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falar(es) na escrita

As duas faces de uma língua viva Constituída por uma vertente oral e outra escrita, uma língua é, por princípio, bifacial. Contudo, nem sempre os dois lados coexistem. Se for uma língua viva, a face oral, tem-na por inerência, mas pode não contemplar a escrita. Os crioulos cabo-verdianos constituirão um caso paradigmático disso mesmo, embora a situação se esteja a alterar com a tendência crescente para a fixação da fala do criouléu cabo-verdiano de Santiago, divergente, por exemplo, do de São Vicente. Se se tratar de uma língua morta, sucederá o inverso. É assim com a língua latina, que, grosso modo, subsiste apenas na escrita. Pela sua prolífera cisão, esta deu origem às línguas românicas, que, inicialmente, eram apenas faladas e que, por razões históricas, ganhando dimensão nacional ou regional, se tornaram, na sua maioria, escritas. A língua portuguesa, com 800 anos de história contados a partir do Testamento de D. Afonso II, datado de 1214, é exemplificativa de uma língua latina com escrita fixada, havendo percorrido um longo percurso para o efeito. Todavia, há línguas que estavam mortas e que voltaram a ganhar vida, ou seja, readquiriram uma vertente oral. Foi o que aconteceu com a hebraica, aquando da criação do Estado de Israel. É possível contar com outras línguas que nunca foram escritas e que desapareceram ad aeternum com a extinção da sua comunidade de falantes (cf., p. ex., DN, 7 fev. 2011, 49). Algumas mantêm-se vivas pontualmente, como os versos sânscritos recitados em exercícios de ioga. Neste conjunto de línguas, seria igualmente viável inserir o latim, já que a Santa Sé o usa ocasionalmente, sendo a sua língua oficial, embora o italiano a substitua em grande parte das ocasiões em que é indispensável recorrer a um registo linguístico de viva voz. Assim sendo, compreende-se que a dinâmica de um idioma é dada pelo facto de ele ser falado, usado na comunicação diária dos membros de uma comunidade. Esta evidência reencontra-se na relação dos termos “comum”, “comunidade” e “comunicação”, ao integrarem a mesma família. Entre línguas naturais mortas (desaparecidas ou conservadas), ressuscitadas e vivas, a relação entre as suas duas faces, os dois registos, é incontestável. Podem esses dois lados (ou apenas um deles) encontrar-se num estado latente/implícito (sem escrita ou sem oralidade) ou patente/explícito (com escrita e com oralidade). No geral, é à comunidade de falantes (os usuários das línguas numa ou nas duas facetas) que cabe decidir o que pretende fazer. Acontece que, nas trocas linguísticas quotidianas, a variedade da língua empregue raramente corresponde, com completude, à que está padronizada nos dicionários e nas gramáticas, nos compêndios e nos prontuários, já que os membros de uma comunidade vão recorrendo quer a diversos níveis da linguagem, consoante as situações de comunicação em que se encontram – das mais formais às mais informais –, quer a variedades sociais ou diatópicas com cunho específico. É preciso ter em conta que estas últimas recebem a influência da área geográfica onde os falantes nasceram e vivem ou onde passaram a residir, sem aí terem nascido. Assim, sucede que na Região Autónoma da Madeira (RAM) se fala de uma maneira que não é integralmente comum à do restante território nacional, embora também se recorra, nesta área geográfica insular, à variedade padrão, de modo mais premente na escrita documental e oficial. Compreende-se, consequentemente, a razão por que a variedade regional tem somente registo oral, não possuindo nenhum registo escrito oficial. É famosa a frase “O grade azougou e foi atupido na manta das tenerifas”, apresentada como um exemplo ilustrativo do falar regional usado pela população, sendo incompreensível a quem seja de fora, isto é, estranho à comunidade. Aliás, vão-se divulgando textos escritos “à madeirense” (incluindo do Porto Santo: cf., p. ex., ROSADO, 2003). É também esta a ideia que perpassa, por exemplo, no texto “Linguagem Popular da Madeira”, da obra homónima (SILVA, 2013, 23-27), e na crónica “Falares Ilhéus” (JARDIM, 1996, 23-24). No arquipélago, é frequente ouvir dizer, mesmo numa situação formal de comunicação, que determinada tarefa leva “horas de tempo” (“Esse trabalho leva duas horas de tempo”), mas a expressão não se deverá escrever, já que, no plano da escrita, vigorará a norma que aceita unicamente “horas” (“Esse trabalho leva duas horas”). Esta discrepância é fácil de entender, visto que as entidades que controlam o idioma, nomeadamente no que se refere ao ensino, para o manterem homogéneo, o mais uniformizado possível, optaram por uma grafia única, a da norma, um padrão imposto às restantes variedades. Assim, a qualidade bifacial do Português assume, do lado da escrita, à partida, a invariabilidade, mas reconhece, do lado da fala, a variabilidade. Infere-se, daí, que a norma é a única variedade com menos variação. Todavia, a este propósito, sublinhe-se que a definição de “norma” pode não ser unânime. Embora este conceito tenha uma base incontestável, quando a definição remete para “que serve de modelo, de padrão”, foi posto em causa, ultimamente, devido à população referencial que a consubstancia. A que falantes corresponde a norma? Reporta-se aos mais instruídos, sejam eles de que parte do país, e do mundo, forem? Tem origem, em exclusivo, nos falantes mais escolarizados (estrato social médio-alto) de uma área geográfica precisa (Lisboa ou Coimbra-Lisboa)? Para o Português Europeu, equivaleu à variedade usada pela classe alta do eixo Lisboa-Coimbra, e para o Português do Brasil, à das classes altas do Rio de Janeiro (CUNHA e CINTRA, 1995). Como já referido, este conceito de cariz social e geográfico tem sido alvo de alguma refutação, estando, claramente, a ser reequacionado (cf., p. ex., EMILIANO, 2009), o que é compreensível numa sociedade do séc.XXI que, pesem embora as enormes desigualdades sociais, tende para a existência de uma classe média mais forte, com diminuição dos extremos no que toca ao poder económico. Este é, pelo menos, o cenário generalizado na sociedade ocidental. Esquecendo, momentaneamente, a problemática colocada pelo conceito de “norma linguística” e centrando a temática na questão das variedades, sabe-se que, habitualmente, os falantes regionais dominam, pelo menos, duas variedades linguísticas: a exógena (a normativa) e a endógena (a nativa). Diz-se, então, que existe um fenómeno de diglossia, muito semelhante ao bilinguismo. Torna-se evidente, porém, que isso se aplica em exclusivo ao registo oral, uma vez que, na escrita, predominará a ortografia estabelecida para a língua oficial. Por exemplo, num bilhete para um familiar, um madeirense poderá escrever algo como “Vamos ir lalá lalém com Maria. Junta a mochilha!”, hesitando na grafia de “lalá”: “lá-lá”/“lá lá” e de “lalém”: “l’além”/“lá-além”/“lá além”. Todavia, se ele tivesse de transmitir esta mensagem a alguém que não fosse da mesma variedade diatópica, encontrando-se, além disso, numa situação de comunicação que requeresse adequação linguística, deveria alterá-la, adaptando-a com uma proposta como “Vamos dar um passeio acolá com a Maria. Apanha a mochila!”. Numa comparação geral destas duas possibilidades, observa-se que as divergências existentes entre o registo exógeno e o endógeno são substanciais e mereceriam a elaboração de um dicionário (Regionalismos Madeirenses) e de uma descrição gramatical (REBELO, 2014a). Esta deveria dar conta de todas as marcas linguísticas que individualizam a variedade regional a nível da Fonética, da Morfologia, da Sintaxe e da Semântica, incluindo os outros campos dos Estudos Linguísticos, o que os vários trabalhos existentes, de que fazem parte as dissertações académicas, tenderam a fazer de modo parcial. Fica claro que a norma de uma língua viva tem uma vertente oral e uma escrita, mas tal não sucede com as variedades diatópicas, uma vez que possuem unicamente, em termos oficiais, registo oral. Pontualmente, quando se vê escrita nas mais diversas situações de comunicação, nem sempre, por diversas razões, é evidente a variante a fixar (REBELO, 2014b). Aliás, as corruptelas, ou seja, “pronúncia ou escrita de palavra, expressão, etc. distanciada de uma linguagem com maior prestígio social” (HOUAISS, 2001), presentes nas entradas de vocabulários e glossários são prova disso mesmo. Com frequência, surgem na imprensa (cf. os jornais regionais publicados diária ou semanalmente na RAM) hesitações. É o caso de “persiana”, um vocábulo que não se usa no arquipélago e que é, sistematicamente, substituído pelo termo tido como regional “tapa-sol” ou “tapassol”, parecendo difícil escolher entre uma ou outra variante. Acontece de igual modo com muitos outros termos registados nos vocabulários existentes (cf. RIBEIRO, 1929; SILVA, 1950; SOUSA, 1950; PESTANA, 1970; e CALDEIRA, 1993, entre outros). Esta variação gráfica assinala-se, inclusive, nos estudos linguísticos, como os de Käte Brüdt (1938) e de Millet Rogers (1940, 1946 e 1948), que anotaram as palavras da forma como as ouviram pronunciadas pela população. A audição com apontamento foi a metodologia seguida por grande parte dos estudiosos da variedade insular madeirense. Aliás, estes dois investigadores, como quase todos os outros dos três primeiros quartéis do séc. XX, arranjaram uma transcrição sui generis para grafar a dinâmica da fala madeirense (REBELO, 2002b). Este método de registo do(s) falar(es) faz lembrar o da “pronúncia figurada” (REBELO e SANTOS, 2013, submetido), que se empregou extensivamente antes de haver alfabeto fonético internacional. Veja-se o seguinte exemplo para “vinho”, evidenciando a diferença entre a pronúncia figurada, como a expressa em “vâinho” (BRÜDT, 1937-1938), e uma transcrição fonética que se poderá considerar equivalente: ['vɐjɲu]. Sinteticamente, a expressão “pronúncia figurada” significa aquilo que os termos constituintes evidenciam, ou seja, é a representação escrita (figurada), através das letras do alfabeto latino e de determinados sinais adicionais, como acentos gráficos, usada para poder ser reproduzido por meio da leitura (articulação) um modo de dizer (pronúncia) de uma língua estrangeira ou de uma variedade geográfica. A única face visível da variedade diatópica madeirense A variedade insular madeirense, no seu todo, tem, consequentemente, patente a face oral, uma vez que é exteriorizada através da verbalização, e latente (invisível) a faceta escrita, dado que não possui gramática oficial, nem ortografia definida. O mesmo se verifica para as restantes variedades regionais portuguesas ou para as outras realidades não diatópicas lusófonas, como as africanas ou as asiáticas. Podem existir estudos que descrevam ou registem particularidades da oralidade das variedades, mas são restritos e pontuais. Aliás, a “transcrição alinhada” que acompanha as gravações dos CD’s Português Falado (BACELAR DO NASCIMENTO, 2001) normaliza consideravelmente a vitalidade da fala, distanciando-a bastante da grafia que surge a acompanhar o registo oral dos falantes gravados. Porém, esta situação tem vindo a ser alterada, dando-se visibilidade ao registo da variedade, como aconteceu para São Vicente (cf. FREITAS, 1994), embora não se tenha acesso às gravações realizadas pela pesquisadora. Quase todos os trabalhos, incluindo os académicos, curiosamente, facultam o registo escrito (transcrição), mas não dão o registo oral gravado que motivou a transcrição, sucedendo o mesmo com os trabalhos dos atlas linguísticos (REBELO e NUNES, 2009), em que apenas se publica a transcrição fonética dos termos cartografados. É assim desde o início das investigações, mas ressalva-se que, antigamente, os meios técnicos eram praticamente inexistentes. Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo e Lindley Cintra interessaram-se pelo estudo da variação diatópica portuguesa, procurando atestar (por escrito) estas realidades linguísticas ultradinâmicas. Quanto à existência de uma única variedade madeirense ou de muitas, uns preferem o singular (VASCONCELOS, 1901, 1970) e outros o plural (CINTRA, 1990, 2008). Escreveu Lindley Cintra que “[...] não parece certo afirmar sem hesitação que o grupo de dialetos madeirenses (como, aliás, os açorianos) pertence ao grupo dos dialetos meridionais do continente, como também será inexato associá-los sem reservas ao grupo dos setentrionais. Misturam-se neles características próprias de ambos os grupos, o que obriga a situá-los num grupo à parte – ‘insular’. Dentro desse grupo os dialetos madeirenses isolam-se dos restantes devido à existência, que procurei rapidamente apresentar, de fenómenos raros, ausentes dos dialetos de outras ilhas, do continente e por vezes até – podemos acrescentar – do resto daquilo a que chamamos România” (CINTRA, 2008, 104). No entanto, apesar de optar pelo plural, não os identifica, nem os localiza. Indicar, unicamente, diversas particularidades não parece suficiente para justificar a existência do plural “dialetos madeirenses”. Foi testado o reconhecimento auditivo da variação na variedade insular madeirense (REBELO, 2011) e comprovou-se que dificilmente os ouvintes conseguem identificar, simplesmente pelo falar, a origem regional dos falantes. Assim, por falta de provas e de estudos consistentes sobre este assunto, opta-se por referir a variedade no geral e, consequentemente, no singular. Aliás, a designação “madeirense” (até prova em contrário) serve perfeitamente para o efeito, fazendo equivaler a linguagem regional ao identificativo do habitante (língua e gentílico), como acontece com a maioria das línguas vivas (REBELO, 2014a). Antes de os estudos pós-saussurianos centrarem a análise linguística na parole (fala), em vez de se concentrarem na langue (língua), os filólogos debruçavam-se sobre os textos escritos, em especial os literários. Deles colhiam informações pertinentes para o estudo da langue, em particular da sua diacronia e história. Criando-se a Linguística como disciplina científica, o que passa a interessar não são os textos fixados em suportes deterioráveis como o papel, mas a riqueza sincrónica da fala multivariável, com um suporte físico “imaterial” (o ar). Este afastamento da escrita levou os especialistas da linguagem, sobretudo os dedicados à análise da fala, num plano sincrónico, a olvidarem totalmente os registos literários. Ora, para os linguistas que têm procurado estudar o português falado na RAM, através de transcrições e de gravações, é de todo conveniente observar, igualmente, os contributos dos escritores regionais. No séc. XX, sobremaneira na primeira metade, indo mesmo aproximadamente até à déc. de 70, as transcrições linguísticas presentes em dissertações de licenciatura, e noutros trabalhos académicos, como se referiu, não diferiam muito das propostas presentes em textos literários, nos diálogos de personagens tipicamente regionais, estando ambos (trabalhos académicos e textos literários) muito próximos do método da “pronúncia figurada”. A descrição da fala regional importa aos estudiosos da linguagem e a um número considerável de escritores, embora numa abordagem menos científica do que a que orienta um linguista. Logo, é a Literatura que vai permitir registar a escrita do modo regional de falar, mesmo se algumas produções literárias não têm seguido esta via, o que aconteceu na recolha de contos populares (FREITAS, 1996) ou de rimances (FERRÉ e BOTO, 2008). Não se almeja, no entanto, abordar a questão da “Literatura Madeirense” (cf., p. ex., HOMEM, 1999 e SANTOS, 2007, 2008), mas tão-somente valorizar, para o falar da variedade madeirense na escrita, o contributo de textos literários de alguns escritores, mais ou menos conhecidos, consagrados ou não, relevantes ou insignificantes quanto ao cânone literário (SANTOS, 2008). A escrita da variedade madeirense: a relevância do texto literário Em termos linguísticos, se o português falado na RAM é apenas unifacial por possuir exclusivamente a face oral, quando olhado sob o prisma literário, torna-se bifacial. Contudo, a dimensão escrita que adquire não é ortográfica, mas fonográfica ou grafofónica (REBELO, 2013 e 2014, no prelo). Estes dois últimos termos estabelecem uma íntima relação entre a dimensão “gráfica” (representação escrita) e a “fonia” (produção oral) para dar conta das características regionais ou locais de um modo de falar. Consistem, por assim dizer, no mesmo processo empregue no registo da “pronúncia figurada”. Posto isto, convém, todavia, clarificar que as representações escritas do registo oral regional vão variando consoante os escritores e a maneira como captaram as sonoridades insulares, não havendo, portanto, uma relação unívoca entre estas duas faces. As causas para este fenómeno serão múltiplas e não se equacionam de momento. A poligrafia literária faz lembrar o polimorfismo próprio do Português Arcaico (cf., por exemplo, VÁZQUEZ CUESTA e LUZ, 1988). Por exemplo, o Dicionário Houaiss apresenta a evolução histórica dos significantes e verifica-se que nem sempre um determinado vocábulo (ex.: “igreja”) se escreveu da mesma maneira, tendo tido, num mesmo período ou em mais, várias formas (ex.: “egreja” e “ygreja”, entre outras possibilidades). Em parte, isso verifica-se porque os diversos autores tidos como regionais foram fixando e dando corpo gráfico, visibilidade impressa, às sonoridades insulares, segundo a sua própria captação da fala. Este processo de materialização dos diversos níveis da variedade insular (como o social: calão, gíria, etc.) na escrita literária sucedeu no plano internacional (p. ex., em França, com Raymon Queneau, e em Moçambique, com Mia Couto) e nacional, com escritores como Lídia Jorge ou Aquilino Ribeiro. Aliás, é sabido que já Gil Vicente procurara conferir um estilo linguístico a determinados tipos de personagens, moldando a grafia segundo traços de pronúncia. Logo, esta especificidade não se observa unicamente na RAM, uma vez que é comum a outras variedades, registos ou línguas. Deste modo, não é uma estratégia exclusiva do espaço criativo madeirense. Contudo, é aqui que a interessa observar, esboçando-lhe os contornos para a configurar. São, sobretudo, as personagens representativas das camadas sociais mais baixas, tipicamente populares, que, nos textos literários, vão “falar à madeirense”. O valor científico da linguagem popular (BOLÉO, 1942) e a problemática da relação entre “popular” e “regional” (VERDELHO, 1982) são tópicos prementes para o estudo do registo escrito das variedades. A escrita ficcional tende a querer assumir traços de realismo linguístico (REBELO, 2008, 2013, 2014 no prelo). Portanto, as personagens, enquanto entidades literárias intratextuais, ganham pujança extratextual, representando um modo de falar de um povo de uma região. Têm entidade individual, muitas vezes com nome próprio, mas identificam o conjunto, a comunidade. O texto adquire, então, um colorido regional quando estas personagens populares, quer iletradas quer pouco ou nada instruídas, falam, sendo recriadas pelos autores. A grafia da fala representada passa a ser desviante porque é uma “transgressão ortográfica”, visto corresponder a uma transcrição gráfico-fónica. As letras do alfabeto latino são usadas para escrever a pronúncia regional que se afasta da representação ortográfica normativa (como no processo da “pronúncia figurada” e de modo distinto da transcrição alinhada, representação ortográfica que acompanha linha a linha a produção de um texto oral). São, assim, as sonoridades específicas da variedade diatópica madeirense que passam a ser escritas. É complexo saber quem terá sido o primeiro autor a procurar registar o falar regional madeirense na escrita, nomeadamente literária, uma vez que a tendência foi quase sempre a de normalizar a grafia. Sem considerar o registo pontual de Mariana Xavier da Silva (1884), Ricardo Jardim, que passou alguns anos em Inglaterra, apresenta-se, com Saias de Balão, como o percursor, até que se descubra outra referência. Este autor regista a fala na escrita de maneira muito incipiente e de forma esporádica. Esta acontece, essencialmente, quando os “criados” falam, como se verifica no seguinte excerto: “Menêina, nã vaia p’ra riba!... Menêina, vai-se pisar!... Menêina, aprante-se p’ra aí! Esteja quètinha!... Credo! Abrenúncio!” (JARDIM, 1946, 32). Desta deixa, sobressai, entre mais particularidades, a ditongação do <i> tónico (êi), considerada como tipicamente madeirense. Em contraponto com Ricardo Jardim, indubitavelmente, um dos autores que mais empregaram este processo da escrita do falar terá sido, por certo, Horácio Bento de Gouveia (SANTOS, 2007). Se não o fez em todos os contos, usou-o, pelo menos, sistematicamente nos seus romances (ALMEIDA, 2000). Apresenta-se um excerto da obra Torna-Viagem: o Romance do Emigrante (GOUVEIA, 1995, 56): - Q’ aconteceu? - O navoeiro matou mê filho! - Aonde? - Na beira da rocha. - Antão ’tá no fundo da ribeira. – E chamou, repentinamente, com toda a força da arca do peito: - Manel? Manel? - O quia, mê pai? - Vem cá. Neste breve diálogo, além de outros fenómenos, regista-se a ditongação com crase em “quia” (que é), sendo notória, no início do diálogo, a ausência do artigo definido antes do possessivo (Sintaxe) com a frequente monotongação deste (“mê filho”). Estes traços são correntes na variedade madeirense, embora, como se sabe pelos trabalhos de vários estudiosos e linguistas como, p. ex., Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo ou Lindley Cintra, comuns a outras variedades portuguesas. Entre estas duas tendências extremas (usar pouco – Ricardo Jardim – e empregar muitíssimo – Horácio Bento de Gouveia), diversos autores foram escrevendo a variedade diatópica madeirense. No entremeio, estará, p. ex., António Marques da Silva, com a “crónica romanceada” Minha Gente, obra póstuma, mas cuja finalização data de 1951. Dando voz às gentes da zona de São Jorge (Santana), reproduz o autor o falar do povo local, como evidencia a citação que se transcreve (SILVA, 1985, 13): – O mê digosto é nã poder botar-me desta terra pá rua. Ainda cum queira mercar um casaco pá missa, nã se pode. Anda-se atolado em lameiro todo loi dias e o que se ganha mal dá pá barreiga... – E si que dê graças a Deus em ter uma buxada para meter na boca... – acrescentou o outro, no mesmo tom melancólico. – Si amode canda reinando ca vida, Man’leinho? – soltou de lá um mais folgazão. – Ora! Cadmiração! Por aquei é com ’um porco que tá dentro do chequeiro. No há com’as outras terras! O Rodrigues, porém, insistia: – Poi sim... Mas si que veja o prove do João Perfeiro, do Farrobo, um homem como um teil, que veio arrebentado daquelas terras do fasteio!... Destaca-se também nesta amostra da escrita da fala a ditongação de <i> tónico (“Man’leinho” – Manuelinho, “barreiga” – barriga, “aquei” – aqui, “teil” – til, “fasteio” – fastio). Este ditongo, com semivogal divergente da palatal ou da velar normativas, reencontra-se, p. ex., no estudo acústico sobre o falar do Porto Santo (REBELO, 2005). Sobressai o uso da forma de tratamento com “si”, entre vocabulário típico (“mercar”, “um lameiro” ou “reinando”) e diversos fenómenos fonéticos, como mudanças de timbres, supressões, etc. Realça-se a forma do artigo definido masculino plural “loi” e a monotongação do possessivo “mê” (meu), mas, aqui, antecedido do artigo (“o mê”). Como se verifica, a exploração das particularidades linguísticas registadas deveria ser alvo de uma investigação aprofundada, podendo, crê-se, ter um considerável interesse para o linguista. A reaproximação da Linguística à Literatura merece, assim, para o estudo da variedade insular, uma atenção especial. Além destes três autores mencionados, apontam-se outros por serem, porventura, os que mais ilustram esta estratégia linguístico-literária, recorrendo a uma transcrição linguística reconstruída (ficcionada) que aproxima a grafia da fonia. Decerto, os autores que viveram o período da Revolução dos Cravos, em meados da déc. de 70 do séc. XX, experimentaram uma revalorização de tudo o que se relacionava com o povo. Textos publicados nesse período tenderam, por isso, a sobrevalorizar o falar regional, na sua vertente popular e regional. É o que acontece com Pernas Ceifadas, de Maurício Melim Teixeira, com prefácio de Horácio Bento de Gouveia. Nesta obra, o autor, conferindo-lhe um cunho de realismo, afirma que “[...] a história apresentada se baseia em factos reais [...]