república

02 Dec 2020 por "Rui Carita"
História Política e Institucional

A aclamação da República, decorrida em Lisboa, na manhã de 5 de outubro de 1910, foi comunicada ao Funchal às 18.00 h do mesmo dia. Ao contrário do que se poderia esperar, a tomada de posse dos republicanos não ofereceu especiais dificuldades na Ilha, embora a imprensa republicana mais agressiva tenha alardeado inúmeros casos conflituosos, especialmente com elementos do clero. Os principais desentendimentos ocorreram no seio dos republicanos, com a crispação dos mais novos contra os mais velhos e experientes, criando problemas nas eleições de 1911 e nas suplementares de 1913, altura em que já se dividiam em três tendências, todas apoiadas em periódicos: os democráticos, os unionistas e os evolucionistas.

Palavras-chave: regime político; imprensa; partidos políticos; anticlericalismo; eleições.

 

No dia 5 de outubro de 1910, a cidade do Funchal acordou, como habitualmente, sem saber o que se estava a passar em Lisboa. Havia, desde as décadas anteriores, contactos entre as várias estruturas republicanas; aliás, poucos meses antes, os marinheiros do cruzador Adamastor tinham realizado um jogo de futebol com os marítimos de Santa Maria Maior, que já utilizavam as cores republicanas e que, pouco tempo depois, se constituíram como clube de futebol (clube de futebol Marítimo). Desconhecia-se, no entanto, que, nessa manhã de outubro, o cruzador bombardeava com as suas peças de artilharia o palácio das Necessidades, levando a família real a fugir para a Ericeira e a embarcar para fora do país; essas peças, mais tarde, foram guardadas no Funchal, na entrada do antigo aquartelamento do grupo de artilharia de São Martinho.

Os jornais desse 5 de outubro só haviam recebido algumas notícias dos dias anteriores, como a do assassinato de Miguel Bombarda, no hospital de Rilhafoles, por um dos seus doentes, a 3 de outubro, publicando-se, no Diário de Notícias, alguns dados biográficos sobre o assassino, nomeadamente que aderira ao Partido Republicano Português (PRP) (Partido Republicano) e que era um dos seus mais valiosos combatentes. O vespertino O Jornal, dado como afeto ao Governo e à Igreja, informava estarem interrompidas as ligações com a capital, devido a uma avaria no cabo submarino. A notícia terá despertado desconfiança e, mantendo-se por toda a manhã a falta de informações, logo circularam boatos, que levaram à reunião da comissão municipal republicana no Centro Republicano Manuel de Arriaga, à R. da Carreira, n.º 13, e à ordem de prevenção às unidades militares.

A notícia chegou às 18.00 h, através da agência noticiosa Havas: “Foi proclamada a República em Portugal depois de um combate em que a artilharia 1, a Infantaria 16 e a Marinha saíram vitoriosas” (“Proclamação da República”, DN, Funchal, 6 out. 1910, 1). O telegrama confirmava o boato e a comissão municipal enviou felicitações e cumprimentos, em nome do “povo democrático da Ilha”, ao novo Governo e aos jornais republicanos de Lisboa (“A República na Madeira”, O Povo, sup. n.º 191, 9 out. 1910, 1). Foi de imediato distribuído um pequeno texto noticioso que gerou um enorme entusiasmo, acorrendo muitas pessoas ao Centro Republicano, onde se juntaram também militares. Todavia, a palavra de ordem que circulava era de contenção, dado faltar a confirmação oficial da notícia e ainda a aclamação da República na Madeira.

Esta chegou na madrugada do dia 6 de outubro, através de um telegrama do ministério do Interior para Manuel Augusto Martins (1837-1936), a nomeá-lo governador civil do Funchal. A comissão municipal republicana distribuiu de imediato um manifesto, sob o título “Ao povo Madeirense”, anunciando a proclamação da República e recomendando aos seus apoiantes “ordem e correção”, palavras que se tornavam nestes primeiros dias a principal preocupação dos republicanos (“Ao Povo Madeirense”, Diário popular, Funchal, 7 out. 1910, 1). Entendiam e difundiam os novos dirigentes que era indispensável “desfazer pela última vez, a lenda [de] que os republicanos” eram “desordeiros e vingativos”, divulgando comunicados neste sentido pelos jornais locais. Apesar destas informações, a bandeira da monarquia, às 08.00h de 6 de outubro, voltou a ser hasteada em S. Lourenço. O Gov. civil José Ribeiro da Cunha (1859-1915) e o Gov. militar Cor. Valeriano José da Silva, inclusivamente, reforçaram a guarda ao palácio, entregue ao Ten. João Carlos de Vasconcelos (1878-1933). Face aos contactos estabelecidos pelos elementos da comissão republicana para a transferência de poderes, informaram que aguardavam ordens superiores e que, sem as mesmas, se recusavam a proceder a qualquer alteração, na secreta esperança de um retrocesso da situação em Lisboa.

O governador civil indigitado, Manuel Augusto Martins, solicitou a Lisboa a comunicação oficial para os dirigentes depostos e, dentro da contenção que haviam assumido, os republicanos aguardaram, na R. da Carreira, o desenrolar da situação. Mantinham-se em reunião com o novo governador civil os membros do PRP, em grande expectativa, levando a cabo uma autêntica maratona de contactos, com a preocupação de não perder o controlo da situação. Entre eles: Nicázio de Azevedo Ramos (1862-1927), Manuel Jorge Pinto Correia (1882-c. 1940), Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969), Pedro Luís Rodrigues, José Quirino de Castro, Francisco Mendes Gonçalves Preto.

