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doações

A doação é um ato pelo qual se transfere, gratuitamente, a posse total ou parcial de um bem a outrem, e reveste duas modalidades: inter vivos, quando o doador aliena irrevogavelmente o património, ou in mortis causa, quando a doação apenas se processa após a morte do doador, assumindo, assim, o carácter de um legado. Apesar do carácter gratuito da cedência, a doação não é, de modo geral, totalmente desinteressada, na medida em que pressupõe um objetivo que é importante para o doador, ainda que isso não lhe retire o estatuto de instrumento estruturante tanto na história do reino de Portugal como na do arquipélago da Madeira. A prática de se doarem parcelas de território a senhores nobres ou eclesiásticos surge cedo na Península Ibérica, muito como resultado do empreendimento da reconquista cristã, e destinava-se quer a recompensar serviços prestados ao Rei, quer a promover o repovoamento das áreas retomadas, quer a representar um simples ato da generosidade do Monarca. O próprio nascimento de Portugal radica numa doação feita por Afonso VI de Leão e Castela a seu genro, o conde D. Henrique, e, após a elevação do condado à categoria de reino, a prática continuou a ser seguida pelos Reis de Portugal, que abundantemente distribuíram terras a entidades civis e religiosas, de entre as quais avultam as concessões a ordens religiosas e a instituições conventuais. Esta estratégia visava, sobretudo, contribuir para a defesa, promover a fixação de povoadores, e assegurar a produtividade das terras entregues a mosteiros. Quando, cerca de 1419, se (re)descobre a Madeira, e se começa a pensar o seu povoamento, desenrolado a partir 1425, principia também a definir-se um modelo para a administração do território, o qual assentará, do mesmo modo, em sucessivos processos de doação. Com efeito, enquanto entre 1420 e 1425, a responsabilidade sobre o arquipélago permanecia inteiramente nas mãos do Rei, D. João I, a partir de 1425, ela é transferida para as do infante D. Henrique, sem que, no entanto, a posse das ilhas deixe de ser propriedade régia, pois enquanto foi vivo D. João sempre se considerou como “Rei e Senhor” delas. A morte do Soberano, ocorrida em 1433 vai alterar esta situação, na medida em que o novo monarca, D. Duarte, por carta de doação datada de 26 de setembro do mesmo ano, concederá ao infante D. Henrique o estatuto de “Senhor das Ilhas”, tornando-o, assim, e de facto, donatário do arquipélago. Na mesma data, D. Duarte atribuiu também à Ordem de Cristo “para todo o sempre o espiritual das Ilhas da Madeira, do Porto Santo e da Ilha Deserta” (FERREIRA, 1960, 35-36). Entre 1440 e 1450, o infante donatário, doará, por sua vez a Tristão Teixeira (8 de maio de 1440), a capitania de Machico, a Bartolomeu Perestrelo (1 novembro de 1446), a do Porto Santo e a João Gonçalves Zarco (1 de novembro de 1450), a do Funchal. Fica assim claramente estabelecido o papel que o mecanismo de doação ocupa na génese da administração do território insular. No próprio desenrolar do povoamento, as doações continuaram a desempenhar um papel importante no que concerne à cedência de propriedades em regime de sesmarias, como forma de garantir o arroteamento dos terrenos, seguindo-se aqui um procedimento muito equivalente ao que se passara no reino. Os beneficiados com a concessão de terrenos não foram, porém, apenas os senhores que receberam os terrenos para arrotear, mas também a própria Igreja, cuja implantação no arquipélago igualmente gozou do acesso a propriedades oferecidas para que nelas se pudessem edificar os necessários edifícios de culto. Com efeito, a construção dos templos requeria espaços, que foram disponibilizados quer a partir de contributos de particulares, que nas suas fazendas povoadas rapidamente erigiam capelas destinadas à celebração dos ofícios divinos, quer originados nas instituições que tutelavam o espiritual das ilhas: a Ordem de Cristo, primeiro, e, depois, a Coroa. As ordens monásticas foram igualmente beneficiadas por este sistema de doações, o que se verifica a partir da fixação definitiva dos Franciscanos no arquipélago. Tendo cabido à Ordem Seráfica a responsabilidade do pastoreio das almas dos primeiros povoadores, logo por volta de 1479 assiste-se à entrega de um terreno vinculado à capela de Clara Esteves, falecida, o qual, por ordem de D. Beatriz, à data administradora da Ordem de Cristo, foi entregue aos frades de Assis para edificação da sua casa conventual. O mesmo aconteceu com a construção do convento de N.ª Sr.ª da Piedade, em Santa Cruz, erigido em terrenos de Urbano Lomelino e com o convento de S. Bernardino, em Câmara de Lobos, para o qual contribuiu a doação do sítio operada por João Afonso, escudeiro do infante D. Henrique e senhor do lugar. A ereção dos conventos de Clarissas na Diocese do Funchal operou-se de acordo com os mesmos critérios. Assim, para o primeiro deles, S.ta Clara, fundado em finais do séc. XV, foi determinante o papel de João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do Funchal, que o mandou edificar em terrenos anexos à igreja de N.ª Sr.ª da Conceição de Cima, já fundada por seu pai, João Gonçalves Zarco. Aos Câmaras ficou, ainda, adstrito o padroado da instituição, a qual requeria, para ingresso, um dote avultado que reforçava o carácter elitista das suas freiras, decidido, de resto, por D. Manuel, quando a destinara a servir as “filhas e parentes dos principais da terra” (FONTOURA, 2000, 55). Com os conventos de N.ª Sr.ª da Encarnação e de N.ª Sr.ª das Mercês, o procedimento foi idêntico. Assim, o primeiro começou a erguer-se, a partir de 1645, graças ao empenho e financiamento do Cón. Henrique Calaça, e o segundo foi fundado em 1663, por iniciativa de Gaspar de Berenguer e sua mulher Isabel de França, que o dotaram de terreno e verbas destinadas ao seu funcionamento. No processo de construção da Sé do Funchal assiste-se igualmente à doação, por parte de D. Manuel, então ainda na qualidade de administrador da Ordem de Cristo, a cujo padroado pertencia a administração religiosa do arquipélago, de um canavial, conhecido como “campo do duque”, sobre o qual se haveria de erguer o templo (FERREIRA, 1963, 41). Para tornar mais expedito o procedimento, o duque doou ainda os rendimentos de penas criminais que lhe pertenciam, bem como a imposição sobre vinhos atavernados, ou seja, aplicou ao fim da construção da igreja impostos que normalmente seriam por ele recebidos. O desenrolar do processo de cobertura da Ilha por estruturas religiosas leva à criação de um conjunto de paróquias fora do Funchal – Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol, Calheta, Machico, Santa Cruz, e.g., cujas igrejas se tiveram de ir edificando, correndo as despesas com a capela-mor por conta da Ordem de Cristo, numa fase inicial, e da Coroa, numa fase posterior, ficando o restante corpo do templo por conta dos fregueses, que assim, e desde o início, se associam também à dinâmica de dotação da Igreja dos contributos indispensáveis à sua implantação em território insular. Este modus operandi que divide responsabilidades na construção e manutenção dos espaços sagrados vai manter-se ao longo do tempo, sendo frequente ver chamadas de atenção dos bispos, em sede de provimentos de visitação, nas quais se apelava aos paroquianos para que não descurassem as suas obrigações naquela matéria. Assim acontece, e.g., na Tabua, quando, em 1589, se assinala que o forro da igreja está danificado pela chuva, pelo que se solicita aos fregueses que, “por todo o mês de setembro” o mandem consertar (ACDF, Tabua, cx. 2, fl. 10). Nessa mesma freguesia, e por estar a igreja velha arruinada, provia o visitador, em 1590, que os fregueses edificassem um novo templo, de acordo com especificações deixadas, e, se assim não o cumprissem, ver-se-iam condenados. O visitador acrescentava, porém, que sendo “a capela e a sacristia da obrigação de Sua Majestade a quem se pagam os dízimos […] mandamos lhe requeiram provisão para as mandar fazer segundo o corpo da igreja e poder correr toda a obra juntamente” (Ibid., fl. 13v.). À medida que a determinação tridentina, que obrigava à residência paroquial, vai sendo implementada, também se pode acompanhar aquilo que as visitações iam provendo sobre o assunto, o qual implicava, igualmente, a contribuição direta dos paroquianos. Continuando na Tabua e em 1590, o prelado que pessoalmente visitava a freguesia pedia aos fregueses que “hajam assento e chão acomodado para casa do vigário perto da igreja e que lha ajudem a fazer e ponham da sua parte para isso toda a diligência e favor por ser importante a residência dele em a freguesia e igreja” (Ibid., fl. 15). O mesmo acontecia na Fajã da Ovelha, onde, também em 1590, o povo era solicitado a arranjar “chão” e ajudar o pároco na construção da casa (ACDF, Fajã da Ovelha, Provimentos de Visitações, 1591-1730, fl. 9), enquanto no Seixal, em 1591, os pedidos iam no sentido do fornecimento de “madeira, pedra e colmo”, bem como colaboração com mão de obra para a residência do clérigo (ACDF, Seixal, Livro de Provimentos, 1591-1756, fl. 3v.). Outra forma muito utilizada para induzir a doação de bens à Igreja era a do recurso aos peditórios que se faziam a propósito dos mais variados motivos: para se instituir uma confraria, por ocasião da festa do orago – neste caso normalmente organizados pela confraria da mesma invocação –, para ajudar as ordens mendicantes, e ainda para financiar os conventos cuja regra os impedia de possuírem bens próprios, como acontecia, e.g., com o de N.ª Sr.ª das Mercês. A exemplificar a primeira das situações (a que diz respeito à fundação de uma confraria), veja-se o que ficou exarado em 1590 na Ponta Delgada, em que o bispo, D. Luís Figueiredo de Lemos, interessado na fundação de uma Confraria das Almas ordena aos fregueses que “dentro em dois meses instituam a dita confraria das almas e para que mais comodamente o possam fazer lhes dou licença pera que tirem esmolas pelas eiras e lagares da freguesia.” (ARM, Ponta Delgada, Livro de Provimentos, 1589-1694, fl. 8). O exagero que, porém, por vezes se verificava nestas iniciativas levava os prelados a intervir procurando disciplinar aquela prática, para o que deixavam avisos tendentes à moderação, como se vê no que está vertido nos provimentos de S. Martinho exarados em 1587 e que dizem estar o antístite informado “que algumas pessoas vêm a esta freguesia pedir esmolas pera confrarias & os santos de outros lugares & freguesias havendo aqui os mesmo santos & confrarias o que é causa de se dividirem as esmolas & estarem tão pobres as próprias no que querendo nos prover mandamos que nenhum petitório geral ou particular de santo de fora se consinta na freguesia em que houver outro semelhante posto que para isso haja licença nossa porque não é nossa intenção concedê-la” (ARM, Registos Paroquiais, S. Martinho, liv. 9122, fl. 4-4v.). A instituição de confrarias veio a revelar-se um profícuo mecanismo de captação de bens para a Igreja, pois não só os irmãos contribuíam com verba anualmente paga para a sua manutenção, como a administração dos bens legados por particulares fazia confluir para os seus cofres um não despiciendo fluxo financeiro, que deveria ser gerido tendo em vista o fim que presidira à constituição do movimento confraternal: a celebração de ofícios divinos, a ajuda ao próximo e a salvação das almas. A responsabilidade da gestão destes fundos variava de acordo com o compromisso das diversas confrarias, e era objeto de inspeção nas visitas paroquiais, deixando os bispos, ou os visitadores, nos seus provimentos, muitas vezes críticas e recomendações sobre os procedimentos a seguir na apresentação dos resultados da contabilidade confraternal. Outro recurso que muito contribuiu para a sustentação económica da Igreja surge sob a forma de doações in mortis causa, ou seja, aquelas que eram feitas em testamentos e se destinavam a assegurar a prestação continuada de cuidados à alma do falecido que, para tal, doava terras ou rendimentos a serem aplicados em missas para resgate da sua alma. Sendo esta uma prática transversal a todos os grupos sociais, os montantes legados variam, contudo, e como seria de esperar, em função da capacidade económica dos doadores, constatando-se situações em que se fundam capelas de missas, com obrigação de celebração diária enquanto “o mundo for mundo”, a par de outras que apenas solicitam os ofícios divinos que os herdeiros acharem possíveis. O facto de os rendimentos afetos às capelas se tornarem insuficientes mercê do decurso do tempo, da desvalorização, ou de outros fatores, vai estar na origem de múltiplos conflitos que irão opondo bispos a testamenteiros e a juízes dos resíduos e capelas, sendo fonte de inesgotáveis processo em tribunais e de preocupações no tocante ao incumprimento das últimas vontades dos instituidores. A emergência deste fenómeno, que impossibilitava a cabal satisfação dos legados, é muito antiga na Madeira, estando já contemplada nas Constituições Sinodais de 1615, onde se referia ter o bispo sido informado de que “muitas capelas se não cumprem por as propriedades e bens sobre que foram instituídas renderem hoje tão pouco que não basta para se dizerem as missas […] que os instituidores mandam dizer”, “pelo que se autorizava aos administradores em incumprimento que pudessem satisfazer apenas dois terços do inicialmente previsto” (COSTA, 1987, 19). As dificuldades na satisfação de encargos pios, o devir histórico e, até, as alterações da conjuntura política motivadas pelo liberalismo, com a consequente diminuição do peso institucional da Igreja, foram, aos poucos, diminuindo a prática dos legados testamentários, sem que, no entanto, se possa falar de uma completa extinção do procedimento. No começo do terceiro milénio, as doações na Igreja Católica estão sujeitas às normas do Código de Direito Canónico (liv. V) e das normas particulares das dioceses.   Cristina Trindade (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social História Política e Institucional