. À parte algumas criações minhas, outros arranjos e outra disposição, ela sustenta-se num (entre tantos) caso real, bem funesto da sociedade madeirense” (TEIXEIRA, 1975, 9-10). O pendor realista é ainda salientado por Horácio Bento de Gouveia no prefácio da obra: “A prova evidentíssima reside no conteúdo da novela, no realismo das cenas, no aspecto fónico do linguajar das personagens”. Acrescenta Gouveia, a propósito: “Nota-se uma natural preocupação de gosto pelo termo raro, muitas vezes forçado. Infere-se, da sintaxe, muita leitura, bem que não completamente escoimada dos prejuízos inerentes à busca da verdade linguística” (Ibid., 12-13). Reencontra-se esta tendência nos diálogos que dão conta de um falar divergente do registo normativo (Ibid., 153-154): – Olhe nã repare nesta desarrumação qu’ at’ ia ûa vergonha! ’Tava [sic] acabande d’almoçar, sabe cuma ia... Mas antão o qu’ ia qu’ a trai pro cá? Precisa dalgûa coisa, ia? S’ iu puder ajudar ia só dezer, faça-se de casa, nã faça cirmónia! [...] – Eu gostava de tilfonar... Hesitava. – Pôs ia tilfonar... ora venha daí... largue lá esses acanhamentes... por ’quei, por ’quei... – e balançava-se, afanada. – Sabe qu’ o nosso... quer dizer... o mê pai trancou o tilfone e iu preciso muito tilfonar... desculpe vir incomodar... – Ora essa! Ora essa! Incomodar, proquia? Nã incomoda nada, nem um belisque... Ah, mas o sê pai trancua? Ora essa! – repetia – Mas antão proquia? – [...] – Tudo por causa do mê namorado... O qui é que quer? Ele é assim! Embirrou e agora? É teimoso que nem um jerico! Vá lá entender-se isto! O diabo do homem pendeu prá ‘li e tirem-lho da carcaça! – Ah, e iu a pensá qu’o sinhô Francisque era um home compreensive, honeste! Olhe que nem parece ser o qu’ ia! – estava despeitada – Sabe o qu’ ia: a gente vê, fala, mei nunca ia cuma se vivesse cum ele, nã se lhe conhece ei manhas. Aparências... Olhe menina: nem tude o que luz ia oure! Ora, são todes bons! Homes! Todes iguais, nem um só s’ escapa! Ia tude ûa súcia de bandides, ûa canhalha! Concluía por fim: – Mei vá lá, vá lá, nã demore mais aquei, qu’a meinha c’riosidade já lhe tirua munte tempe. Ia aquei, ia aquei! Pegue, ‘teija à vontade! Neste diálogo, assinala-se, de novo, a ditongação de <i> acentuado (“aquei”, “meinha”), que, porém, nem sempre ocorre (“compreensive”, “bandides”), assim como a de “é” (“ia”), entre múltiplas outras especificidades, como a mudança de timbre de <o> em posição final absoluta ou não (“todes”, “tempe”). Certos traços ocorrem igualmente no conto de Jorge Sumares “Mai Maiores qu’ essei Serras”, que data também do mesmo período de mudança política, assim como de paradigma estético-literário e linguístico, já que foi escrito em finais da déc. de 60 e publicado, parcialmente, em 1974, no Diário de Notícias da Madeira. Não sendo escritor de profissão, Sumares redigiu este texto aproximando os grafemas dos fonemas, ou melhor, as letras dos fones, como se constata da leitura do passo que se recortou da integralidade textual (um diálogo em que se “ouve” apenas uma das duas vozes, um dos dois interlocutores, o idoso popular, marcadamente regional): “Filhos? Tive nove. Seis homes e três melheres. Tudo se criua à conta de Deus. Inté a nossa Rosaira já tava criada cando Deus a chamua à sua devina presença. Já andava nui vinte. Veio-le um bicho no estâmego – lá foi” (SUMARES, 2005, 177). Curiosamente, a ditongação de <i> tónico não se verifica neste excerto, mas ocorre no decorrer do conto (REBELO, 2013). Porém, o fenómeno da ditongação sucede, p. ex., com o fonema [o] (<ou>) em “criua” (criou), “chamua” (chamou). Também sobressai a mudança de timbre vocálico por, na maioria dos casos, assimilação ou dissimilação, o que é evidente em “melheres” (mulheres), “devina” (divina) e “estâmego” (estômago). Dá-se ainda, e apenas, relevo ao plural “nui” (nos), assinalando um traço que é identificado como madeirense, isto é, o plural em <i>. Este fenómeno gerou controvérsia quanto à sua explicação, nomeadamente entre Millet Rogers e Eduardo Antonino Pestana (PESTANA, 1970) (Sintaxe). É indispensável referir que, antes destes autores, Ernesto Leal, no conto com o título homónimo da obra O Homem que Comia Névoa, de 1964, experimentara este exercício, mesmo se, como Ricardo Jardim, não lhe conferiu grande relevo na sua obra. No entanto, não se pode deixar de mencionar, ilustrando esta escrita fónica com um breve trecho (LEAL, 1964, 68-69): Na Portela das Mantas, à hora da névoa da manhã, o vilão grita assim e os sons ficam no ar, a baloiçarem-se: – Ó Maruia!... […] E a viloa responde: – Qu’é? […] – Onde estás, que não te vejo, ca névoa? […] – Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro. Mais uma vez, o <i> tónico surge ditongado (“Maruia” – Maria, “ruiba” – riba) e sobressai enquanto marca madeirense perante fenómenos populares geograficamente mais amplos, como a elisão em “Qu’é?” ou a aglutinação presente em “ca”. Estranhamente, as formas verbais “estás” e “Estou” mantêm-se intactas, quando correntemente se reduzem a “tás” e “Tou”. O mesmo acontece com o ditongo de “não”, que tende a monotongar na oralidade (“nã”). O vocábulo “couves” é, popularmente, por certo, mais empregue com a variante do ditongo “oi”, mas, neste excerto, mantém-se inalterado. Esta observação, aplicada a outros fenómenos e vocábulos, é válida para os restantes autores que seguem o processo de escrever o falar, já que, por vezes, não assinalam traços que se sabe serem comuns no registo da fala. Aliás, isso é notório em Francisco de Freitas Branco, que, embora não tenha escrito textos literários, seguiu esta estratégia em crónicas com alguma literariedade. Orientou-se este autor por uma transcrição alfabética do falar madeirense (da Madeira e do Porto Santo) inconstante e cambiante, muito versátil, como o comprovam a leitura das crónicas “Sobre Habitantes da Ilha: Apontamento Linguístico”, “Ê Tenho esta Ideia Comeio (Crónica Literária)” e “Ainda nam Teinha Trêzianes, Comecei Cêde: Tentativa para Reprodução Escrita da Fala Viva” (REBELO, 2002a, 2004, 2008, 2013, 2014 no prelo). O processo terá desagradado aos falantes que se sentiram desvalorizados por considerarem que aquela escrita estava repleta de “erros”. Ora, o facto de as transcrições de Freitas Branco se reportarem a pessoas (reais – entidades extratextuais) e não a personagens (de papel e palavras – entidades intratextuais) terá criado equívocos difíceis de resolver, já que estas transcrições queriam sublinhar a riqueza da dinâmica da fala. Parece, então, que, se se sair do plano ficcional, a variedade diatópica continua a ser unifacial. Caberá aos linguistas ultrapassar esta dificuldade, se se pretender que a variedade endógena seja bifacial fora dos limites da Literatura, que, porém, tem continuado a alimentar o processo de transcrição da fala. Mais recentemente, um dos últimos autores que procuraram passar para a escrita o falar dos ilhéus do arquipélago terá sido Lídio Araújo, que recorre, abundantemente, ao processo em Filhos do Mar. A leitura deste livro é animada pelos diálogos recriados, que, além de serem muito enfáticos, como à partida o são os reais, transmitem um colorido local. As marcas do nível popular preenchem o discurso dialógico, como o seguinte excerto o evidencia (ARAÚJO, 2002, 83-84): – Pedro, acorda! Al’vãta-te O [sic: sem ponto] pae leiva-t’ô maar! [...] – O qu’ia pae, ô maar? – Seim! Êu t’prom’tei, um deia. Hôje vaes c’agênte! [...] – Ia ve’dade, pae? – interrogou, incrédulo, arregalando os olhos. – Ia seim! – E a mãe já saabe? – Já! D’spacha-te! Ao ler-se estas deixas das personagens, é como se se ouvisse as pessoas a expressarem-se nos seus modos de falar marcadamente sincopados e com múltiplos fenómenos estudados pela fonética combinatória (Fonética). A supressão de fonemas é assinalada pelo apóstrofo, como em “Al’vãta-te” (Levanta-te) e “t’prom’tei” (te prometi/prometi-te). A duplicação vocálica poderá indiciar vogais longas e/ou com um grau de abertura considerável, representando para o leitor a necessidade de as “dizer” duas vezes (“maar” – mar, “saabe” – sabe), como se houvesse duas vogais/duas sílabas. Este último fenómeno confere melodia ao falar, alongando os vocábulos por parecerem ganhar uma sílaba. Como para os autores já mencionados, além de o nível popular se destacar, surgem também nesta obra de Lídio Araújo particularidades regionais, como a ditongação de <i>, quer oral – “deia” (dia) –, quer nasal – “seim” (sim). Regista-se ainda a da vogal anterior semiaberta, que se encontra, p. ex., em “qu’ia” (que é) e em “leiva” (leva). Poderia alargar-se a exemplificação, mas esta parece ser suficiente para comprovar o valor deste livro, que, através da recriação do autor, reproduz o falar das gentes do mar madeirense de Câmara de Lobos. Nesta síntese, fica claro ser inviável referenciar todas as obras de cunho madeirense (que começam a ser em número considerável) em que o recurso da escrita da fala ocorre. Pelo traço característico que as permite reagrupar aqui, os escritores mencionados e as obras citadas, além de todos os restantes não referidos, aguardam um estudo linguístico aprofundado. Seguindo as pegadas dos filólogos do passado, o linguista do presente, dedicado à variação regional, terá todo o interesse em analisar as diversas transcrições literárias para a representação gráfica do falar insular, que revelam constituir um rico património (REBELO e GOMES, 2014). Muitas vezes, são dados impressionistas (REBELO, 2003, 2011) e intuitivos, já que, p. ex., a palatalização da lateral antecedida de [i] nem é comum (ANDRADE, 1994) nos textos transcritos. No entanto, não se distanciam substancialmente dos que as dissertações de licenciatura apresentaram (MACEDO, 1939; ROGERS, 1940, 1946, 1948; MONTEIRO, 1945, 1950; PEREIRA, 1952; PESTANA, 1954; NUNES, 1965). A título meramente exemplificativo, veja-se, em baixo, a Tabela 1, com algumas representações literárias da autoria de Ricardo Jardim, Ernesto Leal, Jorge Sumares e Francisco de Freitas Branco. A variação no modo de grafar a vogal indica uma pronúncia particular que cada autor escreve à sua maneira, como a ouve. A tabela foi elaborada a partir de um levantamento de dados anteriormente realizado (REBELO, 2008) e nela facultam-se exemplos, destacando-se a negrito os segmentos a considerar. [table id=95 /] Assim, constata-se que há todo um trabalho de sistematização linguístico-literário a realizar para dar visibilidade à face escondida (a escrita da fala) da variedade insular madeirense, que, todavia, figura em vários textos literários, segundo os critérios individuais dos seus autores. É urgente compará-los para compreender em que pontos são credíveis, ou não, as suas propostas de escrita da fala da variedade diatópica madeirense. Enquanto isso não suceder e não houver interesse em escrever o falar madeirense (os falares madeirenses?), a variedade insular continuará a ser apenas unifacial, sobrevivendo no registo oral, até a comunidade regional assim o desejar.   Helena Rebelo (atualizado a 07.12.2017)  

Linguística Literatura

lei regional

