos nos começos do séc. XXI. As suas bases foram lançadas em 1929 com Lúcio de Azevedo, sendo a teoria reforçada 20 anos depois com Fernand Braudel, conquistando grande adesão na historiografia brasileira. Ambos argumentam que o processo económico das ilhas se articulou de acordo com o regime produtivo de monocultura. Ainda em 1949, Orlando Ribeiro esclarecia que, no caso da Madeira, não era possível encontrar rastros de monocultura no regime de exploração agrícola madeirense, mas Joel Serrão, em 1950, insistia em definir o “ciclo dos cereais”. A mesma opinião também surgiu nas Canárias, onde, volvidos 20 anos, Elias Serra Rafols respondia a Francisco Morales Lezcano, enunciando que nunca existiu um regime de monocultura, uma vez que a economia canária foi dominada por uma variedade de culturas cuja atuação não é uniforme no tempo e no espaço. Mais tarde, Frédéric Mauro, secundado por Vitorino Magalhães Godinho, retomou a questão, defendendo que a economia insular se definiu apenas por um regime de produtos dominantes e não de monocultura. Vitorino Godinho introduziu, neste contexto, um novo conceito operatório: complexo histórico-geográfico. Na Madeira, a ideia vingou sobretudo junto de historiadores e eruditos, sendo difícil encontrar esta ideia expressa em qualquer análise de carácter económico. Ficou assim assente o ciclo dos cereais, do açúcar ou ouro branco, do vinho, do turismo, da banana e, certamente, da autonomia. A partir de 1979, esta forma de ver a história chegou à Madeira através da análise da história da arte e urbanismo da cidade, surgindo pela pena de António Aragão a ideia de que a cidade teve dois momentos distintos que definiram diversas formas de concretização artística e urbanística: a cidade do açúcar e a cidade do vinho. O impacto que o livro de António Aragão teve no meio académico e no público interessado levou a que a ideia acabasse por vingar. Uma análise aturada da economia insular mostra-nos que a mesma não se regeu por princípios exclusivistas, de acordo com a premência das solicitações externas. Pelo contrário, o seu desenvolvimento socioeconómico processou-se de forma variada, sendo a exploração económica dominada pela procura externa em consonância com as condições e recursos do meio, e com as solicitações da economia de subsistência. É difícil, se não impossível, conseguir definir um ciclo em que impere a monocultura de exportação num espaço amplo e multifacetado como é o do mundo insular. Os modelos, embora perfeitamente delineados, não se ajustam à realidade socioeconómica, que é extremamente variada e enriquecida com múltiplos matizes. Embora alguns produtos, como o trigo, o açúcar, o vinho e o pastel, surjam em épocas e ilhas diferenciadas como os mais importantes e definidores das trocas externas, não são os únicos na economia insular. Na verdade, a dominância destes produtos sucede apenas no sector da exportação e nunca na realidade global da Ilha, onde por vezes outros são mais dominantes enquanto fonte de riqueza familiar e de subsistência. Os ciclos de monocultivo são apenas a parte visível das exportações, pelo que limitar a análise económica a essa dinâmica é uma atitude reducionista que apenas reconhece a importância dos produtos com maior peso nas exportações. A Madeira é um microcosmo definido pela variedade de espaços ecológicos que não se compadecem com uma unicidade agrícola. Esta condição dominante levou a uma sistematização do devir socioeconómico em ciclos. A documentação é unânime na afirmação de que o empenho do ilhéu não se resume apenas ao produto que mais gira nas relações com o exterior. Há em todos uma certa preocupação com a autossuficiência que milita a favor da manutenção das culturas tradicionais que medram, lado a lado, com as dominantes no comércio externo. Esta polivalência produtiva manteve-se sempre no devir socioeconómico insular. A dominância de um ou de outro produto nas relações com o exterior não destrói essa polissemia produtiva, nem retira o empenho das gentes laboriosas nesse processo. Atesta-o as posturas municipais, nas quais, nos diversos sectores económicos, se expressa uma diversidade de interesses e o movimento quotidiano de produtos. Em todas as dinâmicas produtivas e comerciais que marcaram e definiram o processo histórico madeirense é gritante a extrema dependência da Ilha em relação ao exterior. A Europa detém, neste contexto, uma posição dominante, firmando-se como centro de orientações políticas e económicas. Essa situação comum ao mundo insular define uma das principais peculiaridades deste espaço: a extrema fragilidade e dependência da sua economia em relação ao velho continente. Para isso, em muito contribuiu a posição hegemónica das cidades-capitais dos impérios peninsulares, bem como a disponibilidade de recursos e meios das sociedades insulares. Por outro lado, é evidente que a afirmação de um produto no sector das exportações não é possível sem um sistema de policultura, principalmente em universos restritos como as ilhas. Assim, os canaviais subsistem se for possível assegurar um vasto hinterland de culturas de subsistência. Deste modo, os ciclos serão a visão mais deformada do processo económico da Ilha, a caricatura de uma realidade que é muito complexa. Entender a economia das ilhas e a sua história é, assim, reconhecer um estatuto diferenciado a estes espaços económicos. Nas ilhas, domina a diversidade geoeconómica, fruto da configuração geográfica. Na Madeira, esta situação provoca um escalonamento de culturas, impedindo a sua sobreposição. O espaço e os seus produtos O estudo e entendimento da história económica da Madeira só podem ter lugar no quadro do espaço atlântico criado pelo europeu a partir de princípios do séc. XV. A partir dessa altura, o Atlântico definiu-se como um espaço excecional dos impérios europeus, no qual as ilhas assumem uma função privilegiada no cruzamento de rotas, bem como na circulação de pessoas e produtos. A ilha foi, assim, um dos primeiros exemplos da afirmação económica europeia além das fronteiras peninsulares e a primeira demonstração do que viria a ser o mercado atlântico, materializando de forma clara as solicitações do velho continente e as esperanças e descobertas do Novo Mundo. O Atlântico tornou-se uma realidade de análise historiográfica a partir da déc. de 40 do séc. XX, sendo o exemplo dado pela historiografia norte-americana, preocupada em rastrear as origens europeias. O conceito de espaço atlântico começou a ser definido em 1947 com Louis Wright, mas terá sido o Mediterrâneo de F. Braudel que convocou a atenção a partir da déc. de 50. Os finais do séc. XX foram o momento de afirmação da historiografia atlântica. De ambos os lados do Atlântico, surgiram trabalhos em que este se constituiu como o objeto principal. No séc. XX, a história das ilhas atlânticas mereceu um tratamento preferencial no âmbito da história do Atlântico. Primeiro foram os investigadores europeus, como o já referido F. Braudel, Pierre Chaunu, Frédéric Mauro e Charles Verlinden, a destacar a importância do espaço insular no contexto da expansão europeia. Só depois surgiu a historiografia nacional a corroborar a ideia e a equacioná-la nas dinâmicas da expansão insular, sendo pioneiros os trabalhos de Francisco Morales Padron e Vitorino Magalhães Godinho. Esta ambiência condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas décadas do séc. XX e contribuiu para a abertura do conhecimento histórico às novas teorias e orientações. As décs. de 70 e 80 desse século foram importantes momentos no progresso da investigação e do saber históricos, contribuindo para tal a definição de estruturas institucionais e de iniciativas científicas. A historiografia foi defendendo única e exclusivamente a vinculação das ilhas ao Velho Mundo, realçando apenas a importância desta relação umbilical com a mãe-pátria. Os sécs. XV e XVI seriam definidos como os momentos áureos de tal relacionamento, enquanto a conjuntura setecentista seria a expressão da viragem para o Novo Mundo, em que produtos como o vinho assumem o papel de protagonistas das trocas comerciais. Os estudos confirmam que o relacionamento da Ilha com o exterior não se resumia apenas a estas situações. À margem das importantes vias e mercados, subsistem outros fatores que ativaram também a economia madeirense desde o séc. XV. As conexões com os arquipélagos próximos (Açores e Canárias) e com os afastados (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) foram já motivo de aprofundada explanação, que propiciou a valorização da estrutura comercial. A praça comercial madeirense foi protagonista de outros destinos no litoral africano e no litoral americano, e rosário de ilhas da América Central. No primeiro destino, destaca-se a costa marroquina, onde os Portugueses assentaram algumas praças, defendidas, a ferro e fogo, pelos ilhéus. No séc. XVI, com a paulatina afirmação do novo mundo americano costeiro e insular, surge um novo destino e mercado, que pautou as relações nas centúrias posteriores. O novo mundo e mercado significaram tanto a esperança de enriquecimento, como a forma de assegurar a posse de bens fundiários. O Atlântico não é só uma imensa massa de água polvilhada de ilhas, associando-se a uma larga tradição histórica que remonta à Antiguidade, donde resultou o seu nome. Assim, deparamo-nos com um conjunto polifacetado de ilhas e arquipélagos que se tornaram relevantes no processo histórico do oceano, quase sempre como intermediários entre o mar-alto e os portos litorais dos continentes europeu, africano e americano. No Atlântico, as ilhas anicham-se, de um modo geral, junto da costa dos continentes africano e americano, pois apenas os Açores, Santa Helena, Ascensão e o grupo de Tristão da Cunha se distanciam. As ilhas foram também espaços criadores de riqueza, sendo a agricultura a principal aposta. Esta exploração obedeceu às exigências da subsistência das populações e às solicitações do mercado externo face aos produtos de exportação. A valorização socioeconómica dos espaços insulares não foi unilinear, dependendo da confluência de dois fatores: primeiro, dos rumos da expansão atlântica e dos níveis de expressão em cada um; depois, das condições propiciadoras de cada ilha ou arquipélago em termos físicos, de habitabilidade ou da existência ou não de uma população autóctone. Nos sécs. XV e XVI, as ilhas e os arquipélagos firmaram um lugar de relevo na economia atlântica, distinguindo-se pela função de escala económica ou mista: com a função de escala, surgem as ilhas de Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha; como espaço económico, temos as Antilhas e a Madeira; e com a dupla função, económica e de escala, os arquipélagos das Canárias, dos Açores, de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe. O papel da cana sacarina, ao contrário do que sucedeu com os demais produtos e culturas (como a vinha e os cereais), não se resumiu apenas à intervenção no processo económico, sendo este produto marcado por evidentes especificidades capazes de moldarem a sociedade, que dele se serviu para firmar a sua dimensão económica. A importância que o sector comercial lhe atribuiu transformou-a numa cultura dominante em todo (ou