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gabinetes de leitura

Cidade aberta à presença de estrangeiros, nomeadamente Ingleses, o Funchal do séc. XIX nem sempre respondia às solicitações culturais de quem visitava a cidade. O madeirense era pouco letrado e os estrangeiros queixavam-se do facto de não haver livrarias na cidade. Referiam-se, porém, à existência de gabinetes de leitura, lugares onde podiam conviver, ler jornais e revistas ingleses, em clubes onde pagavam quotas. Estes gabinetes eram, então, de acesso privado. Alguns dos estrangeiros que falam da ilha da Madeira referem-se-lhes. Em 1840, Fitch Taylor regista a sua existência no relato que faz da sua viagem à volta do mundo. O mesmo acontece no texto A Winter in Madeira, de 1850. Estes gabinetes revelam-se uma necessidade dos Ingleses e são referenciados nos guias de viagem. O Clube Inglês disponibilizava aos seus membros, para além dos jornais e das revistas, livros de tipologia diversa – desde ensaios e trabalhos científicos até “literatura ligeira da época” (DIX, 1850, 90). Nos começos do séc. XIX, a biblioteca deste clube detinha cerca de 2000 títulos – afirma-o um guia para viajantes e para “inválidos”. Este Clube Inglês, fundado em 1832, também conhecido como “english rooms”, situava-se na R. da Alfândega, entre as duas entradas do Blandy Brothers (Banqueiros Lda.), segundo consta do guia para o visitante assinado por Gordon Brown, o que evidencia a clara importância que esta estrutura teria para suprir as necessidades dos visitantes. Mediante uma quota semestral de 15 dólares, os estrangeiros poderiam conviver, jogar cartas ou bilhar, assim como consultar os mais recentes jornais, periódicos e livros ingleses. O gabinete de leitura do Clube Português não tinha livros, mas apenas jornais e revistas, em português. Não obstante verificar-se um maior interesse e uma maior divulgação dos gabinetes de leitura que servem os turistas que descobrem a Ilha, a verdade é que há referências a associações mais abrangentes, onde a preocupação com a leitura começa a fazer-se sentir. Numa nota a “Instrução pública”, relativa ao período monárquico-liberal, Álvaro Rodrigues de Azevedo remete para dois clubes recreativos, criados por associações particulares, com gabinetes de leitura: o União, criado a 10 de março de 1836, na Pr. da Constituição; e o Funchalense, estabelecido “ao Carmo, mas desde muitos anos também, no palácio da rua do Peru”. Este autor, nas notas que apõe a Saudades da Terra, faz menção de outro gabinete, inserido na Associação Comercial, que se situava à entrada da cidade, assim como “o princípio de uma biblioteca no Grémio Recreativo dos Artistas” (FRUTUOSO, 1873, 804-805). Na realidade, os estatutos de 1836 da Associação Comercial do Funchal já permitiam o acesso a periódicos, mapas, folhetos, livros e notícias, abrindo caminho para a instalação de um gabinete de leitura que, tal como o seu congénere do Clube Inglês, funcionava como um centro de encontro e convívio entre os sócios e os visitantes. No inventário de 1884 desta Associação consta a existência do mobiliário do gabinete de leitura, não havendo referência a qualquer armário, móvel ou estante para arrumação de livros e jornais, que estariam guardados fora do alcance dos utilizadores, na sala de sessões. Em 1897, é aprovado o projeto de regulamento da biblioteca e do gabinete de leitura desta Associação, clarificando as funções de cada um: o gabinete de leitura teria apenas o catálogo das obras existentes na biblioteca, e jornais, que um amanuense distribuía e recolhia diariamente e que eram facultados, mediante bilhetes de requisição, quer a sócios da Associação, quer a assinantes do gabinete. Nesse espaço, não era permitido fazer barulho, fumar, “levar para fora […], extraviar, mutilar ou danificar os jornais ali expostos” (MELLO e CARITA, 2002, 164), cabendo ao diretor da biblioteca zelar pelo bom funcionamento do gabinete. O gabinete, cujo horário era das 06.00 h às 21.00 h, permanecia aberto até mais tarde nos dias da chegada dos navios de Lisboa e dos paquetes ingleses que traziam notícias do mundo. Não temos conhecimento se as outras Associações que, entretanto, se formaram na cidade do Funchal teriam serviço semelhante. Na realidade, os gabinetes de leitura abriam as portas para a criação das bibliotecas públicas. No Funchal, à semelhança do que acontecia em outras cidades – sobretudo nas capitais dos distritos –, a Câmara fundou uma biblioteca pública, no dia 12 de janeiro de 1838, com um acervo constituído pelos 193 volumes da Encyclopedia Methodica, comprada aos herdeiros do conde de Canavial, e, em 1844, o município do Funchal solicita alguns livros do depósito das bibliotecas dos conventos extintos, tendo recebido, em 1863, 3060 volumes, em latim, português, francês, italiano e inglês. Um relatório americano dá conta dessa Biblioteca Municipal, em 1893. No começo do séc. XXI, as bibliotecas públicas oferecem serviços similares, agora gratuitos, apesar da necessidade de aquisição de um cartão de leitor/utilizador, que permite o acesso aos espaços das bibliotecas e dos centros de documentação, bem como à leitura, empréstimo e reserva de obras, à utilização de computadores e acesso à Internet, à visualização de conteúdos audiovisuais, entre outros serviços.     Graça Alves (atualizado a 01.02.2017)

História da Educação Literatura Sociedade e Comunicação Social

cinco artistas vagabundos (os)