capitanias

A instituição do regime de capitanias-donatarias (Donatário), ensaiado no povoamento da Madeira e depois exportado para os Açores, Cabo Verde, São Tomé e Brasil, marcou profundamente a gesta dos Descobrimentos portugueses. No entanto, em meados do séc. XVI, este modelo parece ter atingido o limite do seu período de duração. Assim, as tentativas da sua reimplantação, nomeadamente por D. Sebastião (1554-1578), com a criação da capitania de Angola, em 1571, e por Filipe III (1578-1621), com a criação da capitania da Serra Leoa, em 1606, mostraram que este modelo estava já fora da sua época. O processo de centralização do Estado empreendido ao longo do séc. XVII, embora se compadecesse com a sua existência, dificilmente tolerava a sua proliferação.   Com a integração das donatarias na Coroa, os capitães donatários ficaram responsáveis perante a mesma pela manutenção das capitanias “em justiça e em direito”, como referem as respetivas cartas de doação (BNP, cód. 8391, fls. 1v.-2v.ss., 119v.-120v.ss., 403-405ss.), sendo os aspetos de justiça, em princípio, os mais importantes (Ouvidorias). Saliente-se que os capitães donatários não eram verdadeiramente proprietários das terras das mesmas, que pertenciam à Coroa, embora aí pudessem ter, pontualmente, propriedades. Com o tempo, as iniciais funções militares tornaram-se meramente honoríficas, restringindo-se à apresentação dos alcaides pequenos, com função de policiamento (Polícia de segurança pública), o mesmo acontecendo em relação aos assuntos da Fazenda régia, pois, embora os capitães donatários em Lisboa usassem o título de vedor-mor da Fazenda, essa função há muito que passara a estar cometida a um provedor. As cartas de doação dos sécs. XVI e XVII eram, geralmente, omissas relativamente à atribuição dos ofícios, mas essa mercê foi algumas vezes atribuída e confirmada, em documentos próprios, como recompensa por certos serviços ou pelo mérito e linhagem dos capitães donatários. Essa prorrogativa de “data dos ofícios”, como se designava, era geralmente concedida em uma ou duas vidas, ou seja, na vigência do donatário e do seu sucessor, embora fosse posteriormente confirmada nos sucessores. Era este o caso da apresentação de ofícios, essencialmente na área da justiça, como de alcaides, carcereiros, escrivães vários, tabeliães, meirinhos, inquiridores, contadores e distribuidores. A condessa da Calheta, D. Maria de Vasconcelos, por exemplo, conseguiu obter para o filho e para o neto, a 18 de agosto de 1624, a data dos ofícios concedidos ao seu marido, 5.º capitão e 3.º conde da Calheta, Simão Gonçalves da Câmara (c. 1565-c. 1620), somente em uma vida. Tratava-se, assim, da apresentação dos ofícios de escrivão dos órfãos do Funchal, da almotaçaria, alcaidaria e imposição da cidade, de meirinho da serra, de tabeliães do público e do judicial dos lugares da sua jurisdição, de meirinho da cidade, de inquiridores, contadores e distribuidores da vila da Calheta e lugares da capitania, assim como de juízes e oficiais da vila da Calheta. Na Madeira, as capitanias sofreram um rude golpe nos finais do séc. XVI com a nomeação de um superintendente das coisas da guerra ou encarregado dos negócios da guerra, que tinha a função de capitão-general das capitanias do Funchal e de Machico. O Rei Filipe II (1527-1598) teve um especialíssimo cuidado nessas nomeações, começando por escolher um descendente de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), a quem tinha já feito mercê da capitania de Machico: Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da). Saliente-se ainda que, logo na altura da nomeação, escreveu à jovem capitoa viúva do Funchal, mostrando a urgência do preenchimento do lugar e informando que não esqueceria os direitos do jovem capitão donatário, seu filho. Face à incapacidade dos descendentes dos primeiros capitães, muito especialmente do 4.º capitão, Diogo Teixeira (c. 1500-1540), dado como incapaz em 1538, a capitania de Machico foi entretanto entregue a João Simão de Sousa, vagando depois para a Coroa na sequência da morte do 4.º capitão, em 1540, dado que não tinha descendência legal. Em 1541, D. João III fez mercê da mesma a António da Silveira, que tinha sido capitão de Diu. No entanto, este vendeu-a num curto espaço de tempo, em 1549, com licença e faculdade de D. João III, a Francisco de Gusmão, mordomo da infanta D. Maria, para dote da sua filha, D. Luísa de Gusmão. Esta veio a casar com D. Afonso de Portugal (1519-1579), 2.º conde de Vimioso, que incorporou na Casa dos Vimioso a capitania de Machico. O 2.º conde viria a falecer em Alcácer Quibir, passando então a usar o título o seu filho mais velho, D. Francisco de Portugal (1550-1582), que viria a aderir à causa de D. António e a falecer em combate ao largo de Vila Franca do Campo, nos Açores. Ficando a capitania de Machico uma vez mais nas mãos da Coroa, esta foi entregue por Filipe II a Tristão Vaz da Veiga. O irmão mais novo dos Vimioso, D. Nuno Álvares de Portugal (c. 1555-c. 1625), move, ainda em vida de Filipe II, um processo à Coroa, alegando que o pai teria ficado vivo em Alcácer Quibir, pelo que o irmão assumira ilegalmente o título e a capitania de Machico. Assim, tendo falecido o assumido 3.º conde, D. Francisco de Portugal, em 1582, o irmão considera que a capitania não deveria ter vagado para a Coroa, pois o pai ainda poderia estar vivo algures em Marrocos. Falecido Filipe II, este longo e algo bizarro processo teve seguimento, conseguindo a Casa dos Vimioso (Condes de Vimioso), falecido Tristão Vaz da Veiga, em 1604, reaver a capitania. Ao longo do séc. XVII, as capitanias da Madeira encontravam-se, assim, na posse dos seus anteriores donatários. Dada a estadia na corte dos capitães do Funchal e de Machico – os condes de Castelo Melhor (Castelo Melhor, marqueses de) e os de Vimioso, e, depois, os marqueses de Valença (Valença, marqueses de) –, as funções de comando de tropas propriamente ditas continuaram no governador e no capitão-general, mas a capitania ficou como título, mantendo as rendas, uma certa intervenção camarária e as funções judiciais. O donatário passou a fazer-se representar na sede da capitania por um ouvidor (Ouvidorias) e lugar-tenente, que, em Machico, podia estar ligado, de alguma forma, a um certo ascendente militar, daí se justificando um certo alheamento, ou afastamento, do governador da Madeira em relação a Machico. Registam-se presenças várias dos governadores da primeira metade do séc. XVIII nas vilas da capitania do Funchal, mas não nos ocorre nenhuma nas vilas de Machico e Santa Cruz. Os ouvidores das capitanias regiam-se pelas Ordenações de Filipe II, especialmente pelo título LX, “Corregedores das Comarcas e Ouvidores dos Mestrados e de Senhores de Terras”. A situação das capitanias do Funchal e de Machico, com os capitães a residirem na corte e as mesmas a serem regidas por ouvidores, nunca foi extensível à capitania do Porto Santo, dada a presença física, no arquipélago, do respetivo capitão donatário. As coisas alteraram-se algumas vezes nos sécs. XVII e XVIII, nas ocasiões em que o donatário, por motivos vários, abandonou o arquipélago. Nesses casos, o próprio capitão do Porto Santo nomeou um governador durante a sua ausência e, quando tal se deu compulsivamente, a nomeação foi efetuada pelo governador e capitão-general da Madeira, antes da extinção das capitanias. A capitania do Funchal A evolução desta instituição não foi de forma alguma linear, até pela diferença nos seus rendimentos, provindos das rendas territoriais, de terras e foros, da redizima e do selo, bem como de moinhos, serras de água, sabão e sal. Para uma comparação, veja-se que, em 1653, por exemplo, o conde-capitão do Funchal pagou a importância de 100$000 réis respeitantes ao donativo (Donativo) para as despesas de guerra. Em 1662, as décimas dos dois primeiros quartéis foram orçadas em 130$000 réis para a condessa da Calheta e capitoa do Funchal, enquanto para o conde de Vimioso, donatário de Machico, foram orçados em 20$000 réis. A situação económica da capitania do Porto Santo era pior. Em 1693, por exemplo, a redízima, no valor de 76$800 réis, somente conseguia pagar o ordenado do capitão-mor Jorge Moniz de Meneses, nomeado a 31 de outubro de 1653, e o mesmo já havia acontecido com o anterior governador, Martim Mendes de Vasconcelos, nomeado em 1564. A sucessão por varonia da capitania do Funchal foi interrompida em meados do séc. XVII. O 8.º capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara (c. 1600-1656), faleceu sem descendência, pelo que assumiu a capitania a sua irmã, D. Mariana de Alencastre Vasconcelos e Câmara (c. 1605-1689), condessa de Castelo Melhor pelo seu casamento com o conde João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658). Já viúva, D. Mariana passou a utilizar também o título de condessa da Calheta e, ocupando o cargo de camareira-mor da Rainha D. Francisca Isabel de Saboia (1646-1683), o de marquesa de Castelo Melhor (Câmara, D. Mariana de Alencastre Vasconcelos e), título que só viria a entrar nos seus descendentes muito mais tarde, em 1766. A futura condessa da Calheta defrontou em tribunal os seus parentes mais próximos, pois, tendo a capitania a natureza de bem da Coroa, havia cabimento na sucessão para a aplicação da Lei Mental (que permitia a reversão de tal bem para a Coroa). Por alvará de 2 de outubro de 1539, o Rei D. João III concedera dispensa dessa lei, para efeitos de sucessão, ao 5.º capitão da capitania do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1512-1580), por duas vidas: uma por morte do dito capitão, sem filho nem outro descendente varão legítimo, e, outra, quando um qualquer donatário morresse sem filho nem descendente varão lídimo. O processo movido por D. Mariana conheceu, assim, sentença a seu favor em 1660 e, ainda, sobressentença em 1677, confirmando a entrada da capitania na Casa de Castelo Melhor. Com a extensão à Madeira do regimento dos corregedores das ilhas dos Açores, deu-se o primeiro passo para a reforma da organização da justiça, à qual, no entanto, se opõe, na corte de Lisboa, a Casa de Castelo Melhor. Em 1747, foi nomeado um novo juiz de fora de origem açoriana, Miguel de Arriaga Brum da Silveira (c. 1690-1755). Incumbido do lugar de juiz de 1.ª instância “com predicado de correição por 3 anos”, acumulou, sucessivamente, os lugares de mamposteiro-mor dos cativos e de provedor da Fazenda dos defuntos e ausentes (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 9, fls. 95v.