O sistema vigente de repartição de competências legislativas entre o Estado e as regiões com autonomia político-administrativa Distribuição horizontal de competências: recomposição do modelo de lista plural Em termos de modelo de repartição de competências entre o Estado e as regiões autónomas (RA), o paradigma da lista plural conservou‑se com a revisão constitucional de 2004, mas com um retorno parcial à arquitetura primitiva consagrada em 1976, no sentido da equação de duas “listas” constitucionais de poderes, uma estadual e outra regional, às quais acresce uma terceira lista subconstitucional de enumeração de poderes regionais (com reservas ao sistema de listagem no período que antecedeu a revisão constitucional de 2004, veja-se Maria Lúcia Amaral, “Questões regionais e jurisprudência constitucional…”; já no sentido da admissão de um sistema de listas, no período posterior a esse ato de revisão, com uma lista regional desconstitucionalizada, veja-se a obra, da mesma autora, A Forma da República). Tratou‑se de um retorno apenas parcial à versão constitucional de 1976, na medida em que se passou, com a revisão constitucional de 2004, a atribuir expressamente aos Estatutos Político-Administrativos (EPA) das Regiões Autónomas um papel central na discriminação de matérias das respetivas competências, nas quais incidirão os poderes legislativos autonómicos de tipo comum. Deste modo, foi conservada na Constituição da República Portuguesa (CRP): uma listagem de matérias de competência estadual, exclusivamente reservadas aos órgãos de soberania (exceção feita a certas matérias da reserva de competência legislativa do Parlamento que são delegáveis nas regiões); uma listagem, por via remissiva, de matérias de competência legislativa regional com carácter delegado (art. 227.º, n.º 1, alínea b))complementar (alínea c)) do mesmo preceito, bem com um elenco de matérias de competência mínima (art. 227.º, n.º 1, alíneas i), j), l), n), p), e q)); e uma remissão importante das restantes matérias de virtual competência autonómica para uma terceira lista regional de natureza subconstitucional inscrita nos Estatutos (art. 227.º, n.º 1, alínea a) e art. 228.º, n.º 1), a qual coexiste num universo concorrencial com competências dos órgãos de soberania integradas numa reserva móvel. É neste domínio de concorrência paralela que confluem, em binários diferentes dentro de uma mesma matéria, o exercício das competências regionais comuns e o exercício de poderes soberanos. Há, contudo, que separar nessa mesma matéria do domínio concorrencial uma esfera ou nível de poder regional e uma outra esfera atribuída aos poderes do Estado.   Taxatividade da enumeração estatutária das matérias respeitantes à competência legislativa regional comum ou primária Outra regra estruturante da revisão constitucional de 2004, que reforçou a listagem das competências regionais comuns, resultou, no nosso entendimento, da imposição de uma taxatividade da enumeração constitucional e estatutária dos poderes legislativos das regiões (refira-se que Jorge Miranda, que sempre militou em favor de uma lista aberta, alterou posteriormente a sua posição em favor de uma enumeração estatutária taxativa). Essa taxatividade parece decorrer: (i) do proémio do n.º 1 do art. 227.º da CRP, confirmado pelo n.º 1 do art. 228.º, que reza: “A autonomia legislativa das regiões autónomas incide sobre as matérias enunciadas no respetivo estatuto político‑administrativo [adiante designado por Estatuto] que não estejam reservadas aos órgãos de soberania”. Ora, semelhante fórmula não deixa grande margem para o exercício de poderes legislativos de tipo comum fora do limite positivo e negativo do Estatuto. Isto, sem prejuízo dos poderes legislativos de tipo mínimo – referimo‑nos às escassas matérias de competência legislativa regional que se encontram dispersas no n.º 1 do art. 227.º e que se designam, por vezes, de “competências mínimas” e da faculdade de as regiões poderem desenvolver leis de base estaduais e regionais em domínio de competência concorrencial (alínea c) do n.º 1 do art. 227.º); (ii) da supressão da antiga alínea o) do art. 228.º, que permitia expressamente legislar fora das listagens constitucional e estatutária. Em face do exposto, crê‑se que será organicamente inconstitucional um ato legislativo das regiões que incida sobre uma matéria que, fora dos domínios respeitantes às alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 227.º da CRP, não seja previamente definida como de âmbito regional no Estatuto, já que não existe, diversamente do que sucedia no período que mediou entre as revisões constitucionais de 1997 e 2004, uma norma constitucional que habilite o exercício de poderes legislativos comuns fora das matérias que se encontram elencadas no marco estatutário. O n.º 2 do art. 67.º do Estatuto, na redação dada pela sua terceira revisão, “testou” essa taxatividade, estabelecendo uma cláusula residual habilitante do exercício de competências na área concorrencial fora do marco estatutário. O Tribunal Constitucional (TC), numa primeira argumentação translúcida, esquivando-se a uma pronúncia clara sobre a admissibilidade de uma cláusula residual e sobre a taxatividade estatutária (que passou a ser uma realidade à luz do n.º 1 do art. 228.º da CRP), acabou por admitir de algum modo essa mesma taxatividade mediante uma formulação lateral, aludindo ao novo papel central dos Estatutos na definição das competências regionais. Para o ac. n.º 402/2008, “o Tribunal entende, pois, que a cláusula geral do artigo 67.º, n.º 2, do Estatuto não cumpre satisfatoriamente o mandato constitucional a ele cometido, no que diz respeito à competência da Assembleia Legislativa, de definir e enunciar as matérias por ela abrangidas. Pelo seu teor irrestrito e indeterminado, com total omissão de qualificações materiais delimitadoras, ela não atinge o grau de densificação constitucionalmente exigível. Temo-la por ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da CRP”. Posteriormente, outros arestos do TC (acs. n.º 304/2011 e n.º 187/2012) tornaram ainda mais claro o papel incontornável dos Estatutos na definição das matérias de âmbito regional atribuídas à competência legislativa regional comum.   Cláusulas gerais Para o efeito dessa separação ou delimitação de domínios numa mesma matéria, torna‑se relevante o uso de limites à competência regional sediados em cláusulas gerais. Tal é o caso dos conceitos jurídicos indeterminados do “âmbito regional” e, segundo o entendimento do TC, da “reserva de competência dos órgãos de soberania” na sua variante móvel ou não expressa.   A substituição do limite positivo do interesse específico pelo conceito constitucional de “âmbito regional” A revisão constitucional de 2004 extinguiu o limite positivo do interesse específico (cláusula geral que operava como pauta de repartição horizontal ad casum dos poderes legislativos das regiões em matérias onde também incidiam os poderes do Estado), cessando um conceito indeterminado que permitia à justiça constitucional invalidar diplomas regionais que não dispusessem sobre matérias que apenas ocorriam na RA ou que aí tivessem uma especial configuração. A grande maioria das declarações de invalidade de atos legislativos regionais desde 1976 fundou‑se, precisamente, no vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do interesse específico. Doravante, as regiões passam a legislar relativamente às matérias do universo concorrencial paralelo, no “âmbito regional”, uma medida de valor constitucional igualmente indeterminada que configura um novo critério de delimitação competencial. De acordo com o n.º 4 do art. 112.º, todos os decretos legislativos, independentemente do tipo de competência ao abrigo do qual são aprovados, “têm âmbito regional”. A expressão “âmbito regional” constitui, ainda assim, um conceito inovador indeterminado que se encontra sujeito ao teste da descodificação jurisprudencial.   O conceito comporta um elemento espacial e um elemento substancial. Trata-se de um limite mais linear do que o da noção de “interesse específico”, dado aludir fundamentalmente à projeção de uma dada matéria no âmbito geográfico ou espacial de uma RA. Assim, uma política pública que ocorra num domínio como o turismo deve decompor‑se, sob o ponto de vista legislativo, numa esfera geral de incidência estadual e numa esfera especial de carácter regional, sendo as mesmas reguladas por leis distintas. Apenas se a lei regional for revogada sem substituição ou se ostentar lacunas é que a lei geral aprovada pelo Estado poderá aplicar‑se na RA, já que aí vigora supletivamente (art. 228.º, n.º 2 da CRP) – no sentido de uma circunscrição predominante da noção de “âmbito regional” à dimensão espacial dada pelo elemento geográfico ou territorial são de referir Jorge Miranda e Rui Medeiros, que decantam a existência do que afirmam ser um “elemento institucional” que impeça, salvo disposição constitucional em contrário, os atos normativos dos parlamentos regionais de se projetarem em outras pessoas coletivas (MIRANDA e MEDEIROS, 2007, III, 351). O conceito pode sofrer um alargamento no plano substancial, ditado por exigências de especialidade. Na verdade, certos bens jurídicos e imperativos institucionais de alcance unitário e relevo imediato para todos os cidadãos, mas com repercussão no âmbito geográfico das regiões, podem carecer de um denominador comum à luz dos princípios da unidade e solidariedade nacionais (art. 225.º, n.º 2 da CRP), denominador que poderá ser negativamente afetado por legislação regional antitética passível de inviabilizar ou depreciar os próprios objetivos da lei do Estado e os interesses de toda a população residente em Portugal. Nessas circunstâncias, não seria improvável que o TC viesse a enxertar, na noção de “âmbito regional”, um limite simultaneamente negativo e positivo, soldado, no plano substancial, à ideia de especialidade regional dos bens e interesses tutelados. E que viesse a julgar a inconstitucionalidade de decretos legislativos regionais que projetassem indiretamente os seus efeitos fora desse âmbito. Ora, efetivamente, com o emblemático ac. n.º 258/2007, o TC procurou fixar o seu entendimento sobre a descodificação do conceito indeterminado de âmbito regional, em termos não muito distantes da sua primitiva noção de interesse específico. Assim, em primeiro lugar, o TC fez caber no conceito de “âmbito regional” a componente mais ampla da noção póstuma de “interesse específico”, na sua dimensão de interesse especial (como referimos em “As competências legislativas das regiões autónomas….”); o interesse específico desdobrava‑se numa componente de interesse exclusivo (matérias que apenas ocorrem nas RA) e numa componente de interesse especial (matérias que podem ocorrer nas demais partes do território, mas têm neste uma especial configuração). Reza a este propósito o acórdão citado: “Crê‑se não ser abusivo associar a expressão ‘âmbito regional’, para além de uma referência territorial, às expressões ‘matérias que dizem [digam] respeito às Regiões Autónomas’, constantes dos Projetos de revisão constitucional n.os 2/IX e 3/IX, definidas ‘em função da especial configuração que as matérias assumem na respetiva região’ (como se lê na exposição de motivos do Projeto de revisão constitucional n.º 1/IX), e surgindo aquela expressão como sucedânea da anterior menção a ‘matéria de interesse específico para as respetivas regiões’, ainda utilizada nos Projetos de revisão constitucional n.os 4/IX e 6/IX”. Em segundo lugar, o TC considerou que o critério geográfico deveria ser completado por um critério material. Segundo o ac. n.º 258/2007, “há, na verdade, que atender aos fundamentos, aos fins e aos limites que a Constituição assinala à autonomia regional, no seu artigo 225.º: os fundamentos dessa autonomia assentam nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares; os fins consistem na participação democrática dos cidadãos, no desenvolvimento económico‑social, na promoção e defesa dos interesses regionais, mas também no reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses; os limites derivam da não afetação da integridade da soberania do Estado e do respeito do quadro constitucional. Assim, a circunstância de a legislação regional se destinar a ser aplicada no território da Região não basta, só por si, para dar por verificado o apontado requisito”. Ora, segundo o mesmo aresto, na componente material, avulta um critério negativo de acordo com o qual as leis regionais não podem afetar a ordem jurídica nacional “atentas as pessoas (designadamente, pessoas coletivas públicas) envolvidas e os interesses e valores em jogo”. Do que resulta que, mesmo que o ato legislativo regional se aplique apenas na RA, de acordo com o critério geográfico, violará o limite configurado pelo âmbito regional caso se projete sobre interesses e fins qualificados de ordem geral e unitária prosseguidos pelos órgãos de soberania, sendo para o efeito irrelevante que a matéria não figure expressamente na reserva de competência dos mesmos órgãos.   