quase todo) o espaço agrícola disponível, capaz também de estabelecer os contornos de uma nova realidade social. Foi precisamente esta tendência que levou a historiografia a definir o período da afirmação deste produto como o “ciclo do açúcar”. A omnipresença da cultura e as múltiplas implicações que gerou nos espaços em que foi cultivada levaram alguns investigadores a estabelecer um novo modelo de análise: os ciclos de produção assentes na monocultura. Deste modo, o ciclo do açúcar resultava, não da exclusiva afirmação da cultura, mas da sua dominância ou hegemonia no sistema de trocas. Neste contexto, a grande aposta das autoridades assentou na definição de um regime de policultura capaz de garantir uma estabilidade económica à principal riqueza da Ilha, que continuava a ser a exploração agrícola. Primeiro, procurava-se assegurar o necessário equilíbrio entre as culturas de subsistência e de mercado, de forma que as primeiras pudessem suprir o mais possível as necessidades das populações. Depois, no quadro das culturas de exportação, promoveu-se uma diversificação, de acordo com as solicitações do mercado. Desde o Gov. José Silvestre Ribeiro, com a grande exposição industrial no palácio de S. Lourenço, em 1850, que se vinha apostando na criação ou incentivo de indústrias artesanais com potencialidades económicas nas exportações. Assim, assistiu-se à aposta nos bordados, nas obras de vimes, nos laticínios e nas conservas de peixe. O dealbar do séc. XX foi fértil no aparecimento de pequenas unidades industriais para suprir as carências da Ilha. Temos, assim, as fábricas de velas de estearina, de pregos, adubos químicos, tintas, telha de cimento, bolachas e biscoitos, massas alimentícias e bebidas. Perante este quadro, Fernando Augusto da Silva afirmava, em 1921, que, embora a Madeira fosse uma região mais agrícola que industrial, indústrias havia que se podiam considerar vigorosas e outras que prometiam vantagens, sendo já mais ou menos lucrativas. Este fenómeno era também gerador de novos empregos, sendo os trabalhadores recrutados entre a mão de obra rural, o que pode ser considerado o princípio de uma das vias que, conjuntamente com a emigração, está na origem do êxodo rural que se consolidará com a Segunda Guerra Mundial. Os primeiros resultados da política de diversificação e culturas começaram a surgir de imediato. Desde 1938, a Ilha produzia excedentes que exportava para o continente português e para alguns países europeus, como Inglaterra, Irlanda, Bélgica, Alemanha e Itália, bem como para África e para os Açores, por força do incentivo da delegação da Junta Nacional de Exportações de Fruta no Funchal, criada em 1936, e do Grémio dos Exportadores de Frutas e Produtos Hortícolas da Madeira. Também não poderá esquecer-se os diversos viveiros promovidos pela estação agrária da Madeira em várias freguesias, como Ribeira Brava, Santana, Caniçal e Santo da Serra. De acordo com dados fornecidos por Ramon Honorato Rodrigues, a bananeira era a cultura de maior rentabilidade, quando comparada com a vinha ou cana-de-açúcar. Esta situação da valorização económica do produto prende-se com a demanda que o mesmo tinha nos mercados externos. Os dados disponíveis são esclarecedores relativamente às mudanças ocorridas na agricultura madeirense. Os produtos tradicionais foram perdendo importância e o estatuto de culturas ricas, surgindo outros com maior rentabilidade. É certo que a bananeira era uma cultura promissora, mas outras culturas de subsistência não lhe ficavam atrás. O principal resultado desta situação foi um nivelamento por baixo da riqueza, cavando-se cada vez mais o fosso do mundo rural e propiciando-se a emigração em catadupa para a Venezuela, a África do Sul e a Austrália. Neste longo processo, um conjunto restrito de produtos agrícolas teve uma função primordial, assumindo-se tais produtos como catalisadores da animação social e económica, ou definidores de uma diversa realidade societal. Nos primeiros momentos de ocupação do solo, o vinho e o trigo, primeiro, e o açúcar depois surgem como elementos aglutinadores de uma peculiar vivência com inevitáveis implicações políticas e urbanísticas. Os primeiros materializam a necessária garantia das condições de subsistência e do ritual cristão, enquanto o último encerra a ambição e voracidade mercantil da nova burguesia atlântico-mediterrânica, que fez da Madeira o principal pilar da sua afirmação na economia atlântica e mundial. O processo é irreversível, de modo que, em consonância com os movimentos económicos, sucede-se uma catadupa de produtos com valor utilitário para a sociedade insular ou com capacidade adequada para ativar as trocas com o mercado externo. Se na primeira fase o domínio pertenceu à economia agrícola, no segundo ele reparte-se entre os serviços, as indústrias artesanais (vimes e bordado) e, de novo, os produtos agrícolas. Os interesses em causa, quanto ao processo de desenvolvimento económico, não são pacíficos, sendo feito de embates permanentes entre a necessária manutenção da subsistência e a animação comercial externa. Foi, pois, nesta luta permanente entre os produtos de uma subsistência familiar, local e insular e os impostos relacionados com a permanente solicitação externa que se alicerçou a economia da Ilha até ao limiar do séc. XIX. Os produtos mencionados revelam-se fulcrais para a compreensão da evolução da realidade socioeconómica madeirense. Para dar conta de tal processo, deveremos, antes de mais, salientar que a tradição mediterrânico-atlântica, que define a realidade peninsular, se repercutiu, inevitavelmente, na estrutura agrária e, por conseguinte, no impacto ecológico que acompanhou a expansão atlântica. Dos portos do reino saíram as sementes, utensílios e homens que lançaram as bases dessa nova vivência atlântica e insular. A par disso, as novas realidades civilizacionais americanas e índicas contribuíram para o acesso a novas culturas e produtos com inevitáveis repercussões na economia e hábitos alimentares do europeu. Da Europa, saíram os cereais (centeio, cevada e trigo), as videiras e as socas de cana, enquanto da América e Índia aportaram ao velho continente o milho, a batata, o inhame e o arroz. Nesse contexto, as ilhas atlânticas, pela sua posição charneira no relacionamento entre esses mundos, surgem como viveiros da aclimatação desses produtos às novas condições ecossistémicas. A Madeira deteve uma posição importante neste contexto, afirmando-se, no séc. XV, como o viveiro experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo – os cereais, o pastel, a vinha e a cana-de-açúcar. A expansão europeia veio revolucionar o cardápio da Europa, aumentando a gama de produtos e condimentos. A pouco e pouco, a tradição culinária europeia foi sendo destronada pelo exotismo das novas sensações gustativas que acabaram por afeiçoar o paladar. Mas, até que isso se generalizasse, foi necessário conduzir o cereal e o vinho aos locais mais recônditos. Assim, as embarcações que sulcavam o oceano levavam nos seus porões, para além das manufaturas e bugigangas aliciadoras das populações autóctones, inúmeras pipas de vinho e barris de farinha ou biscoito. Se o cereal podia encontrar produtos similares nas colónias europeias, como o milho e a mandioca, o mesmo não acontecia com o vinho, que era desconhecido e incapaz de se adaptar às suas condições mesológicas. Desta forma, o vinho foi conduzido da Europa ou das ilhas até aos mais recônditos espaços em que se fixou o europeu, consistindo no companheiro inseparável dos mareantes, expedicionários, bandeirantes e colonizadores. Aos primeiros, servia de antídoto para o escorbuto, aos segundos saciava a sede, enquanto aos últimos servia como recordação ou devaneio hilariante da terra-mãe. O vinho consistiu, assim, num dos principais elementos de união das gentes europeias na gesta da expansão além-Atlântico. Nas primeiras décadas oitocentistas, o vinho perde a sua posição preferencial nas trocas com o exterior. Quer na Madeira, quer fora, depara-se com uma conjuntura difícil, dominada pela fome e emigração. Essa precariedade da economia madeirense não derivou apenas da sua posição dependente em relação ao velho continente, mas também das diminutas possibilidades de usufruto concedidas pelos 741 km2 de superfície da Ilha. Neste contexto, salienta-se o papel do cabouqueiro, colono que recebe das principais gentes da Ilha o encargo de valorizar economicamente as parcelas que estas receberam como benesse. Esse investimento da sua capacidade de trabalho terá justificação jurídica nas chamadas benfeitorias, que englobavam paredes, casas de habitação, lagares ou lagariças, árvores de fruto, latadas, etc. É, assim, o colono que lança as bases dessa revolução técnico-agrícola, sendo um dos principais obreiros dessa harmoniosa paisagem rural. Os proprietários preferiam os bulícios ribeirinhos da cidade ou do burgo que tentavam erguer, fazendo com que a arquitetura e o viver quotidiano se adaptassem à medida dos réditos acumulados com o comércio do açúcar e do vinho. Empenhados nas lides administrativas ou entretidos nos jogos de pela e de canas, estava-lhes reservado o usufruto da vida no espaço urbano. No princípio da ocupação da Ilha, as necessidades do cardápio e ritual cristãos comandaram a seleção das sementes que acompanharam os povoadores. As sementes do precioso cereal acompanham os primeiros cavalos de cepas peninsulares no processo de transmigração vegetativa. A fertilidade do solo, resultante do seu estado virgem e das cinzas fertilizadoras das queimadas, fizeram elevar a produção a níveis nunca antes atingidos, criando excedentes que supriram as necessidades de mercados carentes, como foi o caso de Lisboa e das praças do Norte de África. Até à déc. de 70 do séc. XV, a Madeira firma a sua posição de celeiro atlântico, perdendo-a, depois, a favor dos Açores, que passam a assumir uma posição dominante na política e na economia frumentárias do Atlântico. A Madeira inverte, assim, a sua situação: de área excedentária, a Ilha passa a uma posição de dependência em relação aos celeiros açoriano, canário e europeu. O estabelecimento de uma rota obrigatória a partir do fornecimento de cereal açoriano à Madeira criará as condições necessárias à afirmação da cultura da cana sacarina, produto tão insistentemente solicitado no mercado europeu. O empenho do senhorio e da Coroa na cultura deste novo produto conduziu à afirmação preferencial de uma nova vertente da economia atlântico-insular. A partir de então, os interesses mercantis dominam a dinâmica agrária madeirense. Na Ilha, as searas dão lugar aos canaviais, enquanto as vinhas se mantêm de modo insistente numa posição de destaque. Se o cereal pouco contribuía para aumentar os réditos dos seus intervenientes, o mesmo não se poderá dizer em relação ao açúcar e ao vinho, que, a seu tempo, contribuíram para o enriquecimento das gentes da Ilha. A própria Coroa e o senhorio fizeram depender grande parte das suas despesas ordinárias dessa fonte de receita. A par disso, o enobrecimento da vila, e futura cidade, do Funchal fez-se à custa desses dinheiros. O Funchal avançou para poente e adquiriu fama em novos e potenciais mercados. O vinho Madeira