-99). No entanto, quase imediatamente, voltam a registar-se as doações do conde de Castelo Melhor, “confirmadas por carta assinada pela Real Mão” (Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 9, fls. 116-131v.), e as anteriores questões entre o corregedor e o ouvidor, então levantadas pela Casa do conde. Abria-se, assim, caminho para a centralização da justiça e para a posterior extinção das capitanias e das ouvidorias. A capitania de Machico As primeiras especificidades que se destacam relativamente à capitania de Machico são o incumprimento da determinação de obrigatoriedade da nomeação de um letrado para este lugar, como existia no Funchal, e, ao mesmo tempo, a nomeação quase preferencial de um militar, acrescida da indicação diferenciada dos cargos de ouvidor e de locotenente. Este aspeto é de tal forma ressalvado que a nomeação é quase sempre primeiramente relativa a ouvidor e só depois, em alvará separado, a locotenente, diferenciando-se assim perfeitamente as duas. Pode, pois, depreender-se a sobrevivência, em Machico, das obrigações político-militares do capitão donatário. Este aspeto parece igualmente explicar, até certo ponto, o quase não provimento, na primeira metade do séc. XVII, do posto de sargento-mor das ordenanças desta capitania. Parece ter havido algumas dificuldades na Casa dos condes de Vimioso na apresentação dos seus ouvidores, locotenentes e outros oficiais nos inícios do séc. XVIII, como o juiz dos órfãos da capitania de Machico, associado ainda às rivalidades entre as Câmaras de Santa Cruz e de Machico. Houve também uma franca descoordenação entre as nomeações do marquês de Valença (título de que os Vimioso passaram a usufruir) e as apresentações dos ouvidores nestas décadas, acabando o governador da Madeira por ter de interferir nas ouvidorias, nomeando ouvidores interinos. Teria sido, provavelmente, o problema das ouvidorias que levou a mais uma alçada, desta feita de Manuel Vieira Pedrosa da Veiga, “corregedor com alçada por Sua Majestade, que Deus guarde, com especial ordem do dito Senhor em toda a ilha da Madeira”, que, no final de 1735, se apresentava em Machico como juiz de fora. Conforme se registou, não se faziam correições na Madeira desde 1684, pelo que o corregedor assumiu também as funções de ouvidor de Machico, dada a “ordem de correição às ouvidorias” que possuía, com “uma carta de D. João V sobre os excessos que se cometiam em várias vilas da Madeira”, vindo igualmente com ordem para investigar as “arrecadações dos bens dos concelhos” (ARM, Câmara Municipal de Machico, liv. 81, fls. 472v.-480), o que também ocorreu no Funchal. A Casa dos Vimioso e Valença deparou-se, entretanto, com algumas dificuldades económicas logo no início do século, abdicando do pleito sobre a capitania de Pernambuco para poder manter o título de marquês. A situação económica não se teria equilibrado e, tal como o marquês de Valença não conseguiu fazer valer os seus direitos à capitania de Machico na chancelaria régia ao longo do séc. XVIII, ainda que fosse presidente da mesa da consciência e ordens, também a vereação camarária mostrou francas reservas em aceitar a nomeação de ouvidores e locotenentes para a capitania, mesmo antes da sua extinção pelo gabinete pombalino. Assim, a 1 de janeiro de 1765, quando o ouvidor se apresentou em Machico para assistir à distribuição dos pelouros para o triénio seguinte, a Câmara recusou a sua presença, o que levou à intervenção do juiz de fora do Funchal no mês seguinte. O Rei D. José I despacharia favoravelmente o processo, comunicando à Câmara de Machico: “Tenho por bem dizer-vos, que tendes obrado bem em não consentirdes, que o suplicante servisse de ouvidor findo o seu tempo”. Na sequência destes acontecimentos, em setembro do mesmo ano, era admoestado o Gov. José Correia de Sá (Sá, José Correia de) devido à “falta de seriedade e reverência com que tratara o caso do ouvidor de Machico”, admoestação que seria transmitida à Câmara (Ibid., liv. 86, fls. 69v.-70). Não mais voltou a haver ouvidor em Machico, apesar dos pedidos do governador. A capitania do Porto Santo A situação desta capitania foi ainda mais nebulosa, não só pela pobreza das suas condições e habitantes, situação que piorou consideravelmente ao longo do séc. XVIII, como pelo consequente abandono a que, até certo ponto, foi votada pelos seus capitães donatários. Em face disso, desde o séc. XVII que o governador da Madeira nomeava governadores para o Porto Santo sempre que se verificava vazio de poder na ilha, visto que a mesma tinha governo próprio, na pessoa do seu capitão donatário. Assim, toda a documentação oficial produzida em Lisboa em relação ao Governo da Madeira foi sempre omissa em relação à ilha do Porto Santo, embora alguns governadores tenham proposto a Lisboa o alargamento das suas competências àquela capitania. Casa Colombo (exterior) Porto Santo. Arquivo Rui Carita.   Casa Colombo, Porto Santo. Arquivo Rui Carita.     Armas dos Perestrello. Arquivo Rui Carita Nos inícios do séc. XVII, o Porto Santo foi alvo de duas alçadas dos corregedores – primeiro de António Ferreira, em 1606, e, depois, de Simão Cardoso Cabral, em 1610 –, que visavam averiguar as queixas dos moradores contra o comportamento de Diogo Perestrelo Bisforte (c. 1560-1616), donatário da ilha. Na primeira vez, o governador foi afastado da ilha e teve ordem para se apresentar em Lisboa, regressando, no entanto, em 1610, altura em que a situação piora. Assim, nesse mesmo ano, teve nova ordem para se apresentar em Lisboa, onde ficaria seis anos, sendo perdoado a 15 de outubro de 1616. Desta feita, não terá regressado ao Porto Santo, pois faleceu no Funchal a 20 de dezembro desse ano. Afastado o Cap. Diogo Perestrelo Bisforte do Porto Santo, somente em abril de 1654 tomaria conta da capitania o herdeiro Diogo de Bettencourt Perestrelo (c. 1684), até porque, logo em 1617, a ilha foi devastada por piratas argelinos, quase não tendo ficado habitantes no seu território. Em 1606, após o primeiro afastamento do capitão, foi nomeado João de Ornelas Rolim como locotenente, com ordenado pago pelo donatário. Aquando do segundo afastamento do Cap. Diogo Perestrelo Bisforte, o governador da Madeira nomeou, em 1619, Martim Mendes de Vasconcelos como governador e capitão-mor do Porto Santo, a que se seguiram Roque Ferreira de Vasconcelos e Jorge Moniz de Meneses. Nos inícios do séc. XVIII, a capitania era governada pelo 9.º donatário, o Cap. Estêvão de Bettencourt Perestrelo, que presidiu, por exemplo, às eleições para a Câmara no dia 1 de janeiro de 1705 e às sessões seguintes para eleição dos vários agentes camarários, como o alcaide e os almotacés. O 9.º capitão surge em funções em 1674, embora o seu pai, Diogo Perestrelo, ainda fosse vivo em 1684, data em que mandou lavrar testamento. Após 12 anos de suspensão, por ter deixado “entrar na dita Ilha duas embarcações francesas” (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 16), este capitão foi restituído à sua capitania em fevereiro de 1703. Em 1707, ainda se encontra no Porto Santo, tendo sido “nas suas mãos” que o novo Sarg.-mor Duarte Pestana de Velosa prestou menagem (ABM, Câmara Municipal do Porto Santo, liv. 165, fl. 31). No entanto, perante novo desastre do assalto corsário de 1709, no qual, mais uma vez, a população não mostrou qualquer sinal de resistência, D. João V mandou-o apresentar-se, sob pena de prisão, em Lisboa, não voltando à sua capitania. O incidente encontra-se registado como ocorrido a 27 de junho de 1709, tendo desembarcado na ilha várias pessoas que, transitando numa barca proveniente da freguesia de São Vicente e com destino ao Porto Santo, haviam sido aprisionadas por um navio corsário francês. Mais uma vez, a população não reagiu, tendo o corsário francês feito o seu desembarque normalmente (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 30). A capitania ainda foi revalidada no 10.º donatário, Vitoriano Bettencourt Perestrelo, a 5 de setembro de 1722, mas não há qualquer informação sobre a sua presença no arquipélago. No entanto, como este donatário não vem referido no Índice da Antiga Junta e Provedoria, partimos do princípio que não se apresentou como donatário do Porto Santo no arquipélago, pois que, para efeitos de abono, a sua apresentação constaria dos registos da Fazenda. A capitania ainda voltou a ser revalidada, em 1747, em Estêvão de Bettencourt Perestrelo, filho de Vitoriano de Bettencourt e Vasconcelos, anterior “proprietário e senhor donatário da ilha do Porto Santo e governador dela” (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 972, fl. 217v.), então falecido, e confirmada em 1749. A mercê do novo capitão donatário era citada como “do senhorio e governo” da ilha do Porto Santo, “em que sucedeu a seu pai, por ser de juro e herdade” (Ibid., Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 972, fl. 230v.). Cita-se, no alvará, que era até então governador da ilha Jorge Correia de Miranda, efetivando-se, ao mesmo tempo, a colocação do tio do novo capitão donatário, Nicolau Bettencourt Perestrelo de Noronha, como sargento-mor do Porto Santo. O governador e capitão donatário não se deslocou de imediato para a ilha, mas conseguiu logo ter acesso às redízimas. Estêvão de Bettencourt Perestrelo tomou ainda menagem das mãos de D. José I, a 11 de março de 1755, e posse no Funchal, a 4 de junho de 1757, perante o governador da Madeira, o que foi até certo ponto uma originalidade, pois marcou a subordinação do lugar de capitão donatário do Porto Santo ao governador da Madeira. Aliás, a distância entre as datas da carta da donatária (1747), da menagem (1755) e da posse no Funchal (1757) revela bem as dificuldades experimentadas pelo capitão donatário para alcançar, na altura, os “seus direitos” (Ibid., Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 974, fl. 1). É muito provável que não tenha sequer fixado residência no Porto Santo, pois, no ano seguinte, a 15 de junho de 1756, em carta enviada do Funchal, apresenta uma representação ao secretário de Estado Diogo Corte Real sobre a difícil situação da ilha do Porto Santo, marcada pela esterilidade dos últimos anos, pedindo milho e farinha para acudir à fome dos habitantes. Na sequência do relatório elaborado pelo Eng.