A 2 de agosto de 1916, o Diário da Madeira anunciava, para breve, o aparecimento nas suas páginas de “uma interessante narrativa que sairá aos folhetins” e cuja autoria era atribuída a “cinco rapazes d’esta terra, bons cultivadores de literatura” (Diário da Madeira, 2 ago 1916). Entre 4 de agosto e 12 de setembro de 1916, este diário funchalense dava à estampa vários capítulos desse folhetim, provocatoriamente intitulado Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos. Contada por 5 Autores Absurdos e Todos Verdadeiros. Esta novela constitui um interessante contributo madeirense para o debate estético e ideológico que na déc. de 1910 decorria em Portugal, sobretudo depois da publicação de Orpheu em 1915, mas também nos principais centros culturais da Europa, então assombrados pela Primeira Guerra Mundial e pelas propostas modernistas de vanguarda. Embora praticamente esquecida nas páginas do Diário da Madeira ao longo de todo o séc. XX e só reeditada no início do séc. XXI, Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos. Contada por 5 Autores Absurdos e Todos Verdadeiros foi, porém, noticiada quer por Cabral do Nascimento logo em 1917, quer por Alfredo de Freitas Branco, já em 1953. O primeiro fê-lo na lista bibliográfica de obras de sua autoria que publicou na abertura do livro de poesia Hora de Noa, editado no ano seguinte à edição do folhetim. Nascimento assume-se aí como um dos coautores dessa narrativa, identificando os companheiros que, com ele, haviam assinado o folhetim: A. de Freitas Branco, Álvaro Manso, Luiz Vieira de Castro e Manoel de Lins. Alfredo de Freitas Branco, por sua vez e então já assinando como Visconde do Porto da Cruz, reportava-se, no seu Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, a esses “escritos” “muito revolucionários” publicados no Diário da Madeira e que “fizeram sensação” no verão funchalense de 1916, sobretudo “pela extravagância e irreverência”, embora apresentando uma lista autoral diferente da enunciada por Cabral do Nascimento, em 1917. De acordo com Freitas Branco, “Os Cinco Artistas Vagabundos” tinham sido “um grupo de estudantes universitários e de escritores” composto por “João Cabral do Nascimento, Luís Vieira de Castro, Álvaro Manso de Sousa, Rodolfo Ferreira e eu” (PORTO DA CRUZ, 1953, 8-9). Verificamos, assim, que a complexidade conferida à novela dos Cinco Artistas Vagabundos, desde logo pelo carácter coautoral da sua composição e pela estrutura fragmentária da publicação em folhetim, será adensada por três irónicas ocorrências que se prendem com as assinaturas autorais: (1) o facto de não serem coincidentes as indicações autorais dadas por Cabral do Nascimento e Alfredo de Freitas Branco, pois enquanto este não refere Manoel de Lins, identifica Rodolfo Ferreira, nome que, por sua vez, não está presente na lista de Nascimento; (2) o facto de nenhum destes dois últimos nomes ser detetável em trabalhos de referência que se tenham ocupado da identificação de autores do sistema literário madeirense; (3) o facto de nenhum dos fascículos do folhetim ser afinal assinado por qualquer dos nomes identificados por Nascimento e pelo Visconde do Porto da Cruz. Por conseguinte, duas questões se colocam relativamente à autoria deste folhetim: quem é Manoel de Lins e/ou Rodolfo Ferreira? E quem, de entre as duas listas de escritores apresentadas por Cabral do Nascimento e Alfredo de Freitas Branco, é de facto responsável pela criação de cada uma das figuras autorais que assinam a Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos? As respostas a estas questões exigem a leitura atenta do próprio folhetim, assim como o cruzamento dos seus fragmentos com outros textos e trabalhos artísticos. Ao longo do verão de 1916, os funchalenses foram conhecendo as escritas de cinco supostos novos autores que, desde o título do folhetim autobiográfico (semificcional, acrescente-se, desde já), se autodefiniam como “vagabundos, absurdos, mas todos verdadeiros”, sendo aqui de destacar o duplo sentido de “vagabundo”, significando andarilho à deriva, mas também mendigo, marginal que se exclui e/ou é excluído do meio social, económico e cultural em que vive. Os seus nomes estranhos e os parcos dados autobiográficos referidos na novela conferem a alguns dos “artistas vagabundos” uma nacionalidade estrangeira, evidenciando-se nas suas escritas e nos seus percursos de vida um manifesto registo cosmopolita e moderno: Ismael de Bó é um poeta luso-judeu; Enrick Porchá, um contista húngaro; Rogério Lehusen, um músico experimentalista sem nacionalidade atribuída, mas não português em exclusivo, dado o sobrenome; Diogo de Eiró, um escritor saxão; e Ymário Koman ou Imário Koman, o “paradoxal e estranho desenhador polaco”, como a ele se refere Ismael de Bó numa passagem do folhetim (BÓ, 1916a, 2). O conjunto destes cinco artistas acompanha a líder do grupo, Collecta de Nylves, uma “femme artiste” atenta a tudo o que de novo ocorria no mundo, uma intelectual com vida amorosa e social pouco convencional e, por conseguinte, representando na fábula a figura da emancipada mulher moderna, enquadrável na vanguarda da primeira fase dos movimentos feministas ocidentais que na déc. de 1910 se consolidavam também em Portugal. Desta forma, a novela dá conta de uma suposta aventura cosmopolita, de deriva excêntrica e transnacional, realizada pelo grupo dos seis intelectuais diletantes que, entediados e sempre em busca de experiências-limite e do novo, percorrem algumas das mais relevantes metrópoles da Europa, do Médio Oriente, da Índia e da América Latina, assim como espaços que, desde 1914, se encontravam intimamente associados à Grande Guerra. Alternadamente, os “cinco artistas vagabundos” assinam 16 capítulos dessa novela, distribuídos de forma irregular por quatro secções, destacadas no Diário da Madeira como tratando-se de três volumes e um livro. Acresce a esses 16 capítulos um último fascículo autónomo, o qual, na economia da narrativa, funciona como epílogo, justamente por não surgir numerado e por narrar o