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orçamento

Análise da forma e da evolução dos orçamentos, tendo em consideração os nacionais e os locais, através da Junta Geral e do Governo Regional. Palavras-chave: Orçamento; Junta Geral; Governo Regional. O orçamento é a previsão da receita e despesa para o ano económico. É a partir da Lei do Orçamento, aprovada pelo Parlamento, que o Estado está autorizado a cobrar receitas e a efetuar as despesas. Os orçamentos são uma realidade recente, em termos de contabilidade, pois iniciam-se, formalmente, em Portugal, em 1533. No entanto, há quem aponte a sua existência a partir de 1473. Até então, não passavam de meros relatórios de contas realizados por um contador, sob a supervisão do vedor da Fazenda. Nos sécs. XVI e XVII, eram apenas registos de previsão da despesa realizados pelo vedor da Fazenda; tratava-se de documentos de carácter irregular, que só eram feitos mediante solicitação superior. No que diz respeito ao Reino, temos referências a documentos orçamentais dos anos de 1526, 1534, 1557, 1607 e 1619. Destes, podemos referir para o Estado da Índia os de 1574, 1581, 1588, 1588-90, 1607, 1609-12, 1620, 1635, 1680 e 1687. O orçamento e modelo de gestão orçamental que vigora no começo do séc. XXI, como ato jurídico, foi estabelecido na Constituição de 1822, mas só teve execução a partir de 1834. De acordo com a Constituição de 1822 (arts. 103 e 227), a Carta constitucional de 1826 (arts. 15, 136 e 138) e a Constituição de 1838 (art. 37, 54, 132 e 136), competia às Cortes determinar a despesa pública e os impostos a arrecadar, assim como fiscalizar a sua execução anual. O orçamento foi reformado pela Constituição de 1911 (art. 23, 26 e 54) estabelecendo-se, no art. 54, que deveria ser entregue ao Congresso, para discussão e apresentação, até ao dia 15 de janeiro. Mas nem sempre esta situação aconteceu, por força da instabilidade política que se viveu durante a Primeira República. Assim, entre 1918 e 1926, apenas dois foram aprovados e, ainda assim, com algum atraso. Nestas circunstâncias, recorria-se às Leis de Meios e aos duodécimos. Com a Constituição de 1933 – que surge como resultado do golpe militar de 1926 e da reforma fiscal apresentada por Salazar –, retira-se à Assembleia Nacional a capacidade de aprovar e fiscalizar o orçamento, que passa a ser elaborado e posto em execução pelo Governo. Desta forma, a Assembleia aprova uma Lei de Meios genérica e, ao Governo, fica a liberdade de estabelecer o Orçamento Geral do Estado, que será publicado sob a forma de decreto orçamental. Em algumas circunstâncias, a situação passa por uma norma legal que estabelece o orçamento do ano anterior, como aconteceu entre 1896 e 1910. São aqui referidos os anos económicos sem orçamento definitivo: o período de 1821-1836, 1838-39, 1840-41, 1842-43, 1843-44, 1844-45, 1847-48, 1851-52, 1856-57, 1858-59, 1859-60, 1861-62, 1862-63, 1865-66, 1868-69, 1869-70, 1870-71, 1871-72, 1879-80, 1905-06, 1906-07, 1910-11, 1919-20, 1920-21, 1921-22, 1924-25 e 1925-26. Nesta enumeração, deveremos diferenciar o orçamento das propostas governamentais e dos diplomas de aprovação do mesmo: as propostas governamentais de orçamento reportam-se a 1913-14, 1917-18, 1919-20, 1925-26, 1926-27 e 1936-347. De acordo com os preceitos constitucionais do Estado Novo, a aprovação do orçamento pelo Parlamento fazia-se através de uma lei, chamada Lei da Receita e da Despesa. Assim, o Parlamento deveria aprovar, antes do início do ano económico, o respetivo Orçamento, apresentado pelo Governo. Antes de o submeter à apreciação da Assembleia, o Governo deveria aprová-lo por decreto-lei. Com a Constituição de 1976, foi criada uma Lei do Orçamento de Estado, e o Governo tem de aprovar o Orçamento através de um decreto orçamental. Junta Geral da Madeira (1903-1976) Com a definição da autonomia distrital a partir de 1901 surgiu a figura institucional da Junta Geral, que gere o Governo do distrito do Funchal. Era esta junta que exercia a administração do espaço do arquipélago, mediante competências delegadas. Os orçamentos desta Junta Geral eram elaborados e propostos pela Comissão Distrital do Funchal para aprovação à Junta Geral na última sessão ordinária do ano civil, devendo entrar em execução a partir do dia 2 de janeiro do ano a que se reportavam. A não existência do mesmo na data era considerada motivo para a demissão da comissão que presidia à Junta. Os orçamentos das Juntas Gerais eram equiparados, em termos de contabilidade, aos orçamentos a que estavam obrigados os concelhos de primeira ordem (art. 33), isto é, os mais importantes no quadro da administração municipal. Esta ideia, determinada no Estatuto, implicava uma exigência em termos procedimentos contabilísticos. A lei n.º 88 de 1913 dedica o capítulo II aos orçamentos, onde estão definidas as regras da sua estrutura e elaboração, bem como dos tipos de orçamentos que a Junta pode elaborar: ordinários e suplementares. Os últimos acontecem apenas como resultado de alterações que sucedam no decurso da execução dos primeiros, não havendo qualquer limite quanto ao número dessas alterações. Esta situação e a transferência de verbas orçamentais eram autorizadas pelo governador civil, depois de ouvida a Comissão Distrital. Em termos de política orçamental, a comissão executiva da Junta apenas estava autorizada a proceder a transferências de verbas entre as diversas rubricas. O valor anual do orçamento era imutável, i.e., os orçamentos suplementares não aumentavam nem diminuíam o valor inicial atribuído à receita e à despesa, a não ser que ocorresse uma receita extraordinária e existisse a necessidade de aplicá-la. As principais fontes de receita da Junta Geral eram os impostos (impostos distritais, contribuições diretas e adicionais, imposto do vinho de estufa, imposto para hospitalização de alienados e socorros a náufragos, impostos sobre o açúcar, o álcool e a aguardente, imposto sobre os combustíveis, fundo de viação e turismo, contribuição predial, contribuição industrial, imposto sobre capitais, imposto sobre transações, imposto de camionagem, imposto profissional, imposto de trânsito, imposto de compensação, imposto do tabaco, imposto do selo, imposto de circulação, as cobranças estabelecidas no art. 1.º do dec.-lei n.º 34051 e no art. 2.º do dec--lei n.º 34051, bem como os emolumentos, as multas e taxas, as receitas de diversos serviços, o rendimento das levadas do Estado, os recebimentos para outras entidades, os subsídios, os empréstimos, as dívidas, os subsídios do fundo de desemprego e outras receitas. Devemos ainda assinalar, desde 1956, o adicional de 10 % sobre o imposto profissional, assim como diversos adicionais consignados a certas despesas. Assim, por despacho ministerial de 30 de dezembro de 1953, foi estabelecida uma taxa sobre a entrada e saída de mercadorias para a assistência distrital. A isto acrescentara-se, em 1933, as comparticipações de 50 % do fundo de Desemprego para as obras de utilidade pública. As principais despesas obrigatórias eram: os vencimentos do pessoal; as pensões de aposentação; os encargos de empréstimos; o pagamento de dívidas exigíveis; as despesas com os litígios; as despesas de dotação dos serviços distritais; a hospitalização de alienados. Ainda temos as despesas relacionadas com o funcionamento do Governo Civil, com as escolas do ensino liceal e técnico; com a delegação do Tribunal do Trabalho e Previdência; com o Tribunal do Trabalho; com a direção do distrito escolar; com o Arquivo Distrital; e as despesas de representação do presidente da Comissão e do Governo do distrito. Governo Regional da Madeira A Constituição de 1976 estabelece um regime híbrido entre a Constituição de 1933 e os anteriores textos constitucionais. Deste modo, ao Governo compete elaborar o orçamento, publicado por decreto-lei orçamental, enquanto à Assembleia compete aprovar a Lei do Orçamento. O plano de atividades, que fundamenta a despesa e que até então era apresentado de forma separada, passou a estar integrado no orçamento. Com a revisão constitucional de 1982, a Assembleia aprova o orçamento, e ao Governo compete executá-lo. Na revisão de 1989, a mudança mais significativa prende-se com o regime do plano de atividades. A integração de Portugal na União Europeia implicou alterações da política orçamental, nomeadamente a partir da assinatura do Tratado de Roma, a 7 de Fevereiro de 1992, que determinou a necessidade de convergência económica e financeira. Nesse quadro, releva-se a fiscalização, pela Comissão Distrital, da evolução da situação orçamental, designadamente no que concerne à dívida pública, que, suplantando os limites estabelecidos, implicava pesadas penalizações de carácter financeiro. O orçamento regional é elaborado, desde 1976, pelas regiões autónomas da Madeira e dos Açores. A elaboração e execução destes orçamentos baliza-se pelo Estatuto Administrativo da Região, a legislação de enquadramento do orçamento e das finanças regionais, o programa do Governo regional, o Quadro Comunitário de Apoio e o Orçamento Geral do Estado. De acordo com o primeiro Estatuto, dito provisório enquanto o definitivo não é elaborado pela Assembleia Regional da Madeira, a Região deve elaborar um orçamento e plano económico regional, a enquadrar no Orçamento do Estado, que deve ser submetido à aprovação da Assembleia Regional. Recorde-se que o orçamento regional começou por ser integrado no Orçamento do Estado, o que implicava que a sua plena execução estava sempre pendente do orçamento nacional. A proposta de orçamento é elaborada pela Secretaria Regional das Finanças, aprovada em plenário do Governo por resolução, assinada pelo presidente e pelo secretário das Finanças, e depois submetida à aprovação da Assembleia Regional, quer sob a forma de decreto regional (apenas nos anos de 1977-1978), quer passando depois a resolução desta Assembleia (a partir de 1979), dando lugar a decreto legislativo regional (desde 1988). A execução deste documento é definida por decreto regulamentar regional, sendo as alterações ao mesmo orçamento feitas através de decreto legislativo regional. A situação de dependência do orçamento regional em relação à aprovação do Orçamento Geral do Estado, por forças das verbas, consideradas de acordo com o princípio de solidariedade do Estatuto de 1976 (art. 56), conduzirá a que seja aprovado muitas vezes de forma tardia, como sucedeu entre 1977 e 1986. Até 1988, o orçamento, depois de aprovado pela Assembleia Regional e assinado pelo ministro da República, era remetido ao Governo da República para ser integrado no Orçamento do Estado. A partir desta data, com base no artigo n.º 22 da Constituição, o Governo Regional passou a submeter o orçamento à Assembleia Regional sob a forma de proposta de decreto legislativo regional, que, depois de aprovado pela Assembleia, era assinado pelo presidente da mesma e pelo ministro da República, sendo depois publicado em Diário da República. Esta fórmula era também seguida quanto aos programas e projetos plurianuais do Plano de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração da RAM. As alterações orçamentais, que até 1990 estavam sujeitas à apresentação e aprovação, pela Assembleia Regional, de um orçamento suplementar, deixam de existir (de acordo com o art. 20 do dec.-lei 40/83, de 13 de dezembro), estando o Governo autorizado a realizá-las, desde que não impliquem alteração na despesa, procedendo à sua publicação no Jornal Oficial da RAM. Em termos de execução orçamental, surgiram alguns instrumentos legislativos. A lei n.º 28/92 DR 201/92 Série I-A, de 1 de setembro, estabeleceu as regras referentes ao Orçamento da Região Autónoma da Madeira, os procedimentos para a sua elaboração, discussão, aprovação, execução, alteração e fiscalização, e a responsabilidade orçamental. Foi alterada pela lei n.º 53/93 DR 177/93 Série I-A, de 30 de julho. A lei n.º 91/2001, de enquadramento do Orçamento do Estado, estabelece “as disposições gerais e comuns de enquadramento dos orçamentos e contas de todo o setor público administrativo”. Assim, define “as regras e os procedimentos relativos à organização, elaboração, apresentação, discussão, votação, alteração e execução do Orçamento do Estado, incluindo o da segurança social, e a correspondente fiscalização e responsabilidade orçamental, e à organização, elaboração, apresentação, discussão e votação das contas do Estado, incluindo a da segurança social”. A orgânica da Direcção Regional de Orçamento e Contabilidade foi aprovada pelo dec. reg. n.º 21/93/M DR 157/93 Série I-B, de 7 de julho. A falta de controlo sobre o sistema tributário e a sua arrecadação, associada à insuficiência de recursos financeiros, por parte do Estado, para satisfazer as necessidades de funcionamento das instituições, nomeadamente dos setores da saúde e da educação, criou insistentes problemas de tesouraria às finanças regionais, obrigando a constantes recursos a empréstimos. Assim, as políticas orçamentais geraram conflitos entre os Governos regional e central. A isto associa-se, muitas vezes, a aprovação tardia do Orçamento Geral do Estado, mecanismo que estipula o valor anual das verbas correspondentes às transferências do Estado, que conduz a atrasos na aprovação do Orçamento regional, bem como na definição de políticas orçamentais. Os anos de 1985 e 1986 foram de particular significado para esta conjuntura de difícil execução orçamental, tendo levado à negociação de um programa de reequilíbrio financeiro com o Governo da República. Desta forma, pela resolução 9/86, de 16 de janeiro, o Governo mandatou o ministro da República e o ministro das Finanças para estabelecerem com o Governo Regional um programa de reequilíbrio financeiro da RAM, assinado a 26 de fevereiro de 1986. A 22 de setembro de 1989, houve novo programa de recuperação financeira, que vigorou até 31 de dezembro de 1997.   Alberto Vieira Eduardo Jesus (atualizado a 15.12.2017)

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pautas aduaneiras