º Francisco de Alincourt (1733-1816) (Descrições militares), de abril de 1769, e do edital do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), citando “o ócio e a indigência dos moradores do Porto Santo” (AHU, Madeira, docs. 355, 356, 360-363), a situação catastrófica do Porto Santo teve de ser encarada de outra forma. As reformas pombalinas Com a criação, a 2 de agosto de 1766, de um governo centralizado para os Açores cometido a um governador e capitão-general e a consequente extinção das capitanias-donatarias naquelas ilhas, o gabinete do marquês de Pombal nomeou dois juristas práticos nestes assuntos, os desembargadores José Francisco Alagoa e Bartolomeu Geraldes de Andrade, para reverem toda a situação dos donatários insulares e “dos títulos dos sobreditos [...] que tiverem direito para serem conservados” (BNP, cód. 341, fls. 339-341). Logo a 4 de setembro do mesmo ano, foi elaborado, no palácio da Ajuda, um contrato de compensação ao conde de Castelo Melhor, que o conde registou, a 9 de setembro, no tabelião António da Silva Freire. Do processo completo, seria solicitada, mais tarde, em 1785 e 1788, confirmação a D. Maria I e enviada documentação à Câmara do Funchal para respetivo registo, em 1790 e 1792. Desta forma, a 4 de setembro de 1766, eram incorporadas na Coroa as capitanias da Casa de Castelo Melhor – a de Santa Maria, nos Açores, e a do Funchal, na ilha da Madeira –, alegando o Rei D. José a existência de “motivos justíssimos” e o “benefício da utilidade pública e do bem público e comum” dos seus vassalos. Revertiam, assim, para a Coroa as antigas “datas das sesmarias” e as jurisdições e nomeações dos ouvidores, dos oficiais de justiça, da Câmara, dos órfãos, das almotaçarias e dos tabeliães. Para além disso, as capitanias ficavam reduzidas às alcaidarias-mores, sendo também reduzidos os privilégios exclusivos “dos fornos de pão de poia, moendas e serrarias aos termos em que menos ofenderem ao direito divino, natural e das gentes, e fizessem calar aos atendíveis clamores dos habitantes das referidas duas ilhas” de Santa Maria e da Madeira (Ibid.). O antigo capitão do Funchal ficava, essencialmente, com o título da alcaidaria-mor e a redízima de todos os rendimentos reais da antiga capitania, praticamente sem encargos, o que significava que o que perdia em prerrogativas sociais ganhava em dinheiro. Ficavam francamente reduzidos os antigos privilégios de venda de sal, que não podiam exceder o preço taxado pelas antigas doações, já citadas, assim como o monopólio dos fornos de “pão de poia”, podendo os habitantes ter fornos particulares para o seu consumo doméstico e para “padejarem”. Viam-se igualmente reduzidos os antigos monopólios das moendas de água e das serrarias. Em contrapartida, o antigo capitão ficava com o título de marquês de juro e herdade, duas dispensas da Lei Mental e o título de conde da Calheta para o primogénito. Ficavam, igualmente, para a Coroa as fábricas de sabão branco de Lisboa e de Almada, mas eram cedidos ao futuro marquês a Qt. da Labruja, na Golegã, e parte dos terrenos da cerca de São Roque, em Lisboa, na base dos quais se veio a levantar o magnífico e célebre palácio no qual viveu o conde da Foz, que lhe deu nome, e onde estiveram outras entidades e instituições, como o Secretariado Nacional de Informação. Ainda no que respeita a bens patrimoniais, o marquês ficava com 10.000 cruzados anuais de juro, para constituir um vínculo. Nesta sequência se compreende a ordem do Conselho da Fazenda, de 20 de outubro do seguinte ano, 1767, dada ao provedor do Funchal para tomar posse “da capitania das vilas de Machico e Santa Cruz”. O ofício da Fazenda especifica que a capitania se achava vaga “desde o óbito do 5.º conde de Vimioso, D. Luís de Portugal (1656), sem sucessão, em que depois sem título se introduziu seu irmão, o 6.º conde de Vimioso, D. Miguel de Portugal (falecido em 1680), e depois muito menos, o filho natural deste, o marquês de Valença, Dom Francisco de Portugal (1679-1749), e o atual seu neto, Dom José Miguel de Portugal (e Castro) (1709-1775), os quais todos, não tirarão cartas, nem mercê têm para a poderem requerer”. Este ofício aproveitava ainda para solicitar que fossem revistos os demais bens da Coroa, não fossem encontrar-se em idênticas situações. Pedia-se que fossem enviadas ao Conselho as listagens desses bens com a indicação da respetiva situação, para se refazer o arquivo “que se incendiou pelo terramoto do primeiro de novembro de mil setecentos cinquenta, e cinco” (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 975, fls. 184-184v.). Em 1772, regista-se na Alfândega toda a documentação respeitante à capitania de Machico, parecendo o assunto ficar encerrado. Tentando acompanhar o que fizera o marquês de Castelo Melhor, os antigos capitães de Machico iniciam também a reivindicação das antigas rendas. Em 1783, conseguiu D. Afonso Miguel de Portugal e Castro (1748-1802), marquês de Valença, como tutor do seu filho, conde de Vimioso (1780-1840), receber 1443$330 réis da sua antiga capitania. Saliente-se que, entre 17 de junho de 1779 e 28 de outubro de 1782, a redízima tinha rendido 11.990$522. D. Afonso Miguel, sendo nomeado governador-geral do Estado da Baía em 1775, conseguiu, antes de partir, que D. Maria I o nomeasse marquês de Valença e o confirmasse donatário da “extinta capitania de Machico”, com o título de conde para o herdeiro e direito aos “bens, rendimentos e direitos da extinta capitania de Machico no mesmo Estado”, como especifica a Rainha (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 977, fls. 97-99). O novo marquês vice-rei ficou, assim, com mais um título e, tal como o marquês de Castelo Melhor em relação ao Funchal, com os rendimentos da alcaidaria da antiga capitania de Machico, que, em 1825, viriam a ser penhorados pelos seus descendentes.   Marquês de Valença. Brasil. Arquivo Rui Carita.     Armas do Marquês de Castelo Melhor. Arquivo Rui Carita Muito diferente foi a situação da capitania do Porto Santo, que, nestes meados do séc. XVIII, conheceu um dos piores momentos da sua existência, ao ponto de se tentar transferir toda a sua população para a Madeira. Desde os inícios do séc. XVIII que se vivia na ilha uma situação catastrófica marcada por inúmeros períodos de fome, o que tinha levado a população a um completo imobilismo. Quase todos os governadores alertaram Lisboa para esta situação, mas só se vieram a tomar medidas efetivas com Manuel de Saldanha de Albuquerque (1712-1771) e, sobretudo, com João António de Sá Pereira. A capitania foi extinta por diploma de 13 de outubro de 1770 após a morte do donatário em Lisboa, não se coibindo o próprio Rei D. José I de apelidar os portossantenses de vadios, referindo que “os sobreditos moradores cuidam em alegar genealogias para fugirem ao trabalho” (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 16). Com a extinção da capitania em 1770, foram liquidados de imediato os rendimentos em atraso dos donatários, e, em maio do ano seguinte, o próprio governador da Madeira, António de Sá Pereira, deslocou-se à ilha, acompanhado do corregedor Francisco Moreira de Matos e do oficial Eng.º Francisco Salustiano da Costa (c. 1745-c. 1820) (Costa, Francisco Salustiano da), do seu médico, o Dr. João Joaquim Curado Calhau, e de 25 soldados. A provedoria recebeu ordens para fretar o iate de Francisco Teodoro e Manuel da Silva Carvalho, assim como para preparar provisões de biscoito e uma lista de remédios fornecida pelo médico do governador. João António de Sá Pereira procedeu a nomeações várias no Porto Santo, a primeira das quais foi a do Cap. Pedro Teles de Meneses como inspetor da agricultura, recebendo as primeiras instruções em 1770. A nomeação foi depois comunicada à Câmara do Porto Santo e ao marquês de Pombal, que a levou ao “Real Arbítrio”, recebendo a aprovação de D. José I (AHTC, Erário Régio, liv. 395, fls. 306-309). Na ilha, o governador Sá Pereira procedeu ao emparcelamento dos terrenos e à reorganização geral da população, assunto entregue ao corregedor. Como alguns ofícios tinham desaparecido por completo, nos finais do ano de 1770 já vários rapazes tinham sido transferidos para o Funchal e entregues a vários oficiais, que ficaram encarregados de os ensinarem. O Governo acabou por tomar a seu cargo a sua manutenção – alimentação, vestuário, alojamento e instrução –, nomeando, inclusivamente, um médico-cirurgião para os acompanhar, ao qual também foi entregue um dos rapazes. Entre os ofícios que estes jovens aprenderam, estavam os de sapateiro, alfaiate, oleiro, carpinteiro, pedreiro, ferreiro, cirurgião e sangrador. A nomeação e o trabalho do novo inspetor da agricultura não foram, como já era habitual neste domínio, pacíficos, pois, interferindo com muitos interesses, principalmente os dos proprietários madeirenses, o inspetor foi acusado de inúmeras irregularidades. Assim, ainda que a ilha do Porto Santo tenha sido de imediato dotada de regimento da agricultura, datado de 13 de junho de 1771, os resultados não foram muito animadores. Em finais de 1774, deslocava-se ao Porto Santo o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781) (Martins, Domingos Rodrigues), para inspecionar as fortificações, transformando-se, por sua decisão, o pequeno reduto de São José no forte que viríamos a conhecer (Fortes do Porto Santo). Entretanto, devem ter sido executadas obras na Câmara Municipal – também elas, certamente, orientadas e dirigidas pelo mestre Domingos Rodrigues Martins –, a ajuizar pelas armas que passou a ostentar, talvez ligeiramente anteriores às do forte de São José. Também por essa altura se devem ter iniciado outras obras, como as da Casa nobre que posteriormente seria ocupada pelo tribunal, ostentando tal edifício, no lintel da entrada, a data de 1788. O cargo de governador da ilha continuou a ser desempenhado pelo sargento-mor Nicolau Bettencourt de Noronha, tio do antigo Cap. Nicolau Bettencourt Perestrelo, entretanto falecido a 9 de abril de 1768. Nessa altura, o governador escreveu para Lisboa a alvitrar a nomeação do ajudante do sargento-mor de Machico, Matias Moniz de Bettencourt, que servia igualmente na sala do Governo do Funchal. Explica, então, que, encontrando-se o donatário “há anos nessa corte” (ARM, Governo Civil, liv. 530, fls. 17-18v.), com a morte do sargento-mor e governador, ficava a ilha a ser governada pela Câmara e pelo capitão mais antigo. Ora, como a ilha ainda tinha 300 homens de ordenanças, deveria ter um sargento-mor e governador para o controlo geral dessa gente. No entanto, só após a morte do donatário e a extinção da capitania tal pedido teve despacho de Lisboa. A proposta da nomeação do filho do falecido sargento-mor, Manuel da Câmara Perestrelo de Noronha, foi de 15 de maio de 1782, sendo confirmada apenas a 23 de setembro de 1785. Este ramo da família foi sendo todo nobilitado, devendo ter movido influências para não perder tal lugar. Este lugar passou, entretanto, a ser subordinado ao governador da ilha da Madeira, como consta das nomeações de Manuel Ferreira Nobre Figueira, sargento-mor do regimento de milícias de Vila Real, nomeado em 1797. Efetivamente, este sargento prestou menagem de tal lugar em São Lourenço, nas mãos do governador da Madeira, a 27 de setembro desse ano, e o mesmo viria a acontecer com João Baptista Rofle, capitão-tenente da Armada, nomeado em 1800.         Rui Carita (atualizado a 20.12.2016)