suicídio de um dos artistas, Enrick Porchá, incidente que justifica o fim da própria novela (cf. Fig. 1). Com o folhetim, dialogam, no entanto, outros textos: uns atribuídos às figuras autorais que assinam a novela; outros aos autores madeirenses que efetivamente as criaram (Cabral do Nascimento, Funchal, 1897-Lisboa, 1978; Luiz Vieira de Castro, Funchal, 1898-Lisboa, 1954; Álvaro Manso, Funchal, 1896-1953; e Alfredo de Freitas Branco, Funchal, 1890-1962; lista a que deveremos acrescentar Ernesto Gonçalves, Funchal, 1898-1982, pelas razões que adiante apontaremos). Estabelece-se, deste modo, uma constelação de textos, cuja leitura exige a adoção de um paradigma hipertextual, sobretudo quando se pretende desvendar a identidade do criador de cada um dos cinco artistas vagabundos. A esta constelação pertence, para além dos textos acima indicados, um outro conjunto de textos em número considerável, com autorias dificilmente identificáveis, e que foram também publicados no Diário da Madeira, entre 1916 e 1918 (cf. Fig. 2). Novela Romântica e Burlesca apresenta-se, portanto, como uma narrativa autobiográfica, num processo criativo altamente irónico, cujo sarcasmo já se anuncia no título. Esta ironia sarcástica exigirá do leitor uma redobrada atenção crítica, manifestando-se, desde logo, no caráter autobiográfico da narrativa conjunta, na medida em que alguns dos dados biográficos atribuídos aos “cinco artistas vagabundos” são totalmente ficcionais, enquanto outros se apresentam como acontecimentos/vivências efetivamente experienciados por Cabral do Nascimento, Ernesto Gonçalves, Luís Vieira de Castro, Alfredo de Freitas Branco e Álvaro Manso de Sousa. Ismael de Bó, já apresentado por Cabral do Nascimento quer em As Três princesas Mortas num Palácio em Ruínas (NASCIMENTO, 1916b, 21), quer em “Carta a alguém que nunca viu a Madeira. Ismael de Bó – Judeu errante da Belleza”, surge no folhetim ora como um poeta luso-judeu que compõe versos sobre “Les trois Princesses [qui] sont mortes” (BÓ, 1916a, 2), ora como autor do polémico livro Princesses of Thule (em suposta tradução inglesa) e que, para além disso, se encontrava implicado no debate sobre as vanguardas modernistas, protagonizado, em Portugal, pelo grupo de Orpheu. Quer a referência à origem judaica de Ismael de Bó, quer as irónicas citações da sua obra poética, nas quais encontramos uma evidente alusão a As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas, primeiro livro de Cabral do Nascimento, editado em 1916, onde as protagonistas são apontadas como sendo também “as três Princesas de Tule” (NASCIMENTO, 1916b, 10), quer ainda a referência à participação desse “artista vagabundo” nas polémicas em torno das vanguardas, conduzem a uma identificação parcial de Ismael de Bó com João Cabral do Nascimento. Isto não invalida, porém, que a maior parte das aventuras narradas no folhetim e que são protagonizadas pelas personagens que o assinam sejam, de facto, ficcionais. Quanto ao “juvenilíssimo Diogo” de Eiró, este “escritor saxe” que, “uma vez em Coimbra, se declarará integralista fervoroso”, é apontado como um autor fascinado pelo “seu querido Oscar Wilde” (BÓ, 1916a, 2). Além disto, no primeiro capítulo do vol. II do folhetim, cuja autoria é atribuída ao próprio Eiró, este surge como o “gentil” anfitrião dos restantes “artistas vagabundos”: acolhe-os, durante “um mês divino”, no seu “sumptuoso palácio” indiano de Tuticorin, embora no “derradeiro” momento da partida, tenha sido tomado pela “miséria exquisita e aristocratica da sua nevrose”, a qual o leva a incendiar o próprio palácio (EIRÓ, 1916b, 2). Os atributos de “juvenilíssimo”, de “integralista fervoroso” e de anfitrião/mecenas dos “cinco artistas vagabundos” levam-nos a associar a figura de Diogo de Eiró a Luiz Vieira de Castro. Lembremos a atividade mecenática e filantrópica desenvolvida pela família Vieira de Castro nas primeiras décadas do séc. XX na Madeira, sobretudo pelo pai, Henrique Viera de Castro; e não esqueçamos que Luiz Vieira de Castro, com 18 anos em 1916, era, na verdade, um dos mais novos do grupo criador do folhetim, tendo desenvolvido, nos seus anos de estudante em Coimbra, uma intensa atividade política que o levaria, e.g., em 1921, a fundar o semanário monárquico Restauração, uma vez mais em parceria com Cabral do Nascimento e Ernesto Gonçalves, entre outros jovens madeirenses. Por outro lado, um artigo de Cabral do Nascimento, publicado em 1918 no Diário da Madeira, confirmará a veracidade dessa pista em torno da identidade do criador da personalidade ficcional Diogo de Eiró. Indicando Luiz Vieira de Castro como um admirador de Oscar Wilde e como autor de três livros – Nebuloses (1916), Livro estranho (1916) e Civilisados (1918) –, Cabral do Nascimento destacará, neste último, o “melhor trabalho” de Vieira de Castro: “o conto ‘A ultima labareda’” que, como declara Nascimento, era “o entrecho da nossa novela de colaboração, dos cinco artistas vagabundos e absurdos” (CABRAL, 1918, 1). Deste modo, o autor de As Três Princesas Mortas… confere a Luiz Vieira de Castro o engendramento do estranho episódio do incêndio do palácio de Tuticorin, reconhecendo no escritor de Civilisados, implicitamente, também o criador da figura autoral de Diogo Eiró. Por seu lado, Rogério Lehusen surge na novela como o músico, “o compositor genial e rebelde, duma incompreensível transbordação de talento”, que estaria a preparar com Ismael de Bó uma “opera quase a terminar” (BÓ, 1916a, 2). De entre os autores madeirenses apontados por Cabral do Nascimento e Alfredo de Freitas Branco como responsáveis pela criação dos “cinco artistas vagabundos”, o único que aparece implicado nas artes performativas é Álvaro Manso de Sousa. Luiz Peter Clode lembra que, para além de escritor e arquivista, este intelectual funchalense se dedicava “também à música e teatro”, tendo deixado, entre outras obras, quer “algumas peças de teatro para amadores, como dois “Vaudevilles”, quer “letra e música sacra” (CLODE, 1983, 299). Mas outro facto reforça a identificação