O telegrama para as autoridades de S. Lourenço chegou às 11.00 h, assinado pelo novo ministro da Guerra, António Xavier Correia Barreto (1853-1939), mas o seu teor não satisfez os elementos monárquicos, nem, no dia seguinte, os sargentos e praças republicanos: “Foi proclamada a República e assumi o cargo de ministro da Guerra do Governo Provisório. Reina absoluta tranquilidade em Lisboa e províncias, estando a ordem convenientemente assegurada e tendo já recebido a adesão de importantes núcleos militares. Aguardo a adesão de V. Ex.ª e oficiais sob o seu comando” (MARTINS, 2004, 65). Na mesma manhã, ainda se reuniram no palácio de S. Lourenço os membros da comissão republicana para acordar a transferência de poderes, mas as autoridades monárquicas demarcaram-se da situação, alegando não ter havido uma ordem taxativa para aderir à República, como entendia o Cor. Valeriano José da Silva, mas sim um “pedido” ou “convite” por parte do novo ministro da Guerra, pelo que ele, pessoalmente, não se associava à mudança (Id., Ibid.). Autorizou-se, no entanto, o hastear da bandeira republicana em S. Lourenço, que foi saudada pela força militar.

A comissão republicana deslocou-se para o edifício do Governo Civil, na R. João de Tavira, aguardando a chegada do secretário conselheiro António Jardim de Oliveira (1858-1926), que se encontrava no Monte e foi avisado por telégrafo terrestre. Naturalmente, a sua chegada não foi imediata, juntando-se nas imediações do Governo Civil uma multidão, à qual era preciso dar, de alguma forma, resposta. Face à aglomeração, Manuel Augusto Martins, pelas “4 horas da tarde”, mandou lavrar um termo de posse provisório, que foi por si assinado, assim como pelos vários membros do PRP, após o que foi hasteada a bandeira republicana, “que foi saudada pela enorme multidão que enchia a rua João de Tavira, e que pouco depois se dirigia para a praça da República”, como por esses anos se passou a designar a Pç. da Constituição, depois Av. Arriaga, “levando à frente uma banda que executava A Portuguesa” (“A República na Madeira”, O Povo, sup. n.º 191, 9 out. 1910, 1).

Os republicanos entraram em S. Lourenço e o novo governador civil entregou a José Joaquim de Freitas (1847-1936) uma segunda bandeira republicana que o mesmo içou, na qualidade de “um dos mais velhos democratas do Funchal”. A guarda de honra militar apresentou armas e fez a “continência da ordenança” perante o delírio de “muitos milhares de cidadãos” que aplaudiam a nova era de ressurgimento de uma pátria “faminta de moralidade e justiça”, como foi referido na imprensa de então (Id., Ibid.). Da varanda do Clube Restauração, instalado no edifício do Golden Gate, discursaram o novo governador civil, Pestana Júnior, Gonçalves Preto e Azevedo Ramos, “tendo todos palavras de vibrante saudação às instituições nascentes e aconselhando o povo a conservar a serenidade e cordura que já hoje, honra ao povo, nos elevou aos olhos de nacionais e estrangeiros” (“A Proclamação da República em Portugal”, DN, Funchal, 7 out. 1910, 2).

Ao meio-dia, o comércio havia encerrado as portas para que todos pudessem assistir aos festejos, mas também, certamente, por precaução. Ao final da tarde, a cidade foi percorrida por uma enorme multidão, que soltava vivas à República e fogos-de-artifício, acompanhada pela antiga Real Filarmónica Artístico Madeirense, que retirara rapidamente as coroas que enfeiravam os bonés do uniforme, juntando-se ainda o conjunto Artistas Funchalenses. À noite, Azevedo Ramos ainda discursava de uma das janelas do Centro Manuel de Arriaga e a redação do jornal Trabalho e União iluminava as suas instalações com balões venezianos. Algumas embarcações, na baía do Funchal, associaram-se às manifestações, tendo o navio de guerra norte-americano Adams embandeirado em arco, o vapor belga Ministre Beernssert dado uma salva e o patacho Navegante içado, à ré, a bandeira da República.

No dia 7 de outubro, não se hasteou qualquer bandeira em S. Lourenço, embora no dia anterior tivesse sido transmitido às unidades militares o telegrama do ministro da Guerra Cor. António Xavier Correia Barreto; na fortaleza de Santiago, quartel da artilharia, foi hasteada a bandeira republicana. A bandeira fora alçada às 09.30 h com salvas e não às 08.00 h, conforme a ordenança. Pelas 11.30 h, a força de Infantaria 27 saiu do quartel do colégio (Colégio dos Jesuítas), armada e de baioneta calada, dirigindo-se para a fortaleza de S. Lourenço e estacionando no Lg. da Restauração, em frente à porta da mesma, onde se veio a estabelecer, já mais tarde, o museu Militar (museu Militar da Madeira). Logo saiu do colégio outra força, em direção ao mesmo local. Estas unidades não tinham aceitado o comando de qualquer oficial e não responderam aos apelos do Cap. Henrique Luís Monteiro (1862-1928) para regressarem à ordem. Neste contexto, surgiu o jovem Gregório Pestana Júnior, por nós já referido, recém-nomeado administrador do concelho que subiu a um dos bancos do passeio público e apelou à ordem, prometendo resolver a situação. Dirigindo-se à R. João de Tavira, trouxe do Governo Civil uma bandeira, que entregou ao Ten. Vasconcelos e foi de imediato hasteada. Acalmados os ânimos e chegada a banda da Infantaria 27, a bandeira foi arreada para ser então hasteada ao som de “A Portuguesa”, entre vivas à República. Falou então às forças o Maj. de artilharia Manuel Goulart de Medeiros (1861-1947), açoriano, inspetor do material de guerra, que exortou os soldados ao respeito pelos superiores. Explicou que era republicano desde longa data, mas que, como militar, nunca rinha deixado de cumprir os seus deveres de respeito e de disciplina. O Maj. Luís Correia Acciauoli (1858-1942) assumiu o comando das forças de Infantaria 27 e, com a banda, desfilou pelas ruas do Funchal, dando vivas à República, até à fortaleza de Santiago, onde o grupo foi saudar os camaradas de artilharia que se mantinham no quartel, sob o comando do Cap. João Augusto Pereira (1875-1915). Pela tarde, civis e militares, em conjunto com a Filarmónica Artístico Madeirense, voltaram a percorrer as ruas do Funchal desse modo efusivo.