foi, sem dúvida, o que mais se evidenciou no universo das ilhas, e de forma especial na Madeira. O luzidio rubinéctar, que continua a encher os cálices de cristal, é não só a materialização da pujança económica presente, mas também o testemunho de um passado histórico de riqueza. Prende-o à Ilha uma tradição de mais de cinco séculos. Nele, refletem-se as épocas de progresso e de crise. Porém, no esquecimento de todos fica, quase sempre, a parte amarga da labuta diária do colono no campo e nas adegas, o árduo trabalho das vindimas, o alarido dos borracheiros. Para recriarmos essa ambiência passada, torna-se necessário olhar os restos materiais e ler os documentos, a partir dos quais ainda é possível desbobinar o filme do quotidiano de luta que se esconde por entre a ferrugem, a traça e o pó. O vinho Madeira, celebrado por poetas e apreciado por monarcas, príncipes, militares, exploradores e expedicionários, perdeu paulatinamente, ao longo do séc. XX, parte significativa do mercado, fruto da conjuntura criada nos finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX. A procura deste produto obrigou o madeirense a utilizar todo o vinho e a acelerar o processo de envelhecimento, de modo a satisfazer os pedidos. No entanto, a abertura dos mercados conduziu ao fastio a partir de 1814. Depois, as doenças acabaram com as cepas de boa qualidade, fazendo-as substituir pelo produtor direto, que se manteve lado a lado com as cepas europeias, numa promiscuidade pouco adequada à preservação da qualidade. O passado recente anunciou o retorno das castas tradicionais e abriu portas a novos momentos de riqueza. A presença da vinha na Madeira, associada aos primeiros colonos, é uma inevitabilidade do mundo cristão. O ritual religioso fez do pão e do vinho os elementos substanciais da sua prática, tornando-os símbolos da essência da vida humana e de Cristo. Ambos foram companheiros da expansão da cristandade, sendo responsáveis pela revolução dos hábitos alimentares. A partir do séc. VII, comer pão e beber vinho simbolizavam para o mundo cristão o sustento humano. Em meados do séc. XV, com o arranque do processo de ocupação e de aproveitamento da Ilha, é dada como certa a introdução de videiras do reino e, mais tarde, das célebres cepas do Mediterrâneo. João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo, que receberam o domínio das capitanias do arquipélago sob a direção do Monarca e infante D. Henrique, procederam ao desbravamento e cultivo da terra, plantando as primeiras culturas trazidas do reino, nas quais se incluíam as cepas. O vinho Madeira adquiriu desde logo fama no mundo colonial, tornando-se na bebida preferida do militar e do aventureiro na América ou na Ásia. Escolhido pela aristocracia, manteve lugar cativo no mercado londrino, europeu e colonial. Perante isto, a partir do último quartel do séc. XVI, o ilhéu fez mudar os canaviais por vinhedos, ao mesmo tempo que conquistou novas terras à floresta, a sul e a norte da Ilha. Porém, embalado pela excessiva procura do vinho, o madeirense esqueceu-se de assegurar a autossuficiência. O vinho era a sua fonte de rendimento e a única moeda de troca para assegurar o alimento, a indumentária e as manufaturas, daqui resultando uma troca desigual para o madeirense e muito rentável para o inglês. No séc. XV, o vinho competia com o trigo e o açúcar, assumindo uma posição de relevo na economia local. Os trigais e os canaviais foram dando lugar às latadas e às balseiras, e a vinha tornou-se na cultura quase exclusiva. Tudo isto projetou o vinho para o primeiro lugar na atividade económica da Ilha, posição que manteve por mais de três séculos. O ilhéu apostou, assim, desde o último quartel do séc. XVI, na cultura da vinha, tirando dela o necessário para se sustentar, manter uma vida de luxo e construir sumptuosos palácios, igrejas e conventos. Entre o séc. XVII e princípios do XIX, a Madeira viveu embalada pela opulência do comércio do vinho. O madeirense, com tão avultados proventos, deixou-se vencer pelo luxo, habituou-se à vida cortesã e copiou os hábitos ingleses. A política exclusiva da cultura da vinha, imposta pelo mercantilismo inglês, mereceu a reprovação, quer do Gov. e Cap.-Gen. José. A. Sá Pereira, através de um regimento de agricultura para o Porto Santo, quer do Corr. e desembargador António Rodrigues Veloso, nas instruções que deixou, em 1782, na Câmara da Calheta. Mas foi tudo em vão, visto que ninguém foi capaz de travar a “febre vitícola”, nem de convencer o viticultor a diversificar as culturas da terra. Vivia-se um momento de grande procura do vinho no mercado internacional e as colheitas eram insuficientes para satisfazer a incessante procura. Perante tão desusada solicitação e à falta de melhor, socorriam-se dos vinhos do norte da Ilha e mesmo dos Açores e das Canárias para saciar o sedento colonialista. O comerciante inglês que surgiu a partir do séc. XVII soube tirar o máximo partido do produto, fazendo-o chegar em quantidades volumosas às mãos dos compatriotas que o aguardavam nos quatro cantos do mundo. Vários fatores fizeram com que o inglês se instalasse na Ilha e se afirmasse como o principal negociante do vinho, nomeadamente as condições favoráveis exaradas nos tratados luso-britânicos e o favorecimento que as regulamentações britânicas do comércio colonial atribuíram à Madeira. Assim, o movimento de exportação do vinho da Madeira nos sécs. XVIII e XIX liga-se, de modo direto, ao traçado das rotas marítimas coloniais inglesas que tinham passagem obrigatória na Ilha. São as rotas da Inglaterra colonial que fazem do Funchal o porto de refresco e de carga para o vinho no percurso para as Índias Ocidentais e Orientais, de onde regressavam pela rota dos Açores, com o recheio colonial. Também os navios portugueses da rota das Índias ou do Brasil escalavam a Ilha, onde recebiam o vinho para as praças lusas. São ainda os navios ingleses que se dirigem à Madeira com manufaturas, retornando por Gibraltar, Lisboa ou Porto. Também os navios norte-americanos trazem as farinhas para sustento diário do madeirense, regressando carregados de vinho. Por tudo isto, o vinho madeirense conquistou o mercado britânico em África, Ásia e América, afirmando-se, até meados do séc. XIX, como a bebida dos funcionários e militares das colónias. Com o movimento independentista das colónias, todos regressaram à terra de origem trazendo o vinho na bagagem. Seiscentos anos depois da introdução da vinha na Madeira, estavam ainda presentes na memória os tempos áureos da apreciação e do comércio do vinho, apesar das dificuldades que pelo caminho surgiram. À euforia da procura sucedeu-se a crise dos mercados, agravada pela presença das doenças que atacaram a vinha (oídio e filoxera). A crise do sector produtivo, resultante de fatores botânicos, alastrou a todo o espaço vitícola, com efeitos semelhantes na economia e no mercado do vinho. Perdeu-se a ligação ancestral com as tradicionais castas europeias, mas, em contrapartida, descobriram-se novas variedades americanas. As dificuldades do negócio conduziram à debandada dos agentes que haviam traçado o mercado. No entanto, a Madeira conseguiu paulatinamente recuperar ou conquistar novos mercados. O séc. XVII foi o momento de viragem no mercado atlântico do vinho, conseguindo a Ilha levar a melhor na preferência do mercado norte-americano e das colónias das Antilhas. Para além disso, o vinho Madeira tornou-se, como vimos, numa moda do quotidiano das colónias britânicas. A vinha e o vinho assumem, assim, particular destaque na caracterização do processo histórico madeirense ao longo destes 600 anos de labor. Desde os primórdios da ocupação da Ilha, este produto manteve a mesma vivacidade na vida agrícola e no comércio. Os demais não tiveram capacidade suficiente para resistir à concorrência desenfreada de novos e potenciais mercados fornecedores de aquém e além-mar. Apenas o vinho resistiu à concorrência dos Açores, das Canárias, da Europa e do cabo da Boa Esperança, mantendo o tradicional grupo de apreciadores no velho e no novo mundos. Também a história do açúcar na Madeira se confunde com a conjuntura de expansão europeia e com os momentos de fulgor do arquipélago. A sua presença é multissecular e deixou rastros evidentes na sociedade madeirense. Dos sécs. XV e XVI, ficaram os imponentes monumentos, pinturas e peças de ourivesaria que foram comprados com os proventos do açúcar, e que, na sua maioria, foram colocados no Museu de Arte Sacra do Funchal. Do séc. XIX e do primeiro quartel do séc. XX, perduram ainda a maioria dos engenhos da nova vaga de cultura dos canaviais. Nesta altura, a cana diversificou-se no uso industrial, sendo geradora sobretudo do álcool e da aguardente. Foi certamente neste momento que surgiu a tão afamada poncha, irmã do ponche de Cabo Verde e da caipirinha do Brasil. O açúcar é, entre todos os produtos a que, no Ocidente, se atribuiu valor comercial, o que foi alvo de maiores inovações no seu fabrico. Note-se que, no caso do fabrico do vinho, a tecnologia pouco mudou desde o tempo dos Romanos. Várias condicionantes favoreceram a necessidade de permanente atualização no que respeita ao açúcar, situação que se tornou mais clara no séc. XVIII com a concorrência da beterraba. O fabrico do açúcar está limitado pela situação e ciclo vegetativo da planta. A cana sacarina tem um período útil de vida em que a percentagem de sacarose é mais elevada. Assim, a cana está, em determinado momento, pronta para ser colhida, representando cada dia a mais que passe uma perda para o produto. Depois de cortada, tem pouco mais de 48 h para ser moída e cozida; caso contrário, começa a perder sacarose e inicia o processo de fermentação. Daqui resulta a necessidade de acelerar o processo de fabrico do açúcar através de constantes inovações tecnológicas, que cobrem o processo de corte, esmagamento e cozedura. A isto junta-se a necessidade do aumento da mão de obra, que se fez à custa de escravos africanos. A cana-de-açúcar não está, porém, na origem da escravidão africana, mas no processo de afirmação da mesma a partir da Madeira. Quando a cultura sacarina se fazia em pequenas parcelas, a maior parte destas questões não se colocava. No entanto, quando se avançou para uma produção em larga escala, houve necessidade de encontrar soluções capazes de responder aos novos desafios. A viragem aconteceu, na Madeira, a partir de meados do séc. XV e implicou mudanças radicais na tecnologia usada e na afirmação da escravatura dos indígenas das Canárias e dos negros da costa da Guiné. É por isso que se assinalam, a partir do exemplo da Madeira, importantes inovações tecnológicas no sistema de moenda da cana com a generalização do sistema de cilindros. A história tecnológica evidencia que a expansão europeia condicionou a divulgação de técnicas e permitiu a invenção de tecnologia inovadora, que contribuiu para revolucionar a economia mundial. Os homens que circularam no espaço atlântico foram, pois, portadores de uma cultura tecnológica que divulgaram nos quatro cantos e adaptaram às condições dos espaços de povoamento agrícola. Aos madeirenses foi atribuída uma missão especial nos primórdios deste processo. O facto de os arquipélagos da Madeira e