de Rogério Lehusen com Álvaro Manso. Lehusen é apresentado no folhetim como criador que trabalha em parceria com Ismael de Bó, o “artista vagabundo” criado/identificado com Cabral do Nascimento. Esta referência pode ser lida como uma irónica transposição para a fábula da relação de amizade e de trabalho conjunto que, de facto, Álvaro Manso e Cabral do Nascimento desenvolveram entre si, desde muito cedo e ao longo da vida. Cooperaram na fundação do Arquivo Distrital do Funchal, nos anos de 1920 e 1930; e, no início da déc. de 1920, e.g., publicaram no semanário Restauração uma narrativa conjunta, também editada em folhetim. No caso de Ymário Koman ou Imário Koman, a novela apresenta-o como um “paradoxal e estranho desenhador polaco”, compositor de uma obra intitulada Bailarina Nua, na qual a excelência da sua criação plástica consegue dar visibilidade ao “ritmo oriental das curvas coreográficas e serenas” dessa bailarina (BÓ, 1916a, 2). As notas biobibliográficas que hoje dão conta do percurso de Cabral do Nascimento, Alfredo de Freitas Branco, Luiz Vieira de Castro e Álvaro Manso de Sousa não nos indicam que estes intelectuais insulares tenham desenvolvido qualquer trabalho criativo na área das artes visuais. Este facto leva-nos a supor que Ymário Koman, o responsável pela representação verbal (mas quase plástica, pela capacidade sugestiva do seu discurso descritivo) do incêndio do palácio de Tuticorin, é o “artista vagabundo” criado por Rodolfo Ferreira ou por Manoel de Lins. A respeito deste último, importa sublinhar que o seu nome surge também inscrito em Novela Romântica e Burlesca como o de uma personagem: Manoel de Lins é o “escritor” evocado por Collecta de Nylves, por ter inspirado uma “paixão dolorosa” nesta mulher “inteligente” e só comparável a “Ana Clara” (BÓ, 1916a, 2). O cruzamento deste facto com o desconhecimento de qualquer informação que comprove a existência empírica de um cidadão com o nome Manoel de Lins indicia estarmos, também neste caso, perante uma ficcionalização autoral, inscrita na novela, como acontece com os “cinco artistas vagabundos”. Quanto a Ymário Koman, será Cabral do Nascimento quem, uma vez mais, decifra o mistério da sua criação. No mesmo artigo de 1918 em que atribui a Luiz Vieira de Castro a autoria de Diogo de Eiró, Cabral do Nascimento aplaudirá a qualidade da escrita de Ernesto Gonçalves, classificando-o como um dos mais notáveis escritores da “novíssima geração” literária madeirense. Isto, sobretudo, por encontrar em Ernesto Gonçalves “um pintor, um debuxista botticelino, um Moreau”, caracterização que, de imediato, nos faz evocar as capacidades plásticas da escrita assinada por Ymário Koman. E, prosseguindo no comentário à obra deste “novíssimo” madeirense, acabará por documentar o elogio dirigido a Ernesto Gonçalves transcrevendo um fragmento que atribui a este autor, mas sobre o qual se apressa a anotar, não sem ironia: “Duma novela que publicámos neste jornal, a colaboração dele sobressai com notável relevo. Certamente passou despercebida, mas transcrevemos-lhe um trecho, para documentação do que vimos dizendo […]. O período citado, escrito há dois anos – teria o autor 18 de idade – revela qualidades tão notáveis” (CABRAL, 1918, 1). Se a citação feita por Cabral do Nascimento no Diário da Madeira, de facto, documentava a qualidade da escrita agora atribuída a Ernesto Gonçalves, o irónico comentário do autor de Hora de Noa a respeito dessa citação deve também ser lido como testemunho que documenta a identificação do criador de Ymário Koman. Na verdade, o fragmento textual atribuído, em 1918, a Ernesto Gonçalves, pelo seu amigo Cabral do Nascimento, corresponde a uma passagem de Novela Romântica e Burlesca, mais concretamente, a um fragmento do cap. II do vol. II, assinado por Imário Koman. Uma coincidência que confirma, assim, a afirmação, também expressa por Cabral do Nascimento, de que Ernesto Gonçalves fora um dos ativos participantes no projeto folhetinesco dos “cinco artistas” “absurdos”, mas “todos verdadeiros”. Resta Enrick Porchá, o contista “incoerente”, sempre “achando um encanto superior na elegância perversa de irritar a burguesia” (BÓ, 1916a, 2), cuja pena ridicularizará, de acordo com a fábula da novela, os britânicos James Cook e Edward Trifler (personagens que, não inocentemente, surgem assim nomeadas na novela) e cujo perfil, até por exclusão de partes, permite associá-lo ao jovem polemista Alfredo de Freitas Branco, que desde cedo, mas sobretudo durante os anos da Segunda Guerra Mundial, viria a assumir-se como um inequívoco germanófilo. Confirma-se assim que os “cinco artistas vagabundos”, autores absurdos da Novela Romântica e Burlesca, foram, de facto, figuras autorais identificáveis, em parte, com “5 autores” “verdadeiros”: Cabral do Nascimento, Alfredo de Freitas Branco, Álvaro Manso de Sousa, Luiz Vieira de Castro e Ernesto Gonçalves. Por seu turno, o carácter absurdo que os próprios autores atribuem à sua escrita narrativa não deve ser descontextualizado, mas antes lido como mais uma das provocações irónicas e questionadoras que marcam a ação cultural deste grupo de jovens intelectuais madeirenses, sobretudo na segunda metade da déc. de 1910, quando nos principais centros culturais portugueses e europeus se discutiam a(s) modernidade(s) e os modernismos. Os “artistas vagabundos”, em 1916, nas páginas do Diário da Madeira e antecipando um pouco o que, entre 1918 e 1933, os Artistas Independentes experimentariam, nas suas tertúlias do café Golden, procuravam criar condições para, também na Madeira, se discutirem esses problemas e essas propostas modernas. Não por acaso, dois dos “artistas vagabundos” (João Cabral do Nascimento e Ernesto Gonçalves) fizeram também parte do grupo eclético dos Artistas Independentes, que integraria outros criadores insulares e visitantes temporários da Madeira: Henrique Franco, Francisco Franco, Alfredo Miguéis, Emanuel Ribeiro e João Abel Manta.   [table id=80 /]   [table id=81 /]     Ana Salgueiro (atualizado a 28.01.2017)    