A nomeação de Manuel Augusto Martins para o lugar de governador civil do distrito recolheu absoluto consenso na altura. Era um republicano com provas dadas no combate político local, várias vezes candidato a deputado pelo Partido Republicano da Madeira (PRM), diretor do semanário O Povo e presidente da comissão republicana do concelho do Funchal. Como escreveu, mais tarde, Ciríaco de Brito Nóbrega (1856-1928), diretor do Diário de Notícias do Funchal: “nunca mendigou empregos; nunca aspirou a honrarias; nunca curvou a cabeça senão ao dever e nunca obedeceu senão à voz da consciência” (NÓBREGA, DN, Funchal, 22 mar. 1911, 1). Trabalhara em Lisboa, no escritório de Afonso Costa (1871-1937) e no de António José Teixeira de Abreu (1865-1930), durante dois anos, regressando depois ao Funchal, sem se deixar envolver com a “corrupção política e social, conservando sempre íntegra e imaculada a sua reputação de homem de bem”, sendo respeitado a admirado por todos, quer amigos quer adversários (Id., Ibid.).

Cabia ao governador civil e às estruturas locais do PRM encontrarem os restantes elementos para preencher os órgãos de poder local. O primeiro lugar a ser preenchido foi o de administrador do concelho, com o referido Manuel Gregório Pestana Júnior, que tomou posse a 7 de outubro desse ano. Foi-lhe também atribuída a direção do principal órgão dos republicanos, o semanário funchalense O Povo, antes mencionado, após a saída de Manuel Augusto Martins. Orador notável, era militante do PRP e, ainda como estudante da Faculdade de Direito de Coimbra, participou ativamente na greve académica de 1907, tendo sido preso e processado. Nos finais de 1908, já discursava no Centro Republicano Manuel de Arriaga, no Funchal e, terminado o curso, nos meados de 1910, regressou à Madeira, com 24 anos de idade, participando ativamente nos trabalhos do partido.

A 19 de outubro, efetuou-se a assembleia-geral do PRM, onde foram apresentadas as primeiras diretivas para a reorganização republicana insular: precaver-se contra excessos e adesões oportunistas, e efetuar sindicâncias a todas as corporações administrativas, de modo a impor moralidade na administração pública. A primeira moção, apresentada pelo Maj. Goulart de Medeiros, defendia que o novo Governo republicano devia apostar na união de todos os Portugueses, mas salvaguardando as adesões à nova ordem, não se admitindo aqueles que o faziam para tentar conservar privilégios. Até à consolidação das novas instituições, não se poderiam escolher elementos de alguma forma ligados ao regime anterior, “exceto se tivessem qualidades excecionais de honradez, instrução e inteligência” (“Centro Manuel de Arriaga”, DN, Funchal, 22 out. 1910, 1). A assembleia-geral continuou no dia seguinte, sendo apresentada outra moção, da autoria de Azevedo Ramos, a pedir sindicâncias a todas as repartições públicas do distrito, em especial à Câmara Municipal do Funchal e à Junta Geral. Ao longo de outubro e de novembro, o novo governador procedeu às exonerações e às nomeações dos administradores dos concelhos rurais e da comissão administrativa do município do Funchal, sendo os restantes lugares preenchidos até ao final do ano. Como podemos verificar pelas nomeações feitas, foi grande a dificuldade em encontrar elementos da confiança do PRM para se preencherem todos os lugares, acabando alguns membros por desempenharem várias funções, como acontecera anteriormente, no tempo da monarquia.

A comissão administrativa da Câmara Municipal do Funchal ficou a ser presidida por Afonso Vieira de Andrade, tendo os demais pelouros sido distribuídos por Silvestre Quintino de Freitas, José Bernardo de Almeida, Manuel dos Passos Freitas (1872-1952), José Quirino de Castro, Manuel Jorge Pinto Correia e Henrique Augusto Rodrigues. A presidência da Junta Geral foi entregue a Aníbal Sertório dos Santos Pereira, tendo como procuradores José Joaquim de Freitas, o P.e Fernando Augusto da Silva (1863-1949), e os irmãos Augusto e Pedro Luís Rodrigues. Para a presidência da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, foi nomeado António Augusto Curson, que foi depois ministro do Comércio, em 1921 e membro do conselho nacional dos escuteiros de Portugal, fazendo parte da equipa da nova mesa da Misericórdia José Ernesto Areias, João Lomelino Ferreira de Sousa, Carlos Firmino Gonçalves, Bernardo do Nascimento Rodrigues, João Rodrigues Braga e Artur Pedro de Quintal.

José de Castro (1848-1929), então no Funchal, foi nomeado ajudante do procurador-geral da República e Carlos Olavo Correia de Azevedo (1881-1958), secretário-geral em Lisboa, dada a necessidade de ali haver um procurador. José Alfredo Mendes de Magalhães (1870-1957), enviado à Madeira como comissário da saúde da República, por ocasião da epidemia de cólera que grassava no arquipélago, onde aportou no cruzador Almirante Reis, foi confirmado no cargo de procurador-geral da República, voltando José de Castro para Lisboa e, para a comissão administrativa do Asilo de Mendicidade e Órfãos, foram apresentados José Joaquim de Freitas, Henrique Augusto Rodrigues, Maximiano de Sousa Rodrigues, João Augusto Duarte Vítor, Francisco de Andrade e Manuel dos Passos Freitas.