As pautas aduaneiras podiam ser únicas ou múltiplas (ou seja, o objeto era alvo de uma tributação única ou variável, de acordo com a sua origem ou condições de importação), ou mistas. A partir da década de 30 do séc. XIX, ocorreram diversas alterações nas pautas, as quais foram apontadas por vários madeirenses como responsáveis pelas dificuldades comerciais do arquipélago. Palavras-chave: Alfândegas; Pautas.   As pautas aduaneiras eram tabelas de mercadorias, com as respetivas taxas de importação e exportação. Estas pautas podiam ser únicas ou múltiplas, ou seja, o objeto era alvo de uma tributação única ou variável, de acordo com a sua origem e as suas condições de importação. Havia, ainda, as chamadas pautas mistas, que contemplavam as duas situações. A necessidade da sua quase permanente adaptação às novas circunstâncias do mercado obrigou as autoridades a criarem comissões para a sua revisão. As alfândegas foram criadas na Madeira em 1477 e o seu funcionamento em termos de regulamentação das taxas foi estabelecido por regimentos (1499). Na documentação da antiga Alfândega do Funchal, existem: as avaliações de artigos de produção e indústria inglesa (1811); a Pauta Geral da Alfândega grande de Lisboa – impresso, cópia e emolumentos (1782-1836); e a Pauta Geral e inglesa para a avaliação das mercadorias (1834). A Pauta Geral da Alfândega era um documento onde se estabeleciam as normas precisas para avaliação dos géneros, sob o ponto de vista fiscal. Foi estabelecida em 1782, por D. Maria I, para a Alfândega de Lisboa, e tornou-se aplicável a todas as do reino, tendo-se mantido até 1832. Entretanto, em 1818, D. João VI, no Brasil, determinou, por alvará régio de 25 de abril, alterações aos direitos pagos nas Alfândegas de Portugal e do Brasil. O facto de as pautas terem sido estabelecidas, de forma geral, para o país, ignorando as especificidades, nomeadamente dos arquipélagos insulares, criou várias situações penalizadoras que fizeram levantar a voz dos insulares. O debate político local, nomeadamente após a revolução liberal, será muitas vezes alimentado em torno destas pautas e dos seus efeitos positivos ou negativos para a vida económica local, insistindo-se na necessidade de adaptações ou de uma pauta específica. Pelo dec. n.º 14, de 20 de abril de 1832, fez-se a reforma da Pauta Aduaneira, a que se seguiu outra, pelo dec. de 10 de Janeiro de 1837. A partir desta data, a Pauta passou a ser geral para todo o país, deixando de existir pautas específicas para cada Alfândega. É nítida uma intenção livre-cambista, mas a necessidade de receita impediu um maior progresso. A 4 de julho de 1835, foi criada uma comissão para proceder à revisão da Pauta. A nova Pauta entrou em vigor pelo decreto de 10 de janeiro de 1837. A Madeira não foi ouvida e apenas foram considerados os interesses da burguesia comercial do Porto e Lisboa. Por essa razão, a referida Pauta revelou-se danosa para as demais regiões, nomeadamente para a Madeira, tendo por isso merecido a contestação dos madeirenses, por permitir a entrada livre de vinhos e aguardentes do continente. Mesmo assim, alguns artigos considerados ruinosos para a Madeira foram suspensos pelas Cortes, por influência do deputado Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, que fora governador e era então deputado eleito pela Madeira. No séc. XIX, a cobrança dos direitos de exportação no Funchal estava regulamentada por duas Pautas: a geral e a inglesa. A última, feita de acordo com o tratado de comércio com Inglaterra (1810), determinava privilégios especiais aos Ingleses. Diogo Teles de Menezes (1788-1872), diretor da Alfândega, decidiu, por sua iniciativa, fundir ambas e criar uma nova Pauta Alfandegária, que motivou um aceso protesto da Associação Comercial do Funchal, que fora criada em 1836. Em 1839, a Associação Comercial submeteu à Câmara do Funchal uma proposta de alteração da Pauta, que não foi contemplada. Todavia, na revisão da Pauta de março de 1841, a Madeira continuaria a manter o regime de exceção para os vinhos aguardentes e os cereais. Neste mesmo ano, surgiu, no Funchal, uma comissão auxiliar da comissão permanente da Pauta Geral das Alfândegas. As diversas alterações e reformas da Pauta Aduaneira que tiveram lugar ao longo do séc. XIX (em 1837, 1841, 1850, 1852, 1856, 1860, 1870, 1882, 1885, 1887, 1892, 1924 e 1926) sempre mereceram reparos dos madeirenses, que a apontaram como responsável pelas dificuldades comerciais do arquipélago, nomeadamente devido à falta de competitividade com os portos vizinhos das Canárias. Com efeito, a Pauta será motivo de permanente reclamação, porque a Madeira está numa situação distinta dos demais portos do reino e as medidas protecionistas apenas ponderam as condições de Portugal continental. A este propósito, diz-nos Paulo Perestrelo da Câmara: “Finalmente deve-se contemplar, na massa dos males, que, ultimamente mais tem pesado sobre a Madeira, a lei das Pautas, que com os seus efeitos proibitivos, nada mais tem feito, senão aperfeiçoar a ciência do contrabando, dando cabo de um comércio já tão enfraquecido. A mania de tudo mudar, levou esses novos legisladores á demencia de por a Madeira na mesma escala de produções e interesses que Portugal, com quem esta ilha não pode comerciar, pois abundando em vinhos excelentes, não os consome aquela, a quem também não pode fornecer os artefactos, de que carece. A Madeira só pode negociar com países não vinhateiros, e deles receber os artigos de que carece, mas com direitos suaves” (CÂMARA, 1841, 95-96). Assentando a economia da Ilha apenas no comércio do vinho e, sendo este o principal alvo das tributações, era difícil conseguir algum lucro e competitividade no mercado externo. Por outro lado, a Madeira necessitava de importar tudo aquilo de que precisava para a sua manutenção, desde manufaturas a cereais. Na mesma linha, a possibilidade de trazer para a Madeira parte da navegação oceânica, como forma de animar o movimento do porto comercial, passaria por medidas que favorecessem essa situação, face às melhores condições oferecidas por outros portos como os das Canárias. Neste caso, existiria a necessidade de estabelecer condições mais favoráveis à entrada e saída no porto do Funchal, através da criação de infraestruturas e de medidas fiscais que não fossem penalizadoras, nomeadamente quanto à entrada e saída do carvão, o principal meio de combustível a partir desta centúria. O grande objetivo era fazer do Funchal a principal estalagem do oceano. Uma pauta penalizadora destas importações era, portanto, prejudicial para a Madeira, fazendo aumentar o clamor por soluções aduaneiras que tivessem em conta esta situação específica, que raras vezes merecia a aprovação e o entendimento dos pares e das autoridades da metrópole. As Pautas necessitavam de permanente atualização, criando-se para o efeito comissões específicas. A Comissão Revisora foi criada para aceitar as reclamações sobre as mesmas e propor a sua reforma, de acordo com a situação da indústria nacional e com as alterações das pautas estrangeiras. Reorganizada por decreto de 31 de março de 1845, foi extinta em 28 de dezembro de 1852, para dar lugar à Comissão para as Pautas Aduaneiras que, por sua vez, deu lugar, por decreto de 25 de outubro de 1859, à Comissão Revisora da Pauta Geral da Alfândega, que estava incumbida da missão de proceder à realização da estatística das fábricas e oficinas do país, à recolha de informações sobre a produção, o consumo e a exportação dos seus produtos e, ainda, ao estudo sobre a importação de produtos das indústrias estrangeiras. Foi substituída, a 3 de novembro de 1861, pelo Conselho Geral das Alfândegas. As reformas das Alfândegas foram estabelecidas pela portaria de 14 de outubro de 1864 e pelos decretos de 7 de dezembro de 1864, bem como de 28 de agosto e de 23 de dezembro de 1869, tendo o corpo auxiliar das Alfândegas sido transformado num serviço de rondas volantes. O decreto de 7 de dezembro de 1864 estabelece a reorganização das Alfândegas, com a extinção da Administração Geral do Pescado, e constitui duas circunscrições: a marítima e a da raia. Na Alfândega do Funchal, a regulamentação de toda a atividade da repartição, bem como o cômputo e a arrecadação dos direitos de entrada e saída regulavam-se através das Pautas de 1843, 1850, 1856, 1860, 1885 e 1887, e por meio das cartas de lei de 1844-1845. Os serviços da Alfândega diferenciavam-se dos do Almoxarifado por estes apenas poderem proceder à cobrança, funcionando, assim, como recebedoria. Com a Pauta de 1892 foram consideradas algumas especificidades locais das ilhas, com salvaguarda o comércio do açúcar na Madeira, nos Açores e no continente, com uma taxa reduzida de 1/4 do seu valor monetário. Com a implantação da República, introduziram-se alterações na cobrança dos direitos, sendo de destacar que apenas em 9 de fevereiro de 1915 se suspendeu a cobrança do imposto de farolagem no porto do Funchal, uma medida reclamada havia muito tempo, que ganhou força de lei pela intervenção do visconde da Ribeira Brava. Por força da desvalorização da moeda e da Primeira Guerra Mundial, ficou determinado, pelo dec. n.º 41.333, de 18 de abril de 1918, que os direitos de importação seriam pagos em ouro. Criaram-se, assim, dificuldades à exportação, assim como à entrada de mercadorias. Por outro lado, o dec. n.º 4682, de 27 de abril de 1918, estabeleceu sobretaxas relativas à importação de diversas mercadorias. A oneração fiscal das importações continuou, pois, pelo dec. n.º 6263, de 2 de dezembro de 1919, e foram duplicados todos os direitos e sobretaxas de importação estabelecidos em 1918, permanecendo a exigência do pagamento em ouro, mas aplicada apenas de metade do valor. Posteriormente, o dec. n.º 1193, de 31 de agosto de 1920, determinou que o quantitativo integral dos direitos e sobretaxas fosse exigido em ouro. A Pauta única nacional vigorou, por todo o séc. XIX, dando lugar, com a reforma de 1921, ao regime de pauta múltipla. Em 1922, insiste-se na falta de funcionários, mas a principal reclamação recaía sobre o quase permanente aumento das pautas, numa altura de grave crise económica, marcada por descidas, quase contínuas, da moeda portuguesa. Pelo dec. n.º 8747, de 31 de março de 1923, foi aprovada nova Pauta Aduaneira em que foram abolidas algumas sobretaxas. Ao mesmo tempo, em 17 de março, criou-se um adicional de 2 % sobre todos os direitos de importação para acudir às despesas com a Misericórdia do Funchal. Depois, a 10 de março do ano seguinte, surgiu mais um adicional de 5 % para o serviço de incêndios. A Pauta foi revista pela lei n.º 1668, de 9 de setembro de 1924, e não gerou consensos; era uma forma de regularizar o comércio externo no pós-Primeira Guerra Mundial. A 12 de outubro de 1926, os combustíveis sólidos ou líquidos passam a ser taxados a 0,5 % sobre o seu valor. No quadro da lista de produtos das pautas alfandegárias, os valores cobrados pelas farinhas e os cereais mereceram, por parte dos madeirenses, uma atitude de permanente repulsa, tendo em conta a dificuldade que tinham em se prover dos mesmos. Com o regime da Ditadura Militar, ocorreu uma reforma da Pauta, consoante o dec. n.º 17.823, de 31 de dezembro de 1929, que era já a expressão plena da mudança das conjunturas mundiais, política e económica. Todavia, as medidas protecionistas continuaram a marcar presença, como se poderá verificar pelos decs. n.º 20.935, de 26 de fevereiro de 1932, que impunha um adicional de 20 % aos direitos de importação, e n.º 24.115, de 29 de junho de 1934, por meio do qual foi estabelecido o regime de proteção de bandeira, ao serem taxadas, através de um adicional de 13,5 %, as mercadorias exportadas em navios estrangeiros. Já o dec.-lei n.º 30.252, de 30 de dezembro de 1939, duplicou o valor dos direitos de exportação específicos e fez incidir 2,5 % sobre a taxa dos direitos de exportação ad valorem. Esta situação perdurou até 1947. No período da guerra, a principal atenção foi para a exportação de volfrâmio.A partir de 1948, com a entrada de Portugal na Organização Europeia de Cooperação Económica, e depois em 1959, com a adesão à Associação Europeia do Comércio Livre, foram operadas outras mudanças nas pautas, pelo dec.-lei n.º 42.656, de 18 de novembro de 1959. Este processo culmina, em 1962, com a adesão de Portugal ao Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio. Entretanto, em 1961, havia sido criada uma zona de comércio livre entre Portugal e as colónias que, por ter sido um fracasso, foi abolida em 1971. Em 1972, Portugal assinou um tratado de associação à Comunidade Económica Europeia que seria o início de uma caminhada para a sua integração nesta comunidade em 1986, com reflexos evidentes, também, nas pautas aduaneiras, como expressado no dec.-lei n.º 19/92, de 5 de fevereiro, que aprovou a Pauta dos Direitos de Importação que conduziu à aplicação da Pauta Aduaneira comum, a partir de 1 de janeiro de 1993. Com a entrada de Portugal na CEE, houve uma alteração das pautas alfandegárias. Assim, a Pauta Aduaneira comum, um dos elementos constitutivos da união aduaneira, é publicada anualmente por regulamento comunitário, que altera o regulamento de base (regulamento CEE n.º 2658/87 do Conselho, de 23 de julho de 1987, relativo à nomenclatura pautal e estatística e à Pauta Aduaneira comum). A Pauta Aduaneira compreende, entre outros elementos, os direitos de importação e a nomenclatura combinada das mercadorias. Além desta, existe a Pauta de Serviço, que é o documento onde se estabelecem as informações sobre a tributação das mercadorias importadas de países terceiros. Constam ainda da mesma as medidas de política comercial comum, nomeadamente restrições quantitativas, direitos aduaneiros, direitos anti-dumping, suspensões e contingentes pautais, bem como as medidas de âmbito nacional, tais como o imposto sobre o valor acrescentado, os impostos especiais de consumo e as informações complementares sobre as condições de desalfandegamento das mercadorias. A Pauta de Serviço é elaborada com base nos elementos integrados da Pauta Integrada das Comunidades Europeias (TARIC) que são recebidos, diretamente, de Bruxelas. Contém, igualmente, informações de carácter nacional (taxas do IVA e informações sobre as condições a respeitar na importação e exportação de mercadorias). Por fim, existe a Pauta Integrada da Comunidade Europeia, que é a Pauta Aduaneira comum, em sentido lato, atendendo a que o regulamento anual não contém diversos elementos essenciais para o desalfandegamento das mercadorias, nomeadamente taxas dos direitos aduaneiros a aplicar no âmbito de regimes pautais preferenciais, suspensões de direitos de importação, direitos anti-dumping, licenças de importação, medidas de vigilância, proibições, etc.   Alberto Vieira (atualizado a 19.12.2017)

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partido socialista