das Canárias terem sido meios de ligação da nova cultura económica do atlântico ocidental não quer dizer que tivesse havido uma transplantação total e igual para os novos espaços. As condições ambientais e os obreiros da transformação eram outros, como diversa foi a realidade que o produto gerou. Tal perspetiva deverá resultar das ciladas inerentes ao método de análise do processo histórico de forma retrospetiva, no qual, por vezes, o facto surge como a imagem e como a consequência. Tal como provaram alguns estudos do séc. XX sobre a situação da economia açucareira do Mediterrâneo Atlântico, a conjuntura deste espaço é diversa da americana, seja ela insular ou continental. Por outro lado, também não se poderá colocar ao mesmo nível o caso de São Tomé, que, embora situado no sector ocidental do oceano, aproxima-se mais da realidade antilhana que dos arquipélagos da Madeira e das Canárias. A ideia de que a civilização do açúcar teve apenas uma forma de expressão no Atlântico Ocidental e Oriental deu origem a afirmações precipitadas, no âmbito da análise da economia e da sociedade, que lhe serviram de base. A historiografia associou ao açúcar, desde muito cedo, a escravatura, fazendo jus à afirmação de A. Antonil, segundo a qual os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho. Aqui também a relação não nos surge tão transparente como à primeira vista pode parecer. As Cruzadas, de acordo com a historiografia europeia, foram o princípio da expansão da cultura açucareira e da vinculação aos escravos. Nas colónias italianas do Mediterrâneo Oriental, surgem os primeiros indícios da nova dinâmica social, que passaria à Sicília e, depois, à Madeira, expandindo-se a partir deste arquipélago no Atlântico. Diz-se, ainda, que a ligação do escravo, negro ou não, à cultura dos canaviais foi uma invenção do Ocidente cristão, não tendo lugar no mundo muçulmano. Diferente é, todavia, a opinião de Yoro Fall, que encontra testemunhos evidentes dessa relação no usufruto de mão de obra negra pelas plantações muçulmanas do Egito e de Marrocos. Sucede que a escravatura da Madeira não assumiu uma posição similar à de Cabo Verde, São Tomé, Brasil ou Antilhas, não obstante o surto evidente de produção açucareira. Aí, ao invés daquilo que tem lugar nestes espaços, o escravo não dominou as relações sociais de produção. Existiu, sob a condição de operário especializado ou não, mas a sua posição não era dominante, tal como sucedia nas áreas supracitadas. Por fim, é de notar que a hipervalorização do açúcar na história da Madeira levou alguns aventureiros e progenitores de teorias de vanguarda a estabelecer também uma forma peculiar de urbanização do Funchal, de acordo com a sua presença. Deste modo, ao Funchal do séc. XVI chamam, sem saberem e explicarem porquê, cidade do açúcar, quando na realidade a expressão urbanística da cana-de-açúcar é manifestada pela ruralidade. O açúcar, acima de tudo, era um complemento fundamental na vida económica da Ilha. Sucedeu assim até meados do séc. XVI, mas, a partir de finais do séc. XIX, tudo mudou. Assim, com os lucros advindos desse produto ergueram-se igrejas – a Sé do Funchal é um exemplo disso – e amplos palácios que se rechearam de obras de arte de importação, testemunhos evidentes que passaram a constar no Museu de Arte Sacra. A arte flamenga na Ilha é também um dom do açúcar. O progresso socioeconómico da Madeira e o seu protagonismo na expansão atlântica – nos Descobrimentos e defesa das praças africanas – só foram, assim, possíveis à custa da elevada riqueza acumulada pelos madeirenses. Todos, sem diferença de condição social, fruíram da riqueza. Até a opulência e luxúria da própria Coroa, lá longe no reino, foi conseguida, durante algum tempo, com o açúcar que esta arrecadava na Ilha. Na Madeira, um dos aspetos mais evidentes da revolução tecnológica iniciada no séc. XV prende-se com a capacidade do europeu de adaptar as técnicas de transformação conhecidas às circunstâncias e exigências de culturas e produtos tão desafiantes como a cana e o açúcar. O tributo de outras culturas foi evidente. Ao vinho foi-se buscar a prensa, ao azeite e aos cereais a mó de pedra. Por outro lado, estamos perante uma permuta constante de processos tecnológicos e formas de aproveitamento das diversas fontes de energia. A tração animal, bem como a força motriz do vento e da água, foram usadas em simultâneo com os cereais e a cana sacarina. Por vezes, a mesma estrutura assume uma dupla função. Sucedeu assim na Madeira com o engenho da Ribeira Brava, posterior Museu Etnográfico, no qual a estrutura de aproveitamento da força motriz da água servia um engenho de cana e um moinho de cereais. As grandes questões deste período prendiam-se com a importância da Madeira resultante da expansão dos canaviais no espaço atlântico e da afirmação do açúcar no mercado europeu. Durante muito tempo, o estudo sobre o açúcar madeirense que teve maior visibilidade internacional foi o de Virgínia Rau e Borges Macedo sobre o livro dos estimos de 1494, em que a temática fundamental é a questão da propriedade. A esse, podemos juntar os textos de Fernando Jasmins Pereira, que, como os de Carlos Montenegro Miguel, Joel Serrão e Ernesto Gonçalves, não tiveram muita divulgação. A incidência temática recaiu quase só nos aspetos relacionados com o sistema de propriedade e com o comércio do açúcar no mercado europeu, ficando esquecidos aspetos fundamentais, como a tecnologia dos engenhos e o fabrico do açúcar. Nos últimos decénios do séc. XX, por força da realização de colóquios e do aparecimento de revistas, a temática açucareira voltou a motivar o interesse dos estudiosos. Neste contexto, é de assinalar os estudos de David Ferreira Gouveia, que equacionou alguns problemas de forma inovadora. A partir da segunda metade do séc. XVIII, assistiu-se à revelação da Madeira como estância para o turismo terapêutico, mercê das então exaltadas qualidades profiláticas do seu clima na cura da tuberculose, que cativaram a atenção de novos forasteiros. A tísica propiciou à Ilha, ao longo do séc. XIX, o convívio com poetas, escritores, políticos e aristocratas. Não obstante a polémica criada em torno das possibilidades deste sistema de cura, a Ilha permaneceu por muito tempo como local de acolhimento desses doentes, sendo considerada a primeira e principal estância de cura e convalescença do velho continente. Foi a presença, cada vez mais assídua, de tais doentes que provocou a necessidade de criação de infraestruturas de apoio: sanatórios, hospedagens e agentes, que serviam de intermediários entre esses forasteiros e os proprietários de tais espaços de acolhimento. Estes últimos foram o prelúdio dos posteriores agentes de viagens. O turismo, tal como hoje o entendemos, dava então os seus primeiros passos. Foi, pois, como corolário disso que se estabeleceram as primeiras infraestruturas hoteleiras e que o turismo passou a ser uma atividade organizada e com uma função relevante na economia da Ilha. Mais uma vez, o inglês foi o protagonista. O turismo caminhou lado a lado com o vinho e o aparecimento de novas atividades. A vinha persistiu nas latadas e fez-se companheira dos vimieiros e bordadeiras. Esta harmonia revertia a favor da Ilha e tornava possível a existência de várias formas de atividade que garantiam a sobrevivência. A variedade foi a receita certa para manter de pé, por algum tempo, a frágil economia insular. Na déc. de 40, o comércio, a navegação e o turismo foram os grandes propulsores do desenvolvimento insular. As atividades em torno da obra de vimes e dos bordados tiveram nos estrangeiros, principalmente nos Ingleses, os seus principais promotores. A primeira metade do séc. XX foi marcada por profundas mudanças na economia madeirense, representando, para aqueles que a viveram, um momento para esquecer. Primeiro as guerras mundiais (1914-1919 e 1939-1945) e, depois, os problemas políticos e económicos dificultaram bastante a vida do madeirense. A guerra evidenciou a fragilidade da economia da Ilha e a sua extrema dependência face ao mercado externo. Os problemas económicos dão origem a convulsões sociais que se misturam com as políticas, assistindo-se, em fevereiro de 1931, à Revolta das Farinhas, a que se seguiu, em 1936, a Revolta do Leite. Para muitos madeirenses a solução foi a emigração para o Brasil, Venezuela, USA e Curaçau, que funcionou como válvula de escape para a miséria da sociedade. As medidas do Governo, com a criação da Comissão de Aproveitamentos Hidráulicos e as suas iniciativas, atenuaram os efeitos da crise em algumas famílias. Começava aqui um plano de fomento de infraestruturas consideradas primordiais para o progresso da Ilha. Assim, assistiu-se à reorganização do sistema de regadio, que iria permitir um maior aproveitamento agrícola através de novas levadas, e ao delineamento de um plano viário, que permitiria a aproximação das diversas localidades da Madeira. No passado, foram as condições do meio que fizeram da Ilha o principal motivo de atração turística. Nos sécs. XX-XXI, o turista é outro e por isso também as exigências são diferentes. Assim, aos motivos ambientais aliam-se os culturais, passando os dois a andar de braço dado. No fundo, é a simbiose do grand tour europeu com o turismo terapêutico insular. A economia insular  A geografia é determinante na função económica a atribuir aos espaços humanizados. Neste sentido, as condições particulares da Madeira definiram uma vocação eminentemente agrícola. A aposta nos serviços, como o turismo, surgiu por acaso e por influência britânica. No mundo insular atlântico, o arquipélago da Madeira assume uma posição particular, fruto da quase total ausência da dimensão arquipelágica. Na verdade, são apenas duas ilhas que mereceram ocupação humana, mas uma, o Porto Santo, pelas dificuldades de abastecimento de água, não permitiu a definição de uma situação socioeconómica assente na complementaridade dos espaços. Enquanto nos Açores e Canárias, devido à existência de diversas ilhas, existiram formas de exploração agrícola assente na complementaridade, no caso madeirense esta deverá buscar-se dentro do espaço da Ilha ou nos arquipélagos vizinhos. A Madeira apresenta-se, em termos orográficos, com múltiplas condições adversas ao avanço da exploração agrícola do solo. A configuração piramidal, dominada por uma costa alta cortada pelas bacias das ribeiras, fruto da erosão provocada pela força das ribeiras, torna o acesso difícil e limita as possibilidades da agricultura. A costa elevada condiciona a navegação costeira, que, até à déc. de 50 do séc. XX, foi o meio de contacto entre as diversas localidades. A orografia dificultava o transporte terrestre, pelo que apenas o automóvel do séc. XX conseguiu vencer os veleiros e vapores costeiros. Por tudo isto, o processo de povoamento foi condicionado. A falta de água levou ao quase abandono do Porto Santo e, na Madeira, as dificuldades de penetração no interior conduziram à existência de um povoamento costeiro, assente nas clareiras abertas pelas ribeiras, áreas de fácil acesso, mas também férteis, por força das aluviões de terras trazidas pela água. O acesso a norte, muito limitado por terra e mar, conduziu a que esta área