O Partido Progressista (PP) foi o primeiro partido monárquico a aderir ao novo quadro político, até porque muitos dos seus membros já eram republicanos (Partido Progressista). O Diário do Comércio, afeto a essa linha partidária através do seu proprietário e redator principal Francisco António Ferreira (1870-1912), logo na edição de 7 de outubro, deu vivas à República. No dia 23, comunicou que suspendia a sua ação, informando que o PP dava liberdade política aos seus filiados para aderirem ou não à causa republicana. A direção do PP disponibilizava-se, inclusivamente, a facultar ao novo regime a sua organização local (sede, jornal, arquivos, etc.). Também O Direito, de que era diretor e proprietário Artur Leite Monteiro (1871-1937), clarificou a sua linha editorial, apresentando-se como representante de “um partido monárquico liberal”, que eram os antigos regeneradores, mas pedia aos seus “velhos companheiros de outras lutas” que não criassem “o mais leve embaraço às autoridades”, dando a entender que a situação não tinha retrocesso (“A República”, O Direito, 9 out. 1910, 1).

A 4 de novembro, foi registada uma circular de 31 de outubro, reenviada pelo comando militar às entidades que tutelava, “a fim de uniformizar a norma a seguir na correspondência militar” (AMMM, circular, 31 out. 1910). A indicação era para que passasse a constar no alto das folhas, ao centro e “por extenso”, a designação “Serviço da República” e se substituísse o antigo remate “Deus guarde V.ª Ex.ª” por “Saúde e Fraternidade” (Id., Ibid.). Também se reformulava a antiga pragmática, sendo o nome da maioria dos destinatários somente antecedido por “Ao Snr.”, eliminando-se assim “Ills.mos” e “Ex.mos” (Id., Ibid.). Por sua vez, nas capas da correspondência, “S. N. R.” dava lugar a “S. R.” (Id., Ibid.).

A 23 de outubro, realizou-se uma assembleia-geral do Centro Arriaga, no ateneu comercial do funchal, com o objetivo de reformular os órgãos diretivos do PRM, ampliando-os a uma comissão distrital e a uma comissão municipal. A reorganização estendeu-se igualmente às comissões paroquiais, cujas eleições decorreram nos finais desse mês, às quais cabia indicar os regedores e iniciar o recenseamento eleitoral. Até ao final de outubro, criou-se um centro republicano em Machico e, em novembro, dois centros republicanos em São Gonçalo. No ano seguinte, constituiu-se o Clube Republicano da Madeira e, comemorando o aniversário da implantação da República, a 5 de outubro de 1911, foi inaugurada a sociedade Republicana Estrela Brilhante.

Nas comemorações do primeiro aniversário da República, apareceu a discursar, ao lado dos principais elementos republicanos madeirenses, uma mulher, Hermínia Augusta de Sousa, mostrando que não era apenas aos homens que competia defender os novos ideais. A este propósito, o jornal local A Voz do Povo acrescentou que as mulheres eram “as únicas” que podiam “levantar a geração futura” (“Os Festejos da República”, A Voz do Povo, Funchal, 10 out. 1911). A 15 de outubro, estava constituído o comité fundador da Associação das Mulheres Republicanas Madeirenses e publicitou-se a abertura de inscrições no Centro Republicano Manuel de Arriaga, ao Lg. do Colégio, n.º 8. A instabilidade política que sobreveio afastou as mulheres do debate, não se encontrando mais informações sobre a Associação durante o período em apreço. Nas eleições nacionais de 1911, uma médica viúva, beatriz Carolina Ângelo (1878-1911), conseguiu votar, alegando que era cidadã portuguesa, chefe de família e instruída, sendo o seu, muito provavelmente, o primeiro voto feminino europeu. A Constituição de 1913 explicitaria já que o voto estava reservado aos chefes de família do sexo masculino.

As dificuldades do novo regime começaram a surgir pouco depois da implantação da República. A 13 de novembro de 1910, realizou-se, na nova Pr. da República, realizou-se um comício a pedir o fim dos monopólios dos regimes cerealífero e sacarino, e a abolição dos impostos sobre os produtos de primeira necessidade, criando-se então uma comissão de figuras republicanas de prestígio local para apresentar ao governador do distrito as suas reivindicações. Cientes da necessidade de apoio em Lisboa, os republicanos madeirenses também criaram uma comissão na capital, constituída pelo ex-visconde da Ribeira Brava, os irmãos Carlos e Américo Olavo Correia de Azevedo (1882-1927), António Paulino Mendes, comerciante madeirense radicado em Lisboa e ligado ao ex-visconde, entre outros. Mas a situação em Lisboa não era melhor e, um pouco por todo o país, à euforia do mês de outubro, sucedeu uma dura luta política e um grande defraudar das esperanças iniciais.

Durante os primeiros meses do regime republicano na Madeira, as autoridades e a população foram ainda confrontadas com um grave surto de cólera-morbo que surgiu em outubro de 1910 e se prolongou até aos inícios de fevereiro do ano seguinte. A necessidade de impor medidas sanitárias enérgicas fez despoletar inúmeros focos de resistência às autoridades; aliados ao analfabetismo geral, às crendices e superstições, rapidamente fizeram daquelas bandeiras contra a nova situação política. Em vários pontos da Ilha, foram saqueadas residências de médicos e os profissionais de saúde foram acusados de terem espalhado a doença; nessa sequência, também as residências das autoridades sofreram ataques. A situação mais difícil terá ocorrido em Machico, a 11 de dezembro, após a novena a Nossa Senhora do Socorro. A população terá sido convocada e, descendo à vila, obrigou o administrador e o escrivão do concelho a acompanhá-la com a antiga bandeira da monarquia, em busca do subdelegado de saúde. A residência do médico foi saqueada, a farmácia anexa foi destruída e todos os livros encontrados foram queimados no quintal. Quando as forças militares do Funchal chegaram, no dia seguinte, no vapor Açor, comandadas pelo Ten. Alberto Artur Sarmento (1878-1953), a multidão já havia dispersado, deixando a bandeira monárquica hasteada no forte do cais de Machico. No relatório depois efetuado, considerou-se que a utilização da antiga bandeira teria sido motivada pela presença das chagas de Cristo e a convicção de que estas extinguiriam a epidemia.