A implantação do Partido Socialista (PS) na Região Autónoma da Madeira (RAM), após a Revolução de 25 de abril de 1974, segue o movimento geral da criação dos partidos a nível nacional e o seu alargamento a todo o território. Com efeito, logo após o 25 de Abril, as diferentes correntes ideológicas e partidárias do centralismo, por um lado, e da autonomia, por outro, vão dirimir os seus argumentos e lograr a sua implantação social e política. Com a entrada em vigor da Constituição de 1933, os partidos então existentes tinham sido todos ilegalizados. A reintrodução do sistema partidário em Portugal, no novo regime implantado após o 25 de Abril, segue o figurino internacional, com correntes que vão da extrema-direita à extrema-esquerda. O PS tinha sido fundado em 1973, na Alemanha, por socialistas no exílio, entre eles Mário Soares, seu primeiro Secretário-Geral, e pretendia retomar a linha ideológica do antigo Partido Socialista Português, fundado por José Fontana no séc. XIX, situando-se à esquerda do espetro partidário. Esse Partido Socialista Português reivindicava-se como marxista, primeiro, e depois como proudhoniano e federalista. O novo PS de Mário Soares, na mesma linha de afastamento das correntes conservadoras, demarcou-se, reiteradamente, da social-democracia dos países nórdicos, quer antes, quer depois do 25 de Abril, por considerá-la gestora do capitalismo, afirmando que o exemplo a seguir em Portugal era o dos partidos socialistas do sul da Europa, nomeadamente do Partido Socialista francês e do Partido Socialista Operário Espanhol. A base ideológica e sociológica dos socialistas portugueses entronca, remotamente, nos liberais, que se opuseram aos absolutistas no séc. XIX, e, de entre estes, nos setembristas – a ala esquerda dos liberais, por oposição aos conservadores cartistas. Tendo como referência o período da primeira República, o PS liderado por Mário Soares revia-se no Partido Democrático de Afonso Costa, que resultou da ala esquerda do primitivo Partido Republicano, já existente nas últimas décadas da monarquia, e cuja ala direita viria a dar lugar aos unionistas de António José de Almeida. Este alargamento à Madeira dos partidos nacionais após o 25 de Abril tem, assim, precedentes na história, quer na Primeira República, quer ainda na monarquia, desde o início do séc. XIX, com as lutas liberais Para compreender a posterior evolução dos partidos na RAM, é necessário ter em conta dois fatores: o posicionamento ideológico e a relação entre o poder insular e o poder central, que se traduz nas ideias dicotómicas de centralização e descentralização do poder. A ideia de descentralização, que é comum ao território continental e insular do país, mas se exprime com especial acuidade no caso insular, sobretudo nos finais do séc. XIX, evolui para o conceito de autonomia, primeiro administrativa e depois política. A forma como o PS, na Madeira, se vai relacionar com estes dois vetores, o ideológico e o autonómico, aliada à realidade sociológica da RAM, é determinante para a compreensão da sua evolução política. Estabelecidos os vetores da filiação e identificação do PS com a sua base histórica, para a compreensão da sua inserção posterior na realidade sociológica das ilhas da Madeira e do Porto Santo, é necessário ainda conhecer os antecedentes imediatos do PS nacional, sobretudo seguindo os passos do seu fundador e líder histórico, Mário Soares. Desde o momento da fundação do PS em Bad Munstereifel, na então República Federal da Alemanha, a 19 de abril de 1973, até as primeiras inscrições de militantes madeirenses no PS, a 19 de setembro de 1974, e à visita de Mário Soares à Madeira, a 15 de fevereiro de 1975, há uma série de acontecimentos que vão condicionar decisivamente a vida futura do PS na Madeira e o colocarão, politicamente, entre uma extrema-esquerda, que o empurra para a direita, e uma direita sociológica que aceita abrigar-se sob a égide de um partido ideologicamente situado no centro-esquerda, o PSD, que vai retirar ao PS o lugar que, tradicionalmente, cabe aos partidos sociais-democratas, trabalhistas e socialistas europeus. Se, pela prática governativa – como a aplicação da reforma agrária, com a extinção do regime de colonia, e a implantação do estado social nas áreas da saúde e da educação –, os sociais-democratas na Madeira ocupam o espaço do PS, já do ponto de vista ideológico, o PSD situa-se, naturalmente, à direita dos socialistas. Como resultado, as classes médias e médias-altas urbanas e as populações rurais, veem no PSD a força política que pode servir de barreira à esquerda marxista, característica que o próprio PS reivindicava para si em manifestações de rua no Funchal Há um acontecimento que vai contribuir para conotar o PS local com as forças revolucionárias de extrema-esquerda. No dia 1 de março de 1975, um grupo de socialistas ocupou um edifício que tinha pertencido a uma instituição bancária, que será a sede do PS na Madeira até 1980. Este ato foi identificado pela população com as ocupações que, no mesmo ínterim, se faziam no Sul do País. Assim, e apesar de o PS nacional ser um partido historicamente defensor da descentralização, e garante constitucional das autonomias, que ficam consagradas na Lei Fundamental de 1976, o seu posicionamento ideológico na Madeira vai coloca-lo do lado do poder central e de setores de extrema-esquerda, visto que a autonomia aparece como uma das formas de resistir à deriva revolucionária que entusiasmava a esquerda e amedrontava a direita. É com este fundo histórico-ideológico que se deve perspetivar o percurso do PS na Madeira desde o 25 de Abril de 1974. A sua implantação dá-se entre 1976 e 1978, no auge da dicotomia entre o poder central e o poder regional, numa altura em que o PSD detém o poder na Região, ao passo que o PS é o partido maioritário na Assembleia da República Por outro lado, a permanente rotação na liderança constante também não ajudou à sua consolidação eleitoral, o que faz com que, entre 1974 e 2015, tendo embora exercido funções a nível municipal, este partido nunca tenha exercido funções de governo.       Miguel Luís da Fonseca (atualizado a 19.12.2017)  

Direito e Política

ribeiro real, visconde do

Visconde do Ribeiro Real. 1885. Arquivo Rui Carita João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo. Casando-se, a 24 de junho de 1882, já com mais de 40 anos, com Teresa da Câmara Carvalhal, filha do 2.º conde de Carvalhal, recebeu o título de visconde do Ribeiro Real. Passara, entretanto, pela Junta Geral e depois pela presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia. Na sua vereação camarária ainda se fundou o corpo de bombeiros voluntários e procedeu-se a reformas urbanas na área do cemitério britânico, tendo hoje o seu nome o largo que fica mais a sul. Foi ainda cônsul de França e elevado a conde do Ribeiro Real, título que parece não ter usado. Faleceu em 1902. Palavras-chave: bombeiros voluntários; Câmara Municipal do Funchal; cemitério britânico; caminho de ferro do Monte; Teatro Municipal.     João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo, de São Pedro, no Funchal, e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo, de Ponta Delgada. Casando-se, a 24 de junho de 1882, com Teresa da Câmara Carvalhal (1857-c. 1925), filha do 2.º conde de Carvalhal (1831-1888), recebeu o título de visconde do Ribeiro Real por decreto de 23 de março desse ano, sendo depois elevado a 1.º conde, por decreto de 16 de fevereiro de 1899, após a sua passagem pelo governo civil do Funchal, em 1897, como interino. Para além do cargo que ocupou na Junta Geral e da presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia (Teatro Municipal), ocupou também o lugar de cônsul de França. O futuro visconde do Ribeiro Real deveria ser uma figura muito discreta e reservada, não sendo fácil recuperar o seu percurso político e social. Casou-se bastante tarde para a época, já passando dos 40 anos, não havendo descendência do seu casamento. A primeira referência política a seu respeito é como procurador da Junta Geral, quando se pronuncia sobre a lei de 13 de maio de 1872, que criara as bases da nova regulamentação. Como vogal, João Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo esteve na reunião de 11 de março de 1874 e na de 11 de abril seguinte, aprovando as alterações que o vogal do conselho de distrito, visconde de S. João, Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875) mandou imprimir a 14 de abril desse ano. A sua ação mais relevante foi à frente da Câmara Municipal do Funchal, onde sucedeu ao sogro, 2.º conde de Carvalhal, que somente ocupara o lugar no quadriénio de 1882-1885 por ser, ainda, o maior proprietário latifundiário do Funchal, mas cujas funções tinham sido desempenhadas pelo vice-presidente, morgado João Sauvaire da Câmara e Vasconcelos (1828-1890). A partir de 1886, a Câmara do Funchal teve uma interessante atividade, entre outras coisas, acabando as obras do Teatro Municipal, apresentado aos funchalenses a 29 de julho de 1887, e inaugurado oficialmente a 11 de março de 1888. Nessa altura, teve o visconde de se defrontar com o primo, João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), conde de Canavial e então governador civil, que queria ocupar o camarote da presidência, o que veio a acontecer, mas como convidado, pois o Teatro era propriedade da Câmara. A questão do camarote do Teatro ocupou então as primeiras páginas da imprensa da cidade. Foi durante a presidência do visconde do Ribeiro Real, quando tinha o pelouro dos incêndios o Dr. José Joaquim de Freitas (1847-1936), então também médico do hospital da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, que se fundaram os bombeiros voluntários do Funchal, serviço inaugurado oficialmente a 24 de setembro de 1888. A apresentação pública do inúmero material adquirido para esse serviço, de que existe abundante documentação fotográfica, foi feita junto à fachada do referido hospital, a 7 de abril de 1889. O primeiro quartel foi construído na antiga R. do Príncipe (assim designada em homenagem ao príncipe, depois D. João VI (1767-1826)), posteriormente R. 31 de Janeiro, passando, duas décadas depois, para a R. da Princesa (em referência a D. Carlota Joaquina (1775- 1830)), posteriormente R. 5 de Outubro. José Joaquim de Freitas era um republicano de arreigadas convicções (República), mas tal não obstou ao apoio que sempre lhe foi dado pelo visconde do Ribeiro Real, tendo-se registado, inclusivamente, um forte apoio das mais destacadas famílias funchalenses à criação dos bombeiros voluntários, existindo fotografias destes anos de inúmeros dos seus elementos fardados de bombeiros, independentemente da sua filiação partidária e, inclusivamente, nacionalidade; há mesmo fotografias de comerciantes britânicos, o que só se explica pelo apoio dado à iniciativa pelo visconde. João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo foi igualmente um dos principais impulsionadores do projeto do caminho de ferro do Monte, numa altura em que o projeto poderia ter sucumbido ao conflito de interesses entre os comerciantes britânicos radicados na Ilha e os financeiros alemães, que o apoiavam. Ao nível do Governo central, o apoio ao projeto não foi muito evidente, exceto na isenção de impostos que concedeu à Companhia do Caminho-de-Ferro do Monte, aquando da entrada na Alfândega do Funchal do material fixo e circulante para a via-férrea. O grande apoio partiu da Junta Geral, que adquiriu algumas ações, e, especialmente, da Câmara do Funchal, através do vereador João Luís Henriques e do presidente, o visconde do Ribeiro Real, tendo a Câmara adquirido 250 obrigações. As transformações ocorridas na malha urbana da cidade permaneceram e decorrem da urbanização envolvente do traçado da via-férrea e da montagem de uma série de instalações turísticas de apoio, como o Hotel do Bello Monte, e depois das instalações do Terreiro da Luta, consolidando a estruturação da freguesia de Santa Luzia e a ligação da cidade à freguesia do Monte, e contribuindo para a visão geral de anfiteatro que da encosta do Funchal. Foi também a vereação do visconde de Ribeiro Real que permitiu e apoiou a ampliação do cemitério britânico (Cemitério britânico), como contrapartida pela expropriação de uma faixa do terreno do mesmo. Foram então demolidas duas das vielas anexas entre aquele espaço e a R. dos Aranhas, do que resultou a R. 5 de Junho, depois R. Major Reis Gomes, onde viria a ser construído o largo com o seu nome. Os viscondes do Ribeiro Real habitaram o palácio de S. Pedro que, desde 1883, era partilhado com o Colégio de S. Jorge, dirigido pela futura M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). Também ali faleceu, a 4 de fevereiro de 1888, o 2.º conde de Carvalhal, António Leandro Carvalhal Esmeraldo e, em 1897, ainda se instalou em parte do palácio o Clube Internacional. O visconde do Ribeiro Real seria elevado a conde do Ribeiro Real, a 16 de fevereiro de 1899, mas parece nunca ter usado o título, falecendo a 22 de março de 1902, altura em que se encontrava já retirado da vida pública, não havendo, por exemplo, qualquer referência a seu respeito na visita régia de junho de 1901. A condessa do Ribeiro Real, em 1921, deu início ao processo de venda do palácio, mas a mesma foi contestada pelos coproprietários, conde de Resende e família de Eça de Queiroz, descendentes de sua irmã, Maria das Dores Carvalhal (1855-1910). A a 20 de janeiro de 1923, a condessa mandou vender em leilão o recheio do palácio, momento em que se dispersou aquele importante espólio. Deverá ter falecido pouco depois dessa data. O espadim de honra do visconde do Ribeiro Real, como fidalgo da Casa Real, deve ter sido logo entregue à Câmara Municipal do Funchal, por legado do mesmo. A sua liteira, no entanto, com as armas de visconde envolvidas pelos atributos utilizados pela Câmara, um ramo de videira e outro de cana-de-açúcar, tal como o seu monograma, encimado por coroa de visconde, deve ter ido então a leilão, tendo passado a mãos particulares e depois ao Museu Quinta das Cruzes, sendo dos poucos exemplares deste tipo de transporte que sobreviveu. É provável que do leilão de 1923 tenha sobrevivido uma fotografia, onde aparece um dos dois óleos de Tomás da Anunciação (1818-1879), encomendados pelo 2.º conde de Carvalhal em 1865, e que fazem igualmente parte do acervo do Museu Quinta das Cruzes. No mesmo leilão deve ter sido vendido o retrato das duas filhas do 2.º conde de Carvalhal, depois depositado na Fundação Eugênia de Canavial.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

república