O limite da reserva de competência implícita dos órgãos de soberania O posicionamento do TC acabado de referir implicou uma retoma da tradicional construção de recorte centralista, tecida pelo mesmo órgão previamente à revisão constitucional de 2004 (ac. n.º 711/97), retoma essa que pressupõe o entendimento segundo o qual se se concluir, por aplicação do critério substancial da noção de âmbito regional, que as normas regionais dispõem sobre um domínio que se repercute ou projeta em questões de interesse ou fim público geral, elas serão organicamente inconstitucionais, na medida que invadem um domínio implícito da reserva de competência dos órgãos de soberania. O TC mantém a sua controvertida jurisprudência, no sentido de integrar, na reserva não expressa dos órgãos de soberania, os domínios materiais que requeiram a intervenção legislativa estadual em razão de exigências soberanas. Com efeito, a alínea a) do n.º 1 do art. 227.º da CRP veda às RA o poder de legislarem sobre matérias reservadas aos órgãos de soberania (sendo o mesmo preceito alterado pela revisão de 2004, que modificou a primitiva fórmula, “reserva própria” dos órgãos de soberania). Ora, tal como é sabido, o TC, antes da revisão constitucional de 2004, através de uma jurisprudência não isenta de polémica, integrava, na referida reserva, quer matérias expressamente reservadas aos órgãos de soberania (mormente nos arts. 164.º e 165.º da CRP, entre outros), quer matérias e domínios materiais não enumerados na CRP, sempre que, em nome dos princípios da unidade e da solidariedade nacional, aqueles detivessem um relevo imediato para todos os cidadãos (ac. n.º 348/93). Tratou‑se, no segundo caso, de um domínio móvel da reserva, que permitia, casuisticamente, ao Tribunal integrar, no binário soberano da concorrência paralela entre o Estado e as RA, áreas que ia entendendo serem de relevo unitário e, como tal, subtraídas à competência regional. Ter‑se‑á verificado uma jurisdicionalização subtil de um critério de mérito soldado à noção de interesse nacional ou de interesse coletivo unitário. O ac. n.º 258/2007 sustenta que “há que atentar que a matéria em causa, tendo uma natureza relacional, não se esgota nem pode ser perspetivada isoladamente a propósito da definição dos estatutos de cada uma das entidades envolvidas. O que ocorre é que, englobando nesse tratamento relacional titulares de órgãos de soberania, o órgão legislativo para tal competente não pode deixar de ser o legislador nacional, por ser o único que se situa numa posição de supraordenação relativamente a todas essas entidades. Trata‑se, assim, de matéria que, mesmo que se considere não incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, sempre reclamará a intervenção do legislador nacional, justamente por afetar o posicionamento institucional de entidades pertencentes a distintos poderes do Estado e outros corpos públicos, sendo certo que as reservas assinaladas a este entendimento ‘amplo’ da ‘reserva da República’, que padeceria de um ‘sincretismo de critérios’, se esbateram face ao desaparecimento do critério reportado ao respeito das leis gerais da República”. À luz dessa jurisprudência, haveria que considerar, uma vez mais, a existência, a par da reserva explícita ou listada dos órgãos de soberania, de uma reserva implícita dos mesmos órgãos, a qual incide sobre domínios materiais indeterminados da esfera concorrencial paralela entre o Estado e as RA, que se encontram subtraídos ao âmbito regional. Daqui se retirará que o conceito constitucional de “âmbito regional”, previsto no n.º 4 do art. 112.º da CRP, como limite fixado à legislação das RA, assume uma relação de estreita conexão com outro limite, também ele constitucional, que é o da reserva dos órgãos de soberania na sua dimensão implícita. Com efeito, relativamente a cada matéria da esfera de uma concorrência paralela ou complementar entre Estado e Região Autónoma existem dois âmbitos, um estadual e outro regional, cuja delimitação é operada através do recurso à convocação e à harmonização de medidas de valor, como o conceito de âmbito regional e os princípios da unidade e da solidariedade nacionais, que sustentam o recorte da reserva soberana. E, na verdade, se uma dada disciplina exceder os limites espaciais ou materiais do âmbito regional, enfermará de inconstitucionalidade orgânica por invasão de uma reserva (móvel) de competência dos órgãos de soberania, cujas fronteiras são recortadas por cláusulas gerais fixadas na CRP.   A distribuição vertical de competências legislativas regionais: a tipologia das competências legislativas das RA A distribuição vertical de poderes reporta‑se às modalidades de competências legislativas que as regiões podem exercer numa relação de observância dos limites de natureza unitária que as vinculam. Quanto a esses mesmos limites, verifica‑se que parâmetros da legislação autonómica que se retiram do processo de distribuição horizontal de poderes (como os do “âmbito regional” ou da “subsidiariedade”) se combinam com outros limites próprios da distribuição vertical e que resultam da projeção da hierarquia material de certas leis estaduais (estatutos, leis de autorização, leis de bases, leis‑quadro e regimes gerais) sobre diferentes categorias de leis regionais. Assim, cada tipo de competência legislativa regional se encontra pautado por limites gerais (como é o caso do âmbito regional) e limites específicos (o tipo e o regime operativo das leis parâmetro do Estado que os correspondentes atos legislativos regionais devem observar).   A competência legislativa comum Noção O poder legislativo em epígrafe encontra‑se previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 227.º, em conjugação com o n.º 4 do art. 112.º e o n.º 1 do art. 228.º da CRP. Trata‑se da competência que tem por objeto o maior acervo de matérias sujeitas ao exercício de poderes legislativos regionais, e que uma parte da doutrina designa por competências “primárias” (MIRANDA e MEDEIROS, 2007, III, 307).   Critérios reitores do exercício da competência legislativa regional comum Os decretos legislativos regionais aprovados ao abrigo deste tipo de competência devem incidir sobre matérias enumeradas nos EPA, devem conter-se no “âmbito regional” e, ainda, respeitar a reserva explícita ou implícita de competência dos órgãos de soberania da república. Procurando explicitar esta asserção, importa destacar que a competência legislativa em epígrafe se exerce no respeito dos seguintes critérios: (i) a RA pode legislar apenas no “âmbito regional” (CRP, art. 112.º, n.º 4) decantado nas matérias enumeradas no correspondente EPA, o qual, depois de 2004, passou a constituir‑se inequivocamente como um ato‑condição dessa categoria de legislação regional, já que só os Estatutos podem definir o objeto material do exercício da competência legislativa comum; (ii) essas matérias disponíveis à regulação regional não podem invadir a reserva de competência dos órgãos de soberania; (iii) existindo, nestes termos, um fenómeno de confluência legislativa em domínios territoriais e substanciais da mesma matéria (concorrência paralela entre leis do Estado e da RA em matérias não reservadas expressamente aos órgãos de soberania), verifica‑se que, no contexto de uma dessas matérias (v.g., turismo, comércio ou artesanato), os decretos legislativos regionais disciplinam um domínio parcelar da mesma que corresponda ao seu “âmbito regional” e a legislação da República domínio remanescente situado fora do correspondente âmbito; (iv) a densificação do âmbito regional, em situações concretas e dilemáticas de fronteira com as competências soberanas, pode justificar a convocação do princípio da subsidiariedade, o qual permite que a regulação de um domínio em particular possa ser cometida às regiões no caso de se demonstrar que a lei regional (e o respetivo sistema de execução – cf. conexão entre a lei e a sua execução administrativa no plano da incidência do princípio da subsidiariedade na sentença n.º 303 de 2003, do TC italiano) exibe uma maior eficácia e adequação do que uma lei da república, na disciplina jurídica desse domínio; (v) a enumeração estatutária daquilo que eram, antes da revisão constitucional de 2004, matérias de interesse específico foi elaborada de forma excessivamente generalista e indeterminada (facto que não permitiu assegurar uma salvaguarda efetiva dos direitos regionais contra a compressão do poder legislativo estadual concorrente), parecendo não se ter apercebido o legislador autonómico que, caso consagrasse um mínimo de definição do núcleo de competência regional na lei estatutária, essa definição constituiria um defeso com eficácia relativa contra legislação invasiva de leis concorrentes do Estado (já que as leis estaduais devem respeitar os direitos regionais expressos em estatuto, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 281.º da CRP); (vi) a aprovação da terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro), pese as suas graves deformidades constitucionais, corrigiu a insuficiência referida na alínea precedente, a qual sempre foi por nós sublinhada, tendo pormenorizado o objeto de cada matéria da reserva de competência legislativa regional, do que resultou uma maior garantia contra a intromissão indevida de leis da república; (vii) contudo, se é certo que a forma concreta como o âmbito de uma dada matéria atribuída ao poder legislativo regional se encontra definido no Estatuto Político-Administrativo pode assegurar uma maior garantia do exercício dos poderes regionais contra legislação estadual excessivamente densa ou intrusiva, certo é, também, que essa densificação estatutária deverá, ela própria, ser compatível com a noção constitucional de “âmbito regional”, não consistindo a enumeração estatutária uma salvaguarda absoluta em relação à contenção de cada diploma no limite positivo representado pelo referido âmbito – se as leis da república não podem revogar decretos legislativos regionais que disponham sobre matérias elencadas estatutariamente como de “âmbito regional” (sob pena de ilegalidade), o facto é que a própria definição do referido âmbito de uma dada matéria, no estatuto, deve ser conforme ao conceito constitucional de âmbito regional, o qual já foi objeto de uma caracterização exploratória por parte da justiça constitucional; assim, se a definição estatutária atribuir às regiões o poder de emitir legislação que exceda a esfera geográfica da RA e se repercuta, sem credencial constitucional habilitante, na esfera de poder de outras instituições não regionais ou, ainda, se puser em causa regimes jurídicos estatais que devam ter repercussão igual e mediata em todos os cidadãos, à luz dos princípios constitucionais da unidade, solidariedade nacional e subsidiariedade, ela será inconstitucional; (viii) embora as leis do Estado da esfera concorrencial possam circunscrever o seu âmbito de aplicação ao território continental, o facto é que não estão obrigadas a fazê-lo, podendo dispor em geral para todo o território nacional, não sendo por esse facto organicamente inconstitucionais com fundamento em invasão de domínios reservados à competência regional – um pouco à semelhança dos ordenamentos espanhol e italiano, a nova regra da supletividade acabou por afastar a relação de desvalor de inconstitucionalidade das leis estaduais que incidam sobre domínios materiais reservados à competência regional, em sede de concorrência paralela, já que, podendo os órgãos de soberania legislar para todo o território nacional, a sua legislação que incida sobre domínios de “âmbito regional” será apenas desaplicada pelo operador administrativo e jurisdicional, quedando‑se no status de direito supletivo; contudo, é defensável que legislação especial do Estado reportada às RA que intente revogar expressamente legislação regional emitida no âmbito reservado à competência dos entes autónomos poderá ser ilegal, com fundamento em violação de direitos regionais constantes do EPA (art. 281.