tardasse na ocupação e valorização económica em relação ao que sucedeu na vertente sul. A configuração geográfica condiciona ainda a diversidade de microclimas, o que conduz à valorização das chamadas fajãs ou à possibilidade de escalonamento das culturas em altitude, procurando aproveitar as condições climáticas. Estas cambiantes permitem que, dentro do espaço da Ilha, se possa estabelecer uma complementaridade assente nas culturas de subsistência e mercado externo. Todavia, a tendência dominante da exploração do solo foram as culturas com grande valor económico, por força da demanda do mercado externo. A partir daqui, definiram-se ciclos ou, melhor dizendo, períodos de produtos dominantes, como foi o caso dos cereais, da cana-de-açúcar, do vinho e da banana. A área agrícola da Ilha, bastante limitada desde o início da ocupação, obrigou a uma exploração intensiva do solo, o que provocou diversas dificuldades na exploração agrícola – com o esgotamento do solo a obrigar ao sistema de pousio ou rotação de culturas – que limitaram as possibilidades de afirmação de uma produção em larga escala capaz de concorrer em pé de igualdade no mercado. É neste contexto que podemos assinalar a luta hercúlea do madeirense pela conquista de terra através da construção de poios em locais íngremes ou com elevada inclinação, que se tornaram numa das dominantes da paisagem madeirense e que provam a luta secular do seu habitante contra as condições adversas do solo. A possibilidade de sucesso de uma cultura não dependia tanto das condições da Ilha, mas do mercado. Enquanto a Ilha produzia açúcar de forma isolada, os madeirenses conseguiram elevada riqueza, mas, quando teve de competir com outros mercados, perdeu capacidade de intervenção por força da limitação do espaço e das condicionantes atrás anunciadas. Situação diferente sucedeu com o vinho, dadas as circunstâncias políticas que permitiram a fixação inglesa e o facto de este produto ter características específicas, sendo capaz de chegar a qualquer sítio em perfeitas condições. Neste caso, foram as características próprias do produto, e não da exploração agrícola, que favorecem a sua posição preferencial no mercado. A ocupação de um novo espaço obedece a determinados requisitos. Primeiro, deve propiciar condições para que sejam garantidas as condições de sobrevivência das populações. Assim, para além da disponibilidade de água, deve apresentar um solo adequado ao cultivo dos produtos básicos da subsistência, que no caso dos europeus do séc. XV assentava nos cereais e na vinha. Estas exigências são ainda mais importantes quando se fala de ilhas isoladas, onde as condições de acesso a outros espaços estão muito condicionadas por força do nível de desenvolvimento da navegação à vela. Na Madeira, o processo de povoamento foi muito rápido por força da inexistência de populações e da necessidade de ocupação deste espaço para assegurar o controlo do espaço atlântico. Nos primeiros 600 anos de ocupação humana do arquipélago, a riqueza dos madeirenses foi gerada por força do seu esforço. Um solo de recursos limitados e de difícil domínio constituiu um pesado fardo no quotidiano que chegou até aos nossos dias. Por outro lado, o avanço do povoamento e da população conduziram a alguns problemas. Os recursos da terra, por serem mal distribuídos e limitados, não se ajustavam ao crescimento populacional, obrigando, desde o início, à abertura de válvulas de escape como a emigração. Até meados do séc. XIX, podemos afirmar que a agricultura foi dominada por uma permanente tensão entre os interesses da subsistência e aquilo que demandava o mercado. Esta realidade é testemunhada de forma clara por Giulio Landi, em 1530: “A Ilha produziria maior quantidade se semeasse. Mas a ambição das riquezas faz com que os habitantes descuidando-se... se dediquem apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maior proveito” (ARAGÃO, 1981, 84). A crise do vinho colocou a necessidade de repensar os produtos dominantes e as formas de exploração económica. As autoridades foram determinadas no combate à tendência para uma exploração de monocultivo. A aposta estava num sistema de policultura, em que se misturavam as culturas de subsistência com aquelas que manifestavam valor mercantil. Deste modo, o momento da segunda metade da centúria oitocentista foi fértil na experimentação de uma diversidade de culturas com valor mercantil e da mercantilização de algumas atividades artesanais, como o bordado e a obra de vimes. A par disso, desde o séc. XVI que se vinha a experimentar novas culturas e frutos com valor alimentar, assumindo-se a Ilha como um dos espaços privilegiados de adaptação dos produtos do Novo Mundo. Os madeirenses rapidamente se habituaram aos novos sabores, pelo que, de uma alimentação tradicional assente nos cereais, se avançou rapidamente para outra baseada em novos produtos, como a batata, o inhame e a farinha de milho. Tudo isto aconteceu de uma forma clara a partir do séc. XIX e consolidou-se nos primeiros decénios do seguinte. O processo económico, quando assume uma posição de sucesso, mercê da inserção no mercado mundial, conduz a uma forma de exploração intensiva que provoca inevitavelmente o desequilíbrio entre aquilo que o quadro natural possibilita e o que o Homem exige. Na Madeira, a exploração económica fez-se de forma intensiva e de acordo com as solicitações do mercado exterior, o que contribuiu ainda mais para agravar a relação entre o Homem e o quadro natural, arrastando os espaços para uma situação de total deterioração. O primeiro testemunho surge já em meados do séc. XV com Cadamosto: “As suas terras costumavam dar a princípio, sessenta por um, o que presentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão deteriorando dia a dia. A situação resulta da solicitação para a exploração intensiva por obrigação geral dos madeirenses em abastecer as cidades do reino e praças africanas de cereal” (Id., Ibid., 37). O cereal, que no início da ocupação do solo havia sido a cultura da prosperidade, rapidamente cedeu lugar aos canaviais, que em pouco tempo dominaram o espaço agrícola. A indústria para o fabrico do açúcar exigiu muito do quadro natural, lançando a Ilha num processo de desflorestação, de consequências imprevisíveis, e provocando a exaustão do solo agrícola. A situação é testemunhada, em 1689, por John Ovington: “A fertilidade da Ilha decaiu muito relativamente ao período das primeiras culturas. A cultura sem descanso dos terrenos tornou os fracos espaços em muitos lugares e de tal modo que os abandonam periodicamente, tendo de ficar de poisio três ou quatro anos. Depois desse tempo, se não crescer nenhuma giesta como sinal de fertilidade futura, abandonam-nos, como estéreis. A aridez de muitas das suas terras atribuem-na simploriamente ao aumento dos seus pecados” (Id., Ibid., 201). A opulência foi efémera, pois, a partir da terceira década do séc. XVI, o açúcar madeirense foi destronado da posição cimeira no mercado europeu, perdendo a preferência em favor das Canárias, São Tomé e Brasil, que aparecem com preços mais competitivos. No entanto, a persistência de alguns lavradores, a fama da superior qualidade e a procura da doçaria e casquinha madeirenses fizeram com que a cultura dos canaviais se mantivesse por largos anos, atingindo, em momentos de crise nos mercados americanos, alguma pujança. Ainda assim, como a cultura estava irremediavelmente condenada, o madeirense, a partir de meados do séc. XVI, foi forçado a canalizar as atenções para as vinhas, fazendo com que estas assumissem o espaço deixado pelos canaviais. Desta forma, por mais de dois séculos, a vinha e o vinho foram os principais aglutinadores das atividades económicas da Ilha, dando ao meio rural e urbano uma desusada animação. O Funchal cresceu em monumentalidade e as principais famílias reforçaram a posição económica. A mudança abalou a estrutura produtiva. Assim, enquanto o açúcar exigia apenas um complexo industrial, o engenho onde decorria a respetiva safra, o vinho necessitava de espaços distintos: o lagar, onde as uvas se transformam no saboroso mosto, e os armazéns da cidade, onde este fermenta e é preparado para atingir os necessários aroma e bouquet exigidos pelo mercado. Deste modo, o agricultor, colono ou não, detém apenas o controlo da viticultura, ficando reservado ao mercador o processo de vinificação. A conjuntura da primeira metade de Oitocentos, marcada pelos conflitos europeus e guerras de independência das colónias, e associada aos fatores de origem botânica (com o aparecimento do oídio, em 1852, e da filoxera, em 1872), conduziu ao paulatino apagamento da pujança económica do vinho. Como corolário disto, surge a fome nos anos 40 e, nas décs. de 50 e 80, a sangria emigratória para o continente americano, onde o madeirense foi substituir o escravo nas plantações. Por um período de mais de 70 anos, a confusão institucional e económica alargou-se aos domínios social e alimentar. Para além dos novos alimentos que ganharam relevo na culinária madeirense, definiram-se políticas de reconversão e ensaio de novos produtos com valor comercial, como foi o caso do tabaco e do chá. A emigração de Oitocentos e do período pós-Segunda Guerra Mundial foi responsável por um acentuado processo de desertificação da Ilha, arrastando muitas terras para o abandono. Foi o início de um pousio para as terras, já esgotadas com a exploração intensiva das culturas de subsistência e exportação. Em pleno apogeu da indústria vinhateira, teve lugar a afirmação de um novo sector de serviços. Na segunda metade do séc. XVIII, a Ilha assumiu outro papel, tornando-se espaço de acolhimento de doentes. A Europa oferecia ao aristocrata britânico vários motivos para o grand tour cultural, mas as ilhas ofereciam a amenidade do seu clima e ambientes paradisíacos, num retorno implícito ao paraíso perdido. Na Madeira, o turismo começou a dar os primeiros passos na segunda metade do séc. XVIII, mas foi a partir de finais da centúria seguinte que se consolidou como sector de serviços na sociedade funchalense. Alguém terá dito que os promotores do turismo insular foram os Gregos, mas os primeiros turistas foram, sem dúvida, os Ingleses. Os Gregos celebraram, na prolixa criação literária, as delícias das ilhas situadas além das colunas de Hércules. Os arquipélagos da Madeira e das Canárias foram considerados a mansão dos deuses, o jardim das delícias, onde convivem os heróis da mitologia. Todavia, foram os Ingleses, ainda que muito mais tarde, a desfrutar da ambiência paradisíaca reservada aos deuses e heróis, escolhendo-a como rincão de permanência, breve ou prolongada. Diz-se até, segundo a lenda de Machim, que a primeira viagem de núpcias, embora ocasional, terá sido protagonizada por um casal inglês. Na verdade, foi a visão mítica, perpetuada nos relatos antigos ou reavivada nos testemunhos coevos, que despertou o desusado interesse do inglês pelas belezas aprazíveis da Madeira. O ilhéu, autêntico cabouqueiro e jardineiro deste rincão, estava por demais embrenhado na árdua tarefa de erguer paredes e arrotear os poios, e por isso mantinha-se alheio ao usufruto das delícias. Para ele, a beleza agreste dos declives não passava de mais um