A aclamação da República, decorrida em Lisboa, na manhã de 5 de outubro de 1910, foi comunicada ao Funchal às 18.00 h do mesmo dia. Ao contrário do que se poderia esperar, a tomada de posse dos republicanos não ofereceu especiais dificuldades na Ilha, embora a imprensa republicana mais agressiva tenha alardeado inúmeros casos conflituosos, especialmente com elementos do clero. Os principais desentendimentos ocorreram no seio dos republicanos, com a crispação dos mais novos contra os mais velhos e experientes, criando problemas nas eleições de 1911 e nas suplementares de 1913, altura em que já se dividiam em três tendências, todas apoiadas em periódicos: os democráticos, os unionistas e os evolucionistas. Palavras-chave: regime político; imprensa; partidos políticos; anticlericalismo; eleições.   No dia 5 de outubro de 1910, a cidade do Funchal acordou, como habitualmente, sem saber o que se estava a passar em Lisboa. Havia, desde as décadas anteriores, contactos entre as várias estruturas republicanas; aliás, poucos meses antes, os marinheiros do cruzador Adamastor tinham realizado um jogo de futebol com os marítimos de Santa Maria Maior, que já utilizavam as cores republicanas e que, pouco tempo depois, se constituíram como clube de futebol (Clube de Futebol Marítimo). Desconhecia-se, no entanto, que, nessa manhã de outubro, o cruzador bombardeava com as suas peças de artilharia o palácio das Necessidades, levando a família real a fugir para a Ericeira e a embarcar para fora do país; essas peças, mais tarde, foram guardadas no Funchal, na entrada do antigo aquartelamento do grupo de artilharia de São Martinho. Os jornais desse 5 de outubro só haviam recebido algumas notícias dos dias anteriores, como a do assassinato de Miguel Bombarda, no hospital de Rilhafoles, por um dos seus doentes, a 3 de outubro, publicando-se, no Diário de Notícias, alguns dados biográficos sobre o assassino, nomeadamente que aderira ao Partido Republicano Português (PRP) (Partido Republicano) e que era um dos seus mais valiosos combatentes. O vespertino O Jornal, dado como afeto ao Governo e à Igreja, informava estarem interrompidas as ligações com a capital, devido a uma avaria no cabo submarino. A notícia terá despertado desconfiança e, mantendo-se por toda a manhã a falta de informações, logo circularam boatos, que levaram à reunião da comissão municipal republicana no Centro Republicano Manuel de Arriaga, à R. da Carreira, n.º 13, e à ordem de prevenção às unidades militares. A notícia chegou às 18.00 h, através da agência noticiosa Havas: “Foi proclamada a República em Portugal depois de um combate em que a Artilharia 1, a Infantaria 16 e a Marinha saíram vitoriosas” (“Proclamação da República”, DN, Funchal, 6 out. 1910, 1). O telegrama confirmava o boato e a comissão municipal enviou felicitações e cumprimentos, em nome do “povo democrático da Ilha”, ao novo Governo e aos jornais republicanos de Lisboa (“A República na Madeira”, O Povo, sup. n.º 191, 9 out. 1910, 1). Foi de imediato distribuído um pequeno texto noticioso que gerou um enorme entusiasmo, acorrendo muitas pessoas ao Centro Republicano, onde se juntaram também militares. Todavia, a palavra de ordem que circulava era de contenção, dado faltar a confirmação oficial da notícia e ainda a aclamação da República na Madeira. Esta chegou na madrugada do dia 6 de outubro, através de um telegrama do ministério do Interior para Manuel Augusto Martins (1837-1936), a nomeá-lo governador civil do Funchal. A comissão municipal republicana distribuiu de imediato um manifesto, sob o título “Ao povo Madeirense”, anunciando a proclamação da República e recomendando aos seus apoiantes “ordem e correção”, palavras que se tornavam nestes primeiros dias a principal preocupação dos republicanos (“Ao Povo Madeirense”, Diário Popular, Funchal, 7 out. 1910, 1). Entendiam e difundiam os novos dirigentes que era indispensável “desfazer pela última vez, a lenda [de] que os republicanos” eram “desordeiros e vingativos”, divulgando comunicados neste sentido pelos jornais locais. Apesar destas informações, a bandeira da monarquia, às 08.00h de 6 de outubro, voltou a ser hasteada em S. Lourenço. O Gov. civil José Ribeiro da Cunha (1859-1915) e o Gov. militar Cor. Valeriano José da Silva, inclusivamente, reforçaram a guarda ao palácio, entregue ao Ten. João Carlos de Vasconcelos (1878-1933). Face aos contactos estabelecidos pelos elementos da comissão republicana para a transferência de poderes, informaram que aguardavam ordens superiores e que, sem as mesmas, se recusavam a proceder a qualquer alteração, na secreta esperança de um retrocesso da situação em Lisboa. O governador civil indigitado, Manuel Augusto Martins, solicitou a Lisboa a comunicação oficial para os dirigentes depostos e, dentro da contenção que haviam assumido, os republicanos aguardaram, na R. da Carreira, o desenrolar da situação. Mantinham-se em reunião com o novo governador civil os membros do PRP, em grande expectativa, levando a cabo uma autêntica maratona de contactos, com a preocupação de não perder o controlo da situação. Entre eles: Nicázio de Azevedo Ramos (1862-1927), Manuel Jorge Pinto Correia (1882-c. 1940), Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969), Pedro Luís Rodrigues, José Quirino de Castro, Francisco Mendes Gonçalves Preto. O telegrama para as autoridades de S. Lourenço chegou às 11.00 h, assinado pelo novo ministro da Guerra, António Xavier Correia Barreto (1853-1939), mas o seu teor não satisfez os elementos monárquicos, nem, no dia seguinte, os sargentos e praças republicanos: “Foi proclamada a República e assumi o cargo de ministro da Guerra do Governo Provisório. Reina absoluta tranquilidade em Lisboa e províncias, estando a ordem convenientemente assegurada e tendo já recebido a adesão de importantes núcleos militares. Aguardo a adesão de V. Ex.ª e oficiais sob o seu comando” (MARTINS, 2004, 65). Na mesma manhã, ainda se reuniram no palácio de S. Lourenço os membros da comissão republicana para acordar a transferência de poderes, mas as autoridades monárquicas demarcaram-se da situação, alegando não ter havido uma ordem taxativa para aderir à República, como entendia o Cor. Valeriano José da Silva, mas sim um “pedido” ou “convite” por parte do novo ministro da Guerra, pelo que ele, pessoalmente, não se associava à mudança (Id., Ibid.). Autorizou-se, no entanto, o hastear da bandeira republicana em S. Lourenço, que foi saudada pela força militar. A comissão republicana deslocou-se para o edifício do Governo Civil, na R. João de Tavira, aguardando a chegada do secretário conselheiro António Jardim de Oliveira (1858-1926), que se encontrava no Monte e foi avisado por telégrafo terrestre. Naturalmente, a sua chegada não foi imediata, juntando-se nas imediações do Governo Civil uma multidão, à qual era preciso dar, de alguma forma, resposta. Face à aglomeração, Manuel Augusto Martins, pelas “4 horas da tarde”, mandou lavrar um termo de posse provisório, que foi por si assinado, assim como pelos vários membros do PRP, após o que foi hasteada a bandeira republicana, “que foi saudada pela enorme multidão que enchia a rua João de Tavira, e que pouco depois se dirigia para a praça da República”, como por esses anos se passou a designar a Pç. da Constituição, depois Av. Arriaga, “levando à frente uma banda que executava A Portuguesa” (“A República na Madeira”, O Povo, sup. n.º 191, 9 out. 1910, 1). Os republicanos entraram em S. Lourenço e o novo governador civil entregou a José Joaquim de Freitas (1847-1936) uma segunda bandeira republicana que o mesmo içou, na qualidade de “um dos mais velhos democratas do Funchal”. A guarda de honra militar apresentou armas e fez a “continência da ordenança” perante o delírio de “muitos milhares de cidadãos” que aplaudiam a nova era de ressurgimento de uma pátria “faminta de moralidade e justiça”, como foi referido na imprensa de então (Id., Ibid.). Da varanda do Clube Restauração, instalado no edifício do Golden Gate, discursaram o novo governador civil, Pestana Júnior, Gonçalves Preto e Azevedo Ramos, “tendo todos palavras de vibrante saudação às instituições nascentes e aconselhando o povo a conservar a serenidade e cordura que já hoje, honra ao povo, nos elevou aos olhos de nacionais e estrangeiros” (“A Proclamação da República em Portugal”, DN, Funchal, 7 out. 1910, 2). Ao meio-dia, o comércio havia encerrado as portas para que todos pudessem assistir aos festejos, mas também, certamente, por precaução. Ao final da tarde, a cidade foi percorrida por uma enorme multidão, que soltava vivas à República e fogos-de-artifício, acompanhada pela antiga Real Filarmónica Artístico Madeirense, que retirara rapidamente as coroas que enfeiravam os bonés do uniforme, juntando-se ainda o conjunto Artistas Funchalenses. À noite, Azevedo Ramos ainda discursava de uma das janelas do Centro Manuel de Arriaga e a redação do jornal Trabalho e União iluminava as suas instalações com balões venezianos. Algumas embarcações, na baía do Funchal, associaram-se às manifestações, tendo o navio de guerra norte-americano Adams embandeirado em arco, o vapor belga Ministre Beernssert dado uma salva e o patacho Navegante içado, à ré, a bandeira da República. No dia 7 de outubro, não se hasteou qualquer bandeira em S. Lourenço, embora no dia anterior tivesse sido transmitido às unidades militares o telegrama do ministro da Guerra Cor. António Xavier Correia Barreto; na fortaleza de Santiago, quartel da artilharia, foi hasteada a bandeira republicana. A bandeira fora alçada às 09.30 h com salvas e não às 08.00 h, conforme a ordenança. Pelas 11.30 h, a força de Infantaria 27 saiu do quartel do colégio (Colégio dos Jesuítas), armada e de baioneta calada, dirigindo-se para a fortaleza de S. Lourenço e estacionando no Lg. da Restauração, em frente à porta da mesma, onde se veio a estabelecer, já mais tarde, o Museu Militar (Museu Militar da Madeira). Logo saiu do colégio outra força, em direção ao mesmo local. Estas unidades não tinham aceitado o comando de qualquer oficial e não responderam aos apelos do Cap. Henrique Luís Monteiro (1862-1928) para regressarem à ordem. Neste contexto, surgiu o jovem Gregório Pestana Júnior, por nós já referido, recém-nomeado administrador do concelho que subiu a um dos bancos do passeio público e apelou à ordem, prometendo resolver a situação. Dirigindo-se à R. João de Tavira, trouxe do Governo Civil uma bandeira, que entregou ao Ten. Vasconcelos e foi de imediato hasteada. Acalmados os ânimos e chegada a banda da Infantaria 27, a bandeira foi arreada para ser então hasteada ao som de “A Portuguesa”, entre vivas à República. Falou então às forças o Maj. de artilharia Manuel Goulart de Medeiros (1861-1947), açoriano, inspetor do material de guerra, que exortou os soldados ao respeito pelos superiores. Explicou que era republicano desde longa data, mas que, como militar, nunca rinha deixado de cumprir os seus deveres de respeito e de disciplina. O Maj. Luís Correia Acciauoli (1858-1942) assumiu o comando das forças de Infantaria 27 e, com a banda, desfilou pelas ruas do Funchal, dando vivas à República, até à fortaleza de Santiago, onde o grupo foi saudar os camaradas de artilharia que se mantinham no quartel, sob o comando do Cap. João Augusto Pereira (1875-1915). Pela tarde, civis e militares, em conjunto com a Filarmónica Artístico Madeirense, voltaram a percorrer as ruas do Funchal desse modo efusivo. A nomeação de Manuel Augusto Martins para o lugar de governador civil do distrito recolheu absoluto consenso na altura. Era um republicano com provas dadas no combate político local, várias vezes candidato a deputado pelo Partido Republicano da Madeira (PRM), diretor do semanário O Povo e presidente da comissão republicana do concelho do Funchal. Como escreveu, mais tarde, Ciríaco de Brito Nóbrega (1856-1928), diretor do Diário de Notícias do Funchal: “nunca mendigou empregos; nunca aspirou a honrarias; nunca curvou a cabeça senão ao dever e nunca obedeceu senão à voz da consciência” (NÓBREGA, DN, Funchal, 22 mar. 1911, 1). Trabalhara em Lisboa, no escritório de Afonso Costa (1871-1937) e no de António José Teixeira de Abreu (1865-1930), durante dois anos, regressando depois ao Funchal, sem se deixar envolver com a “corrupção política e social, conservando sempre íntegra e imaculada a sua reputação de homem de bem”, sendo respeitado a admirado por todos, quer amigos quer adversários (Id., Ibid.). Cabia ao governador civil e às estruturas locais do PRM encontrarem os restantes elementos para preencher os órgãos de poder local. O primeiro lugar a ser preenchido foi o de administrador do concelho, com o referido Manuel Gregório Pestana Júnior, que tomou posse a 7 de outubro desse ano. Foi-lhe também atribuída a direção do principal órgão dos republicanos, o semanário funchalense O Povo, antes mencionado, após a saída de Manuel Augusto Martins. Orador notável, era militante do PRP e, ainda como estudante da Faculdade de Direito de Coimbra, participou ativamente na greve académica de 1907, tendo sido preso e processado. Nos finais de 1908, já discursava no Centro Republicano Manuel de Arriaga, no Funchal e, terminado o curso, nos meados de 1910, regressou à Madeira, com 24 anos de idade, participando ativamente nos trabalhos do partido. A 19 de outubro, efetuou-se a assembleia-geral do PRM, onde foram apresentadas as primeiras diretivas para a reorganização republicana insular: precaver-se contra excessos e adesões oportunistas, e efetuar sindicâncias a todas as corporações administrativas, de modo a impor moralidade na administração pública. A primeira moção, apresentada pelo Maj. Goulart de Medeiros, defendia que o novo Governo republicano devia apostar na união de todos os Portugueses, mas salvaguardando as adesões à nova ordem, não se admitindo aqueles que o faziam para tentar conservar privilégios. Até à consolidação das novas instituições, não se poderiam escolher elementos de alguma forma ligados ao regime anterior, “exceto se tivessem qualidades excecionais de honradez, instrução e inteligência” (“Centro Manuel de Arriaga”, DN, Funchal, 22 out. 1910, 1). A assembleia-geral continuou no dia seguinte, sendo apresentada outra moção, da autoria de Azevedo Ramos, a pedir sindicâncias a todas as repartições públicas do distrito, em especial à Câmara Municipal do Funchal e à Junta Geral. Ao longo de outubro e de novembro, o novo governador procedeu às exonerações e às nomeações dos administradores dos concelhos rurais e da comissão administrativa do município do Funchal, sendo os restantes lugares preenchidos até ao final do ano. Como podemos verificar pelas nomeações feitas, foi grande a dificuldade em encontrar elementos da confiança do PRM para se preencherem todos os lugares, acabando