º, n.º 1, alínea d)) –, devendo aplicar‑se nas RA como direito supletivo ou subsidiário (art. 228.º, n.º 2 da CRP); (ix) a aplicação subsidiária do direito dos órgãos soberanos terá lugar: sempre que a Assembleia Legislativa regional não fizer uso do seu poder legislativo; caso se verifique a revogação não substitutiva ou a caducidade de diplomas regionais em domínios que requeiram regulação; ou sempre que numa dada disciplina legislativa regional se registarem vazios regulatórios e lacunas em leis regionais (embora estas, a serem integradas pelos tribunais, devam ter em conta, preferentemente, o espírito da lei regional ou a reconstituição do pensamento do legislador regional).   As competências delegadas Objeto das autorizações legislativas à RA Os pressupostos constitucionais das autorizações legislativas oriundos da revisão constitucional de 2004 permitem às RA aceder a algumas das matérias da reserva relativa de competência da Assembleia da República previstas no art. 165.º da CRP, mediante delegação legislativa parlamentar, o que, na generalidade, representou um acréscimo de poderes legiferantes sobre matérias de indiscutível relevo político. Trata‑se de uma derrogação ao quadro geral do sistema de repartição horizontal de competências, dado que permite a disponibilização, às regiões, de algumas áreas da competência expressa dos órgãos de soberania. Muitas das matérias integradas na reserva relativa da Assembleia da República não se encontram disponibilizadas às RA. De acordo com a alínea b) do n.º 1 do art. 227.º da CRP, por força de remissão para disposições do n.º 1 do art. 165.º, excluiu‑se do objeto deste tipo de autorizações matérias da reserva relativa da Assembleia da República de mais evidente recorte unitarista ou relevo imediato e geral para todos os cidadãos, v.g.: estado e capacidade de pessoas; direitos, liberdades e garantias; definição de crimes, penas e medidas de segurança; regime geral do ilícito disciplinar; bases do sistema de Segurança Social e do Serviço Nacional de Saúde; criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas; composição do Conselho Económico e Social; sistema monetário e padrão de pesos e medidas; organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respetivos magistrados, bem como de entidades não jurisdicionais de composição de conflitos; estatuto das autarquias locais e regime das finanças locais; associações públicas, garantias dos administrados e responsabilidade civil da administração; bases do regime e âmbito da função pública; definição e regime dos bens do domínio público; regime dos meios de produção integrados no setor cooperativo e social de propriedade; regime e forma de criação das polícias municipais.   Trâmites e vicissitudes da autorização legislativa Nos termos do n.º 2 do art. 127.º da CRP, que, segundo alguma doutrina, integra o critério ou “cláusula de junção” (GOMES CANOTILHO, 2003, 813), as propostas de lei de autorização devem ser acompanhadas do anteprojeto do decreto legislativo regional a autorizar, o que representa um forte condicionamento do processo de delegação. As leis delegantes devem, nos termos da remissão feita pelo mesmo preceito para os n.os 2 e 3 do art. 165.º, conter os requisitos típicos das leis de autorização legislativa. De todo o modo, considera‑se, tal como já foi antecipado, que o legislador regional não se encontra vinculado a editar uma normação legal idêntica à do anteprojeto, contanto que o diploma legal por si aprovado se contenha nos limites da autorização. O anteprojeto constitui apenas uma formalidade instrutória de natureza obrigatória, que permite ao legislador parlamentar estadual balizar os parâmetros da delegação legislativa requerida pela RA. As autorizações caducam com o termo da legislatura ou a dissolução da Assembleia da República ou da Assembleia Legislativa da RA a que tenham sido concedidas (CRP, art. 127.º, n.º 3). Os decretos legislativos regionais autorizados devem invocar a correspondente lei de autorização e podem, ainda, ser sujeitos a apreciação da Assembleia da República, nos termos do art. 169.º com as devidas adaptações para efeitos de cessação de vigência (de acordo com o n.º 4 do art. 227.º). Considera‑se que não será admissível que a apreciação parlamentar nacional envolva alterações, já que tal implica uma intromissão constitutiva do Estado no exercício de uma competência reservada à RA, com a depreciação desta última, devendo entender‑se que a aplicação do art. 169.º da CRP às leis regionais delegadas, ao operar com adaptações, envolve a exclusão da possibilidade da apreciação parlamentar com emendas. Sendo a Assembleia da República o órgão normalmente competente e titular primário das competências delegadas nas RA e sendo a autorização legislativa uma delegação legislativa e não uma transferência de poderes, entende‑se que o Parlamento da República pode alterar a sobredita lei de autorização antes de a mesma ter sido esgotada e revogar o diploma autorizado, no quadro de uma avocação de poderes, idêntica ao que sucede com as autorizações legislativas ao Governo. Considera‑se, no entanto, que não poderá alterar o diploma regional. Na verdade, uma coisa será avocar os poderes delegados e proceder ao seu exercício pleno e outra, modificar o diploma regional, descaracterizando‑o e procedendo a uma estatização parcial de uma disciplina jurídica regional. O modelo horizontal e vertical de distribuição e repartição de competências entre Estado e RA revela ser incompatível com leis mistas, editadas pelas regiões no âmbito regional e alteradas pelo Estado no uso de uma espécie de “tutela corretiva” adaptava à função legiferante. Se a Assembleia da República fosse o órgão normalmente competente para revogar os decretos legislativos regionais por ela autorizados, deveria fazê‑lo expressamente, pois a simples emissão, pela mesma Assembleia, de legislação geral que seja superveniente à aprovação de um decreto legislativo regional autorizado não supõe a revogação deste, nos termos do princípio da especialidade que determina que lei geral não revoga lei especial, salvo vontade inequívoca do legislador nesse sentido. Do mesmo modo, a mera emissão de legislação geral do Estado, depois de aprovada uma lei de autorização à RA ainda não utilizada, não determina, só por si, a revogação tácita dessa autorização, podendo assumir a natureza de normação legal supletiva.   A competência complementar A competência a que se refere a alínea c) do n.º 1 do art. 227.º da CRP reporta‑se ao desenvolvimento para o âmbito regional dos “princípios” ou das “bases gerais dos regimes jurídicos” contidos em leis que aos mesmos se circunscrevam. Corresponde a mesma à faculdade de desenvolver e concretizar o conteúdo de leis de bases e leis de enquadramento e ditar disciplinas legais de conteúdo especial não contrárias a regimes gerais da reserva da Assembleia da República. No texto constitucional anterior à revisão de 2004, as Assembleias regionais poderiam desenvolver, quer leis de bases relativas a um domínio concorrencial indeterminado (matérias não reservadas à competência da Assembleia da República), quer as bases gerais reportadas a algumas matérias da reserva relativa daquela Assembleia. O novo regime constitucional permite, em abstrato, o desenvolvimento para o âmbito regional de qualquer base geral, sem aceção de matéria, abrangendo, em tese, quer as áreas concorrenciais, quer os domínios da reserva absoluta ou relativa da Assembleia da República, quer ainda matérias cobertas por decretos legislativos regionais de bases. Doravante haverá a considerar as seguintes leis parâmetro, para efeito do exercício de competências legislativas regionais complementares: (i) leis de bases (bem como leis de enquadramento e regimes gerais) da reserva dos órgãos de soberania de alcance geral e aplicáveis a todo o território nacional; (ii) leis de bases respeitantes a matérias não reservadas aos órgãos de soberania, com âmbito geral; (iii) decretos legislativos regionais de bases, nomeadamente os habilitados por uma lei de autorização legislativa dos órgãos de soberania. O presente enunciado permite, em tese, o desenvolvimento de bases em todas as matérias relativamente às quais estas sejam passíveis de edição, nomeadamente as matérias de reserva absoluta. Não se exclui, e.g., que, no âmbito regional, os entes autonómicos desenvolvam as bases gerais da reserva absoluta de competência da Assembleia da República, tais como as “bases gerais da organização, do funcionamento, do reequipamento e da disciplina das Forças Armadas” e as bases do Sistema de Ensino (cf. o ac. n.º 262/2006, onde se reconhece esta faculdade). Embora, no primeiro caso, razões lógicas de ordem unitária (excedência do “âmbito regional”) mandem que se tenha como proibido esse desenvolvimento, o mesmo já se não passa no segundo, pese o facto de causar alguma perplexidade a admissibilidade de diversos regimes legais de detalhe entre o continente e os territórios dos arquipélagos, em relação a uma matéria de evidente interesse e relevo para a unidade nacional. O desenvolvimento das bases do art. 164.º da CRP deveria encontrar‑se vedado às RA. Considera‑se, contudo, que, depois da revisão constitucional de 1997, as RA não poderão, na falta de bases gerais previamente editadas pelos órgãos de soberania sobre matérias reservadas à Assembleia da República, legislar apenas com referência a princípios gerais decantados ou deduzidos pelos órgãos regionais da legislação estadual comum, dado que essas leis de bases são legislação‑pressuposto dos atos legislativos complementares autonómicos que as deverão necessariamente invocar (CRP, art. 227.º, n.º 4). O contraponto desta ampliação dos poderes regionais no desenvolvimento das bases gerais dos regimes jurídicos consiste na faculdade de os órgãos de soberania ditarem leis de bases fora da respetiva reserva, ou seja, no universo concorrencial, as quais, no nosso entendimento (que, no entanto, não foi seguido na terceira revisão do EPARAA), deverão ser respeitadas por toda a legislação regional emitida ao abrigo da competência comum.   As competências residuais ou mínimas Trata‑se das faculdades legislativas diretamente exercitáveis a partir de diversas alíneas do n.º 1 do art. 227.º da CRP, encontrando‑se os mesmos poderes misturados com outros de natureza administrativa. Uma destas responsabilidades regionais assume carácter tendencialmente primário, tendo a CRP como uma base fundamental de referência: é, numa primeira leitura, o caso da elevação de povoações à categoria de vilas ou cidades (art. 227.º, n.º 1 alínea m)). Outras exercem‑se no respeito de leis estaduais paramétricas: é o caso de leis relativas à disposição do património, as quais são instrumentais em relação à lei prevista na alínea v) do art. 165.º da CRP no respeitante ao regime dos bens do domínio público (art. 227.º, n.º 1, alínea h)); da criação, extinção e modificação da área das autarquias, a qual deve observância à lei prevista na alínea n) do art. 164.º; do exercício de poder tributário próprio, de acordo com as leis previstas na alínea i) do n.º 1 do art. 165.º (art. 227.º, n.º 1, alínea i)); e da aprovação do orçamento regional, na observância do regime legal constante da alínea s) do art. 164.º (art. 227.º, n.º 1, alínea p)).   A competência relativa à transposição de diretivas da União Europeia Com a revisão constitucional de 2004, corrigiu‑se o excesso da revisão constitucional de 1997, que vedava a transposição de diretivas da União Europeia por ato legislativo regional e depreciava a sua esfera de competência legislativa. A nova redação do n.º 8 do art. 112.