entrave na luta contra a natureza. Assim, enquanto o inglês se entretinha nos passeios a cavalo ou em rede pelos mais recônditos locais da Ilha, o madeirense cavava e traçava os poios. A verdadeira descoberta da Madeira foi obra dos Ingleses, ainda que tenha sido o Português a descobrir o caminho para aí chegar. A situação com que a agricultura madeirense se depara na segunda metade do séc. XIX pode ser entendida como o início do processo de transformação que irá marcar a vida do mundo rural. A transformação política, a partir de 1820, conduziu à desestruturação de tal mundo, acabando com algumas situações que marcavam o dia a dia do campo. Acabaram-se os senhorios, mas persistiu o contrato de colonia. A crise do vinho obrigou a repensar-se a forma de aproveitamento do solo, acabando-se definitivamente com a tendência para a aposta preferencial numa cultura. A grande aposta passou a estar na diversificação de culturas e na aposta firme nas indústrias. No reduzido quadro industrial, temos de realçar a iniciativa de estrangeiros, nomeadamente britânicos, como Page, Leacock e Hinton. Miss Phelps esteve na origem da comercialização do bordado em Inglaterra; já Leacock foi o principal promotor da obra de vimes e da aposta na cultura da bananeira, com a criação, em 1928, da The Ocean Islands Fruit & Co Ltd. No séc. XX, passados os anos conturbados da República, o Governo da Ditadura e do Estado Novo definiram uma política concertada de valorização da produção nacional apostada em assegurar a autossubsistência. Apenas no período pós-25 de Abril de 1974, o processo autonómico permitiu repensar os rumos da atividade agrícola. A aposta das autoridades foi para uma agricultura assente numa variedade de culturas. Às culturas tradicionais, ditas ricas, como era o caso dos cereais, cana-de-açúcar, vinha e banana, juntavam-se agora outras, conhecidas como pobres, que acabaram, no entanto, por adquirir valor económico no mercado regional e externo. De entre estas, podemos salientar a batata comum –ou semilha, para o madeirense –, a batata-doce, a cebola, a ervilha, o feijão, o tomate e a vaginha, ou feijão em vagem. Depois, podemos juntar um grupo variado de frutas: abacate, ameixa, amora, anona, araçá, castanha, cereja, cidra, damasco, figo, goiaba, jambo, laranja, limão, maça, manga, maracujá, marmelo, noz, nêspera, pero, pera, pêssego e pitanga. As exportações As conexões insulares resultam mais de fatores estranhos à progressão do trato comercial que às exigências e possibilidades de troca. O facto de as ilhas apostarem na mesma forma de agricultura, orientada para as necessidades internas ou do mercado colonial, não deixou grande espaço para um estreitamento dos contactos comerciais. Os produtos de subsistência nem sempre foram suficientes para suprir as carências e, no caso da exportação, preferiu-se outros mercados mais vantajosos, pois as ilhas ou arquipélagos vizinhos não ofereciam idênticas condições de lucro. Por outro lado, os produtos de exportação, seja para o mercado europeu, seja para o colonial, acabaram por levar ao afrontamento entre estes limitados mercados. O caso mais evidente é o comércio do vinho, que atinge nos três arquipélagos – Madeira, Açores e Canárias –, no decurso dos sécs. XVIII e XIX, idêntico protagonismo nas rotas externas, provocando por vezes alguma tensão. Perante isto, as possibilidades de troca interna no mercado insular incidem quase só nos produtos de subsistência – primeiro o trigo e, depois, o milho – e nalgumas manufaturas de reexportação. As últimas resultaram da forma como se estruturaram as rotas oceânicas e permitiram o protagonismo de certas ilhas como portos de apoio, em detrimento de outras. Todavia, no decurso do séc. XVIII e no seguinte, todas as ilhas faziam parte do roteiro das embarcações. Suplantadas as dificuldades técnicas, as rotas de navegação ajustaram-se às exigências e interesses do mercado e dos mercadores. O mercado das ilhas tornou-se numa importante e complementar rota de navegação no Atlântico. Fala-se de um circuito fechado, que compreende a metrópole, a Madeira e os Açores, ou o Mediterrâneo, a Madeira e a rota Canárias-Berberia. A questão do trigo é uma das dominantes da história da metrópole portuguesa e das ilhas. Aliás, no decurso do séc. XIX foi uma das importantes questões do debate político. Assim, a luta pelo pão parece ter sido uma constante da história insular, muito particularmente na Madeira. Para tal concorreu a desarticulação entre o movimento demográfico e a economia de aproveitamento do solo. Na Madeira, há uma aposta preferencial nos produtos de exportação, com grande solicitação nos mercados do novo e do velho mundos, o que afasta as culturas de subsistência das áreas pobres de cultivo e as aproxima dos grandes centros de exportação. Esta incessante luta pelo pão determina o relacionamento entre as ilhas em todo o processo histórico. O tráfico interinsular assenta fundamentalmente na redistribuição dos meios de subsistência, o que origina alguma complementaridade, mais evidente nos primórdios da criação das sociedades insulares que nos momentos posteriores. É nesta lógica de complementaridade que se definem os circuitos interinsulares e que ganha forma, à escala das ilhas, um novo mercado que enlaça o chamado Mediterrâneo Atlântico. Açores, Canárias e Madeira unem-se quando os interesses e conjunturas não são adversos. O abastecimento de cereais foi um dos principais incentivos à manutenção das relações interinsulares, que foram uma constante na história madeirense. Todavia, em qualquer dos momentos, o Mediterrâneo atlântico não foi autossuficiente, carecendo da importação do mercado europeu ou do americano. Este último mercado tornou-se uma realidade no decurso dos sécs. XVIII e XIX, funcionando para a Madeira como contrapartida ao vinho. No período entre 1727 e 1810, entraram no porto do Funchal 4297 embarcações com cereal ou farinha, sendo 2053 (48 %) da América do Norte, 799 (19 %) de Inglaterra e 687 (16 %) dos Açores. Disto decorre que a Madeira fazia depender a sua subsistência dos tradicionais mercados consumidores do vinho, a América e a Europa do Norte, que totalizavam mais de dois terços do negócio. As ilhas dos Açores e das Canárias afirmam-se como celeiro de provimento da Madeira. Desde 1516 que a Coroa se viu na necessidade de regulamentar o negócio dos Açores, forçando os agricultores ao abastecimento do mercado madeirense. Os açorianos sempre se mostraram renitentes, quer em momentos de penúria, quer de abundância, pois o comércio com outras áreas parecia-lhes mais vantajoso. Daí a insistência da Coroa relativamente à permanência desta via de suprimento das carências alimentares dos madeirenses. Esta posição açoriana foi uma constante. Afirmou-se no séc. XVI e continuou nas centúrias seguintes. Em meados do séc. XVIII, como reflexo da Guerra dos Sete Anos, tardavam a aparecer os navios americanos com cereal e farinha, pelo que foi necessário o recurso a outros mercados como os Açores, que não se mostrou interessado em tal ligação. A alternativa foi, mais uma vez, Cádis e Canárias. Analisando a relação dos valores da importação de bens alimentares e da saída de vinhos no período de 1784 a 1786, constatamos que a situação é favorável à Madeira, mas eram os Ingleses que arrecadavam todos os lucros, mercê da política de adiantamentos quanto à compra do vinho. Perante as constantes incursões corsárias nesta importante área de passagem dominada pela Madeira e pelos Açores, a parte portuguesa foi muito afetada, não só pelas presas que sofreu, mas também pelos constantes bloqueios das rotas de comércio das ilhas e do Brasil. A Madeira, por exemplo, com uma economia dependente do mercado externo, viveu algumas vezes momentos aflitivos, pois viu-se impedida de sair com o vinho e sem qualquer possibilidade de se reabastecer de comestíveis e manufaturas. Esta realidade surgiu no culminar da viragem da economia insular, no decurso da segunda metade do séc. XVII. A aposta no vinho como meio ativador das trocas externas e a definição do mercado nas colónias ou na Europa do Norte provocaram o desvio de tais rotas, que foi vantajoso para os intervenientes. Os Açores, que no decurso do séc. XVI, em aliança com as Canárias, detinham a missão de suprir as necessidades frumentárias da Ilha, perderam inexoravelmente tal função a favor do novo mercado conquistado com o comércio do vinho. No período de 1510 a 1640, as ilhas acudiram com 69 % do cereal consumido no Funchal, com evidente destaque para os Açores, que proveu 55%, enquanto a Europa se quedou numa posição muito inferior – 28%. A situação mudou no decurso do séc. XIX, com a revolução dos hábitos alimentares das gentes das ilhas. O milho assumiu protagonismo, associando-se agora à batata. A crise de fome na ilha da Madeira, em 1847, é precisamente provocada pela falta deste tubérculo, atacado pela doença. Um dos fatores fundamentais do processo socioeconómico madeirense, a partir de finais do séc. XV, prende-se com as crises de subsistência, resultantes da desarticulação entre o sector produtivo e o movimento demográfico. A conjuntura resultou de mecanismos da sociedade colonial, que estabelece a dependência entre a metrópole e as colónias, e destas entre si. A adequação do processo económico do Mediterrâneo atlântico à realidade comandou o processo interno e externo, e levou as ilhas ou arquipélagos autossuficientes a uma situação de dependência. Foi o caso dos Açores e das Canárias, onde uma situação inicial de equilíbrio da economia agrária favoreceu uma autossuficiência que foi paulatinamente desapareceu. Por outro lado, a aceleração do processo conduziu ao esvaziamento da realidade própria do Mediterrâneo Atlântico. A complementaridade, que no decurso dos sécs. XV e XVI se havia afirmado como um mecanismo de autodefesa da economia insular, converte-se em afrontamento desmedido, evidente no comércio do vinho ou na política do porto franquismo. O comércio O comércio interinsular é uma característica da história económica das ilhas entre os sécs. XV e XVII e resulta, fundamentalmente, da complementaridade. A isto acresce um conjunto diversificado de fatores que evidenciam tal aproximação, tornando-a imprescindível para a marcha do processo económico. A situação torna-se mais evidente para os arquipélagos dos Açores, das Canárias e da Madeira. Em Cabo Verde, não obstante a existência de uma comunidade de insulares e de algumas relações comerciais, não há este tipo de relacionamento e complementaridade do Mediterrâneo atlântico. É de notar que a Madeira, pela posição geográfica e processo económico, foi a ilha que mais usufruiu desta realidade. As trocas insulares incidem na necessidade de abastecimento de cereais, mecanismo indispensável para o equilíbrio do desenvolvimento económico. O arquipélago da Madeira dispõe apenas de duas ilhas, e a segunda adquire pouca importância económica. Daqui resulta que o processo económico, como muito bem entendeu a Coroa, só foi possível graças ao vínculo de complementaridade com outros arquipélagos. Foi, pois, nos Açores que a Coroa encontrou a solução, mas foi nas Canárias que os madeirenses melhor conseguiram levar por diante tal política. O