História Política e Institucional

feiticeiro da calheta (joão gomes de sousa)

O “Feiticeiro da Calheta”, como ficou conhecido, foi um dos maiores poetas populares madeirenses. É autor dos versos que mais tarde originaram a música Bailinho da Madeira. João Gomes de Sousa era analfabeto, mas revelou ter uma grande capacidade para criar versos e rimas, relatando diversas histórias, acerca do quotidiano insular e acontecimentos do seu tempo, que imprimia em folhetos. Da sua obra conhecida fazem parte quarenta e dois títulos, reunidos em 2015 no livro de edição póstuma Feiticeiro da Calheta: vida e obra, João Gomes de Sousa. Palavras-chave: “Feiticeiro da Calheta”; poesia popular; folhetos, cultura, tradições populares.   Na Madeira, dava-se o nome de “feiticeiro” à figura do poeta popular que, com aparência estranha ou marginal, tinha a capacidade de versejar relatos e pensamentos, de trovar, de cantar ao despique e de exercer poder através da palavra cantada, obtendo grande impacto e encantamento junto do público. Feiticeiro da Calheta fig 1. Imagem da colecção da autora João Gomes de Sousa, o “feiticeiro da Calheta”, como ficou conhecido, foi um poeta popular madeirense, analfabeto e agricultor, considerado, depois do “feiticeiro do Norte”, o maior dos poetas populares da Madeira. Nasceu a 30 de novembro de 1895, no sítio do Lombo do Atouguia, freguesia e concelho da Calheta, e faleceu a 8 de julho de 1974, no Lombo do Brasil, Calheta. Descendente de uma família pobre e humilde, que vivia da lavoura, era filho de João Gomes de Sousa e de Maria Rodrigues dos Santos. Em 1918, casou-se com Catarina Pestana, que faleceu em maio de 1945. Tendo ficado viúvo, casou em segundas núpcias, em dezembro desse mesmo ano, com Augusta Gomes, de quem teve uma filha. Evidenciou-se pela sua grande capacidade para criar versos e rimas sobre factos e gentes da Madeira, e é recordado como um homem que animava as festas e os arraiais realizados na Ilha, a cantar e a tocar viola de arame. O “feiticeiro da Calheta” relatava em verso diversas histórias, nas quais descrevia as vivências do povo e acontecimentos do seu tempo. O registo das suas composições na literatura de cordel surge em 1938, após a participação na primeira Festa da Vindima ocorrida no Funchal, nos dias 18 e 19 de setembro daquele ano, com o grupo folclórico do Arco da Calheta, ao qual pertencia. A ideia de realizar a festa surgiu de uma iniciativa solidária, em favor da Escola de Artes e Ofícios (criada em 1921, pelo P.e Laurindo Leal Pestana, para apoio aos menores desfavorecidos ou abandonados), que estava a passar por dificuldades, correndo o risco de fechar. A iniciativa ficou a cargo da Estação Agrária da Madeira. Os organizadores acabaram por tornar o evento mais abrangente, aproveitando para promover o vinho e a uva, e para exaltar as tradições e a ruralidade, numa estratégia de propaganda do regime do Estado Novo. Instituíram um concurso e um prémio para o grupo folclórico que, participando no cortejo, melhor se apresentasse. Os grupos de toda a Ilha, convidados a participar no certame, desfilaram pelas ruas do Funchal, apresentando as suas músicas, cantares e trajes tradicionais. O rancho folclórico do Arco da Calheta, liderado por João Gomes de Sousa, destacou-se pela sua animação, a sua indumentária e o seu rigor, e acabou por arrecadar o primeiro lugar. O grupo do Arco da Calheta chegou ao Funchal a bordo do barco Gavião, que partiu do Porto Moniz, passou pelo Paul do Mar e apanhou o rancho no porto da Fajã do Mar, freguesia do Arco da Calheta. Consigo levavam produtos agrícolas, vinho e muita animação. No primeiro dia do evento, durante o desfile, ao passar junto à tribuna, em frente do Governador da Madeira e dos membros da organização, João Gomes de Sousa cantou as seguintes quadras: “Deixai passar/ Esta nossa brincadeira/ Que nós vamos cumprimentar/ o Governo da Madeira. Eu venho de lá tão longe/ Venho sempre à beira mar/ Trago aqui estas coivinhas/ Para amanhã o seu jantar. [...]” No dia 19, quando foi anunciado o vencedor do concurso, o poeta avança, a cantar: “Deixa passar/ o homem da capa preta/ Quem ganhou o primeiro lugar/ Foi o rancho da Calheta. [...] Deixa passar/ Esta linda brincadeira/ Que a gente vamos bailar/ Pr’a gentinha da Madeira”   Feiticeiro da Calheta fig 2. Imagem da colecção da autora A partir de então, perante os vários elogios obtidos no Funchal, o “feiticeiro da Calheta” começa a produzir versos acerca de situações do quotidiano dos madeirenses e de acontecimentos ocorridos na época. Como não sabia ler nem escrever, foi Manuel Baeta de Castro quem registou, entre os anos de 1938 e 1955, as criações literárias de João Gomes de Sousa. Depois, passou a ser Maria de Jesus, a única filha do “feiticeiro da Calheta”, a escrever os versos que o pai lhe ditava. Ganhando fama como artista popular e trata da impressão das suas histórias em folhetos na tipografia Madeira Gráfica, no Funchal, vendendo-os depois, com a ajuda de Augusta, a mulher, no Funchal, nos arraiais, no final das missas, nos autocarros da Rodoeste e nas vendas (mercearias de bairro). Esta era também uma forma de o artista popular sustentar a família, que vivia com dificuldades financeiras. Apesar disso, o “feiticeiro” prometeu oferecer à sua única filha um cordão em ouro, de três voltas, como tinham as raparigas da altura. Promessa que cumpriu depois de vender 1500 folhetos no Funchal, com a história do assalto ao paquete Santa Maria, criada por ele e passada ao papel pela mão de Maria de Jesus. O “feiticeiro da Calheta” foi um observador atento do quotidiano insular e dos assuntos do seu tempo. O trovador popular conta as suas histórias em verso, retratando o dia a dia do seu povo, do meio rural, as suas emoções, opiniões e anseios, mas também relata acontecimentos que marcam a vida política e social do meio urbano. Os seus temas versam a religião, a política e a sociedade, incidindo especialmente sobre os comportamentos sociais, a moral e diversos acontecimentos insólitos ocorridos na Ilha. Conta histórias da vida do pescador e da vida do comerciante, refere tipos sociais e expõe virtudes e vícios. Num tom de crítica social faz vários reparos: ao luxo das raparigas; às meninas e mulheres vaidosas; às mulheres que têm os maridos embarcados e que os não respeitam; às bilhardeiras; aos caloteiros à loucura dos rapazes que andam para casar; às desordens causadas pelas bebedeiras e pelos bêbados; à doença e ao médico; e à escassez de carne devida à falta do gado da serra. O “feiticeiro” também faz versos acerca de tragédias, acidentes, crimes e tempestades. Relata, entre outras histórias, a de uma mulher que envenenou o marido no Chão da Loba, a de dois assassinos do Arco da Calheta e São Jorge, a de um homem que queria matar a mulher e os filhos e apareceu morto, a de um acidente trágico que resultou na morte de cinco pessoas, na Praia Formosa, a de dois irmãos que faleceram num desastre de automóvel, na freguesia do Estreito da Calheta, e a de um ciclone que ocorreu nos Açores e que vitimou alguns pescadores madeirenses. João Gomes de Sousa publicou as suas quadras durante a vigência do Estado Novo, revelando-se um defensor desse regime político. Em 1946, em Versos do Estado Novo, Obras do Porto, Estradas da Madeira, elogiava o Governo pelas obras realizadas para o desenvolvimento da Ilha, particularmente a construção do porto, de escolas e estradas. Diversos acontecimentos ligados ao sistema político vigente, bem como algumas figuras do regime, inspiraram muitos