alguns membros por desempenharem várias funções, como acontecera anteriormente, no tempo da monarquia. A comissão administrativa da Câmara Municipal do Funchal ficou a ser presidida por Afonso Vieira de Andrade, tendo os demais pelouros sido distribuídos por Silvestre Quintino de Freitas, José Bernardo de Almeida, Manuel dos Passos Freitas (1872-1952), José Quirino de Castro, Manuel Jorge Pinto Correia e Henrique Augusto Rodrigues. A presidência da Junta Geral foi entregue a Aníbal Sertório dos Santos Pereira, tendo como procuradores José Joaquim de Freitas, o P.e Fernando Augusto da Silva (1863-1949), e os irmãos Augusto e Pedro Luís Rodrigues. Para a presidência da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, foi nomeado António Augusto Curson, que foi depois ministro do Comércio, em 1921 e membro do conselho nacional dos escuteiros de Portugal, fazendo parte da equipa da nova mesa da Misericórdia José Ernesto Areias, João Lomelino Ferreira de Sousa, Carlos Firmino Gonçalves, Bernardo do Nascimento Rodrigues, João Rodrigues Braga e Artur Pedro de Quintal. José de Castro (1848-1929), então no Funchal, foi nomeado ajudante do procurador-geral da República e Carlos Olavo Correia de Azevedo (1881-1958), secretário-geral em Lisboa, dada a necessidade de ali haver um procurador. José Alfredo Mendes de Magalhães (1870-1957), enviado à Madeira como comissário da saúde da República, por ocasião da epidemia de cólera que grassava no arquipélago, onde aportou no cruzador Almirante Reis, foi confirmado no cargo de procurador-geral da República, voltando José de Castro para Lisboa e, para a comissão administrativa do Asilo de Mendicidade e Órfãos, foram apresentados José Joaquim de Freitas, Henrique Augusto Rodrigues, Maximiano de Sousa Rodrigues, João Augusto Duarte Vítor, Francisco de Andrade e Manuel dos Passos Freitas. O Partido Progressista (PP) foi o primeiro partido monárquico a aderir ao novo quadro político, até porque muitos dos seus membros já eram republicanos (Partido Progressista). O Diário do Comércio, afeto a essa linha partidária através do seu proprietário e redator principal Francisco António Ferreira (1870-1912), logo na edição de 7 de outubro, deu vivas à República. No dia 23, comunicou que suspendia a sua ação, informando que o PP dava liberdade política aos seus filiados para aderirem ou não à causa republicana. A direção do PP disponibilizava-se, inclusivamente, a facultar ao novo regime a sua organização local (sede, jornal, arquivos, etc.). Também O Direito, de que era diretor e proprietário Artur Leite Monteiro (1871-1937), clarificou a sua linha editorial, apresentando-se como representante de “um partido monárquico liberal”, que eram os antigos regeneradores, mas pedia aos seus “velhos companheiros de outras lutas” que não criassem “o mais leve embaraço às autoridades”, dando a entender que a situação não tinha retrocesso (“A República”, O Direito, 9 out. 1910, 1). A 4 de novembro, foi registada uma circular de 31 de outubro, reenviada pelo comando militar às entidades que tutelava, “a fim de uniformizar a norma a seguir na correspondência militar” (AMMM, circular, 31 out. 1910). A indicação era para que passasse a constar no alto das folhas, ao centro e “por extenso”, a designação “Serviço da República” e se substituísse o antigo remate “Deus guarde V.ª Ex.ª” por “Saúde e Fraternidade” (Id., Ibid.). Também se reformulava a antiga pragmática, sendo o nome da maioria dos destinatários somente antecedido por “Ao Snr.”, eliminando-se assim “Ills.mos” e “Ex.mos” (Id., Ibid.). Por sua vez, nas capas da correspondência, “S. N. R.” dava lugar a “S. R.” (Id., Ibid.). A 23 de outubro, realizou-se uma assembleia-geral do Centro Arriaga, no Ateneu Comercial do Funchal, com o objetivo de reformular os órgãos diretivos do PRM, ampliando-os a uma comissão distrital e a uma comissão municipal. A reorganização estendeu-se igualmente às comissões paroquiais, cujas eleições decorreram nos finais desse mês, às quais cabia indicar os regedores e iniciar o recenseamento eleitoral. Até ao final de outubro, criou-se um centro republicano em Machico e, em novembro, dois centros republicanos em São Gonçalo. No ano seguinte, constituiu-se o Clube Republicano da Madeira e, comemorando o aniversário da implantação da República, a 5 de outubro de 1911, foi inaugurada a Sociedade Republicana Estrela Brilhante. Nas comemorações do primeiro aniversário da República, apareceu a discursar, ao lado dos principais elementos republicanos madeirenses, uma mulher, Hermínia Augusta de Sousa, mostrando que não era apenas aos homens que competia defender os novos ideais. A este propósito, o jornal local A Voz do Povo acrescentou que as mulheres eram “as únicas” que podiam “levantar a geração futura” (“Os Festejos da República”, A Voz do Povo, Funchal, 10 out. 1911). A 15 de outubro, estava constituído o comité fundador da Associação das Mulheres Republicanas Madeirenses e publicitou-se a abertura de inscrições no Centro Republicano Manuel de Arriaga, ao Lg. do Colégio, n.º 8. A instabilidade política que sobreveio afastou as mulheres do debate, não se encontrando mais informações sobre a Associação durante o período em apreço. Nas eleições nacionais de 1911, uma médica viúva, Beatriz Carolina Ângelo (1878-1911), conseguiu votar, alegando que era cidadã portuguesa, chefe de família e instruída, sendo o seu, muito provavelmente, o primeiro voto feminino europeu. A Constituição de 1913 explicitaria já que o voto estava reservado aos chefes de família do sexo masculino. As dificuldades do novo regime começaram a surgir pouco depois da implantação da República. A 13 de novembro de 1910, realizou-se, na nova Pr. da República, realizou-se um comício a pedir o fim dos monopólios dos regimes cerealífero e sacarino, e a abolição dos impostos sobre os produtos de primeira necessidade, criando-se então uma comissão de figuras republicanas de prestígio local para apresentar ao governador do distrito as suas reivindicações. Cientes da necessidade de apoio em Lisboa, os republicanos madeirenses também criaram uma comissão na capital, constituída pelo ex-visconde da Ribeira Brava, os irmãos Carlos e Américo Olavo Correia de Azevedo (1882-1927), António Paulino Mendes, comerciante madeirense radicado em Lisboa e ligado ao ex-visconde, entre outros. Mas a situação em Lisboa não era melhor e, um pouco por todo o país, à euforia do mês de outubro, sucedeu uma dura luta política e um grande defraudar das esperanças iniciais. Durante os primeiros meses do regime republicano na Madeira, as autoridades e a população foram ainda confrontadas com um grave surto de cólera-morbo que surgiu em outubro de 1910 e se prolongou até aos inícios de fevereiro do ano seguinte. A necessidade de impor medidas sanitárias enérgicas fez despoletar inúmeros focos de resistência às autoridades; aliados ao analfabetismo geral, às crendices e superstições, rapidamente fizeram daquelas bandeiras contra a nova situação política. Em vários pontos da Ilha, foram saqueadas residências de médicos e os profissionais de saúde foram acusados de terem espalhado a doença; nessa sequência, também as residências das autoridades sofreram ataques. A situação mais difícil terá ocorrido em Machico, a 11 de dezembro, após a novena a Nossa Senhora do Socorro. A população terá sido convocada e, descendo à vila, obrigou o administrador e o escrivão do concelho a acompanhá-la com a antiga bandeira da monarquia, em busca do subdelegado de saúde. A residência do médico foi saqueada, a farmácia anexa foi destruída e todos os livros encontrados foram queimados no quintal. Quando as forças militares do Funchal chegaram, no dia seguinte, no vapor Açor, comandadas pelo Ten. Alberto Artur Sarmento (1878-1953), a multidão já havia dispersado, deixando a bandeira monárquica hasteada no forte do cais de Machico. No relatório depois efetuado, considerou-se que a utilização da antiga bandeira teria sido motivada pela presença das chagas de Cristo e a convicção de que estas extinguiriam a epidemia. A 14 de dezembro, Santa Cruz passou por uma situação idêntica, sendo os soldados recebidos com paus e pedras, e respondido a tiro. À tentativa de assalto à prisão camarária, no antigo forte de S. Francisco, foram utilizados engenhos explosivos e as forças da ordem prenderam mais de 20 populares. No dia seguinte, ocorreram também tumultos em Câmara de Lobos, tendo sido assaltado o pequeno hospital de isolamento e ameaçado com navalhas o pessoal ali em serviço, que fugiu para o Funchal. Tal como em Machico, a multidão apareceu com a bandeira da monarquia e com alguns elementos das filarmónicas locais. No dia 26 de dezembro, foi a vez de ocorrerem tumultos no Funchal, tendo-se insubordinado algumas praças de Infantaria 27, que saíram do quartel do colégio para tomar de assalto o lazareto Gonçalo Aires. Como alguns desses elementos tinham tentado levar as forças aquarteladas em S. Lourenço a aderir ao movimento, houve tempo de deter a sublevação. Nessa sequência, veio a prender-se um sargento como mentor da sublevação, depois enviado para o continente. Em finais de dezembro, na canhoneira Zaire e, nos inícios de janeiro, no vapor Peninsular, chegaram reforços militares do continente, mas a epidemia extinguia-se pouco depois e, com a mesma, o motivo imediato dos desmandos. Nestes primeiros meses, surgiram também atritos com o clero, especialmente o rural, registando-se a utilização do púlpito para fazer propaganda contra a nova situação, muito especialmente em reação à Lei de Separação do Estado das Igrejas. A ideologia anticlerical dos principais periódicos republicanos criou a imagem de uma sociedade rural antirrepublicana que não corresponde à verdade, pois regista-se somente um caso de efetiva resistência ao novo regime: Estreito de Câmara de Lobos. Acreditamos que muitos outros possam ter existido, mas não de uma resistência convictamente antirrepublicana e sim, tão-somente, de resistência à mudança, própria do mundo fechado que era o rural. O caso do Estreito de Câmara de Lobos tornou-se conhecido e chegou aos vários periódicos da cidade. O pároco local, Miguel Pestana dos Reis, maldizia os jornais liberais, mandava cantar o hino à Carta Constitucional na saída das insígnias do Espírito Santo e ameaçava com a excomunhão e as penas do inferno os que ousassem assinar os periódicos republicanos. Mas estas informações foram vinculadas pelos jornais do Funchal e são difíceis de confirmar. Em maio de 1911, terá corrido a informação de que o pároco estava para ser chamado ao administrador do concelho e o povo amotinou-se, não o deixando sair. Em sequência, foram assaltadas as residências das autoridades locais, fugindo estas para o Funchal. No dia 5 de maio, a cidade, “boquiaberta”, assistiu à chegada de “400 vilões do Estreito de Câmara de Lobos, em pé de guerra e com ar de poucos amigos” (“O Povo do Estreito de Câmara de Lobos”, O Radical, Funchal, 6 mai. 1911, 1). Uma delegação dos mesmos foi recebida pelo governador civil, apresentando-lhe as seguintes reivindicações: manutenção do pároco Miguel Pestana dos Reis; fim das operações relativas ao registo civil na freguesia, devendo ser tudo “conforme a lei antiga” (Id., Ibid.); dispensa de licença da autoridade administrativa para as manifestações exteriores de culto religioso. A manifestação teve algum êxito porque, embora tivessem sido efetuadas prisões, o padre regressou à paróquia no dia 8, não se provando que tivesse tido qualquer envolvimento nos motins, nem no que os jornais do Funchal haviam noticiado. Os periódicos continuaram a divulgar várias reações às determinações da República, mas estas foram abaixo do que seria de esperar e do que se passou no continente. Na sequência da Lei do Divórcio e da publicação da pastoral coletiva dos bispos contra a Lei de Separação do Estado das Igrejas, foram detidos dois párocos, o de S. Gonçalo e o de S.ta Luzia, acusados de haverem distribuído a pastoral, espantando-nos não terem sido presos mais. Referem os periódicos do Funchal que, nas festas desse mês, foram arvoradas “bandeiras velhas” no Arco da Calheta (“Graves Acontecimentos”, Trabalho e União, 8 jul. 1911, 1); mas, na verdade, conhecendo-se este tipo de festas e a distância até ao Funchal, compreende-se que dificilmente poderiam ter sido arvoradas outras bandeiras, pois a nova, certamente, não existia ainda por ali. No ano seguinte, e já noutras circunstâncias, com um novo governador civil, ainda se registou um incidente, tendo sido proferida na igreja do colégio uma homilia, em finais de maio de 1912, com “alusões ofensivas do prestígio do Governo e da República”, sendo ordenada uma averiguação ao comissário de polícia, com vista à redação de um auto, para ser entregue ao poder judicial (ARM, Governo Civil, liv. 121, fl. 64). No entanto, não temos mais informações a esse respeito. O assunto era nacional, pelo que, já no ano anterior, o ministro da Justiça Bernardino Machado (1851-1944) oficiara a todos os prelados e governadores de dioceses do continente e ilhas adjacentes a apelar para o respeito aos poderes instituídos e a solicitar possíveis alterações ou modificações para aperfeiçoamento das leis já publicadas. O assunto deveria ser encaminhado para a sua sede própria, o Ministério da Justiça ou as Cortes Constituintes, pelo que não deveria ser discutido, de forma alguma, a partir dos púlpitos das igrejas. A necessidade de impor à força o novo enquadramento político, institucional e jurídico, com atitudes porventura escusadas, criara logo um certo mal-estar. O periódico O Povo, a 8 de outubro de 1910, refere que “um grupo de sargentos do regimento de Infantaria 27” tinha manifestado ao comandante o “desejo de que a coroa que encimava a porta principal do regimento”, virada à R. do Castanheiro, fosse retirada e, “à 1 hora da tarde, foi destruída pela picareta esse troféu da monarquia morta” (O Povo, Funchal, 8 out. 1910). No mesmo dia, o Diário de Notícias do Funchal informava que também tinham sido destruídas à picareta as coroas que encimavam as portas do palácio de S. Lourenço, da fortaleza de Santiago e da Alfândega do Funchal. No dia 12, noticiou que se pensava ainda “eliminar pela picareta demolidora a coroa e as esferas armilares do torreão do palácio de São Lourenço”(DN, Funchal, 12 out. 1910, 1). Pedia, assim, que, “em nome da estatística arqueológica e histórica [...] se suspenda a sua ação destruidora”, pois a conservação de tais emblemas em nada contrariava a instalação das novas instituições (Id., Ibid.). Com a retirada das armas reais