Literatura Madeira Cultural

câmara, joão de brito

João Brito de Câmara foi poeta e advogado, colaborou com a revista Presença e apoiou, a partir da Madeira, as candidaturas de Norton de Matos e Humberto Delgado à presidência da República. O homem que dá o nome a uma das maiores ruas do Funchal escreveu vários livros de poesia e ensaios sobre advocacia, e conduziu uma das mais importantes entrevistas ao poeta Edmundo Bettencourt, publicada em capítulos durante vários meses no suplemento literário do jornal Eco do Funchal, sob o título “O Modernismo em Portugal”. João Brito Câmara nasceu em Lisboa em 1909, mas era filho de madeirenses e, à exceção dos tempos de estudante em Coimbra, viveu sempre na Madeira. Concluiu o liceu no Funchal e logo depois, em 1927, inscreveu-se em Direito na Universidade de Coimbra, onde completou o curso com 17 valores. Durante os anos de estudante foi presidente da Associação Académica de Coimbra. Recém-licenciado, iniciou a vida profissional como delegado do procurador da República, mas exerceu esta função por pouco tempo. Em Outubro de 1932, abriu o seu escritório de advogado. Da carreira na advocacia, deixou dois livros publicados sobre dois casos comerciais. Antes de morrer, tinha em preparação um livro a que deu o título de Trabalhos e Casos. Em 1953, foi eleito delegado da Ordem dos Advogados na Madeira. João Brito Câmara considerava que as questões jurídicas na Madeira decorriam de “graves deficiências sociais ou da ineficácia dos serviços de investigação” (TEIXEIRA, 2002, 299). Durante o regime salazarista, o advogado e homem das letras assumiu-se como político. Já em 1931, quando estava em Coimbra, com o meio académico incendiado pela guerra entre republicanos, independentes e integralistas, tinha sido eleito presidente da Associação Académica. Regressado à Madeira, manteve-se como oposicionista a Oliveira Salazar. A 14 de abril de 1960 chegou a ser detido no Funchal para averiguações devido às suas posições políticas. Foi libertado em julho, depois de pagar uma fiança. O processo acabou por ser arquivado. O interesse pela poesia e pelo jornalismo começou quando ainda era aluno do liceu, altura em que fundou, com Pedro Gonçalves Preto e Nuno Rodrigues dos Santos, o quinzenário Alma Nova, da academia do Funchal, cujos colaboradores eram todos alunos do liceu. O jornal só teve três números, mas influenciou o jornalismo e as letras madeirenses. Pedro Gonçalves Preto foi depois diretor do jornal humorístico Re-nhau-nhau e João Brito Câmara seria, além de poeta e advogado, um dinamizador cultural. Enquanto delegado da Associação Portuguesa de Escritores na Madeira, promoveu saraus artísticos, exposições de arte e inscreveu muitos conterrâneos nesta associação, sem olhar às simpatias políticas de cada um. Nos anos 40 e 50 do séc. XX, grande parte da vida cultural da Madeira gira em torno do jornal Eco do Funchal, fundado em 1941. O Eco foi um importante meio de divulgação de poetas madeirenses como Herberto Hélder e Florival dos Passos. Brito Câmara foi diretor do suplemento literário Eco Literário deste jornal, e foi nessa qualidade que entrevistou Edmundo Bettencourt. O primeiro livro de poesia de João Brito Câmara foi publicado em 1927, com o título Manhã e prefácio de João Cabral do Nascimento. Nesse prefácio louvam-se as qualidades do livro que não cedeu à “velharia tão espalhada entre a gente nova que dá pelo nome de modernismo” (CÂMARA, 1967, 21). Sublinha-se ainda a qualidade do conteúdo, escrito por um rapaz de 18 anos, e prevê-se que o escritor terá um futuro auspicioso nas letras: “Por certo que estamos em face de uma criatura que pensa: aí labuta o gérmen de futuras especulações filosóficas, uma alma que interroga Deus sôfrega de conhecer o porquê das coisas e o mistério universal em que a humanidade se debate. Num rapaz de 18 anos, idade em que os seus confrades fazem da poesia um divertido xadrez de palavras sonoras, esta preocupação mental dá-nos o direito de profetizar para João de Brito alguma coisa mais que um banal futuro de versejador esperto” (CÂMARA, 1967, 22). Em Coimbra, o madeirense juntou-se ao grupo de estudantes universitários fundadores da Presença. Dois dos seus poemas foram publicados nesta revista, onde também escrevia Miguel Torga: “Dolência”, que está incluído na História da Poesia Portuguesa de João Gaspar Simões como ícone da “Geração Presença”, “exprime uma dimensão introspetiva no que diz respeito a sentimentos de mágoa” (TEIXEIRA, 2002, 311); e “Paisagem”, que “pode ser considerado o exemplo da diversidade presencista”. (TEIXEIRA, 2002, 313). No seu segundo livro, Relance, publicado em 1942, nota-se a evolução do olhar de Brito Câmara de uma perspetiva individualista para uma perspetiva social, com nítidas influências do neorrealismo, fruto do que via passar pelo tribunal. Além de poesia de intervenção, João Brito Câmara escreveu outros géneros literários. O Auto da Lenda é um poemeto que recria a lenda de Machim, os seus amores contrariados e a descoberta da Madeira. Esta ideia terá nascido de uma conversa com o famoso médico psiquiatra Aníbal Faria, seu contemporâneo. O poeta nunca escondeu o fascínio e a paixão pela Madeira. Ao longo da vida recusou vários convites para seguir a carreira de professor universitário em Coimbra, e, mais tarde, recusou a possibilidade de ir trabalhar para Curaçau. A sua inspiração vinha da Ilha, do mar, da terra, e quando se retirava para a casa de campo na Choupana tinha esta vista da Madeira. Esta casa serviu de título a um dos seus livros, Casa do Alto. Era o seu refúgio e também o espaço onde acolhia os amigos de passagem pela Madeira, nos quais se incluíam personalidades importantes das letras e da política dos anos 40 e 50. Alguns nomes destes amigos figuram na compilação Poesias Completas, de 1967. Este livro é uma despedida do poeta, que estava doente quando o escreveu e sabia que ia morrer. Os poemas foram dedicados a amigos como Mário Soares, Branquinho da Fonseca, Maria Lamas, Miguel Torga, entre outros. O prefácio, de Fernando Namora, tem como título “Um Poeta da Ilha da Madeira”; no seu desenvolvimento, consolida-se a ideia de este poeta ser “ilhéu no cerne e no timbre da sua poesia” (CÂMARA, 1967, 10). Fernando Namora, que era visita da casa da Choupana, sublinhava no mesmo prefácio que o “mar é uma estrada que chama o ilhéu para todos os continentes, mas também é o fosso que o limita; por mais que esse ignoto penedo rodeado de abismo imite e ouça o mundo, a ansiedade sente-se ali aprisionada” (CÂMARA, 1967, 11). Namora diz ainda sobre João Brito Câmara que este é um poeta sem grandes ousadias, mas que a sua poesia mantém uma toada única de um homem a lutar contra a tentação de se confinar a si mesmo: “O ilhéu pode misturar-se com as vidas que ao seu desterro arribam todos os dias do ano, pode sentir como seus os problemas alheios, mas o mar é sempre um cerco. O ambiente, por muito que a inquietude o dilate, asfixia a solidão” (CÂMARA, 1967, 11) João Brito Câmara morreu a 26 de Dezembro de 1967, no primeiro dia da oitava do Natal, antes de ver o seu último livro publicado. Na entrevista concedida ao Comércio do Funchal e publicada um ano após a sua morte, o poeta lamentava a morte que sabia aproximar-se dado o seu estado de saúde: “Eu gostaria de viver alguns anos mais. Creio que para o ano que vem já não verei estas árvores. Você não conhece ainda esta obsessão de voltar aos lugares que são nossos e que em breve estarão já perdidos” (TEIXEIRA, 2002, 290). Morreu aos 59 anos, na Madeira, e deixa escrito no poema “Resquício” o seu último desejo: “Mais por Beleza do que por Fama / Então – Senhor! – só peço que reste ao menos / Um verso só do meu rude canto!” Obras de João Brito da Câmara: Manhã (1927); Relance (1942); Auto da Lenda (1943); Lei, Verdade, Justiça! (História Breve de uma “Taluda”... Em Branco) (1950); Duma Gerência Técnica à Incompetência Absoluta (de Premeio com a Má Fé Contratual e a Renúncia) (1960); Casa do Alto (1967); Poesias Completas (1967).   Marta Caires (atualizado a 25.01.2017)