dos seus poemas. O cardeal patriarca Cerejeira, e.g., foi referido como “o pai da religião”, enquanto Óscar Carmona, num folheto datado de 1951, foi mencionado como o “grande Presidente”. Em 1955, cantava a visita do Presidente da República, Craveiro Lopes, à Madeira. O trovador gostava de saber o que se publicava nos jornais. Quando ia ao Funchal, pedia aos amigos para lhe lerem as notícias e ouvia as histórias dos acontecimentos da Madeira e do mundo, que lhe ficavam na memória, para depois criar versos sobre esses assuntos. Por vezes, era a filha que lhe lia o jornal que chegava ao Lombo do Brasil, na Calheta. O poeta popular, apesar de analfabeto, era um homem informado. Viveu numa época de grandes alterações e acontecimentos que marcaram o séc. XX e aproveitou esses marcos da história mundial para fazer as suas rimas. A Segunda Guerra Mundial e a chegada do homem à lua foram momentos registados nas suas originais reportagens em verso. Segundo Eugénio Perregil “a partilha de todo este conhecimento, nos seus arredores, facilmente o conduziam a ser reconhecido e apontado como alguém mais sabedor, como um adivinha dos tempos e dos acontecimentos. Era conhecedor de todas as ocorrências locais, nacionais e, também, as que aconteciam no estrangeiro, o que lhe valeu ser batizado com a alcunha de Feiticeiro” (PERREGIL, 2015, 41). Produziu ainda versos de teor religioso, invocando a vida de Jesus Cristo, reunidos sob o título Versos da Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, e de Nossa Senhora, intitulados Despedida do ano Santo – versos da vida de Nossa Senhora e do Nascimento do Menino Jesus – Peregrinação de Roma – A Assunção da Virgem Maria nos Céus. Em 1948, dedica um poema à passagem da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima pela Madeira. Também deixou um folheto de cariz autobiográfico, intitulado Vida do Feiticeiro da Calheta, porém, os versos apresentam semelhanças aos deixados por Manuel Gonçalves (o “feiticeiro do Norte”), com o título A vida do Feiticeiro do Norte. Da sua obra conhecida fazem parte 42 títulos, de versos e de histórias, publicados entre 1938 e 1971. Como se referiu atrás, João Gomes de Sousa foi o autor das estrofes principais que originaram, mais tarde, o famoso “Bailinho da Madeira”, celebrizada pelo cantor madeirense Max, com arranjo musical de António do Amaral e M. Gonçalves Teixeira. Em 1949, Max grava esta canção em Lisboa, na produtora Valentim de Carvalho; a música, divulgada nas rádios, foi ouvida pelo “feiticeiro da Calheta”, que se sentiu defraudado por ouvir cantar as suas letras sem ter dado autorização para tal. Deslocou-se, então, ao Funchal, esperando o regresso de Max, para confrontar o cantor com a situação. Max acabou por lhe pagar uma quantia irrisória, no intuito de remediar o caso. Para assinalar os 120 anos do nascimento do “feiticeiro da Calheta”, foi lançado, em julho de 2015, o livro Feiticeiro da Calheta: vida e obra, João Gomes de Sousa, coordenado por Eugénio Perregil e editado pela Câmara Municipal da Calheta. O livro relata alguns acontecimentos relevantes da vida do “feiticeiro” e apresenta uma compilação da sua obra conhecida, publicada em folhetos. A maior parte dos folhetos reunidos na obra foram cedidos pela filha, Maria de Jesus. Também para assinalar a efeméride, formulou-se o projeto de uma longa-metragem para contar a vida e obra de João Gomes de Sousa, com realização de Miguel Jardim e produção de Eugénio Perregil e Eva Gouveia. João Gomes de Sousa foi ainda recordado numa exposição que esteve patente ao público no Funchal, no âmbito da Festa do Vinho da Madeira de 2015, no Espaço InfoArte, na Secretaria Regional do Turismo, entre 31 de agosto e 6 de setembro. A mostra evocou a primeira Festa da Vindima, realizada em 1938, homenageando o P.e Laurindo Leal Pestana, promotor do evento, e também João Gomes de Sousa, por ter participado e vencido o concurso de grupos folclóricos. Obras de João Gomes de Sousa (“feiticeiro da Calheta”): Versos Cantados na Exibição do Rancho do Arco da Calheta no Campo Almirante Reis Sobre A Vinda do Presidente Carmona (1938); A Revolução da Madeira (1939); O Desastre da Ponte da Madalena (1939); Versos da Catástrofe que se Deu na Madalena do Mar – 30 de Dezembro de 1939 (1940); Versos A Sua Eminência O Senhor Cardeal Patriarca de Volta d' África Passou pela Madeira em 29 de Setembro e Foi Até À Ribeira Brava (1944); Versos da Atual Guerra Mundial (1945); Versos da Paz da Guerra da Europa (1945); Versos da Vida do Feiticeiro da Calheta Feitos por Ele Próprio (1945); Versos do Ciclone dos Açores em que Morreram Alguns Pescadores Madeirenses (1946); Versos do Comércio da Madeira Depois da Guerra Acabar (1946); Versos da Guerra que Acabou (1946); Versos da Mulher que Envenenou o Marido no Chão da Lôba (1946); Versos do Estado Novo – Obras do Porto – Estradas da Madeira (1946); Versos do Lavrador (1947); Versos da Malícia das Mulheres (1947); Versos das Facadas que se Deram no Natal por Causa da Ruína do Vinho (1948); Versos da Passagem pela Madeira de Nossa Senhora de Fátima (1948); Versos da Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo (1948); História, em Verso, dos Dois Assassínios do Arco da Calheta e São Jorge – João Mau e Catingueiro (1949); Versos da Vida do Pescador (1949); Despedida do Ano Santo – Versos da Vida de Nossa Senhora e do Nascimento do Menino Jesus – Peregrinação de Roma – A Assunção da Virgem Maria nos Céus (1950); A Epopeia dum Grande Herói – O Senhor Carmona (1951); História dos Vendeiros e Caloteiros e da Vendeirinha Mimosa (1951); História Sentimental – Das Cinco Mortes no Trágico Desastre da Praia Formosa em Dia de São Pedro (1952); Versos da Máquina de Coser das de Duas Lançadeiras, Atribuída às Mulheres Vaidosas que Têm Os Maridos Embarcados (1952); A História do Frangainho Loiro (1953); História do Desastre do Fogo que Se Deu no Arco da Calheta (1953); Continuação da História das Meninas Vaidosas e das Mulheres que Têm os Maridos Embarcados e que Os Não Respeitam (Segunda Parte) (1954); História em Versos dum Inimigo Vencido – A Doença e o Médico (1954); A Visita de Sua Excelência o Senhor Presidente da República – General Craveiro Lopes à Madeira (1955); Versos das Bilhardeiras que Não Cumprem Com A Lei dos Seus Ministros (1958); História das Mulheres que Aproximam O Fim do Mundo (1958); A Falta de Carne Devido À Falta do Gado da Serra – Os Bichos que Desterram O Lavrador (1959); História em Verso da Agonia dos Passageiros do Barco “Santa Maria” (1961); História em Verso dum Caso que Sucedeu na Freguesia da Calheta – Um Homem que Queria Matar A Mulher e Os Filhos e Apareceu Morto! (1961); História dos Bêbedos – Das Desordens que Se Dão por Causa da Bebedeira e do Bêbado que Jogou A Panela de Milho para A Ladeira (1962); História em Verso – Dum Desastre de Automóvel que Aconteceu No Sítio da Ribeira Funda, Freguesia do Estreito da Calheta. Dois irmãos, Ambos solteiros que Morreram No Mesmo Dia (1963); História Em Verso – O Engrandecimento de Portugal – O Festejo que Houve Para As Obras do Hospital da Calheta (1964); História da Maior Virtude e Das Mulheres que A Perdem – que Tendo Seus Maridos Embarcados Os Não Respeitam (1965); História Maravilhosa dos Três Astronautas Americanos que Foram no «Apolo-11» e Desembarcaram na Lua (1969); História em Versos – das Meninas Vaidosas e das Mulheres que Têm Os Maridos embarcados… (1971); O Luxo das Raparigas e A Loucura dos Rapazes que Andam para Casar (s.d.).   Sílvia Gomes (atualizado a 06.01.2017)