A 14 de dezembro, Santa Cruz passou por uma situação idêntica, sendo os soldados recebidos com paus e pedras, e respondido a tiro. À tentativa de assalto à prisão camarária, no antigo forte de S. Francisco, foram utilizados engenhos explosivos e as forças da ordem prenderam mais de 20 populares. No dia seguinte, ocorreram também tumultos em Câmara de Lobos, tendo sido assaltado o pequeno hospital de isolamento e ameaçado com navalhas o pessoal ali em serviço, que fugiu para o Funchal. Tal como em Machico, a multidão apareceu com a bandeira da monarquia e com alguns elementos das filarmónicas locais.

No dia 26 de dezembro, foi a vez de ocorrerem tumultos no Funchal, tendo-se insubordinado algumas praças de Infantaria 27, que saíram do quartel do colégio para tomar de assalto o lazareto Gonçalo Aires. Como alguns desses elementos tinham tentado levar as forças aquarteladas em S. Lourenço a aderir ao movimento, houve tempo de deter a sublevação. Nessa sequência, veio a prender-se um sargento como mentor da sublevação, depois enviado para o continente. Em finais de dezembro, na canhoneira Zaire e, nos inícios de janeiro, no vapor Peninsular, chegaram reforços militares do continente, mas a epidemia extinguia-se pouco depois e, com a mesma, o motivo imediato dos desmandos.

Nestes primeiros meses, surgiram também atritos com o clero, especialmente o rural, registando-se a utilização do púlpito para fazer propaganda contra a nova situação, muito especialmente em reação à Lei de Separação do Estado das Igrejas. A ideologia anticlerical dos principais periódicos republicanos criou a imagem de uma sociedade rural antirrepublicana que não corresponde à verdade, pois regista-se somente um caso de efetiva resistência ao novo regime: Estreito de Câmara de Lobos. Acreditamos que muitos outros possam ter existido, mas não de uma resistência convictamente antirrepublicana e sim, tão-somente, de resistência à mudança, própria do mundo fechado que era o rural.

O caso do Estreito de Câmara de Lobos tornou-se conhecido e chegou aos vários periódicos da cidade. O pároco local, Miguel Pestana dos Reis, maldizia os jornais liberais, mandava cantar o hino à Carta Constitucional na saída das insígnias do Espírito Santo e ameaçava com a excomunhão e as penas do inferno os que ousassem assinar os periódicos republicanos. Mas estas informações foram vinculadas pelos jornais do Funchal e são difíceis de confirmar. Em maio de 1911, terá corrido a informação de que o pároco estava para ser chamado ao administrador do concelho e o povo amotinou-se, não o deixando sair. Em sequência, foram assaltadas as residências das autoridades locais, fugindo estas para o Funchal. No dia 5 de maio, a cidade, “boquiaberta”, assistiu à chegada de “400 vilões do Estreito de Câmara de Lobos, em pé de guerra e com ar de poucos amigos” (“O Povo do Estreito de Câmara de Lobos”, O Radical, Funchal, 6 mai. 1911, 1). Uma delegação dos mesmos foi recebida pelo governador civil, apresentando-lhe as seguintes reivindicações: manutenção do pároco Miguel Pestana dos Reis; fim das operações relativas ao registo civil na freguesia, devendo ser tudo “conforme a lei antiga” (Id., Ibid.); dispensa de licença da autoridade administrativa para as manifestações exteriores de culto religioso. A manifestação teve algum êxito porque, embora tivessem sido efetuadas prisões, o padre regressou à paróquia no dia 8, não se provando que tivesse tido qualquer envolvimento nos motins, nem no que os jornais do Funchal haviam noticiado.

Os periódicos continuaram a divulgar várias reações às determinações da República, mas estas foram abaixo do que seria de esperar e do que se passou no continente. Na sequência da Lei do Divórcio e da publicação da pastoral coletiva dos bispos contra a Lei de Separação do Estado das Igrejas, foram detidos dois párocos, o de S. Gonçalo e o de S.ta Luzia, acusados de haverem distribuído a pastoral, espantando-nos não terem sido presos mais. Referem os periódicos do Funchal que, nas festas desse mês, foram arvoradas “bandeiras velhas” no Arco da Calheta (“Graves Acontecimentos”, Trabalho e União, 8 jul. 1911, 1); mas, na verdade, conhecendo-se este tipo de festas e a distância até ao Funchal, compreende-se que dificilmente poderiam ter sido arvoradas outras bandeiras, pois a nova, certamente, não existia ainda por ali.

No ano seguinte, e já noutras circunstâncias, com um novo governador civil, ainda se registou um incidente, tendo sido proferida na igreja do colégio uma homilia, em finais de maio de 1912, com “alusões ofensivas do prestígio do Governo e da República”, sendo ordenada uma averiguação ao comissário de polícia, com vista à redação de um auto, para ser entregue ao poder judicial (ARM, Governo Civil, liv. 121, fl. 64). No entanto, não temos mais informações a esse respeito. O assunto era nacional, pelo que, já no ano anterior, o ministro da Justiça Bernardino Machado (1851-1944) oficiara a todos os prelados e governadores de dioceses do continente e ilhas adjacentes a apelar para o respeito aos poderes instituídos e a solicitar possíveis alterações ou modificações para aperfeiçoamento das leis já publicadas. O assunto deveria ser encaminhado para a sua sede própria, o Ministério da Justiça ou as Cortes Constituintes, pelo que não deveria ser discutido, de forma alguma, a partir dos púlpitos das igrejas.