da porta de S. Lourenço, também a imagem do santo que encimava o portal foi tirada e partida, embora retornasse ao seu lugar, depois de reconstruída e de se fazer uma cabeça nova, dado a original nunca ter sido encontrada. É voz corrente que os retratos dos antigos governadores que estavam no interior do palácio de S. Lourenço tinham sido rasgados à baioneta pelos marinheiros do cruzador Almirante Reis, e que teriam sido feitos outros desacatos, difíceis de comprovar, mais tarde. Grande parte do recheio que ali se encontra veio de Lisboa por volta de 1939 (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), tendo outro tanto sido adquirido e doado por famílias madeirenses, pelo que não é fácil saber como era o seu interior na altura dos acontecimentos expostos. A força e irreverência de alguns dos elementos mais novos, sobressaindo em muitos um forte anticlericalismo, levaram a clivagens no seio dos republicanos, num curto espaço de tempo. O primeiro conflito foi desencadeado nos finais de dezembro com uma notícia no periódico local O Povo a criticar o presidente da comissão administrativa da Câmara do Funchal Afonso Vieira de Andrade, acusando-o de ceder às pressões da Igreja para não demolir imediatamente a capela e o portão dos Varadouros, informação que partira de Pestana Júnior, administrador do concelho e diretor daquele periódico. O arco dos Varadouros e a capela eram dados como estando algo em ruínas e considerados sem qualquer valor como “monumento”, entendendo-se ser imprescindível a demolição do conjunto para as obras de continuação da R. João Esmeraldo e para a higiene da cidade (Portão dos Varadouros). A comissão administrativa da Câmara apresentou a demissão em bloco e o governador do distrito colocou-se do seu lado, pedindo-lhes que se mantivessem em funções até à resolução do problema. O portão dos Varadouros e a capela anexa só foram demolidos em abril de 1911, transferindo-se o altar desse templo para a sacristia velha da Sé do Funchal. Tendo a epidemia sido debelada em janeiro, não se vê outra razão para a demolição em abril senão a aproximação das eleições e o aceso debate político então em curso (Eleições na Primeira República). Com a clivagem progressiva das hostes republicanas, foi convocada uma reunião para S. Lourenço, realizada a 5 de janeiro de 1911, tendo a maioria dos velhos membros do PRM ficado lado do governador e da comissão da Câmara. Alfredo de Magalhães, responsável pelas medidas de controlo e combate do surto epidémico, pediu alguma contenção. Compreendia a energia e a insubordinação da mocidade, mas entendia também que, num meio como o da Madeira, “retardado e com pouca cultura democrática”, se impunha aos “mais fogosos e irreverentes o dever […] de não pulverizar ou até desunir” o PRM (“Reunião das Comissões Republicanas do Funchal”, O Povo, Funchal, 7 jan. 1911, 1). Era um recado quase explícito para o jovem e arrebatado Pestana Júnior, chamando-o à disciplina partidária, tendo o mesmo respondido que não aceitava esse tipo de recomendações e que o que estava em causa era a liberdade de imprensa. Estavam abertas as hostilidades dentro do PRM e, em nome da articulação das administrações do concelho e da Câmara, enquanto decorria o combate à epidemia de cólera, por ordem do governador, Pestana Júnior ficava suspenso, por um prazo de 30 dias. A 16 de janeiro, Pestana Júnior informou oficialmente que, nessas condições, apresentava a sua demissão, “pura e simples”, mas não abdicava da sua inteira liberdade para proceder como entendesse (ARM, Governo Civil, liv. 299, fl. 36v.). A 21 de janeiro, a direção do jornal O Povo voltou a ser entregue a Azevedo Ramos. A saída de Manuel Gregório Pestana Júnior da administração do concelho marcou o aparecimento da primeira cisão nos quadros republicanos, aglutinando-se à sua volta um certo número de apoiantes, em especial, alguns médicos da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal que trabalhavam no controlo da epidemia. Assim, nasceu o grupo dos novos, naturalmente, em oposição ao governador e aos antigos republicanos. A 9 de fevereiro de 1911, surgiu O Radical, dirigido por Pestana Júnior e propriedade de Gonçalves Preto, em cujo escritório decorreram as primeiras reuniões. No mesmo mês, constituiu-se o Grupo Democrático, com 15 elementos, entre os quais alguns ex-regeneradores e, em maio, estavam lançadas as bases para a constituição do Centro Republicano Democrático. O título académico dos elementos do Centro Republicano Democrático, designados por “os novos”, valeu-lhes o nome jocoso de “Centro dos Doutores” ou “doitores”, por corruptela de “doutores”, dado serem na maior parte licenciados pela Escola Médico-Cirúrgica do Funchal. Do grupo inicial faziam parte José Varela (1874-1937), João Augusto de Freitas (1872-1942), António Rodrigues Capelo (1875-1940), Alfredo Justino Rodrigues (1872-1940), João Miguel Rodrigues da Silva (1882-1931), Paulo Perestrello Aragão (1872-1916), Abel Sabino de Freitas, António Augusto, e os líderes Pestana Júnior e Vasco Gonçalves Marques, antigo regenerador. Nas reuniões, realizadas no escritório de Gonçalves Preto, chegaram a participar o advogado Joaquim Carlos de Sousa (1867-1950), o jornalista Francisco António Ferreira (1870-1912), João Frederico Rego, Pedro Ferreira e Egídio Torcato Rodrigues (1877-1955), estes dois últimos, ex-regeneradores. O primeiro alvo dos novos foi o presidente da comissão camarária, Afonso Vieira de Andrade, seguido pelo governador civil, acusado de não ouvir as diversas estruturas do PRM e de tomar decisões arbitrárias. Nas páginas de O Radical, colocava-se igualmente em causa o papel da Igreja, apoiando-se a proibição das festas religiosas, nomeadamente os grandes arraiais de Senhor dos Milagres de Machico ou de N.ª Sr.ª do Monte no Funchal, assunto que levantou larga polémica entre os republicanos. Os apoiantes de Manuel Augusto Martins não pouparam críticas aos dissidentes do Radical e do Centro Republicano Democrático, acusando-os de pseudorrepublicanismo e de contarem com antigos monárquicos nas suas fileiras, nomeadamente os médicos e advogados que tinham sido regeneradores. Deste modo, não apresentavam questões verdadeiramente novas, apenas deram novas roupagens a polémicas antigas. Com a aproximação do ato eleitoral de 28 de maio, os dois grupos republicanos – de um lado, o Clube Republicano e o governador, apoiados pelo jornal O Povo, do outro, o Centro Republicano Democrático, apoiado pel’O Radical – mostraram claramente as suas divergências, vindo os monárquicos a optar por se abster de concorrer. Os republicanos mais antigos vieram a escolher como cabeça de lista Manuel de Arriaga (1840-1917), que levou algum tempo a aceitar voltar às lides parlamentares, só o fazendo por cortesia e gratidão para com a Ilha, enquanto o Centro Republicano Democrático escolheu Pestana Júnior e Francisco Correia Herédia Ribeira Brava, aparecendo o nome de Carlos Olavo Correia de Azevedo nas duas listas. O saldo das eleições foi muito negativo, em termos de repercussão local e mesmo nacional, tendo o ato eleitoral sido submetido à apreciação da Assembleia Constituinte e todos os dados sido revistos e escrutinados (Eleições na República). As dissidências republicanas na Madeira, apoiadas pela ação combativa dos diferentes periódicos que foram surgindo, consolidaram-se e refletiram-se no fracionamento das estruturas organizativas. A eleição de Manuel de Arriaga como Presidente da República, a 25 de agosto, recebida com entusiasmo pela grande maioria dos republicanos insulares, foi uma exceção. A sua vitória foi consensual, atendendo ao passado político de primeiro deputado republicano eleito pela Madeira e de conhecedor das realidades insulares, pelo que a notícia foi recebida com alegria, elevando, de alguma forma, a autoestima republicana, então bastante abalada. Organizaram-se vários festejos, entre os quais, uma parada militar no antigo campo de D. Carlos, rebatizado com campo Almirante Reis. Após as eleições, a 16 de junho, realizou-se uma assembleia-geral no Clube Republicano da Madeira, que elegeu novos corpos gerentes, vindo a presidência da assembleia a ser assumida por José Joaquim de Freitas, a direção por Romano de Santa Clara Gomes (1869-1949) e o conselho fiscal por Nicázio Azevedo Ramos. Este último afastou-se progressivamente da política ativa, passando a dedicar-se à investigação médica e à sua empresa. Mantiveram-se, nas várias estruturas, Manuel Jorge Pinto Correia, José Quirino de Castro, Manuel dos Passos Freitas, Henrique Augusto Rodrigues, Francisco da Conceição Rodrigues, Eduardo Olim Perestrello (1884-1947), João Tiago de Castro e outros. No final do ano, foram feitas eleições idênticas eleições no Centro Republicano Democrático, passando a presidência e a vice-presidência da assembleia-geral, respetivamente, a António Filipe Noronha (c.1880-1963) e a Eduardo Nicolau de Ascensão (1883-c.1930), integrando a comissão política Francisco Correia Herédia Ribeira Brava, Pestana Júnior, Gonçalves Preto, José Varela, António Augusto da Silva Pereira e Vasco Gonçalves Marques. Nas várias comissões, ainda apareceram Alfredo Guilherme Rodrigues, Fernando Tolentino da Costa e outros. A abertura do Centro tinha contado com uma intervenção do antigo visconde da Ribeira Brava, que foi depois portador de uma moção para Afonso Costa onde era afirmada a simpatia pelo grupo parlamentar republicano democrático, gesto que o mesmo agradeceu, prontificando-se a prestar toda a solidariedade e proteção ao Centro. Nos finais de 1911, as divergências relativamente à orientação política do distrito agudizaram-se, envolvendo mesmo os republicanos mais moderados. O Centro Manuel de Arriaga e o Clube Republicano da Madeira, bem como a maioria das comissões políticas, retiraram o apoio a Manuel Augusto Martins, em setembro. A Voz do Povo, órgão do Centro Manuel de Arriaga que já citámos e que começou a ser publicado a 1 de outubro, sob a direção de Frederico Pinto Coelho (1851-1916), liderava, com O Radical, as críticas ao governador. Acusavam-no de perseguições aos republicanos, de não ouvir as recomendações do PRM e de confiar cargos importantes a antigos monárquicos que não se haviam filiado neste partido. Nos finais de novembro, o Centro Republicano Manuel de Arriaga implorou ao presidente do Conselho de Ministros, por carta, que pusesse termo à situação. As desilusões sentidas em relação à República, que apontavam que a Ilha estava “mais desprezada, mais abandonada ainda, do que no tempo da monarquia”, como se escreveu em A Voz do Povo (A Voz do Povo, Funchal, 28 nov. 1911), eram secundadas pelos demais periódicos. A 16 de setembro de 1911, através do semanário Trabalho e União, um grupo de socialistas lançou a ideia de constituir um centro socialista funchalense. Passara quase um ano sobre a implantação da República e continuava a situação dos monopólios, da carestia de vida, dos impostos e da falta de infraestruturas. A 23 de setembro, o mesmo periódico anunciou a abertura de inscrições, na sua redação, para o novo centro socialista. O ano terminou com uma nova proposta política, anunciada pelo semanário O Povo, na sua edição de 31 de dezembro: a união republicana. As reuniões tinham começado nos meados do ano e, a 5 de outubro de 1912, foi lançado um “bissemanário da tarde”, O Tempo, com redação e administração na R. João Esmeraldo n.º 18, dirigido pelo Cap. de administração militar Manuel de Sousa Brasão (1884-1923), que passou a defender a orientação do novo partido União Republicana. Mas a exemplo do que sucedeu no continente, este periódico teve uma vida efémera na Madeira, embora ainda no final desse ano recebesse um nome de peso: em novembro, Manuel Augusto Martins assumiu a presidência da comissão executiva do jornal; vale a pena referir que, mais tarde, nas eleições de 1921, Sousa Brasão foi eleito deputado (Eleições na República). A 30 de abril de 1912, foi constituída uma comissão para organizar o Partido Evolucionista, que se tentou implantar na Ilha ao longo do ano. O Gov. Manuel Augusto Martins foi substituído, em fevereiro de 1912, pelo jovem Gov. João Maria de Santiago Prezado (1853-1927), que tomou posse a 4 de abril, regressando à direção de O Povo. O novo governador procedeu a uma série de exonerações e nomeações, sendo a comissão administrativa do Funchal entregue a um grupo do qual fazia parte Pestana Júnior e demais elementos do Centro Republicano Democrático, como Henrique Augusto Rodrigues (1856-1934) e Fernando Tolentino da Costa (1874-1957). A escolha não foi pacífica e o novo governador transformou-se num alvo do periódico O Povo, que o acusou de reintegrar pessoal demitido depois da República, afastando os antigos republicanos. As críticas mantiveram-se nas nomeações seguintes, pois em agosto foram escolhidos os membros da Junta Agrícola da Madeira, responsável pelas Obras Públicas da Ilha: Pestana Júnior, Francisco Correia Herédia Ribeira Brava, João Augusto Freitas, Manuel José Varela, Eduardo Fernandes Alves, Manuel Jorge Pinto Correia, José Luciano Henriques, Francisco Andrade e Pedro José Lomelino. A escolha de Vasco Gonçalves Marques para a administração do concelho também não podia agradar aos velhos republicanos e ao periódico O Povo, até porque era um antigo regenerador e dado como delegado, na Madeira, dos deputados Ribeira Brava e Pestana Júnior. Em setembro, ocorreu a cisão no Centro Republicano Democrático, criando-se dois grupos, um liderado por António do Monte Varela (1865-1957) e pelo Cap. José Maria da Conceição Macedo (1865-1931), tendo sede na Ponta do Sol; outro liderado por Pestana Júnior, essencialmente, apoiando Afonso Costa, em cujo gabinete de advocacia aquele estagiara. A 5 de outubro, surgiu um novo semanário republicano, A Vida, em defesa do Partido Democrático Madeirense, fundado por Pestana Júnior. O grupo de António Varela respondeu com um outro periódico, A Democracia, que surgiu a 15 de abril e passou a ser o órgão de imprensa do Centro Republicano Democrático. Curiosamente, ambos os jornais chegaram a ocupar as mesmas instalações no Funchal, na R. Câmara Pestana n.º 25 (Partidos Políticos). O Gov. Santiago Prezado acabou por se ver envolvido em toda esta turbulência, sendo acusado de falta de neutralidade por vários quadrantes e, alegando motivos de saúde, embora tivesse somente 27 anos de idade, pediu a demissão em março, sendo substituído pelo Maj. Alfredo Ernesto de Sá Cardoso (1864-1950). A situação política madeirense não melhorou com a mudança do governador, e a fragmentação dos republicanos prosseguiu. A 1 de maio de 1913, apareceu ainda o bissemanário O Liberal, com instalações na R. dos Ferreiros n.º 87, tendo como diretor o advogado Remígio Gil Spínola Barreto (1869-1963) e como editor e administrador o jovem médico José Maria Ferreira (1880-1966). Apresentava-se como um órgão do PRP e subscreveu, logicamente, as posições do novo governador. Poucos dias depois, Sá Cardoso nomeou Spínola Barreto como governador substituto. A família republicana madeirense apareceu, assim, dividida em três tendências, nas vésperas das eleições suplementares de 16 de novembro de 1913: os democráticos, apoiantes de Afonso Costa; os unionistas; os evolucionistas. Os novos quadros republicanos, especialmente Ribeira Brava e Pestana Júnior, entre o Funchal e Lisboa, mas assessorados, no Funchal, por Vasco Gonçalves Marques e outros, desenvolveram um interessante trabalho de reformulação desta cidade, chamando à Madeira o Arqt. Miguel Ventura Terra (1866-1919). O projeto de melhoramentos que entregou logo em 1915 ainda deu uns tímidos primeiros passos, com a amputação do cunhal do baluarte do Castanheiro (fortaleza de S. Lourenço) para a ampliação da futura Av. Arriaga e com a demolição da cadeia camarária para a abertura do Lg. da Sé, mas a aproximação da Primeira Guerra Mundial, essencialmente, envolvendo uma grande potência marítima, que era a Inglaterra e outra continental, que era a Alemanha, levou a adiar os trabalhos. A entrada precipitada de Portugal nesse vasto conflito internacional também não resolveu as divergências internas republicanas, sendo necessárias algumas décadas para encontrar um caminho de estabilidade.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