Literatura Personalidades

araújo, norberto de

  Norberto Moreira de Araújo, escritor, dramaturgo e jornalista, nasceu em Lisboa, em 1889, e faleceu na mesma cidade, a 24 de novembro de 1952. Autor de vasta bibliografia, que inclui livros técnicos sobre as artes gráficas, como Da Iluminura à Tricomia (1915), e diversas obras sobre Lisboa, como Inventário de Lisboa (1939), Peregrinações de Lisboa (1939) e Legendas de Lisboa (1943), foi uma figura importante do jornalismo português. Iniciou a sua carreira no periódico O Mundo e trabalhou em várias publicações, tais como A Manhã, Século da Noite, Diário de Notícias e Diário de Lisboa, do qual foi redator principal. Colaborou igualmente no semanário Goal, dirigido por Alves Redol, na revista Ilustração e na Revista Municipal. Em dezembro de 1948, acompanhou, como correspondente do Diário de Lisboa, um grupo de excursionistas que se deslocou à Madeira para participar nas festas de final de ano. Da viagem resultaram diversas crónicas, com o título genérico “Impressões da Madeira”, publicadas durante o mês de janeiro seguinte, com honras de primeira página, e uma entrevista ao governador civil da Madeira, Cor. Lobo da Costa. A excursão, organizada pela Casa da Madeira de Lisboa, era constituída, segundo o editor do Diário de Lisboa, João Crisóstomo de Sá, por cerca de 600 pessoas, entre as quais se encontravam os membros da Tuna Académica de Coimbra, que realizaram três espetáculos no Teatro Municipal do Funchal. O grupo incluía, igualmente, diversos jornalistas nacionais e estrangeiros, e o representante da United Press, que, a bordo do Serpa Pinto, cedido pela Companhia Colonial de Navegação, fizeram o relato da visita. Norberto de Araújo iniciou as suas “pequenas crónicas impressivas” (SÁ, DL, 5 jan. 1949, 6), sobre a Ilha, como anunciado pelo editor, no dia 6 de janeiro. A Madeira provocou no autor deslumbramento, exaltação, imagens de sonho e, sobretudo, levou-o a refletir sobre o panorama panteísta que oferecia. As frutas, as flores, as vinhas eram o resultado do esforço do homem na sua constante humildade perante a natureza. Se a terra era doce e forte, os homens simples que a cultivavam encontravam-se face a horizontes serenos e contemplativos, desenvolvendo uma alma suave e vigorosa. Numa antropomorfização da Ilha, Norberto de Araújo afirmou apetecer-lhe descansar no seu regaço, no seu coração robusto e amoroso. O tópos do deslumbramento e da terra-mãe que acolhia e nutria o homem esteve igualmente presente nas outras crónicas, assim como o da beleza da terra que continha em si “peregrinas belezas da terra toda do Mundo” (ARAÚJO, DL, 6 jan. 1949, 1). A mesma conceção edénica da Madeira foi repetida na crónica de 7 de janeiro, com o título significativo de “A Ilha das cem maravilhas onde nasceram, gémeos, Adão e Eva” (Id., DL, 7 de jan. 1949). Foi justamente este texto que João Cabral do Nascimento incluiu no volume Lugares Selectos de Autores Portugueses que Escreveram sobre o Arquipélago da Madeira (1949). O espetáculo da passagem de ano inspirou no autor uma descrição superlativa com imagens que apelavam aos sentidos, em “volupia sensual contemplativa”, e à ligação da terra com o divino, quando o fogo no céu lhe lembrou “cataclismo de sois, diluvio de estrelas”, com a Ilha que conquista o espaço acima das montanhas, “já não pertence ao mar e entrega-se ao espaço, querendo atingir o céu” (Id., DL, 6 jan. 1949, 7). As crónicas seguintes repetiam a temática do espaço edénico da Ilha, lugar de paz e felicidade familiar. As famílias, mesmo pobres, viviam felizes, com o pai que trabalhava a terra e a mãe e as filhas que bordavam como se tecessem renda de “mantos florentinos de ‘madonas’”. Entre a terra (das vinhas, das árvores de fruto, das flores) e o céu, a Ilha tinha “pequenos Mundos de beleza”. No campo arquitetónico e urbanístico, o Funchal pareceu-lhe uma mistura das várias regiões de Portugal, uma cidade que, a 1000 km de Lisboa, era “Portugal puro” (Id., DL, 7 jan. 1949, 7). Norberto de Araújo deteve-se, nos textos publicados a 10 de janeiro, nas questões económicas ligadas à Madeira, como o turismo, o vinho, os bordados, o cultivo e exploração da cana de açúcar e da banana e a industrialização