A necessidade de impor à força o novo enquadramento político, institucional e jurídico, com atitudes porventura escusadas, criara logo um certo mal-estar. O periódico O Povo, a 8 de outubro de 1910, refere que “um grupo de sargentos do regimento de Infantaria 27” tinha manifestado ao comandante o “desejo de que a coroa que encimava a porta principal do regimento”, virada à R. do Castanheiro, fosse retirada e, “à 1 hora da tarde, foi destruída pela picareta esse troféu da monarquia morta” (O Povo, Funchal, 8 out. 1910). No mesmo dia, o Diário de Notícias do Funchal informava que também tinham sido destruídas à picareta as coroas que encimavam as portas do palácio de S. Lourenço, da fortaleza de Santiago e da Alfândega do Funchal. No dia 12, noticiou que se pensava ainda “eliminar pela picareta demolidora a coroa e as esferas armilares do torreão do palácio de São Lourenço”(DN, Funchal, 12 out. 1910, 1). Pedia, assim, que, “em nome da estatística arqueológica e histórica [...] se suspenda a sua ação destruidora”, pois a conservação de tais emblemas em nada contrariava a instalação das novas instituições (Id., Ibid.).

Com a retirada das armas reais da porta de S. Lourenço, também a imagem do santo que encimava o portal foi tirada e partida, embora retornasse ao seu lugar, depois de reconstruída e de se fazer uma cabeça nova, dado a original nunca ter sido encontrada. É voz corrente que os retratos dos antigos governadores que estavam no interior do palácio de S. Lourenço tinham sido rasgados à baioneta pelos marinheiros do cruzador Almirante Reis, e que teriam sido feitos outros desacatos, difíceis de comprovar, mais tarde. Grande parte do recheio que ali se encontra veio de Lisboa por volta de 1939 (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), tendo outro tanto sido adquirido e doado por famílias madeirenses, pelo que não é fácil saber como era o seu interior na altura dos acontecimentos expostos.

A força e irreverência de alguns dos elementos mais novos, sobressaindo em muitos um forte anticlericalismo, levaram a clivagens no seio dos republicanos, num curto espaço de tempo. O primeiro conflito foi desencadeado nos finais de dezembro com uma notícia no periódico local O Povo a criticar o presidente da comissão administrativa da Câmara do Funchal Afonso Vieira de Andrade, acusando-o de ceder às pressões da Igreja para não demolir imediatamente a capela e o portão dos varadouros, informação que partira de Pestana Júnior, administrador do concelho e diretor daquele periódico. O arco dos varadouros e a capela eram dados como estando algo em ruínas e considerados sem qualquer valor como “monumento”, entendendo-se ser imprescindível a demolição do conjunto para as obras de continuação da R. João Esmeraldo e para a higiene da cidade (Portão dos varadouros). A comissão administrativa da Câmara apresentou a demissão em bloco e o governador do distrito colocou-se do seu lado, pedindo-lhes que se mantivessem em funções até à resolução do problema. O portão dos varadouros e a capela anexa só foram demolidos em abril de 1911, transferindo-se o altar desse templo para a sacristia velha da Sé do Funchal. Tendo a epidemia sido debelada em janeiro, não se vê outra razão para a demolição em abril senão a aproximação das eleições e o aceso debate político então em curso (Eleições na Primeira República).

Com a clivagem progressiva das hostes republicanas, foi convocada uma reunião para S. Lourenço, realizada a 5 de janeiro de 1911, tendo a maioria dos velhos membros do PRM ficado lado do governador e da comissão da Câmara. Alfredo de Magalhães, responsável pelas medidas de controlo e combate do surto epidémico, pediu alguma contenção. Compreendia a energia e a insubordinação da mocidade, mas entendia também que, num meio como o da Madeira, “retardado e com pouca Cultura democrática”, se impunha aos “mais fogosos e irreverentes o dever […] de não pulverizar ou até desunir” o PRM (“Reunião das Comissões Republicanas do Funchal”, O Povo, Funchal, 7 jan. 1911, 1). Era um recado quase explícito para o jovem e arrebatado Pestana Júnior, chamando-o à disciplina partidária, tendo o mesmo respondido que não aceitava esse tipo de recomendações e que o que estava em causa era a liberdade de imprensa. Estavam abertas as hostilidades dentro do PRM e, em nome da articulação das administrações do concelho e da Câmara, enquanto decorria o combate à epidemia de cólera, por ordem do governador, Pestana Júnior ficava suspenso, por um prazo de 30 dias. A 16 de janeiro, Pestana Júnior informou oficialmente que, nessas condições, apresentava a sua demissão, “pura e simples”, mas não abdicava da sua inteira liberdade para proceder como entendesse (ARM, Governo Civil, liv. 299, fl. 36v.). A 21 de janeiro, a direção do jornal O Povo voltou a ser entregue a Azevedo Ramos.

A saída de Manuel Gregório Pestana Júnior da administração do concelho marcou o aparecimento da primeira cisão nos quadros republicanos, aglutinando-se à sua volta um certo número de apoiantes, em especial, alguns médicos da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal que trabalhavam no controlo da epidemia. Assim, nasceu o grupo dos novos, naturalmente, em oposição ao governador e aos antigos republicanos. A 9 de fevereiro de 1911, surgiu O Radical, dirigido por Pestana Júnior e propriedade de Gonçalves Preto, em cujo escritório decorreram as primeiras reuniões. No mesmo mês, constituiu-se o Grupo Democrático, com 15 elementos, entre os quais alguns ex-regeneradores e, em maio, estavam lançadas as bases para a constituição do Centro Republicano Democrático.

O título académico dos elementos do Centro Republicano Democrático, designados por “os novos”, valeu-lhes o nome jocoso de “Centro dos Doutores” ou “doitores”, por corruptela de “doutores”, dado serem na maior parte licenciados pela Escola Médico-Cirúrgica do Funchal. Do grupo inicial faziam parte José Varela (1874-1937), João Augusto de Freitas (1872-1942), António Rodrigues Capelo (1875-1940), Alfredo Justino Rodrigues (1872-1940), João Miguel Rodrigues da Silva (1882-1931), Paulo Perestrello Aragão (1872-1916), Abel Sabino de Freitas, António Augusto, e os líderes Pestana Júnior e Vasco Gonçalves Marques, antigo regenerador. Nas reuniões, realizadas no escritório de Gonçalves Preto, chegaram a participar o advogado Joaquim Carlos de Sousa (1867-1950), o jornalista Francisco António Ferreira (1870-1912), João Frederico Rego, Pedro Ferreira e Egídio Torcato Rodrigues (1877-1955), estes dois últimos, ex-regeneradores.