História Política e Institucional

quinta vigia

A área da grande plataforma sobre a baía do Funchal, em frente aos pequenos ilhéus do porto, onde João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471) e a família se instalaram, foi registada, logo nos meados do séc. XV, pelo primeiro capitão do Funchal, e parte desses terrenos foram aforados depois, pela capitoa viúva D. Constança Rodrigues, em 1484, para subsistência da sua mercearia de Santa Catarina. Pouco sabemos sobre construções na área dos Ilhéus, designação geral advinda dos ilhéus do porto, não registando a planta de Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), em 1567, especiais obras na área, aí nomeada “terras de pão” e com uma edificação no local da futura quinta, mas que poderá indicar somente uma estrutura de apoio agrícola. Poucos anos antes, em 1563, procedera-se à medição dos bens da capela de Santa Catarina, instituída pela capitoa viúva, sem fazer referência a qualquer edificação, mas informando que os terrenos estavam plantados “todos de vinho” e aforados a António Rebelo de Lima (ARM, Juízo..., Capela de Constança Rodrigues, a Velha, cx. 15, proc. 4), embora, pela planta referida, saibamos que depois viessem a estar “de pão” (BNB, cartografia, 1090203). Uma propriedade nesta área é depois mencionada, em 1661, como pertencendo ao sargento-mor do Funchal, Diogo da Costa do Quental (1619-1669) e sua mulher, D. Mécia de Vasconcelos (1608-1692), localizando-se acima de Santa Catarina e do “serrado das Amoreiras” de D. Sancho de Herédia (ABM, Juízo..., t. 1, fls. 276v.-277v.). Em abril do ano seguinte, o sargento-mor e a mulher obtinham a instituição da capela de N.ª S.ª das Angústias e Almas, “cita na sua quinta aos Ilhéus”, podendo celebrar ofícios divinos nesse templo que tinham “dotado com dois mil réis cada um ano de foro” (APEF, Alvarás de..., liv. 1, fl. 33); a autorização fora passada pelo deão, doutor Pedro Moreira (c. 1600-1674) (Sedição de 1668). Pelo testamento do sargento-mor, de outubro de 1668, alguns bens ficaram vinculados ao morgado perpétuo instituído nas Angústias com o encargo de duas missas rezadas “todas as semanas do mundo”, na capela, sendo nomeado herdeiro o sobrinho Diogo Valente do Quental. D. Mécia faleceu um ano depois, onerando a capela com mais uma missa aos domingos e nas nove festas da Virgem, tendo designado como herdeiro também um sobrinho, Jorge de Andrade de Vasconcelos (c. 1630-1692). Dada a obrigação de se celebrarem duas missas por semana, muito provavelmente, datam da déc. de 60 do séc. XVII o retábulo e a imagem de vulto de N.ª S.ª da capela das Angústias, atribuíveis à oficina de Manuel Pereira (c. 1605-1679), autora, na década anterior, do camarim da sé do Funchal. O edifício passou por obras sucessivas nos anos seguintes; a tela do camarim deve ser ligeiramente mais recente, mas estes elementos principais devem datar dessa outra época. Com o falecimento de Jorge de Andrade de Vasconcelos, sem descendência, ficaram herdeiras as suas irmãs, também sem filhos, Beatriz de Menezes, Bernarda de Vasconcelos e Serafina de Andrade e Vasconcelos, pelo que, por testamento da última, aprovado a 12 de maio de 1702, foi nomeado herdeiro um sobrinho, um dos maiores proprietários da época, o morgado Francisco de Vasconcelos Bettencourt (1644-1717), casado com Guiomar de Sá (1654-1682), e embora Serafina de Andrade e Vasconcelos só viesse a falecer a 10 de dezembro de 1709. O morgado Francisco de Vasconcelos Bettencourt, “o Novo”, era senhor de avultados bens e deve ter assumido alguns encargos ainda em vida da sua tia Serafina, o que se coaduna com a aprovação do testamento em que é nomeado herdeiro, alguns anos antes do falecimento da mesma. A capela de N.ª S.ª das Angústias foi remodelada entre a última década do séc. XVII e os primeiros anos de Setecentos, sendo o interior dotado de um lambrim de azulejos com cenas da vida de S.to António de uma oficina de Lisboa próxima da de Gabriel del Barco (1648-c. 1708). Do começo do séc. XVIII é a execução do frontal de altar a imitar embutidos marmóreos, obra de Carlos Braunio, provavelmente, um frade franciscano italiano dos arredores de Milão, de Braunio, que terá estado no convento de S. Francisco do Funchal e que deixou na Madeira um frontal semelhante, assinado e datado de 1709, hoje na capela da Consolação, na R. da Levada de Santa Luzia, mas proveniente daquele convento. A importância da capela na família está patente no batizado da neta Inácia Maria Rosa de Sá Vilhena, em 1710, vindo esta quarta filha do futuro morgado Francisco Luís de Vasconcelos Bettencourt (1681-1741) e de sua mulher D. Mariana Inês de Vilhena (c. 1680-1755) a casar-se com o capitão-mor Mendo Brito de Oliveira (Ordenanças e Vilhena, D. Guiomar). Nos primeiros anos do séc. XVIII a capela foi, assim, reabilitada. Foram reaproveitados para a fachada, provavelmente, elementos da construção anterior, devendo-se ter procedido também a trabalhos nas casas anexas, para norte, onde poderão ter habitado as irmãs Beatriz de Menezes, Bernarda de Vasconcelos e Serafina de Andrade e Vasconcelos. As obras e a propriedade efetiva da capela e do morgadio das Angústias só passaram para os Bettencourt de Vasconcelos em 1710, pois D. Serafina de Andrade e Vasconcelos faleceu a 10 de dezembro de 1709, como dissemos, e não consta que os netos do anterior proprietário tivessem sido ali batizados. Infelizmente, as complexas obras que foram efetuadas no edifício, no seu lado norte, durante o século seguinte, quando serviu de apoio aos serviços de instalação de algumas das mais importantes figuras da aristocracia europeia, na parte localizada a sul, impossibilitam uma análise mais aprofundada do imóvel. Quinta Vigia - Illustrated News. 1870. Arq. Rui Carita O morgado Francisco de Vasconcelos Bettencourt faleceu a 4 de outubro de 1717 e os seus bens passaram para o filho, Francisco Luís de Vasconcelos Bettencourt, um dos mais ativos fidalgos e comerciantes do seu tempo, que, falecido a 29 de novembro de 1741, deixou como herdeiros a mulher D. Mariana de Vilhena e os filhos. D. Mariana Inês de Vilhena faleceria em 1755 e, cerca de 10 anos depois, o único filho varão, João José de Vasconcelos Bettencourt (1715-1766). A propriedade passaria então para a filha, a “Ilustríssima Senhora Dona” Guiomar Madalena de Sá Vasconcelos Bettencourt Machado e Vilhena, uma das personalidades mais fascinantes do seu tempo e que deu uma nova vida a toda a área em apreço. Com a posse da propriedade por D. Guiomar, deu-se início, quase de imediato, à rentabilização do terreno, até então de “terra e rocha”, nomeadamente, com o plantio de malvasia na encosta de São Lázaro, no que se despendeu mais de 2 contos de réis. Mais tarde, em 1782, tendo sido determinada a abertura naquela encosta de um caminho que daria acesso ao novo desembarcadouro da Pontinha, tornou-se necessário refazer as paredes que sustentavam as fazendas da quinta até à casa de prazer, ou seja, o mirante de D. Guiomar, já assinalado na planta da cidade do comandante Skinner, de 1775, embora só editada em 1791, em Londres. A morgada deve ter feito grandes obras na quinta; pelo menos, erigiu este mirante, que chegou aos nossos dias com o seu nome e terá levantado o corpo principal da residência. Tendo mandado edificar um importante prédio no Lrg. da Sé e na R. do Capitão para servir de sede à sua casa comercial, e tendo, nos últimos anos, residido preferencialmente “na sua Quinta das Angústias do sítio dos Ilhéus” (ABM, Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 11, fl. 130v.), onde veio a falecer a 15 de março de 1789, também ali fez importantes obras. O corpo neoclássico apresenta as molduras das portas e das janelas em calcário de lioz da serra de Sintra, provavelmente da área de Pero Pinheiro; são em tudo semelhantes às molduras utilizadas na mesma época na reforma das casas da Alfândega do Funchal (Alfândega Nova). Considerando as fortes relações de D. Guiomar com a Junta e Provedoria da Fazenda (embora reconhecendo que estas, comercialmente, nem sempre foram as melhores) e sabendo que a morgada gozava da total proteção do governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (c. 1745-1798), é provável que, tal como nas obras da Junta da Fazenda, ela tenha recorrido à importação das molduras das oficinas continentais que realizavam as obras de reconstrução da cidade de Lisboa. Mirante da Quinta Vigia. 1885. Arqu. Rui Carita   Renné Masst. Mirante da Quinta Vigia. 1884. Arq. Rui Carita O mirante de D. Guiomar é, por ventura, o elemento mais interessante do conjunto, apresentando planta quadrada e dois pisos, realizando-se o acesso exterior ao andar superior por três lanços de escadas, compondo-se uma escadaria maneirista, com corrimão e pilastras de cantaria. O piso térreo apresenta um amplo portal serliano, para o lado do mar, encimado por uma varanda corrida, de sacada, assente em cachorrada muito elaborada, tudo com elementos decorativos de entre os finais do séc. XVI e os inícios do XVII, indiciando assim uma muito provável remontagem dos finais de Setecentos. Interiormente, o piso superior é dotado de teto de caixotão, oitavado e pintado, e apoiado em pendentes e mísulas ainda de gosto algo mudéjar, mas regional, parecendo também ter havido um reaproveitamento de elementos anteriores. Com o falecimento de D. Guiomar de Vilhena ficou como seu herdeiro o sobrinho Cor. Luís Vicente de Carvalhal Esmeraldo (c. 1752-1798), mas a quinta estaria, por certo, arrendada à família do cônsul francês Nicolau de La Tuellièrie (c. 1750-1820), ligado à importante família de Pedro Jorge Monteiro, comerciante que, com D. Guiomar, afrontara a liderança britânica no comércio de exportação dos vinhos da Madeira. Foram, com certeza, os La Tuellièrie e os Monteiro que encomendaram, em Lisboa, na Real Fábrica do Rato, os painéis de azulejos com as fábulas de La Fontaine legendadas em francês, atribuíveis a Francisco de Paula e Oliveira, datáveis de entre 1790 e 1800, que mandaram montar na varanda coberta, uma estrutura anexada a sul do edifício principal, naturalmente já construído. Varanda coberta e azulejos de Francisco de Paula e Oliveira. Arqu. Rui Carita Em 1793 realizou-se na capela das Angústias o casamento, em segundas núpcias, do Dr. António José Monteiro, natural de Pernambuco e filho do mercador Pedro Jorge Monteiro, com a sua sobrinha Mariana de La Tuellièrie; em 1807, o matrimónio de Ana Carlota Monteiro, filha do primeiro casamento do Dr. António José Monteiro; em 1810, o de Maria Monteiro, também filha do primeiro casamento do Dr. António José Monteiro, com Inácio Castelo Branco do Canto Munhoz Melo e Sampaio. No entanto, somente em fevereiro de 1815 foi efetivada a venda da quinta, por João de Carvalhal Esmeraldo (1778-1837), futuro conde (Carvalhal, 1.º conde), ao Dr. António José Monteiro. Com o falecimento de António José, em julho de 1816, a quinta passou para o cônsul Nicolau de La Tuellièrie e, falecido este, em fevereiro de 1820, foi deixada à sua viúva. A posse da propriedade era algo complexa, dado os encargos que comportava e a partilha a que havia sido sujeita ao longo desses anos, p. ex., em 1807, com a construção do cemitério da Misericórdia (Cemitério das Angústias) e a abertura do caminho das Angústias em terrenos da quinta, propriedade de João de Carvalhal Esmeraldo, futuro conde de Carvalhal. Assim, Luís de Ornelas e Vasconcelos, um dos herdeiros da Quinta das Angústias, pois casara com Ana Carlota, viúva de Nicolau de La Tuellièrie, fez ainda aforamento perpétuo, em 1823 e ao morgado António Caetano Aragão, de terrenos anexos às Angústias deste último. A 15 de março de 1842, a quinta foi arrendada aos restantes coproprietários, Elvira e Maria Monteiro, com a obrigação de proceder a consertos na propriedade e a reparações urgentes na “varanda da casa que faz frente para o mar”, para sublocação a Dugdale McKellar (GUERRA, Ibid., 128). Confirmava-se, então, que a residência em apreço era uma das mais conceituadas da cidade. Quinta Vigia. 