º da CRP permite à RA transpor, mediante decreto legislativo regional, diretivas em matérias situadas fora da reserva de competência dos órgãos de soberania que sejam reconhecidas, através das listagens constitucional e estatutária, como fazendo parte do âmbito regional.   Síntese sobre as relações de tensão entre atos legislativos do Estado e da RA Volvida a eliminação das leis gerais da república, as quais geraram complexas dúvidas sobre o seu regime de prevalência em relação aos atos legislativos regionais, o quadro das relações inter-legislativas entre o Estado e as RA ficou simplificado com a revisão constitucional de 2004.   Solução de antinomias no plano jurisdicional Os tribunais comuns dispõem de uma ampla margem de competência para solucionar antinomias derivadas das relações entre as leis do Estado e das RA, a qual lhes é dada pelo art. 204.º da CRP, que os investe no direito‑dever de desaplicar normas inconstitucionais, e pelo art. 280.º, que confirma a mesma regra e a alarga à faculdade de desaplicarem leis estaduais e regionais violadoras de normas legais com valor reforçado. Caem, nomeadamente, no âmbito das desaplicações legais fundadas em juízos de inconstitucionalidade: (i) a violação do objeto e extensão (inconstitucionalidade orgânica) e duração (inconstitucionalidade material) das leis de autorização legislativa por decretos legislativos regionais autorizados); (ii) a incursão de norma legal do Estado ou de decreto legislativo regional, na reserva do Estatuto (inconstitucionalidade formal); (iii) a violação do limite positivo do “âmbito regional” por decreto legislativo regional que invada no campo vedado das competências expressamente reservadas aos órgãos de soberania, ou do âmbito da concorrência entre o Governo e a Assembleia da República ou no âmbito da competência da outra RA (inconstitucionalidade orgânica). Os tribunais podem, no quadro de antinomias que impliquem uma violação ao conteúdo de leis com valor reforçado, julgar a ilegalidade de: (i) decretos legislativos regionais que ofendam as normas paramétricas constantes das bases gerais dos regimes jurídicos, leis de enquadramento, regimes gerais da reserva da Assembleia da República ou de outras leis com valor reforçado que os vinculem especificamente; (ii) normas que definem o sentido das leis de autorização legislativa (sem prejuízo de, discutivelmente, o TC aferir esta antinomia em sede de inconstitucionalidade orgânica, em cumulação com a violação do objeto e da extensão); (iii) leis dos órgãos de soberania que ofendam direitos regionais constantes dos Estatutos de autonomia e decretos legislativos regionais que violem o disposto nos referidos Estatutos. Colocam‑se dúvidas a respeito de colisões entre decretos legislativos regionais que incidam sobre matérias do âmbito regional e leis dos órgãos de soberania respeitantes a matérias situadas fora da sua reserva explícita de competência legislativa. Os tribunais devem, de acordo com o critério da especialidade, articulado com o critério da competência, dar aplicação preferencial, nas RA, à lei que contenha uma disciplina particular e cuja esfera de aplicação se circunscreva necessariamente ao âmbito das RA, sendo essa lei o decreto legislativo regional. Em consequência, a lei do Estado terá a sua eficácia bloqueada ou suspensa nas RA sempre que tiver preferência um decreto legislativo regional sobre a mesma matéria. Contudo, nos termos do n.º 2 do art. 228.º da CRP, a lei estadual vigorará supletivamente nas RA e poderá ser aplicável na falta de legislação regional (caso de não emissão de legislação autonómica, caducidade, revogação puramente supressiva ou declaração de invalidade sem repristinação de diplomas regionais antecedentes).   Solução de antinomias legislativas pelo operador administrativo A Administração Pública, estadual e regional, não tem competência para solucionar antinomias impróprias, ou seja, para desaplicar leis com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade, sem prejuízo de, num quadro de antinomia, a administração estadual periférica se dever abster de aplicar leis regionais que disponham sobre as matérias da reserva expressa de competência da Assembleia da República e do Governo, onde não existe concorrência e os atos regionais se encontram absolutamente vedados. Daí que, salvo situações excecionais, em que as normas da CRP se apliquem diretamente, e na falta de cláusulas constitucionais de solução imediata de conflitos, a Administração Pública deva conferir, nas RA, como decorrência do princípio da especialidade, aplicação prevalecente aos diplomas regionais sobre os estaduais, no âmbito das matérias situadas fora da esfera da reserva.     Carlos Blanco de Morais (atualizado a 11.02.2017)

Direito e Política

junta de planeamento 1975

A transição da Madeira para o processo democrático foi de certa forma calma, se comparada com a agitação vivida no continente ou nas antigas colónias portuguesas de África. As forças militares e militarizadas não colocaram especiais problemas ao Movimento das Forças Armadas (MFA), e a primeira agitação, aliás vaga, decorreu na manifestação do 1.º de Maio, quando apareceu um cartaz a colocar em causa a presença no Funchal dos ex-governantes Américo Thomaz (1894-1987) e Marcello Caetano (1906-1980), com os dizeres “A Madeira não é caixote de lixo”. A notícia chegou a António de Spínola (1910-1996), que presidia à Junta de Salvação Nacional e se comprometera com Marcello Caetano, no quartel do Carmo, a fornecer-lhe proteção pessoal, pelo que poucos dias depois se encontrava na Madeira um delegado do Movimento, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo Pinto Melo e Leme (1930-) (Azeredo, Carlos de). A função do delegado do Movimento era a segurança das altas figuras do final do Estado Novo, mas, embarcadas as mesmas para o Brasil, a 20 de maio, teve de aguardar a nomeação do governador civil do Funchal (Governo civil), Fernando Rebelo (1919-2002) (Rebelo, Fernando Pereira), somente exarada a 7 de agosto. O novo governador tomou posse em S. Lourenço a 8 de agosto e, nesse mesmo dia, Carlos de Azeredo regressou ao continente, fixando-se no Porto. A 13 de setembro de 1974, o novo governador civil do Funchal – em consequência do pedido de exoneração de Rui Vieira (1926-2012), pedido que nunca fora aceite por Carlos de Azeredo – nomeava nova presidência para a Junta Geral. A 10 de outubro, a Junta Geral é dissolvido e é nomeada uma comissão administrativa, que também não resistiu muito tempo. As nomeações que se seguiram, essencialmente de elementos sem impacto político e social nas restantes estruturas locais, que não haviam sofrido especiais alterações, tornariam a situação geral insustentável a curto prazo. A instabilidade que se viria a desenvolver depois na Ilha levou a que, por solicitação dos elementos do Movimento na Madeira, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo, então graduado em brigadeiro, regressasse no final desse ano de 1974 ao Funchal. A 11 março de 1975, em Lisboa, entretanto, registava-se novo pronunciamento militar. O grupo mais moderado de forças políticas e militares ligadas ao Gen. António de Spínola, que não tinha aceitado o seu afastamento, a 30 de setembro, na sequência do falhanço da manifestação da “maioria silenciosa” de dois dias antes, nem, essencialmente, o acelerado processo de descolonização e de politização progressiva da sociedade portuguesa, movimentou-se. Os grupos mais politizados e a Comissão Coordenadora estavam, no entanto, atentos à movimentação, pelo que a mesma se saldou por um novo fracasso, sendo o Gen. Spínola definitivamente afastado, e tendo tido, inclusivamente, de abandonar o país. As notícias chegadas ao Funchal levaram à realização de manifestações de rua em apoio ao MFA. O processo foi acompanhado pelos comandos militares madeirenses, não tomando o Brig. Carlos de Azeredo qualquer posição, dependente, até certo ponto, que estava ainda do governador civil, Fernando Rebelo. Carlos de Azeredo encontrava-se nessa manhã numa cerimónia de distribuição de diplomas e condecorações na sede da Polícia de Segurança Pública do Funchal, à R. dos Netos, e, tendo sido informado pelo Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015) do que se passava em Lisboa, não interrompeu a distribuição. Escreveria mais tarde que continuou “calmamente na cerimónia” (AZEREDO, 2004, 205), mas, regressado ao palácio de S. Lourenço, acompanhou a situação, como os vários oficiais do seu gabinete, com a máxima apreensão. Com o pronunciamento de 11 de março, as forças mais à esquerda desenvolveram o que ficou conhecido por Processo Revolucionário em Curso e popularizado como PREC. No dia seguinte, a Junta de Salvação Nacional e o Conselho de Estado eram extintos e substituídos pelo Conselho da Revolução, a que se seguiria um plano de nacionalização da Banca, dos Seguros, dos Transportes, etc. Este período constituiu a fase mais marcante da tentativa de revolução portuguesa, durante o qual as tensões políticas e sociais atingiram uma virulência nunca experimentada. Principalmente o verão desse ano de 1975, o chamado “verão quente”, prestou-se a todo o tipo de violências numa sociedade considerada até então de brandos costumes e que nesse período parecia ter querido deixar de o ser. As forças madeirenses ligadas ao velho Movimento Democrático mostraram-se completamente incapazes de fazer face à situação e, a 20 março, Fernando Rebelo deixava o cargo de governador civil. Nesse mesmo dia, em Lisboa, onde fora chamado, desconhecendo o motivo e tendo tido então as mais sérias reservas e apreensões, Carlos de Azeredo tomava posse desse cargo, por despacho do ministro da Administração Interna. A nomeação de um elemento dado como próximo do Gen. António de Spínola não foi bem aceite nos sectores militares e civis continentais ligados ao PREC, que preferiam a nomeação do Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015), mas representou uma vitória para os sectores mais moderados e marcaria, na Madeira, o início da progressiva demarcação em relação ao processo continental. O Brig. Carlos de Azeredo, como governador civil – mas sempre fardado –, quase de imediato, a 25 de março, dava posse no Funchal à Junta de Planeamento para a Madeira, criada pelo dec.-lei n.º 139/75, promulgado no polémico dia 11 de março, pelo Presidente da República, Gen. Francisco da Costa Gomes (1914-2001), e publicado a 18 seguinte. O dec.-lei já considerava este órgão com um cariz transitório, mas com forte poder de decisão, sendo composto pelo governador civil, que presidia, com voto de qualidade, e por três vogais. Este órgão vinha um pouco na sequência do grupo criado alguns anos antes no âmbito da Junta Geral, a comissão regional de planeamento, mas já com funções deliberativas mais amplas, superintendendo, inclusivamente, sobre a mesma Junta Geral que, embora dissolvida, continuava em exercício. Foram então empossados como vogais João Abel de Freitas (n. 1942), Virgílio Higino Pereira (n. 1941) e José Manuel Paquete de Oliveira (1936-2016), que dirigia o Diário de Notícias. A presença de João Abel de Freitas, ligado à comissão do salário mínimo, e mesmo dos restantes elementos, pois que a sua nomeação fora acordada em Lisboa, não reunia o consenso alargado que alguns sectores locais requeriam, pelo que a Junta de Planeamento foi alvo de críticas no Jornal da Madeira, o que levou Carlos de Azeredo a convocar a S. Lourenço Alberto João Jardim (1943-), recentemente colocado à frente daquele jornal pelo bispo do Funchal, D. Francisco Antunes Santana (1924-1982), embora tal não tenha refreado os ataques daquele periódico à nova estrutura governativa regional. As críticas ainda aumentaram com o dec.-lei de 2 de julho de 1975, que alargava os poderes da Junta de Planeamento para proceder ao saneamento dos serviços do Estado e dos corpos administrativos, podendo suspender por 90 dias os funcionários desses organismos e nomear comissões para efetuarem reclassificações dos mesmos. Foi por esse diploma que se acrescentou um quarto elemento à Junta de Planeamento, dado como representante do comando militar, Faria Leal, que desde o início participava já em todas as reuniões. A Junta de Planeamento sofreria uma contínua contestação, não só local, dado que, como o governador Carlos de Azeredo anunciara na sua formação, tinha sido escolhida de cúpula, por decisão autocrática, logo sem a consulta das forças políticas já sumariamente colocadas no terreno, como igualmente dos círculos mais à esquerda do MFA nacional, que a consideravam não revolucionária. Poucos dias depois, comemorando-se o segundo 1.