relacionamento comercial com as ilhas dos Açores e das Canários pode ser considerado unidirecional, uma vez que quase só tem como objetivo abastecer a Madeira de cereais. É, aliás, o cereal o principal motor destes contactos, mesmo entre os Açores e as Canárias. No período de 1510 a 1640, contabilizamos a entrada de 196.087,5 fanegas de trigo no Funchal, das quais 135.777,5 provinham das ilhas, correspondendo aos Açores 10.800 e às Canárias 27.777,5. Nos sécs. XVIII e XIX, continua a manter-se o relacionamento da Madeira com os arquipélagos vizinhos, mas é na América e na Europa do Norte que a Ilha encontra o abastecimento de cereais. O recurso a novos mercados abastecedores é-lhe mais vantajoso, visto que lhe permite a troca pelo vinho, o que raramente sucedia nas Canárias e nos Açores. Na segunda metade do séc. XIX, os contactos interinsulares a partir da Madeira mostram-se ocasionais. Os mercados atlânticos: Brasil A partir do séc. XVII, uma das rotas privilegiadas do comércio das ilhas é o Brasil. No caso português, este mercado, mercê da política monopolista do Estado, manteve-se fechado até 1765, altura em que se acabou com o sistema exclusivo das frotas criado em 1649. A constituição da Companhia do Comércio do Brasil veio retirar às ilhas a possibilidade de comércio com o país. Daí a reclamação dos insulares, a quem foi dada, em 1652, a possibilidade de envio de três embarcações dos Açores e duas da Madeira. Maior empenho teve a Madeira no comércio com o Brasil, já no decurso do séc. XVI, pela necessidade de açúcar para suprir, em momentos de dificuldade da produção de tal bem na Ilha, o fabrico de conservas e de casquinha. No decurso dos sécs. XVI e XVII, manteve-se o afrontamento entre os produtores locais e os mercadores do açúcar brasileiro. A partir de meados do séc. XVII, o açúcar madeirense foi, paulatinamente, definhando, rendendo-se a indústria do doce ao açúcar do Brasil. Ao açúcar, juntaram-se os couros, as madeiras e os escravos. Neste contexto, releva-se a figura de Diogo Fernandes Branco, que conseguiu estabelecer uma trama de negócios a partir do Funchal, tendo Lisboa, Angola e Brasil como vértice do triângulo. No caso da Madeira, foi proibida, em 1776, a entrada do vinho, aguardente e vinagre nas regiões do sul, o que veio reforçar a tradicional relação com os portos do nordeste brasileiro. A esta limitação juntam-se outras, que insistiam na proibição da reexportação de produtos estrangeiros, o que levou à reclamação das autoridades pelo pouco interesse em mantê-la. Deste modo, em 1748, fez-se aumentar o número de embarcações para quatro, dando mais campo de manobra para o investimento madeirense na rota. Da Europa à América do Norte  Nos primórdios da ocupação das ilhas, foi a Europa que definiu as rotas do comércio. Porém, com o evoluir do processo, a vinculação europeia perdeu importância, acabando por ceder lugar ao Novo Mundo, que, para as ilhas, corresponde sobretudo à costa africana e à América (do Sul, Central e do Norte). O Oriente é apenas uma miragem com alguns reflexos na economia açoriana, mercê da função de escala e apoio à navegação estabelecida na ilha Terceira. A Europa manteve-se sempre presente no mercado insular, catapultando aspetos dominantes do relacionamento externo. As primeiras culturas lançadas nas ilhas surgem, precisamente, para corresponder às necessidades do mercado europeu. Primeiro os cereais, depois a cana-de-açúcar e o pastel, eis os produtos que marcam essa situação de dependência. Os cereais, juntamente com o pastel, são a marca dos Açores e delimitam rotas de escoamento com destino ao reino, Europa do Norte e Norte de África. O pastel, que, nos sécs. XVI e XVII, adquiriu grande pujança no mercado açoriano, foi o produto que projetou os Açores, nomeadamente São Miguel, nas rotas do tráfico europeu internacional e que começou por estabelecer o vínculo ao Reino Unido, que sairia reforçado mais tarde, no séc. XIX, com a laranja. Ambos os produtos – pastel e laranja – definem um mercado e uma opção socioeconómica com reflexos evidentes no devir açoriano. Na Madeira e nas Canárias, foi o açúcar que delineou o forte vínculo europeu. Também neste contexto, e ainda que seja a Flandres o principal destino, a Europa do Norte adquire uma posição cimeira, seguida do Mediterrâneo. A metrópole e o Estado Ao nível económico e financeiro, a relação entre a Madeira e o continente revela-se na entrega de toda a riqueza da Ilha. As culturas agrícolas são impostas para servir os caprichos da metrópole e todo o lucro situa-se no sector da circulação fora da Ilha. Sucedeu assim com a cana-de-açúcar, que se transformou na galinha dos ovos de ouro para a Coroa portuguesa entre finais do séc. XV e princípios do seguinte. Toda a riqueza resultante da exploração económica, impostos incluídos, é orientada para fora do espaço que a cria. Tão pouco sucede um investimento na valorização do local. O pouco que retornava surge sob a forma de caridade da própria Coroa, de oferta. O Rei D. Manuel foi de todos o mais caridoso para com os madeirenses, pelos quais distribuiu benesses e obras de arte, mas também o que mais fruiu das riquezas da Ilha. As finanças do reino foram marcadas por um permanente déficit, pelo que a Coroa teve necessidade de se socorrer de diversos meios para saldar a diferença. Desde o séc. XIV que a forma mais usual de solucionar o problema era o recurso a pedidos e empréstimos. Era com estas formas de financiamento que a Coroa cobria o déficit e as despesas bélicas, bem como a boda do casamento dos príncipes. O vigor demonstrado pelos madeirenses na defesa dos seus interesses tem expressão na recusa ao pedido de empréstimo de 1478, sendo reforçado no papel do Senado da Câmara do Funchal. Na verdade, a Madeira era, desde 1433, um espaço fora do controle da Coroa, dependendo do mestrado da Ordem de Cristo e tendo o infante D. Henrique como senhor. Mas a sua riqueza estava na mira da Coroa, pelo que D. Manuel, que também foi senhor da Ilha, deu a machadada final no processo de autogoverno dos madeirenses ao proceder, em 1497, à “nacionalização” da Madeira. A partir de finais do séc. XV, toda a riqueza gerada deixou de pertencer ao senhorio e passou para o usufruto da Coroa, indo a tempo de financiar as grandes viagens oceânicas e a despesa da Casa Real. A partir daqui, é evidente que a Madeira perdeu a capacidade reivindicativa perante a Coroa. O centralismo régio está patente na submissão e pronto acatamento pela vereação de todos os regimentos e decretos régios. É evidente que, durante o séc. XV e o primeiro quartel do seguinte, a principal fonte de receita do mundo português estava no açúcar madeirense. As receitas advinham dos direitos lançados e do comércio do açúcar apurado. Os dados financeiros disponíveis não evidenciam de forma clara a situação. Perderam-se os livros de contas, mas os poucos que se podem consultar não nos atraiçoam. Primeiro o senhorio e depois a Coroa oneravam este produto com diversas tributações, que lhes permitiam amealhar elevadas quantias que usavam em benefício próprio, no pagamento de tenças, esmolas, empréstimos e dívidas. No primeiro registo das receitas do reino e possessões, datado de 1506, a Madeira surge com o valor mais elevado das comparticipações dos novos espaços insulares, com 5,3 %. Até à déc. de 30 do séc. XVI, os réditos fiscais resultantes da produção e comércio do açúcar asseguraram parte importante das fontes de financiamento do reino e dos projetos expansionistas. Em 1529, com o Tratado de Saragoça, foi encontrada uma solução provisória que, a curto prazo, parecia agradar a ambas as partes. D. João III viu-se forçado a pagar 350.000 ducados para assegurar a posse das Molucas, que afinal se encontravam dentro da área de influência de Portugal. Mais uma vez, é possível assinalar uma ligação à Madeira, pois terá sido, segundo alguns, o madeirense António de Abreu o primeiro explorador. Por outro lado, os madeirenses contribuíram com avultada quantia de empréstimo para o pagamento do referido contrato. Manuel de Noronha ficou com o encargo de arrecadar a contribuição madeirense. Também João Rodrigues Castelhano é referenciado como recebedor do referido empréstimo, tendo desembolsado da sua fazenda 300.000 reais. A este juntaram-se Fernão Teixeira com 150.000 reais e Gonçalo Fernandes com 200.000 reais. O pagamento fez-se nos anos de 1530-1531 à custa dos dinheiros resultantes dos direitos da Coroa sobre o açúcar. A Madeira, como centro gerador da riqueza do reino e da forma colonial da administração, não passou desapercebida aos locais e visitantes. No séc. XVIII, a promoção do comércio do vinho gerou de novo elevada riqueza, pelo que a Ilha parecia querer regressar aos velhos tempos da opulência açucareira. É dentro desta ambiência que James Cook refere, em 1768, que a Coroa arrecadava na Ilha 20.000 libras por ano, mas poderia dar o dobro se estivesse nas mãos de outro povo. Em 1827, outro súbdito inglês, cujo nome se desconhece, apontava o destino desta receita: “o Rei pagava todas as despesas das legações no estrangeiro (isto antes de 1820) com o excedente dos seus rendimentos da Madeira. Todos os anos era transferida para Londres, com esse fim, uma quantia de 50 a 80.000 libras” (VIEIRA, 2014, 411). O contraste entre esta crescente riqueza que todos os anos enchia os cofres do reino e as condições cada vez mais precárias da população madeirense é evidente. Também Paulo Dias de Almeida, sendo enviado à Ilha para proceder ao estudo da defesa e da rede viária, fez notar o quanto tal relação enchia os cofres do Estado. O séc. XIX foi um marco na plena afirmação do debate político, que para muitos madeirenses foi alicerçado nos combates pela defesa do torrão natal. As mudanças políticas tão pouco solucionaram as ancestrais questões. O combate político avivou os ideais autonómicos e conduziu ao estabelecimento da autonomia administrativa por carta de lei de 12 de junho de 1901. A República jacobina foi marcadamente centralista, e o movimento autonomista das primeiras décadas do séc. XX, apoiado nos sectores políticos mais conservadores da sociedade madeirense, fez desta orfandade e sangria financeira o cavalo de batalha para a luta autonómica. Note-se que eram redobradas as razões para tal, uma vez que o esforço de investimento financeiro do Estado na região não suplantava os 0,2 %, quando o contributo financeiro da Ilha para o todo nacional chegava aos 12,5 %. No caso das províncias ultramarinas, o panorama da despesa é distinto, atingindo-se, em 1914-1915, os 16 %. O contraste é evidente e mobilizador de alguns sectores políticos da sociedade madeirense. Um exemplo mais a provar o tratamento de tipo colonial nas aplicações financeiras do Estado na região está na forma como se procedia ao lançamento de infraestruturas imprescindíveis para o desenvolvimento da Ilha. Incluem-se neste caso as obras do porto do Funchal e as dos aproveitamentos hidroagrícolas e elétricos. Para o primeiro, foi criada, em 1913, a Junta Autónoma das Obras do Porto Funchal, com o objetivo de coordenar as referidas obras e conseguir os meios financeiros necessários, sendo-lhe para isso atribuído o direito de arrecadação do imposto sobre o tabaco. Entre 