1890. Arq. Rui Carita   Quinta Vigia. Arq. Rui Carita Nos meados de 1849, aportou ao Funchal o príncipe Maximiliano (1817-1852), duque de Leuchtenberg, filho do príncipe Eugénio Napoleão e genro do czar Nicolau I. O também arquiduque da Rússia era irmão da imperatriz viúva do Brasil, D. Amélia de Bragança (1812-1873), e do príncipe Augusto (1810-1835), que fora o primeiro marido de D. Maria II, mas que falecera pouco depois de chegar a Lisboa, e ainda da rainha Josefina da Suécia e da Noruega (1807-1876). O governador José Silvestre Ribeiro (1807-1891) teve ordens para disponibilizar as instalações do palácio de S. Lourenço ao duque de Leuchtenberg, mas o mesmo, até por viajar com uma comitiva, optou por se alojar na Quinta das Angústias. Esteve na Madeira entre 27 de agosto de 1849 e 23 de abril de 1850, tendo os elementos da sua comitiva sido pintados na ilha por Karl Briullov (1799-1852), inclusivamente, o príncipe Maximiliano, num dos poucos retratos a óleo que se conhece do mesmo. Certamente por indicação do irmão, a 28 de agosto de 1852, seguiu-se a instalação da imperatriz viúva do Brasil, D. Amélia de Leuchtenberg e Bragança, juntamente com a princesa D. Maria Amélia (1831-1853), na esperança de que o clima da Madeira melhorasse a saúde da jovem, afetada pela tuberculose, tal como o tio. A Câmara do Funchal solicitou logo que os nomes da ex-imperatriz e da sua filha fossem dados às ruas anexas à quinta, mas a princesa faleceu num curto espaço de tempo, a 4 de fevereiro de 1853, para grande consternação da população do Funchal, não só pela sua pouca idade, mas também por ser a filha mais nova do falecido rei D. Pedro IV. A ex-imperatriz saiu com o corpo para Lisboa, a 6 de maio seguinte, tendo fundado no Funchal, em homenagem à filha, o Hospício Princesa D. Maria Amélia, cujos passos iniciais ainda acompanhou na Ilha, em instalações provisórias, lançando-se depois, em Londres e em Paris, um concurso internacional para a construção do edifício, por ventura, o primeiro que a ser realizado em Portugal. Quinta Davis. Arq. Rui Carita Em 1849, um comerciante inglês, Richard Davies, radicado na R. do Carmo, no Funchal, começou a adquirir terrenos junto da Quinta das Angústias como sub aforamento de uma “porção de terra no sítio a que antigamente chamavam a vigia de Santa Catarina” (ABM, Registos Notariais, liv. 1249, fls. 47v.-49). No mesmo ano ainda, comprou ao jovem António Leandro de Carvalhal Esmeraldo (1831-1888), depois 2.º conde de Carvalhal, uma vasta fazenda ao lado da anterior, vindo assim a mandar reformular a residência da Quinta Vigia ou Quinta Davies. Já havia uma habitação nesta área, residindo nela, nos inícios de 1847, a família Rutheford; tinha sido alvo de uma tentativa de assalto por parte de alguns populares, direta ou indiretamente liderados pelo Cón. Teles de Meneses, no quadro das altercações ocorridas com o proselitismo do reverendo metodista Robert Reid Kalley (1809-1888) e que tinha levado à deslocação para a Madeira do governador José Silvestre Ribeiro. Ainda nos finais desse ano de 1847, a rainha viúva Adelaide de Inglaterra, nascida Saxe-Meiningen (1792-1849), passou também uns meses na Madeira para se restabelecer de problemas de saúde, ocupando a quinta com as suas damas de companhia. O governador José Silvestre Ribeiro interferiu decididamente na instalação da rainha, que ali esteve até abril do ano seguinte, tendo depois recebido um enorme castiçal de prata, hoje na Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, em retribuição da hospitalidade. A rainha, entretanto, faleceria no final desse ano, em Londres. A Quinta Vigia, cerca de 10 anos depois, era já uma importante referência internacional, recebendo a Imperatriz Isabel de Áustria (1837-1898) e a comitiva que a acompanhava, tendo sido fotografada por Vicente Gomes da Silva (1827-1906) poucos dias após o seu alojamento no local, em 1860. Tal como às importantes figuras mencionadas atrás, também lhe foi oferecida residência no palácio de S. Lourenço, existindo, inclusivamente, informações sobre obras para a sua instalação. Porém, a Imperatriz, conhecida romanticamente por Sissi, optaria pela Quinta Vigia para residir no Funchal, entre novembro daquele ano e abril do seguinte. Durante a sua estadia, veio de Lisboa o infante D. Luís, que seria depois rei de Portugal, para apresentar cumprimentos em nome do irmão, D. Pedro V. Um ou dois anos mais tarde, em 1863 ou 1864, o ilustrador Joseph Selleny (1824-1875) editou, em Viena, uma litografia da sé do Funchal com a imperatriz em primeiro plano. Sissi e as suas damas de companhia na Quinta Vigia. 1860. Arq. Rui Carita Nos meados de 1885, ainda ocuparia a Quinta Vigia o príncipe Pedro II Nicolau von Holstein-Gottorp (1827-1900), grão-duque de Oldemburgo, que, em março desse ano, organizou uma quermesse na quinta. Possuía uma guarda pessoal de cossacos, que andavam na cidade a cavalo, tendo sido assim fotografados na Photographia Vicentes, à R. da Carreira, e que despertavam uma enorme curiosidade aos locais. Em outubro de 1859, entretanto, falecera Ana Carlota Monteiro de Ornelas, proprietária da Quinta das Angústias, herdando-a Nicolau Hemitério de La Tuellièrie e Maria Monteiro. A propriedade seria arrendada à britânica Margarida Yuille Wardrop, em junho de 1860, mas, em fevereiro de 1862, Nicolau Hemitério vendeu a sua parte ao procurador João António Pereira, devido às avultadas dívidas acumuladas, assistindo ao ato da escritura os representantes dos senhorios diretos da propriedade, ou seja, do marquês de Castelo Melhor, herdeiro de grande parte das propriedades dos Câmara da antiga casa dos condes da Calheta, e do morgado António Caetano Aragão, que outorgaram a transação e receberam o laudémio dela decorrente. Em setembro de 1863, instalou-se na Madeira o conde Alexandre Charles de Lambert (1815-1865), general de cavalaria e ajudante de campo do imperador da Rússia, embora nascido em Paris. O conde começou por se instalar na R. da Ponte de S. Lázaro e, em março de 1864, adquiriu a Quinta das Angústias aos proprietários, João António Pereira e João Gregório Rodrigues, este último, herdeiro de Maria Monteiro. Parecem datar dos anos seguintes as obras realizadas sobre a então R. Imperatriz D. Amélia, com o levantamento de uma fachada neoclássica e a reparação da muralha sobre o porto, com a execução dos compartimentos enterrados, hoje arquivo da presidência do Governo Regional da Madeira (GRM). A quinta deve ter tido obras para receber o casamento do conde de Lambert com Marie Louise Marguerite de Savary Lancosme Brèves (1840-1909), filha dos condes de Lancosme Brèves que tinha então 25 anos e que também nascera em Paris. O matrimónio ocorreu na capela da quinta, a 19 de fevereiro de 1865, com a autorização de D. Patrício Xavier de Moura (c. 1800-1872), bispo do Funchal, tendo assistido, entre outros, os pais da noiva, também a residirem no Funchal à data. O conde de Lambert faleceu inopinadamente na sua quinta, aos 49 anos, a 1 de agosto desse ano, às 04.00 h, deixando a jovem condessa grávida e numa situação económica complicada. A 4 de janeiro de 1866, recebeu a confirmação do seu batizado o pequeno conde Carlos Alexandre (1865-1944), que nascera a 30 de dezembro e que, temendo-se o pior, fora logo batizado, tal como declara a certidão. Na cerimónia religiosa estiveram presentes os pais da condessa, o 2.º conde de Carvalhal, o general José Júlio do Amaral, comandante da 9.ª divisão, e os vice-cônsules de França no Funchal. A condessa, no registo de batismo, é dada como residente na Calç. de Santa Clara, provavelmente, no local onde residiam os pais, para que não ficasse na quinta com o cadáver do marido. A condessa viu-se na situação de ter que pedir um empréstimo de 12 contos à firma russa Krohn Brothers para transportar o corpo do conde para Paris, encontrando-se este, até então, embalsamado e depositado na capela das Angústias, servindo também o crédito para proceder a “reparos e outros arranjamentos” na quinta, com vista ao seu futuro arrendamento (ABM, Registos Notariais, liv. 1276, fls. 12v.-13v.). A condessa e o filho saíram para França em agosto de 1867, mas mantiveram a posse da quinta até 1903. O jovem conde de Lambert veio a ser uma das grandes figuras da aviação internacional, atribuindo-se-lhe as primeiras experiências de construção de hidroaviões; foi ainda o primeiro aviador a sobrevoar a Torre Eiffel e o primeiro a voar na Bélgica e na Holanda, p. ex.. Conde Lambert. Arqu. Rui Carita O comerciante Charles Ridpath Blandy (1812-1879), entretanto e face ao crescente movimento do porto, começara a adquirir terrenos na baixa de Santa Catarina. Em agosto de 1879, com a morte do 6.º marquês de Castelo Melhor, a firma Blandy Brothers & Co. comprou uma parte do domínio direto do foro da Quinta das Angústias de que eram enfiteutas os herdeiros do velho conde de Lambert. Grande parte dos interesses da área, inclusivamente a propriedade da pequena capela de Santa Catarina, passaram para a dita firma inglesa durante esses anos. O célebre médico Paul Langerhans (1847-1888), autor da descoberta das células que ainda hoje têm o seu nome e que constituíram objeto de análise na sua tese de doutoramento de 1869, no verão de 1875, afetado pela tuberculose, viu-se na contingência de ter de suspender a carreira universitária, escolhendo a Madeira para se tentar restabelecer. Ficaria na Ilha dois anos e meio, recuperando e aproveitando para se dedicar ao estudo da fauna marítima dos mares madeirenses e, depois, dos das Canárias. Regressou à Alemanha em 1878, mas estava de novo na Madeira em junho de 1879. Casou com uma viúva alemã, Margarreth, cujo marido tinha sido seu doente e, em junho de 1886, a família instalou-se na Quinta das Angústias. Langerhans faleceu na propriedade, a 20 de julho de 1888, sendo sepultado no cemitério britânico e regressando a viúva e a filha à Alemanha. Nos seis meses anteriores à estadia de Paul Langerhans na Quinta das Angústias, esteve ali o marquês de Albizzi, Niccolò Marc Antonio Albizzi, que editaria, em Paris, as suas memórias de seis meses na Madeira, recorrendo a fotografias de João Francisco Camacho (1833-1898) e, provavelmente, de outros, imagens depois gravadas por diversos artistas, em Paris, perfazendo um total de quase 40 estampas. Uma das ilustrações é “Le pavillon de notre quinta” (ALBIZZI, 1888, 71), facilmente identificável como o mirante de D. Guiomar; outra, “Hamac”, da qual se conhece a fotografia original, representando o marquês a ser transportado em rede, com um acompanhante, indicando o empedrado e o enquadramento que terá sido tirada no parque da “sua quinta” das Angústias (Id., Ibid., 83). Os primeiros anos do séc. XX colocaram em causa, e inclusivamente sob a atenção internacional, a situação das quintas sobre o porto do Funchal, competindo os interesses britânicos na Madeira com os alemães, que pretendiam a montagem de uma ampla rede de sanatórios e eram acusados por aqueles de estarem a encobrir um negócio de casinos (Sanatórios e Casinos). Os prazos da Quinta das Angústias, entretanto, porque fora do megaprojeto dos sanatórios alemães, foram adquiridos à firma Blandy Brothers & Co., a 18 de agosto de 1903, pelo bacharel Júlio Paulo de Freitas (1863-1946), que, no dia seguinte, comprou igualmente a quinta à condessa de Lambert e ao filho através dos seus procuradores no Funchal, também a Blandy Brothers. A Quinta Vigia, nos finais do séc. XIX, continuou a servir como abrigo, por excelência, dos doentes do turismo terapêutico, guardando-se inúmeros registos fotográficos e aguarelas românticas de Ella du Cane (1874-1943), editadas depois, em 1909. Entretanto, em maio de 1904, a então propriedade de Mr. Bennet Stanford fora adquirida pela Sociedade dos Sanatórios da Madeira, tal como a Quinta Bianchi, mas o projeto de instalação daquela gorou-se, pois a firma Blandy Brothers & Co. conseguira ficar com a Quinta Pavão, mais tarde integrada na Empresa dos Casinos da Madeira. Ao longo das décadas seguintes, com a extinção da Sociedade dos Casinos, a Quinta Vigia passou à propriedade do Estado, tendo servido de aquartelamento militar da Guarda Republicana, em 1921, transformando-se depois em parque público, com várias instalações desportivas, como ringues de patinagem, p. ex.. Com o falecimento de Júlio Paulo de Freitas na Quinta das Angústias, em 1946, a mesma ficou para a sua afilhada, Isabel Vasconcelos da Cunha; em 1964, foi residência de Tomaz da Cunha Santos (1933-2013). Com a reativação da Empresa dos Casinos Madeira e o projeto de instalação do novo edifício do Casino Park Hotel, o dec.-lei de 11 de dezembro de 1967 determinou a aquisição da quinta para o Estado, por permuta das quintas Bianchi e Pavão, a demolir para aquela construção. A quinta foi desocupada pelos proprietários pouco tempo depois, mas o processo de expropriação arrastou-se pelos anos seguintes, inclusivamente por não haver acordo nos valores patrimoniais dos azulejos da capela, do frontal de altar, entre outros. A Quinta das Angústias encontrava-se devoluta, em dezembro de 1974, tendo sido sugerido pelo então presidente da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, Rui Vieira (1926-2009), que fosse utilizada para as festas da cidade ou festas do fim do ano, a acontecer nesse mês, tendo sido aí montadas, pela comissão diretiva do Museu da Quinta das Cruzes, várias exposições de artes plásticas e presépios da coleção do mesmo museu (Museu Quinta das Cruzes e Quinta das Cruzes). Pretendia-se, assim, aproveitando algum vazio de poder, desbloquear a situação de impasse em que se havia caído e evitar futuros desmandos, dando urgente ocupação e serventia ao espaço. Nesse quadro, em 1975, passaram a funcionar ali os ateliers e as aulas do Instituto de Artes Plásticas da Madeira (Universidade da Madeira). Com a progressiva instalação do GRM, a partir de 1979 reiniciaram-se as negociações para ali se instalar a presidência do governo, tendo o edifício sido objeto de um projeto de reabilitação da autoria do Arq. António Marques Miguel, assessorado localmente pela Arq. Elisabete de Andrade. Por resolução da presidência do GRM de junho de 1982, em memória da antiga quinta anexa e do seu espaço público, a designação da nova habitação da presidência do governo passou a ser Quinta Vigia. A inauguração da Quinta Vigia como residência oficial do presidente do GRM ocorreu a 2 de maio de 1984. Quinta Vigia. Residência. Arqu. Rui Carita A reabilitação do conjunto manteve toda a estrutura exterior dos antigos edifícios, da capela, do parque e jardim envolventes, conservando inclusivamente o mirante e as duas casinhas de prazer sobre o porto do Funchal. Interiormente, as salas superiores do edifício neoclássico, em princípio, mandado levantar por D. Guiomar, foram interligadas, servindo de área de receção e apoiando-se na varanda sobre o parque, onde estão os célebres azulejos das fábulas de La Fontaine. O andar térreo encontra-se ocupado com os gabinetes da presidência do governo, tendo uma parte do secretariado passado para o mirante de D. Guiomar. O interior foi decorado conforme as quintas madeirenses antigas, dos sécs. XIX e XX, com mobiliário ao gosto inglês dessa época, parte do qual, proveniente dos acervos dos museus da Região, recriando-se assim a ambiência dessas mesmas propriedades. O parque encontra-se aberto ao público.   Rui Carita (atualizado a 16.12.2017)

Arquitetura Património