O primeiro alvo dos novos foi o presidente da comissão camarária, Afonso Vieira de Andrade, seguido pelo governador civil, acusado de não ouvir as diversas estruturas do PRM e de tomar decisões arbitrárias. Nas páginas de O Radical, colocava-se igualmente em causa o papel da Igreja, apoiando-se a proibição das festas religiosas, nomeadamente os grandes arraiais de Senhor dos Milagres de Machico ou de N.ª Sr.ª do Monte no Funchal, assunto que levantou larga polémica entre os republicanos. Os apoiantes de Manuel Augusto Martins não pouparam críticas aos dissidentes do Radical e do Centro Republicano Democrático, acusando-os de pseudorrepublicanismo e de contarem com antigos monárquicos nas suas fileiras, nomeadamente os médicos e advogados que tinham sido regeneradores. Deste modo, não apresentavam questões verdadeiramente novas, apenas deram novas roupagens a polémicas antigas.

Com a aproximação do ato eleitoral de 28 de maio, os dois grupos republicanos – de um lado, o Clube Republicano e o governador, apoiados pelo jornal O Povo, do outro, o Centro Republicano Democrático, apoiado pel’O Radical – mostraram claramente as suas divergências, vindo os monárquicos a optar por se abster de concorrer. Os republicanos mais antigos vieram a escolher como cabeça de lista Manuel de Arriaga (1840-1917), que levou algum tempo a aceitar voltar às lides parlamentares, só o fazendo por cortesia e gratidão para com a Ilha, enquanto o Centro Republicano Democrático escolheu Pestana Júnior e Francisco Correia Herédia Ribeira Brava, aparecendo o nome de Carlos Olavo Correia de Azevedo nas duas listas. O saldo das eleições foi muito negativo, em termos de repercussão local e mesmo nacional, tendo o ato eleitoral sido submetido à apreciação da Assembleia Constituinte e todos os dados sido revistos e escrutinados (Eleições na República).

As dissidências republicanas na Madeira, apoiadas pela ação combativa dos diferentes periódicos que foram surgindo, consolidaram-se e refletiram-se no fracionamento das estruturas organizativas. A eleição de Manuel de Arriaga como Presidente da República, a 25 de agosto, recebida com entusiasmo pela grande maioria dos republicanos insulares, foi uma exceção. A sua vitória foi consensual, atendendo ao passado político de primeiro deputado republicano eleito pela Madeira e de conhecedor das realidades insulares, pelo que a notícia foi recebida com alegria, elevando, de alguma forma, a autoestima republicana, então bastante abalada. Organizaram-se vários festejos, entre os quais, uma parada militar no antigo campo de D. Carlos, rebatizado com campo Almirante Reis.

Após as eleições, a 16 de junho, realizou-se uma assembleia-geral no Clube Republicano da Madeira, que elegeu novos corpos gerentes, vindo a presidência da assembleia a ser assumida por José Joaquim de Freitas, a direção por Romano de santa clara Gomes (1869-1949) e o conselho fiscal por Nicázio Azevedo Ramos. Este último afastou-se progressivamente da política ativa, passando a dedicar-se à investigação médica e à sua empresa. Mantiveram-se, nas várias estruturas, Manuel Jorge Pinto Correia, José Quirino de Castro, Manuel dos Passos Freitas, Henrique Augusto Rodrigues, Francisco da Conceição Rodrigues, Eduardo Olim Perestrello (1884-1947), João Tiago de Castro e outros.

No final do ano, foram feitas eleições idênticas eleições no Centro Republicano Democrático, passando a presidência e a vice-presidência da assembleia-geral, respetivamente, a António Filipe Noronha (c.1880-1963) e a Eduardo Nicolau de Ascensão (1883-c.1930), integrando a comissão política Francisco Correia Herédia Ribeira Brava, Pestana Júnior, Gonçalves Preto, José Varela, António Augusto da Silva Pereira e Vasco Gonçalves Marques. Nas várias comissões, ainda apareceram Alfredo Guilherme Rodrigues, Fernando Tolentino da Costa e outros. A abertura do Centro tinha contado com uma intervenção do antigo visconde da Ribeira Brava, que foi depois portador de uma moção para Afonso Costa onde era afirmada a simpatia pelo grupo parlamentar republicano democrático, gesto que o mesmo agradeceu, prontificando-se a prestar toda a solidariedade e proteção ao Centro.

Nos finais de 1911, as divergências relativamente à orientação política do distrito agudizaram-se, envolvendo mesmo os republicanos mais moderados. O Centro Manuel de Arriaga e o Clube Republicano da Madeira, bem como a maioria das comissões políticas, retiraram o apoio a Manuel Augusto Martins, em setembro. A Voz do Povo, órgão do Centro Manuel de Arriaga que já citámos e que começou a ser publicado a 1 de outubro, sob a direção de Frederico Pinto Coelho (1851-1916), liderava, com O Radical, as críticas ao governador. Acusavam-no de perseguições aos republicanos, de não ouvir as recomendações do PRM e de confiar cargos importantes a antigos monárquicos que não se haviam filiado neste partido. Nos finais de novembro, o Centro Republicano Manuel de Arriaga implorou ao presidente do Conselho de Ministros, por carta, que pusesse termo à situação.