dos lacticínios. Partindo do lugar-comum de que a Madeira vivia do turismo, o jornalista afirmou que, apesar de a Ilha retirar dessa atividade proventos importantes, acreditava que tal não significava viver à custa dos estrangeiros, sobretudo dos Ingleses. Desenvolver o turismo era proporcionar ao visitante “esse dom de Deus” (Id., DL, 10 jan. 1949, 1) que era a Ilha, onde se concentrava grande variedade geológica e botânica. Assim, não se vivia à custa dos que iam de fora, mas o turista pagava a dádiva generosa que a natureza lhe proporcionava. No entanto, era no trabalho do homem que a Madeira tinha a sua maior fonte de riqueza, desse “homem lusíada […] do trabalho obscuro, cantante, fomentador, fortalizador – não apenas do ouro inglês deixado cair dos ‘decks’ dos transatlânticos” (Id., DL, 7 jan. 1949, 7). As diversas atividades económicas foram, por isso, elencadas, demonstrando o seu desenvolvimento e papel na economia da Ilha. A entrevista ao governador civil encerrou os textos de Norberto de Araújo para o Diário de Lisboa. Chegado havia pouco à Madeira, o Cor. Lobo da Costa abordou diversas temáticas como o turismo, os transportes (considerando a necessidade de formas mais acessíveis de chegar à Ilha) e a expansão dos produtos madeirenses, que exigia mais possibilidades de saída. Considerava o governador que a Madeira, além destas grandes questões, tinha pouco a resolver, já que tanto o Governo do país, como as câmaras municipais e as entidades fomentadoras já tinham realizado a maior parte do trabalho. Norberto de Araújo terminou desta forma o relato da sua excursão, desenhando para os leitores uma Ilha paradisíaca, moderna e humilde. O retrato, no fundo, do produto das melhores capacidades do homem lusíada do Estado Novo e da sua forma de se relacionar com a terra e com as gentes. Obras de Norberto de Araújo: Da Iluminura à Tricomia (1915); Inventário de Lisboa (1939); Peregrinações de Lisboa (1939); Legendas de Lisboa (1943); “Impressões da Madeira (1) – A noite de S. Silvestre e o panorama panteísta ante o panorama humano” (1949); “Impressões da Madeira (2) – A ilha das cem maravilhas onde nasceram, gémeos, Adão e Eva” (1949); “Impressões da Madeira (3) – A ilusão do turismo criada e a realidade do trabalho fertilizante” (1949); “A Madeira em fogo – O espetáculo deslumbrante” (1949); “A Madeira tem os seus direitos – As declarações que fez ao ‘Diário de Lisboa’ o governador, coronel Lobo da Costa” (1949); “As possibilidades permanentes do turismo na Madeira” (1949); “O que nos diz o coronel Lobo da Costa sobre as actuais aspirações da Ilha da Madeira” (1949); “O regresso da excursão que foi ao Funchal para assistir às festas do fim do ano” (1949); “A vida do Funchal e os progressos urbanísticos registados nos últimos anos” (1949).     Luísa Marinho Antunes (atualizado a 23.01.2017)

Literatura Sociedade e Comunicação Social

almeida, georgina dias de

  Georgina Dias de Almeida foi poetisa, mas poucas são as informações que se encontraram a seu respeito. O único registo da sua atividade aparece no Álbum Madeirense, uma coleção de poesias de diversos autores madeirenses, reunidas por Francisco Vieira. O poema é dirigido a Leolinda, e, segundo o Visconde do Porto da Cruz, que também referencia a poetisa na sua obra Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, trata-se de D. Leolinda Jardim Vieira, embora no cabeçalho do poema seja referida D. Leolinda Dias D’Almeida. Georgina Dias de Almeida também aparece referenciada na obra Da Voz à Pluma…, de Laureano Macedo, na qual é referido que esta escritora é aparentada com Carolina Dias de Almeida. O poema da autora incluído no Álbum Madeirense recorda a infância saudosa, versando a mudança que o tempo opera transformando os sonhos infantis em imagens vivas apenas na memória: “Lembra-te? Era eu jovem e tu gentil criança,/Brincávamos adorando o seixo, o escarcéu…/Tudo era nesse tempo, o quê? – um mar d’esperança!/Mas… crescemos ambas… toldou-se o nosso céu!/ […] Se poetisa eu fora, sim, da minha lira/Soltaria um cântico a ti, ó Leolinda!/Afetos desse tempo em versos escreveria,/Deixando-te no álbum uma saudade infinda!” (VIEIRA, 1884, 235).     Cláudia Neves (atualizado a 23.01.2017)