1931 e 1933, as obras custaram 5.353.000 escudos, enquanto a receita do imposto, entre 1923 e 1932, foi de 25.123.841 escudos, isto é, os gastos foram de apenas 21 %. Por outro lado, as obras contribuíram para um incremento do movimento do porto com repercussão direta nas receitas da Alfândega, que, a partir de 1927, quadruplicaram. A promoção do sistema de regadio e de eletrificação foi encargo da Comissão de Aproveitamentos Hidráulicos criada em 1944. O investimento desta Comissão, entre 1944 e 1968, foi de 340.152 contos, em que a comparticipação do Estado foi de apenas 29 %, sendo o resto de autofinanciamento. O esforço contributivo da região no período do Estado Novo não foi devidamente recompensado com o investimento. Mesmo assim, é neste período que temos a maior incidência e preocupação do Estado no investimento reprodutivo, com empreendimentos vultuosos, como o porto, o aeroporto e os aproveitamentos hidroelétricos e hidroagrícolas. O problema financeiro pesou de forma evidente no debate político sobre a autonomia. Ademais, para a maioria dos intervenientes é evidente o contraste entre uma ilha que alimentava permanentemente os cofres de Lisboa e o abandono a que estava votada. Desde o ano 1976, a economia madeirense assumiu vários matizes, nos quais é notório o acompanhamento da economia regional consoante as fases de desenvolvimento vivenciadas pela RAM. Tal pode ser verificado através de uma análise comparativa daqueles que eram os motores da economia na déc. de 70 do séc. XX e os propulsores da mesma no séc. XXI. O sector primário foi aquele que apresentou claramente uma diminuição do seu peso relativo na atividade económica, sendo que a proporção do valor acrescentado bruto (VAB) do sector no VAB regional diminuiu consideravelmente. Dados referentes ao ano de 1995 permitem constatar que o sector que engloba as atividades da agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca representava 3,3 % do VAB da Região, proporção que diminuiu, sendo reportado um peso de 1,9 % no ano de 2012. Em detrimento dos sectores primário e secundário, o sector terciário afirmou-se como principal motor económico, realidade que pode ser explicada pela influência que a atividade turística assume, mas também pela modernização a que o sector empresarial foi sujeito, impulsionada pelo ritmo de desenvolvimento que a Região estava a apresentar. Naturalmente, não só o comércio e as atividades relacionadas com o sector hoteleiro e com a restauração permitiram que a preponderância do sector terciário se tornasse mais evidente. O sector dos serviços, como, por exemplo, aqueles que estão associados ao apoio das empresas, também contribuiu para isso. Se, no ano de 1995, o sector terciário representava 76,4 % do VAB regional, a proporção aumentou significativamente no espaço de cerca de 20 anos, fixando-se, no ano 2012, em 84, 8 %. As atividades administrativas e os serviços de apoio, que representavam 6,7 % do total regional em 1995, passaram a representar 12,4 % no ano 2012. Cabe destacar que, para colmatar as insuficiências que a RAM apresentava em termos de infraestruturas, foram direcionadas verbas provenientes, na sua grande maioria, de fundos comunitários. Note-se que o sector da construção representou 12,04 % do VAB regional em 1995, reduzindo-se essa percentagem para metade no ano 2012, o que denota um auge do sector ocasionado pelo investimento em obras públicas e nas edificações construídas pelo sector privado. Em termos de emprego, o sector empregou 13,3 % da população empregada em 1995, passando a empregar cerca de 10,6 % em 2012. Como é possível constatar, a evolução da RAM condicionou a caracterização sectorial da economia, tendo sido clara a afirmação do sector terciário, que, em 2011, dava emprego a cerca de três quartos da população empregada, nomeadamente a 73,13 %, representando cerca de 85,26 % do investimento na Região.   Alberto Vieira  Sérgio Rodrigues (atualizado a 02.01.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social

candomblé e umbanda

O candomblé é a religião afro-brasileira dos escravos africanos levados para o Brasil, que aí mantiveram algumas das tradições culturais das religiões de várias partes de África, nomeadamente o culto dos orixas (termo iorubano que significa “ser sobre-humano” ou “Deus”) – manifestações do grande deus Olorum (criador de tudo) que representam as forças da natureza –, que constitui uma forma de xamanismo. Trata-se de uma religião com uma base filosófica, mistérios, crenças e rituais específicos: tem uma teologia própria (estudo dos orixás, experiência da divindade e conhecimento da formação do seu mundo religioso), uma liturgia (todos os ritos, públicos e secretos, existentes na religião para os iniciados, como cantos e danças) e dogmas que sustentam a doutrina desta tradição religiosa. A religião dos orixás – entendidos como entidades espirituais ancestrais dos reis e das rainhas que existiram nas terras africanas e foram levados como escravos para o Brasil – formou-se na Baía no séc. XIX, sendo parte das tradições do povo ioruba (nome do idioma) ou nagô, também chamado nação Ketu. A maioria das religiões de origem africana que se firmaram no Brasil sofreu grande influência deste povo do antigo reino africano, onde surgiriam a República Popular do Benim e a Nigéria. A nação Ketu é considerada a verdadeira raiz africana, enquanto a nação Angola é vista como um braço do Ketu que tornou os seus preceitos ou obrigações mais brandos, mantendo os mesmos fundamentos: resguardo e respeito. O Ketu tornou-se uma espécie de modelo para o conjunto das religiões dos orixás, pelo que as outras nações (assim chamadas por corresponderem a povos) acabaram por incorporar algumas das suas práticas ou rituais. Foram principalmente os candomblés baianos das nações Ketu (ioruba) e Angola (banto) que mais se propagaram no Brasil. A nação Banto ou Angola, dos povos do Congo e Angola, tinha como idioma o quimbundo, sendo facilmente reconhecida pela forma diferente de dançar, cantar e tocar atabaques. Esta nação incorporou os orixás iorubanos, utilizando nomes dos inkices ou divindades bantas. Existem ainda outras variantes de cultos do candomblé no Brasil, mas todas têm o mesmo propósito nas suas crenças e liturgia: o equilíbrio entre os homens e as divindades como ligação do mundo material com o sagrado. Por isso, praticamente todas as variantes seguem as mesmas determinações: iniciação, cânticos (na linguagem original), toque de atabaques, oferendas e sacrifícios. Tradicionalmente, esta religião afro-brasileira vive do conhecimento dos orixás, que determinam as características e o destino pessoal dos crentes. O santo de proteção ou orixá da cabeça (ori) é conhecido através do jogo de búzios feito pela mãe (iaolorixá) ou pelo pai (babalorixá) de santo. Estes comandam as sessões ritualísticas com a ajuda dos seus filhos de santo, iniciados ou iaôs, que têm funções específicas no terreiro, onde se realizam os cultos e os religiosos recebem ou incorporam os santos e/ou orixás que “baixam”. O barracão é a casa central de um terreiro de candomblé, onde acontecem as festividades, os rituais religiosos e as incorporações dos orixás nas pessoas iniciadas, ao som dos tambores. Um iniciado é uma pessoa que é escolhida para ser filho ou filha de santo, passando por anos de aprendizagem sobre a religião, as músicas, os cânticos, as folhas e ervas utilizadas nos trabalhos espirituais ou ebós, maneiras de andar, dançar e estar diante de um pai ou mãe de santo, a história dos povos africanos e os seus eguns (espíritos), entre outras coisas. Enquanto religião, o candomblé foi muito perseguido, mas, no Brasil, a Igreja Católica acabou por aceitar os pais e as mães de santos trajados com os seus filhos de santos. Esta religião sofreu, assim, transformações ao longo dos séculos: por um lado, sincretizou o seu conteúdo com a Igreja Católica, por outro, preservou os elementos essenciais da identidade cultural dos negros africanos escravizados no Brasil. Como escravos de senhores católicos, os negros foram proibidos de cultuar a sua religião, sendo obrigados a assistir às missas nos portais das igrejas. Numa tentativa de fazer sobreviver a sua cultura, começaram a estabelecer paralelos entre as suas divindades e os santos da Igreja Católica, num gesto de sincretismo religioso. Cada orixá tem as suas características, o seu dia, a sua cor, a sua dança, os seus instrumentos, frutas e comidas favoritas, e saudações. Também há uma correspondência entre os orixás e os signos do zodíaco. No que diz respeito à presença do candomblé na Madeira, existem pais e mães de santo na ilha que vieram do Brasil ou que foram formados no Brasil ou por brasileiros e africanos no continente português. O barracão de candomblé ou roça de santo/ casa de santo é um lugar considerado sagrado, onde ocorre a gira para cultuar o orixá. O terreiro engloba o quarto do orixá, o salão para fazer as festas, cantar, exaltar e receber o orixá, etc. Num terreiro de umbanda, tal como no candomblé, a gira é a entrada no recinto da mãe ou pai de santo, ou seja, a abertura para receber uma entidade com o propósito de cura e orientação espiritual. A umbanda (“arte de curar”, do quimbundo de Angola) é uma religião formada dentro da cultura religiosa brasileira, que sincretiza vários elementos: índios (indígenas ancestrais ou caboclos), negros (ancestrais pretos-velhos de África, da religião afro-brasileira candomblé), brancos (religião católica) e da doutrina espírita de Kardec (Espiritismo). Uma das principais diferenças em relação ao candomblé é que, na umbanda, os orixás não incorporam, devido à sua elevada posição na hierarquia divina. A prática da caridade é a característica principal deste culto, que tem por base o evangelho. Ao longo do tempo, a umbanda passou por várias transformações e criou diversas ramificações. Assim, as entidades ou guias que cultua estão ligados a diferentes linhas espirituais: pretos-velhos (linhagem africana), caboclos (sobretudo índios), baianos (também chamados Zés e marinheiros), boiadeiros, povo do Oriente, crianças (erés), exus e pombagiras, entre outros. Na Madeira, existem pai de santo de umbanda que realizaram a sua “feitura”, o “assentamento” ou “fundamento” (cerimónia ou ritual de iniciação) de preto-velho no Brasil ou em Lisboa, na linhagem africana, sendo médiuns de incorporação que juntam o espiritismo e o catolicismo, bem como a sua intuição e visão, na sua atividade. Desde agosto de 2006, existe o Umbanda Center na Madeira, começando a divulgação da religião e a realização de rituais. Este centro ou terreiro de umbanda na Madeira está ligado a uma casa de santo do Rio de Janeiro e foi fundado com o seu apoio. Designando-se primeiramente tenda espírita Sete Luas, o seu nome foi depois alterado para TEMO – Umbanda Center, que significa tenda espírita Mensageiro de Oxalá – Centro de Umbanda. A aceitação do candomblé e da umbanda na Madeira revelou-se um processo lento devido ao preconceito oriundo do desconhecimento destas religiões, que são conotadas negativamente como práticas de macumba e de feitiçaria.   Naidea Nunes (atualizado a 15.06.2020)

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