Cultura e Tradições Populares Literatura

branco, josé de sousa de castelo

Nasceu em Leiria a 2 de novembro de 1654, sendo filho de Heitor Vaz de Castelo Branco, “senhor do Lagar do Rei e comendador de Santa Marinha”, e de sua mulher, D. Luísa Maria da Silva Arnault, senhora de morgado (NORONHA, 1996, 126). Tal como o seu antecedente, D. Fr. José de Santa Maria, este prelado foi recrutado nas fileiras da pequena nobreza de província. Enquanto jovem, foi para Coimbra estudar, e aí se formou em teologia, tendo, de seguida, ocupado um canonicato na sé de Leiria. Encetou, depois, uma carreira na Inquisição, instituição que serviu como deputado em Évora, como promotor em Lisboa, como inquisidor, de novo em Évora, e, finalmente, como presidente do tribunal de Coimbra. Nessa posição se encontrava quando, em 1697, foi designado por D. Pedro II para bispo do Funchal. A sagração aconteceu em Lisboa, no oratório de S. Filipe de Nery, a 28 de junho de 1698, ano em que se deslocou para a diocese, fazendo, na viagem, um desvio por Mazagão, onde se deteve “a ensinar os moradores” e a crismar 1400 pessoas (Id., Ibid., 127). Ainda durante a viagem, começou, de acordo com um manuscrito intitulado Memorias sobre a Creacção e Augmento do Estado Eccleziastico na Ilha da Madeira, a dar indícios de um comportamento singular, pois, segundo reza o texto, “foi este Bispo o Prelado mais amante da nobreza que tem vindo a esta Ilha”. A fundamentação desta apreciação encontra-se, logo de seguida, na descrição de um episódio com Gaspar Mendes de Vasconcelos, cujo pai, o Ten.-Gen. Inácio Bettencourt de Vasconcelos, o mandara para o reino assentar praça; segundo se conta, o bispo logo o trouxera para bordo, atribuindo-lhe no caminho uma conezia, tendo mandado, assim que chegou a terra, o mordomo avisar o general que “ali lhe mandava o filho cónego” esperando que ele lhe perdoasse “o vir contra as suas determinações” (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 273, fl. 93v.). O mesmo documento insiste nesta tónica quando acrescenta que não “houve casa que não beneficiasse, criando-lhe alguns dos seus filhos em cónegos da catedral”, e, de facto, é possível constatar que da família dos Correias e da dos Ornelas saíram três capitulares, da dos Freitas dois e da dos Berengueres um, registando-se, ainda, a atribuição de benefícios que favoreceram outros agregados nobres da Ilha. Com efeito, as Memorias acrescentam que “continuamente lhe estava fazendo a eles presentes de trastes e ainda cortes de vestido” e que ia “passar dias de verão nas Quintas dos Cavaleiros da terra e com todos fez uma boa harmonia (Ibid., fl. 97). Se esta era uma estratégia de minimização de conflitos, não resultou em pleno, porque o episcopado de D. José não foi isento de confrontos que opuseram o bispo a mais do que uma entidade na Ilha. Um dos cenários dessa conflitualidade ocorreu com dois dos três governadores com quem se cruzou no exercício de funções, sendo que, logo com o primeiro, João da Costa Ataíde, se registaram atritos que também envolveram o provedor da fazenda, Manuel Mexia Galvão. Este último, acusado de mancebia pelo vigário-geral, virou-se contra aquele eclesiástico “mais por vingança e por ódio que por defensa […] com ânimo vingativo de injuriar a pessoa de um prelado […] a quem devia tratar com respeito de Pai”, o que determinou a apresentação de queixas mútuas para o reino. Do reino veio, assim, um desembargador, Diogo Salter de Macedo, incumbido de averiguar o que na realidade se passara. Em virtude da sua ação, o provedor foi chamado à câmara a fim de lhe ser aplicada pública e áspera repreensão, e o mesmo teria acontecido ao governador, não fosse ter falecido entretanto. Quanto aos autos do processo, determinou o desembargador que se queimassem para “que de tão estranho modo de recusa não haja em tempo algum memoria nem lembrança”. Em contrapartida, as referências contidas na provisão trazida por Diogo Salter de Macedo dizem que ao bispo se deveria dar notícia da anterior resolução, a fim de que “reconheça a consideração que a minha Real justiça [tem] a quem com menos decoro fala em autos públicos das pessoas dos prelados que justamente se queixam das ofensas que lhes fazem”, o que é o bastante para se perceber que o bispo saiu com grande vantagem desta contenda (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 270, fl. 7). Com o governante seguinte, Duarte Sodré Pereira, gozou o prelado da melhor das relações, chegando, inclusivamente, a ser padrinho de um dos seus filhos e estabelecendo-se, portanto, entre os dois, uma relação de compadrio. Já com o seu sucessor, Pedro Alves da Cunha, voltaram as coisas a correr mal, designadamente por terem surgido diferendos quanto ao lugar que o governador pretendia ocupar na sé. Terminada a comissão de Pedro Alves da Cunha, foi o prelado cumprimentar o novo governador, João Saldanha da Gama, mas, da conversa que tiveram, ficou o bispo com a impressão de que o novo titular do cargo seria “do mesmo caráter” do anterior, e essa constatação terá apressado a decisão de D. José de Castelo Branco abandonar a diocese. Com efeito, e embora publicamente evocasse razões de saúde como motivo da ida para Lisboa, a verdade é que ficaram registos de que a bordo da nau “ia aquele por cuja causa ele largava o bispado”, ou seja, Pedro Alves da Cunha, o que motiva alguma dúvida sobre as reais motivações do abandono episcopal. A confirmar esta asserção, acrescentam as Memorias que, a bordo, o ex-governador fez ao bispo “muitos obséquios, de sorte que ele se arrependeu de ter partido”, mas, apesar deste sentimento, e de se ter mantido como titular da diocese por mais sete anos, nunca mais regressou à Madeira. Embora tivesse renunciado à mitra do Funchal em finais de 1721, por, segundo afirma Noronha, os médicos considerarem que o clima da Ilha não era favorável à sua doença, a verdade é que D. José só veio a falecer bastantes anos mais tarde, em 1740, facto que contribui para infirmar a tese da doença como real motivo para a saída do arquipélago (NORONHA, 1996, 128). Para além dos dois governadores, outra das entidades com quem D. José registou desentendimentos graves foi com a comunidade franciscana, a qual, em consequência disso, se viu quase completamente destituída de confessores. O desaguisado começou com a determinação exarada pelo bispo de que todos os clérigos, regulares e seculares, do bispado teriam de se fazer examinar para confessores, do que discordou o custódio de S. Francisco, padre frei Jacinto da Esperança, que recorreu ao rei por causa da “perseguição” que considerava estar a ser-lhe movida pelo prelado. Queixava-se, então, o custódio, em seu nome e no dos religiosos da Ordem, “da notória força e violência com que os oprime o reverendo bispo da dita Ilha”, consubstanciada na privação da autorização para confessar sem se submeterem a novo exame, o que se repercutia negativamente não só na reputação da Ordem, como nos proventos arrecadados (PAIVA, 2009, 37). Além disso, acrescentava, estas ordens do prelado tinham levado à suspensão de todos os frades da Calheta, e não se poderia aceitar a ideia de que fossem “todos criminosos” (DGARQ, Cabido da Sé..., mç. 12, doc. 34, fl. n.n.). A estes argumentos contrapunha D. José o de que “como os confessores tratam de matéria mais arriscada não só pelo foro da consciência e utilidade, ou prejuízo das Almas, mas também porque doutrinam em segredo, é mais perigosa e mais arriscada esta matéria que a dos pregadores”, pelo que não podia ser “tão liberal” neste tema quanto era na concessão de licenças para pregar. A isto acrescia o bispo que poderia acontecer que desta sua “severidade” resultasse estímulo para aplicação ao estudo de que “até aqui pouco se cuidava”, e, usando de uma ironia fina, ainda fazia notar que, sendo os franciscanos pobres, “pelos pregadores haveriam os proventos temporais que das confissões não podem tirar; e da suspensão destes [confessores] lhes resultará viverem com mais descanso que sempre é apetecido da natureza” (Ibid.). Os antecedentes deste conflito derivariam, possivelmente, de uma pastoral publicada a 20 de dezembro de 1699, na qual o prelado derrogava todas as facilidades anteriormente concedidas a pregadores e confessores, condicionando-as, agora, à realização de novo exame. Esta atitude decorria do facto de ter o prelado sido informado de que alguns clérigos, “esquecidos de suas obrigações”, se não aplicavam no estudo da Moral, “não usando do sacerdócio mais que só na missa, pelo interesse temporal que dela tiram”, situação que lhe parecia intolerável, e à qual procurava, então, obviar (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx, 45, doc. 8). Porém, se as relações com os franciscanos foram tensas, o mesmo não se passou com os jesuítas, cujo reitor, o padre Miguel Vitus, era, nas palavras endereçadas pelo prelado à inquisição de Lisboa, “coisa muito singular em tudo, na capacidade, letras, virtude e ardente zelo na conversão dos hereges, e no cuidado que tem nos reduzidos”, pelo que seria homem a quem se poderia fiar tudo e “só a ele se devem cometer os negócios de maior importância e risco” (FARINHA, 1993, 887). Vinha este elogio a propósito daquela que, no entender do prelado, seria a melhor opção para se tratar dos assuntos respeitantes ao Santo Ofício na Ilha, pois, apesar de na Madeira haver dois comissários, os desentendimentos entre eles poderiam comprometer a objetividade necessária nos julgamentos. Durante este episcopado, e por razões que se poderão atribuir, por um lado, ao facto de o bispo ter sido recrutado das fileiras da Inquisição, e, por outro, à recente reativação do funcionamento do tribunal, assiste-se a um certo aumento das denúncias apresentadas, cujo número, para o período de 1690 a 1719, se cifra em 59 casos. Apesar de o bispo ter referido a meritória ação do reitor do colégio no combate aos hereges, ou talvez por isso, as ocorrências de heresia são escassas, pois só aparecem dois suspeitos, enquanto a grande incidência das faltas se dá nos domínios das curas supersticiosas e das blasfémias, com 13 acusados em cada área. O saldo final destas denúncias cifra-se em apenas 3 processos, 1 de judaísmo e 2 de bigamia, mas a correspondência trocada entre o bispo e a Inquisição, em Lisboa, permite saber-se que a boa opinião que o prelado tinha da nobreza insular não se estendia ao resto da população da Ilha. Assim, em carta escrita a 11 de novembro de 1707, D. José lamentava-se, dizendo que “a assistência de dez anos e o trabalho de sofrer esta gente me tem dado conhecimento do seu orgulho, e dos seus atrevimentos. Saiba Vossa Senhoria que não estou entre gente, senão em um bosque de feras sem nenhum conhecimento, sem obediência da razão, levados tão-somente de suas paixões como brutos sem temor de Deus, nem honra nem previsão de futuros” (Ibid., 887), o que, por sua vez, se harmoniza com a impressão que colhe dos seus fregueses, os quais, em visita a Ponta Delgada, considera “muito rudes” na doutrina, não só os meninos, como também os pais que, se falhassem no envio dos filhos à estação da missa, deveriam ser publicamente inquiridos sobre os ensinamentos religiosos (ARM, Paroquiais, Livro 116-B, fl. 5). Num outro sítio e num outro contexto, expandia ainda o prelado a má opinião que tinha dos ilhéus, que considerava, pela sua ambição “fáce[i]s de levantar testemunhos uns aos outros para melhorarem as suas pretensões” (ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Eusébio, mç. 1, doc. 21). Para tentar obviar às falhas de caráter e às omissões de doutrina, envidou D. José alguns esforços, traduzidos na realização de um plano de visitação com a periodicidade devida, complementado por missões de interior, para as quais recorria aos meios ao seu dispor. Assim, em 31 de janeiro de 1700, enviava para as paróquias rurais, “armados de todos os poderes da sua jurisdição”, dois jesuítas, os padres mestres Inácio de Bulhões e Domingos de Melo, a fim de que, por ser o tempo de “grande calamidade de doenças e mortes”, ajudassem os vigários nas confissões. A esses missionários cometia, ainda, a responsabilidade de “aprovar e reprovar confessores na forma que lhes parecer”, voltando a demonstrar a preocupação que a correta prática do sacramento da penitência lhe despertava. Como nota curiosa, pode ainda acrescentar-se o facto de, para além da saúde moral das populações, o prelado zelar, ainda, pela cura dos males do corpo, pelo que, a acompanhar os jesuítas, ia também um cirurgião “aprovado para que visite os enfermos e lhes aplique os remédios necessários” (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx. 45, doc. 9). No mesmo ano, mas em agosto, realizava-se nova missão, desta vez resultante da oferta dos serviços de um frade, frei João de Santo Ambrósio, que “movido do fervor do seu zelo e caridade determina fazer missão em todas as freguesias deste nosso bispado” (Ibid., doc. 10). Os cuidados que o bispo dispensava à qualificação dos ministros autorizados a confessar voltam a evidenciar-se em edital publicado em 1710, onde se determinava que se não lançassem no rol dos habilitados a apresentar-se a exame os indivíduos que não mostrassem certidão de matrícula, ou aprovação, na aula de moral do colégio da Companhia “por serem muito poucos os sacerdotes capazes de servir a Igreja no exercício do confessionário” (Ibid., cx. 32, doc. 39). Para além disso, destaca-se uma lista dos clérigos do bispado feita em 27 de agosto de 1715, onde constam para a freguesia da sé, por exemplo, 131 eclesiásticos, dos quais apenas 24 estão habilitados a confessar, o que vem, mais uma vez, demonstrar que os critérios para acesso àquele ministério eram severos (Ibid., Livro 2.º da Câmara Eclesiástica, fls. 17-17v.). Para além dos cuidados já expressos com alguns aspetos do exercício do múnus episcopal no tocante à formação dos clérigos, D. José ainda dedicou uma atenção particular ao seminário, o qual fez transferir das antigas instalações no paço onde residia para um novo espaço, situado na rua que passou a chamar-se “do Seminário”, e onde se situavam uns aposentos inicialmente destinados a um mosteiro, o “Mosteiro Novo”, que nunca chegou a funcionar para o fim a que se destinara. O bispo dotou, ainda, o seminário de novos estatutos. Outra das tarefas com as quais se comprometeu o antístite foi a de provedor da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, a cujos destinos presidiu nos anos de 1704 e 1709. Depois de 15 anos em que esteve presencialmente à frente da diocese do Funchal, retirou-se, então, o prelado para Lisboa, conforme já se viu, mantendo-se em funções por mais sete anos, findos os quais renunciou, ficando o bispado à guarda de um governador, Pedro Álvares Uzel, que dele se ocupou até à chegada do novo titular da mitra, D. frei Manuel Coutinho.     Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 22.12.2016)