Literatura

correia, josé venâncio

Poeta popular natural da ilha do Porto Santo. Era trabalhador rural e, apesar de analfabeto, tinha uma grande capacidade criativa para fazer versos que retratavam acontecimentos, situações ou tipos sociais do seu tempo e do seu meio. Da sua obra conhecida, fazem parte poemas publicados em Musa Insular (1959), Histórias do Porto Santo (1986) e A Alma de Um Povo (2004).  Palavras-chave: poesia popular; literatura oral e tradicional; Porto Santo. José Venâncio Correia foi um poeta popular nascido a 18 de março de 1867 no sítio das Areias, na ilha do Porto Santo, onde veio a falecer a 3 de dezembro de 1956, aos 89 anos. Era filho de Venâncio Correia e de Júlia das Neves. Em 1890, casou-se com Maria Júlia de Melim, tendo enviuvado a 2 de janeiro de 1939. Era analfabeto, mas ainda assim criava poemas, alguns deles a partir de acontecimentos que faziam notícia nos jornais, a que o poeta tinha acesso pela leitura de terceiros. José Venâncio era trabalhador rural e, no silêncio do campo ou nos intervalos dos afazeres agrícolas, criava com frequência versos no seu pensamento, que depois divulgava. Segundo Luís Marino, em Musa Insular, José Venâncio Correia apresentou-se ao público por duas vezes: a primeira vez foi em 1938, no Funchal, por ocasião da festa das vindimas, na Qt. Vigia, onde atuou inserido no grupo folclórico do Porto Santo. A esse respeito, Francisco de Freitas Branco acrescenta, relatando a entrevista que fez a Maria Merícia Correia, neta de José Venâncio Correia, que o referido poeta popular “foi à cidade [Funchal] disputar com o Feiticeiro da Calheta e ganhou” (BRANCO, 1995, 270). A segunda exibição, de acordo com a citada obra de Luís Marino, teve lugar em 1947, no Porto Santo, na fábrica de cimento, mais especificamente num palco improvisado para artistas profissionais e amadores. Na referida obra de 1959, Luís Marino afirma ainda que o poeta era conhecido pelas alcunhas de “formiga” e de “periquito”, e que compôs 49 cantigas. Para além disso, reproduz duas das criações do trovador popular, intituladas “Meninas da Madeira” e “O Senhor Administrador” (MARINO, 1959, 248). Na quadra “Meninas da Madeira”, o poeta refere as moças madeirenses que iam passear para a praia do Porto Santo, insinuando uma conduta de que apenas a areia poderia dar conta, caso pudesse falar. Por sua vez, o poema “O Senhor Administrador” é dedicado a Joaquim Pinto Pinheiro, que foi nomeado, em 1936, presidente da comissão administrativa do Porto Santo. O poeta menciona, em verso, alguns locais e obras feitas no Porto Santo, nomeadamente: o açougue e o mercado situados entre o mar e a praça; as fontes e as ruas; a estrada do Penedo à Calheta e a Calç. do Lg. do Pelourinho, entre elogios pelos melhoramentos e críticas relativas a aspetos financeiros, evidenciando que era um homem atento aos acontecimentos do seu tempo e do seu meio social. De salientar ainda a publicação de poemas de José Venâncio Correia nos livros Histórias do Porto Santo (1986), de José de Castro Vasconcelos, e A Alma de Um Povo (2004), de António José Rodrigues, volumes em que poderão ser encontradas outras criações do poeta, cujos temas estavam associados à sua terra natal. Estes autores reproduzem, assim, alguns versos do poeta popular porto-santense que foram transmitidos por habitantes da ilha do Porto Santo, como aqueles que o versejador dedicou ao barco Arriaga, o “carreireiro” que assegurava as ligações marítimas entre as duas principais ilhas madeirenses, fazendo o transporte de pessoas e bens. Vasconcelos (1986) transcreve versos narrados por José de Castro, enquanto Rodrigues (2004) apresenta uma versão transmitida por João Abel de Ornelas. Os poemas relatam uma viagem empreendida pelo referido Arriaga, que transportava romeiros à festa dos Milagres, em Machico, bem como um casal de noivos que pretendia casar-se. Porém, a jornada acabou por contar com alguns percalços, uma vez que se perderam no mar, o que era, aliás, frequente na época, devido às condições do estado do tempo, por vezes adversas à navegação, associadas às características das pequenas embarcações de cabotagem que realizavam as viagens inter-ilhas. É também de destacar os versos publicados por Vasconcelos (1986), nos quais José Venâncio Correia retrata as vaidades das moças do Porto Santo, fala de virtudes e vícios, bem como dos problemas nos casamentos dos tempos modernos, ao mesmo tempo que diverte e censura, evidenciando a sua visão crítica da sociedade. Para além das obras indicadas, que reproduzem versos de José Venâncio Correia, desconhece-se outras publicações da poesia deste vate popular porto-santense. Em 2007, o poeta foi homenageado pela Câmara Municipal do Porto Santo, que deliberou, em reunião de 13 de junho daquele ano, atribuir o seu nome a uma artéria do sítio da Ponta, Porto Santo, que foi denominada “R. José Venâncio Correia”. Fig. 1 – Fotografia da R. José Venâncio Correia (Poeta Popular). Fonte: coleção da autora.   Obras de José Venâncio Correia: “Meninas da Madeira” (1959); “O Senhor Administrador” (1959); “As Meninas da Moda” (1986); “O Barquinho Arriaga” (1986).   Sílvia Gomes (atualizado a 31.12.2016)

Literatura