As desilusões sentidas em relação à República, que apontavam que a Ilha estava “mais desprezada, mais abandonada ainda, do que no tempo da monarquia”, como se escreveu em A Voz do Povo (A Voz do Povo, Funchal, 28 nov. 1911), eram secundadas pelos demais periódicos. A 16 de setembro de 1911, através do semanário Trabalho e União, um grupo de socialistas lançou a ideia de constituir um centro socialista funchalense. Passara quase um ano sobre a implantação da República e continuava a situação dos monopólios, da carestia de vida, dos impostos e da falta de infraestruturas. A 23 de setembro, o mesmo periódico anunciou a abertura de inscrições, na sua redação, para o novo centro socialista.

O ano terminou com uma nova proposta política, anunciada pelo semanário O Povo, na sua edição de 31 de dezembro: a união republicana. As reuniões tinham começado nos meados do ano e, a 5 de outubro de 1912, foi lançado um “bissemanário da tarde”, O Tempo, com redação e administração na R. João Esmeraldo n.º 18, dirigido pelo Cap. de administração militar Manuel de Sousa Brasão (1884-1923), que passou a defender a orientação do novo partido União Republicana. Mas a exemplo do que sucedeu no continente, este periódico teve uma vida efémera na Madeira, embora ainda no final desse ano recebesse um nome de peso: em novembro, Manuel Augusto Martins assumiu a presidência da comissão executiva do jornal; vale a pena referir que, mais tarde, nas eleições de 1921, Sousa Brasão foi eleito deputado (Eleições na República). A 30 de abril de 1912, foi constituída uma comissão para organizar o Partido Evolucionista, que se tentou implantar na Ilha ao longo do ano. O Gov. Manuel Augusto Martins foi substituído, em fevereiro de 1912, pelo jovem Gov. João Maria de Santiago Prezado (1853-1927), que tomou posse a 4 de abril, regressando à direção de O Povo. O novo governador procedeu a uma série de exonerações e nomeações, sendo a comissão administrativa do Funchal entregue a um grupo do qual fazia parte Pestana Júnior e demais elementos do Centro Republicano Democrático, como Henrique Augusto Rodrigues (1856-1934) e Fernando Tolentino da Costa (1874-1957). A escolha não foi pacífica e o novo governador transformou-se num alvo do periódico O Povo, que o acusou de reintegrar pessoal demitido depois da República, afastando os antigos republicanos.

As críticas mantiveram-se nas nomeações seguintes, pois em agosto foram escolhidos os membros da Junta Agrícola da Madeira, responsável pelas Obras Públicas da Ilha: Pestana Júnior, Francisco Correia Herédia Ribeira Brava, João Augusto Freitas, Manuel José Varela, Eduardo Fernandes Alves, Manuel Jorge Pinto Correia, José Luciano Henriques, Francisco Andrade e Pedro José Lomelino. A escolha de Vasco Gonçalves Marques para a administração do concelho também não podia agradar aos velhos republicanos e ao periódico O Povo, até porque era um antigo regenerador e dado como delegado, na Madeira, dos deputados Ribeira Brava e Pestana Júnior. Em setembro, ocorreu a cisão no Centro Republicano Democrático, criando-se dois grupos, um liderado por António do Monte Varela (1865-1957) e pelo Cap. José Maria da Conceição Macedo (1865-1931), tendo sede na Ponta do Sol; outro liderado por Pestana Júnior, essencialmente, apoiando Afonso Costa, em cujo gabinete de advocacia aquele estagiara. A 5 de outubro, surgiu um novo semanário republicano, A Vida, em defesa do Partido Democrático Madeirense, fundado por Pestana Júnior. O grupo de António Varela respondeu com um outro periódico, A Democracia, que surgiu a 15 de abril e passou a ser o órgão de imprensa do Centro Republicano Democrático. Curiosamente, ambos os jornais chegaram a ocupar as mesmas instalações no Funchal, na R. Câmara Pestana n.º 25 (Partidos Políticos).

O Gov. Santiago Prezado acabou por se ver envolvido em toda esta turbulência, sendo acusado de falta de neutralidade por vários quadrantes e, alegando motivos de saúde, embora tivesse somente 27 anos de idade, pediu a demissão em março, sendo substituído pelo Maj. Alfredo Ernesto de Sá Cardoso (1864-1950). A situação política madeirense não melhorou com a mudança do governador, e a fragmentação dos republicanos prosseguiu. A 1 de maio de 1913, apareceu ainda o bissemanário O Liberal, com instalações na R. dos Ferreiros n.º 87, tendo como diretor o advogado Remígio Gil Spínola Barreto (1869-1963) e como editor e administrador o jovem médico José Maria Ferreira (1880-1966). Apresentava-se como um órgão do PRP e subscreveu, logicamente, as posições do novo governador. Poucos dias depois, Sá Cardoso nomeou Spínola Barreto como governador substituto. A família republicana madeirense apareceu, assim, dividida em três tendências, nas vésperas das eleições suplementares de 16 de novembro de 1913: os democráticos, apoiantes de Afonso Costa; os unionistas; os evolucionistas.

Os novos quadros republicanos, especialmente Ribeira Brava e Pestana Júnior, entre o Funchal e Lisboa, mas assessorados, no Funchal, por Vasco Gonçalves Marques e outros, desenvolveram um interessante trabalho de reformulação desta cidade, chamando à Madeira o Arqt. Miguel ventura terra (1866-1919). O projeto de melhoramentos que entregou logo em 1915 ainda deu uns tímidos primeiros passos, com a amputação do cunhal do baluarte do Castanheiro (fortaleza de S. Lourenço) para a ampliação da futura Av. Arriaga e com a demolição da cadeia camarária para a abertura do Lg. da Sé, mas a aproximação da Primeira Guerra Mundial, essencialmente, envolvendo uma grande potência marítima, que era a Inglaterra e outra continental, que era a Alemanha, levou a adiar os trabalhos. A entrada precipitada de Portugal nesse vasto conflito internacional também não resolveu as divergências internas republicanas, sendo necessárias algumas décadas para encontrar um caminho de estabilidade.

 

Rui Carita

(atualizado a 17.12.2017)

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