História Política e Institucional Religiões

braga, teófilo

Filho de aristocratas liberais açorianos, Joaquim Manuel Fernandes Braga e Maria José Albuquerque, nasceu em Ponta Delgada, ilha de São Miguel, Açores, a 24 de fevereiro de 1843. Começou a atividade literária ainda muito jovem, na tipografia A Ilha, colaborando nos periódicos açorianos O Meteoro e O Santelmo. Cessados os estudos em Ponta Delgada, matricula-se em Direito na Universidade de Coimbra, vindo a doutorar-se em 1868. Toma parte na célebre polémica Questão Coimbrã com o texto Teocracias Literárias, colocando-se ao lado de Antero de Quental e opondo-se, assim, a António Feliciano Castilho. Em 1872, foi admitido como lente na cátedra de Literatura Modernas no Curso Superior de Letras, cargo disputado por Manuel Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro. Teófilo de Braga torna-se uma das figuras mais respeitadas nos círculos intelectuais da segunda metade do séc. XIX e inícios do XX em Portugal. Trabalhador incansável, escritor prolífero, deixou uma vasta obra multidisciplinar, tanto a nível literário como científico, reveladora do seu génio brilhante e determinado. Como escritor, destacou-se na poesia, no conto fantástico e no romance histórico, realizando também algumas traduções. Enquanto académico, dedicou-se aos Estudos Literários, História da Literatura, Filosofia e Etnografia, sendo um precursor dos estudos sociológicos em Portugal. O seu pensamento científico estava imbuído da doutrina positivista de Auguste Comte, da qual Teófilo de Braga foi arauto em Portugal, dirigindo, em parceria com Júlio de Matos, a revista O Positivismo (1878-1882), órgão de divulgação da filosofia positivista. Dedicou-se à política, em particular à causa republicana, mais intensamente entre 1870 e 1890, atingindo a sua carreira política dois pontos altos, o primeiro momento em 5 de outubro de 1910, na ressaca do sucesso da revolução republicana, sendo nomeado para a presidência do Governo Provisório da República, e o segundo em 14 de maio de 1915, quando substitui na presidência da república Manuel de Arriaga, após um levantamento militar, tornando-se o segundo presidente da República Portuguesa. Relativamente à Madeira, Teófilo de Braga consagra o segundo capítulo do livro Os Poetas Palacianos aos poetas madeirenses presentes no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Este capítulo aparece transcrito por Álvaro Rodrigues de Azevedo nas suas anotações no livro Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso (1873). Teófilo de Braga refere, assim, autores como Manoel de Noronha, Tristão Teixeira das Damas, João Gonçalves e Pero Correia, observando que estes constituem uma escola poética madeirense que germinou no tempo do rei D. Duarte. O insigne académico intitula tal escola “Ciclo Poético da Ilha da Madeira”, defendendo que esta foi influenciada pela poesia aragonesa, com impressões da tradição lendária inglesa denunciadas pela lenda de Machim e Ana de Arfet, e que constituiu um ramo diferente dos poetas palacianos do continente do reino presentes no Cancioneiro Geral. Contudo, o anotador de Saudades da Terra, Álvaro Rodrigues de Azevedo, faz alguns reparos às ideias de Teófilo de Braga, escrevendo que “o grupo dos poetas madeirenses deste período não constitui ciclo distinto, é apenas ramo do ciclo continental, porque não tem tipo próprio” (FRUTUOSO, 1873, 173). Não obstante, Teófilo de Braga tem o mérito de lançar as bases de uma historiografia literária madeirense. Apesar de tal desacordo, Teófilo de Braga manterá com Álvaro Rodrigues de Azevedo correspondência e amizade. No seu livro Quarenta Anos de Vida Literária (1860-1900) (1902), podemos ler um total de 12 cartas, com datas compreendidas entre 1861 e 1880, enviadas por Álvaro Rodrigues de Azevedo. Do conteúdo das cartas, destaca-se a influência e inspiração que Teófilo de Braga exerceu em Álvaro Rodrigues de Azevedo, nomeadamente na sua recolha etnográfica e folclórica dos contos e cantigas populares da ilha da Madeira, que originou o livro Romanceiro do Arquipélago da Madeira (1880). Ao mesmo tempo, pela leitura das missivas, acompanhamos o processo de elaboração do livro por Álvaro Rodrigues de Azevedo, as reflexões, dúvidas e constantes pedidos de orientação a Teófilo de Braga. Teófilo de Braga morre em Lisboa a 28 de janeiro de 1924.     Carlos Barradas (atualizado a 12.10.2016)

História Política e Institucional

azevedo, álvaro rodrigues de

Álvaro Rodrigues de Azevedo foi um advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador, que viveu na Madeira durante cerca de 26 anos e que contribuiu para a valorização do panorama literário e cultural da Ilha. É autor de uma bibliografia diversificada e, do seu legado, destaca-se a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), de Gaspar Frutuoso, que inclui 30 extensas notas da sua autoria, que complementam e esclarecem alguns pontos acerca da história da Madeira. Palavras-chave: Madeira; literatura; jornalismo; história; historiografia; cultura. Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de janeiro de 1898, dois meses antes de completar 73 anos. Apesar de ter nascido no continente, viveu na Madeira durante muitos anos e considerava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado de nome quando ingressou na universidade. Era filho de António Plácido de Azevedo, natural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de quem teve geração. Concluiu o curso de Direito, em 1849, na Universidade de Coimbra, e foi para Lisboa, onde residiu durante cerca de seis anos. Seguiu posteriormente para a ilha da Madeira, onde exerceu funções de professor, ocupando uma vaga através de concurso público. Anteriormente, tinha tentado um lugar na magistratura judicial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Litterário (1866), explicava a razão pela qual não tinha conseguido aquele emprego e se considerava injustiçado. No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a cadeira de Oratória, Poética e Literatura, que regeu durante 26 anos. Também no mesmo Liceu, foi professor de Português e Recitação e fez parte, como sócio e secretário, da Associação de Conferências, inaugurada a 9 de maio de 1856, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos princípios da educação popular e de elaborar uma discussão com vista à escolha dos melhores métodos de ensino. A Associação de Conferências era composta por professores do ensino público e particular da capital do distrito da Madeira. Em 1856, por ocasião da epidemia de cólera (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha, causando uma elevada taxa mortalidade, prestou relevantes serviços no desempenho do cargo de administrador do concelho do Funchal. A 24 de julho de 1856, escrevia no periódico A Discussão, revelando as medidas tomadas pela Câmara Municipal que, no sentido de tentar combater a epidemia, concedeu 150$000 reis mensais para que o administrador do concelho estabelecesse uma sopa económica, a ser distribuída, uma vez por dia, aos mais necessitados. Referia ainda que medidas idênticas tinham extinguido a cólera em algumas regiões continentais. Mencionando nomes de personalidades e respetivos donativos para a causa, reforçava a ideia da importância da alimentação no combate daquele flagelo e considerava que os mais afetados pela doença eram geralmente pobres, pois a principal causa do seu desenvolvimento era a fome e a miséria. Foi procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, tendo recusado, em 1870, o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Foi ainda membro do Partido Reformista, participando ativamente na política madeirense e revelando aspirações liberais, sobretudo num período agitado da vida local, iniciado em 1868. Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Azevedo colaborou na imprensa periódica madeirense, sendo redator nos jornais A Discussão, A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Funchal e Revista Judicial, e tendo redigido também alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira. Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madeira para os anos de 1867 e de 1868. Os artigos publicados na imprensa foram de natureza variada, desde folhetins e artigos de crítica literária até assuntos de interesse social, relacionados com a vida no arquipélago e com o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de 1856, no periódico A Discussão, inicia a publicação de um artigo de crítica literária, sob o título “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal, nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março de 1856. Em 1866, edita um estudo em volume, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosquejo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo), no qual menciona o seu primeiro artigo crítico à obra daquele autor. No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, um estudo histórico intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”, identificando e descrevendo a casa de Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodrigues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de temas diversos. Ainda na juventude, escreveu um drama sob o título Miguel de Vasconcelos, que não chegou a ser editado. No entanto, este texto originou uma polémica na imprensa, em 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Inocêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota bibliográfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Azevedo no referido Dicionário, Inocêncio Francisco da Silva afirma que terá confundido uma crítica desfavorável a outro texto com o mesmo título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro autor, que terá lido nas Memórias do Conservatório Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo conhecimento do texto escrito por Azevedo, que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título idêntico, mas apenas um foi publicado nas Memórias do Conservatório, tendo outro ficado em arquivo. Este equívoco terá desencadeando a referida controvérsia, suscitando uma troca de correspondência entre ambos, através da imprensa periódica. Nas suas produções literárias encontram-se, entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em um Acto (1859), uma crítica de costumes madeirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869), no qual pretende desenvolver competências de produção linguística. Como escritor e historiador, produziu importantes trabalhos sobre o arquipélago da Madeira. O seu legado mais importante para a historiografia madeirense foi a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues de Azevedo redigiu 30 notas que acrescentou ao manuscrito, na parte que diz respeito à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns pontos da história do arquipélago. O trabalho de investigação, de pesquisas e de consultas em livros, manuscritos ou outras fontes, que empreendeu para a elaboração das anotações presentes na edição de As Saudades da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvimento do seu gosto pelo estudo da história da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro Rodrigues de Azevedo “poderá ser considerado o pioneiro da historiografia hodierna na ilha. O seu trabalho publicado em anotação a As Saudades da Terra, em 1873, é modelar e surge como uma peça-chave para todos os que se debruçam sobre a história da ilha” (VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Azevedo confessou que teve muitas dificuldades na elaboração destas notas, que foi um processo moroso, fruto de muito trabalho de investigação, de dia, e de escrita, à noite, acumulado com a sua profissão. A obra, encetada em meados de 1870, demorou cerca de três anos a completar. Os trabalhos de investigação foram feitos nos arquivos da Ilha, nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câmara Militar e no cabido da Sé. Também foram relevantes os textos que reuniu de cronistas como Zurara, João de Barros e Damião de Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo Braga, seu amigo, com quem se correspondia, teve uma grande influência no seu pensamento e na sua escrita, sendo através deste que tomou contacto com a teoria da história positivista, em voga na época. Contou ainda com a colaboração de João Joaquim de Freitas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que o ajudou nos trabalhos de revisão textual. Apesar de todas as dificuldades que teve de ultrapassar, e da obra inédita que deu à estampa, em 1873, não obteve o devido valor e reconhecimento por parte dos seus coevos. Só muitos anos mais tarde é que o seu trabalho foi valorizado pelos eruditos madeirenses. Na verdade, esta obra pioneira na historiografia insular abriu caminho para que outros madeirenses começassem a interessar-se pelo estudo da sua história, do seu passado e das suas raízes. As suas anotações constituíram uma fonte importante para outros estudiosos, sobretudo para os intelectuais da primeira metade do séc. XX e para os homens da chamada Geração do Cenáculo, que recorreram com frequência às investigações do seu antecessor. Antes do trabalho feito nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, os estudos relativos à história do arquipélago eram muito vagos, circunscrevendo-se a breves notas e estudos. A sua obra teve, assim, um grande impacto em estudiosos como, entre outros, Alberto Artur Sarmento, Fernando Augusto da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto da Cruz, sendo mesmo uma base de referência para a elaboração de obras como o Elucidário Madeirense (1921). De facto, são muitas as referências aos apontamentos e ao nome de Álvaro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que compõem o Elucidário, tendo os seus autores confessado que “são as Saudades da Terra, e sobretudo as suas valiosas e abundantes notas, o mais rico, copioso e seguro repositório de elementos que possuímos para a história do nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, vol. II, 1998, 126). Neste sentido, também outros autores terão consultado e referenciado as notas a Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes de Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (1949-1953). Ainda relativamente à história da Madeira, Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de uma série de artigos, nomeadamente, “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário Universal Português Ilustrado, dirigido por Fernandes Costa. Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Romanceiro do Arquipélago da Madeira, um volume de 514 páginas, resultado das suas recolhas da tradição oral em diversas freguesias da Madeira e do Porto Santo, para o qual terão contribuído as influências de Teófilo Braga. As composições foram classificadas por géneros, a saber, “Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por sua vez, foram divididos em espécies. Nas “Histórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu as seguintes espécies: “Romances ao divino”; “Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: “Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Contos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlengas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”, contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos para a elaboração do cancioneiro, que, porém, não chegou a publicar. No ano seguinte à publicação do Romanceiro, em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido com a ingratidão dos madeirenses pelo seu trabalho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou residência até ao fim da sua vida. Deixou uma coleção de apontamentos avulsos sobre a história, o romanceiro e o cancioneiro da Madeira, que foi coligindo ao longo do tempo que ali passou, os quais foram adquiridos pela Biblioteca Nacional de Lisboa, após a sua morte. No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qualquer homenagem a este homem que se empenhou pelo progresso da Ilha. Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso proferido na Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em Que Se Expõe e Combate esta Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista. Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); Corografia do Arquipélago da Madeira (1873); “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880); Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma, Continuada e Editada por Ruy d'Azevedo (1926).   Sílvia Gomes (atualizado a 14.12.2016)

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