º de Maio em liberdade, deslocar-se-iam à Madeira dois conselheiros da revolução, o Com. Carlos de Almada Contreiras e o Maj. José Manuel Costa Neves, que participariam na manifestação, mas que quase não contactaram os elementos das forças armadas de S. Lourenço, limitando-se o Brig. Carlos de Azeredo a depois os acompanhar ao aeroporto. Ao contrário do ano anterior, também nenhum dos elementos militares da Madeira participou na mesma manifestação que, inclusivamente, levou a alguns incidentes na baixa da cidade, o que não acontecera no ano precedente. A Junta de Planeamento começou a conhecer dificuldades de articulação interna a partir das eleições de 25 de abril de 1975 (Eleições Autonomia), que elegeram a Assembleia Constituinte (sendo a organização dessas eleições a mais importante missão de que a referida Junta estava incumbida). Assim, se até então a sua nomeação de cúpula, como havia sido referido por Carlos de Azeredo na sua apresentação pública, era defensável por não ter havido eleições na Região, a partir daquela data, tal já não era sustentável. Acrescia a isto o desgaste do “verão quente” de 1975, que começara a 11 de março, e logo a 4 de abril registara uma tentativa de assalto ao palácio de S. Lourenço por uma manifestação de produtores de cana-de-açúcar – situação geral à qual Carlos de Azeredo deu uma resposta que não foi entendida como correta, nem pela esquerda, nem pela direita, tentando limitar a sua atuação a uma gestão negociada de crise, que nunca fora bem aceite por alguns elementos da Junta de Planeamento. A cisão foi iniciada pelo pedido de demissão de João Abel de Freitas, a 5 de agosto de 1975, pois que o mesmo não poderia ter sido feito pelo Maj. Faria Leal, dada a sua condição militar, pretendendo ambos a detenção de alguns empresários madeirenses por sabotagem económica. A demissão de João Abel Freitas foi imediatamente aceite pelo Brig. Carlos de Azeredo, e seguiu-se-lhe a demissão dos restantes membros. Estava assim aberto o caminho para a constituição de um novo órgão de gestão governativa da futura Região Autónoma da Madeira, que, embora ainda não democrático nem verdadeiramente representativo das forças políticas com representação no terreno, caminhava já nesse sentido: a Junta Governativa e de Desenvolvimento de 1976. Levaria, no entanto, mais de seis meses para ser negociada e tomar posse.     Rui Carita (atualizado a 09.06.2017)

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conselho do distrito

O Conselho do Distrito foi o mais importante órgão do governo da Ilha no Liberalismo, funcionando sob a presidência do governador civil. Dadas as constantes alterações políticas deste século, saindo o governador da Ilha, um dos seus membros ocupou esse lugar como governador interino. A primeira forma deste conselho foi o de Concelho da Prefeitura, criado pelo decreto de 6 de maio de 1832, passando, com o código administrativo de 31 de dezembro de 1836, a Conselho do Distrito. Era presidido pelo governo do distrito e composto por quatro vogais, o secretário-geral do distrito e três procuradores da Ilha, eleitos pela Junta Geral. Foi extinto pelo código administrativo de 17 de julho de 1886, que privilegiou as funções da Junta Geral. Palavras-chave: Administração-Geral; Governo Civil; Junta Geral; partidos políticos; Prefeitura; Liberalismo O Conselho do Distrito foi o mais importante órgão do governo da Ilha no Liberalismo, funcionando sob a presidência do governador civil. (Governo civil) Dadas as constantes alterações políticas deste século, saindo o governador da Ilha, foi um dos seus membros a ocupar esse lugar, como governador interino. A primeira forma deste conselho foi a de Conselho da Prefeitura, pois que a designação de governador civil fora, inicialmente, a de prefeito, tendo sido criado pelo decreto de 6 de maio de 1832; mas não há informação de ter sido montado com o prefeito e coronel de engenharia Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1847). O código administrativo de Passos Manuel, do ministro Manuel da Silva Passos (1801-1862), de 31 de dezembro de 1836, criou o Conselho de Distrito, fazendo desaparecer o anterior Conselho da Prefeitura. Este Conselho, também designado por Junta de Governo do Distrito, era composto por quatro vogais, três dos quais procuradores da Ilha, eleitos pela Junta Geral (Junta Geral), sendo presidido pelo governador civil e secretariado pelo secretário-geral do distrito; este assumia, inicialmente, a função de governador interino na ausência do efetivo, função que foi desempenhada, ao longo da segunda metade do século, pelo vogal mais antigo, principalmente quando os chefes dos partidos políticos locais começaram a conhecer uma certa importância e representatividade. A Junta de Governo do Distrito ou Conselho do Distrito reuniu, pela primeira vez, ainda no palácio de S. Pedro, do conde de Carvalhal (1778-1837), a 18 de janeiro de 1836. Os seus primeiros membros foram, assim, Carvalhal, na presidência, e, na capacidade de vogal, João Agostinho Jervis de Atouguia, secretário-geral do distrito, Filipe Joaquim Acciauoli e Domingos Olavo Correia de Azevedo (1799-1855). O secretário foi, então, João Nepomuceno de Oliveira (1783-1846), oficial maior da secretaria do governo civil. Em maio, na primeira reunião em que participou o administrador-geral  António Gambôa e Liz (1778-1870), depois barão de Arruda (Liz, António Gamboa de), estiveram presentes Filipe Acciauoli, Olavo Correia de Azevedo, José Joaquim de Freitas e Abreu e Jervis de Atouguia, que aqui já aparece como secretário desse conselho. Com a institucionalização da Junta Geral, seriam eleitos três membros efetivos, que na reunião de 29 de julho desse ano foram Jerónimo Pinheiro, António Joaquim Jardim e Aires de Ornelas e Vasconcelos (1779-1852), tendo sido eleitos, como substitutos, Manuel Joaquim Moniz e Valentim de Freitas Leal. Nos meados do século, os vogais do conselho venciam de gratificação anual 240$000 réis, pagos pelo cofre do distrito. O Conselho do Distrito passou a funcionar no Palácio de S. Lourenço, onde ocupava duas salas. Alguns governadores, como José Silvestre Ribeiro (1807-1891), apoiaram-se neste Conselho, entre outras ações, e.g., na tentativa de levar avante a construção de um teatro no Funchal; o mesmo fez o governador D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878) (Leme, D. João Frederico da Câmara), quando o vogal mais antigo era o visconde de S. João, Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875). No entanto, a partir do momento em que neste Conselho passaram a ter assento os principais líderes partidários, o mesmo funcionou como palco de disputa de poder, como ocorreu, especialmente, com o visconde do Canavial (1829-1902). Tal levou, inclusivamente à nomeação, pelo Governo de Lisboa, de governadores civis substitutos e, mais tarde, com o aumento das competências da Junta Geral, à extinção deste Conselho, pelo código administrativo de 17 de julho de 1886.   Rui Carita (atualizado a 28.02.2017)

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sintaxe

    Variação sintática em variedades do português A investigação sobre a variação no domínio da sintaxe do português, sobretudo nas suas variedades europeias, ou Português Europeu (PE), não tem merecido a atenção dos linguistas. Como sublinha Ernestina Carrilho, “As informações disponíveis sobre aspetos da sintaxe do PE dialetal são, assim, normalmente escassas e encontram-se, em grande parte, dispersas em muitos trabalhos monográficos” (CARRILHO, 2003, 19), ocupando um lugar muito marginal nos trabalhos dialetológicos. Assinale-se, a título de exemplo, as poucas páginas consagradas à sintaxe por Leite de Vasconcelos na sua tese de doutoramento Esquisse d'une Dialectologie Portugaise, de 1901 (VASCONCELOS, 1987, 121-122), obra de referência na dialetologia portuguesa, ou ainda a ausência de critérios de tipo sintático na caracterização sistemática de dialetos portugueses proposta por Manuel de Paiva Boléo e Maria Helena Silva (1961) e por Luís Filipe Lindley Cintra (1971). A investigação em variação sintática tem sobretudo privilegiado o contraste entre variedades nacionais do português, o PE e o Português do Brasil (PB), não só no âmbito da Teoria da Variação e da Mudança Linguística, proposto no clássico artigo de Uriel Weinreich, William Labov e Marvin Herzog (1968), “Empirical Foundations for a Theory of Language Change”, pioneiro da sociolinguística variacionista, mas também na perspetiva do Modelo de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1981) ou doutros modelos compatíveis com os pressupostos teóricos da Gramática Generativa. Os principais fenómenos que têm chamado a atenção de investigadores portugueses e brasileiros encontram-se na secção “Colóquio Português Europeu/Português Brasileiro: Unidade e Diversidade na Passagem do Milénio”, integrada no volume dedicado às Actas do XVI Encontro da APL (CORREIA e GONÇALVES, 2001), e prendem-se, entre outros, com o parâmetro do sujeito nulo (BARBOSA et al., 2001, 539-550), as estratégias de realização de objeto direto (KATO e RAPOSO, 2001, 673-686), o artigo antes de possessivo (BRITO, 2001, 551-575), as construções relativas (CORRÊA, 2001, 615-626), a concordância verbal com a gente (COSTA et al., 2001, 639-656) e o uso do gerúndio (NETO e FOLTRAN, 2001, 725-735). O primeiro trabalho de referência sobre sintaxe dialetal, sob o título de “Aspectos da Sintaxe do Português Falado no Interior do País”, foi realizado por João Malaca Casteleiro (CASTELEIRO, 1975), a partir de uma amostra de dados de português falado coletados no âmbito do projeto corpus Português Fundamental (NASCIMENTO et al., 1987). O seu estudo focaliza-se, entre outros aspetos sintáticos, na estrutura da frase e na sintaxe verbal, mais especificamente nos usos dos tempos e modos verbais, e permite observar algumas tendências da sintaxe do português falado por 45 informantes com nível baixo de escolaridade (4.ª ano do ensino básico) ou analfabetos, de oito distritos do interior de Portugal Continental, tais como o uso do “gerúndio precedido de em, isto é, em + gerúndio. [...] com valor e é muito utilizada na linguagem popular”, como em “Entra às nove, e em sendo aí meia-noite, uma hora, tem ali cama, vai-se deitar (Rececionista de um hotel, instrução primária, de Beja, R-297)” (CASTELEIRO, 1975, 62), ou ainda o recurso de “frases simples justapostas, sem coordenação explícita [...]” (Id., Ibid., 64) e da repetição como forma de se fazerem entender, sendo a frase passiva pouco utilizada. No que se refere à sintaxe do verbo, são de referir o uso frequente dos pronomes pessoais, as formas sujeito, com os verbos, embora tal não seja necessário, uma vez que no português as desinências verbais fornecem a informação relativa às categorias gramaticais de pessoa/número, como em “Mas nós temos a impressão que nem toda a gente se adapta ao nosso ambiente, porque felizmente nós temos aqui um ambiente bom (Bordadora, 4ª classe, Castelo Branco L-183)” (Id., Ibid., 65), ou ainda o uso de a gente com o verbo na 1.ª pessoa do plural, sobretudo no Sul do país, como em “A gente não tivemos festa, andamos de luto (Trabalhadora rural, analfabeta, de Sta Suzana, Évora, Q-42)” (Id., Ibid.). Os resultados deste estudo são, segundo o autor, “apesar da exiguidade da amostragem, [...] no domínio sintático, [...] pertinentes” (Id., Ibid., 58). O autor chama ainda a atenção para algumas características linguísticas de falantes pouco instruídos, cuja fala “não é nem mais pobre, nem mais rica do que a dos falantes média ou altamente alfabetizados. É apenas diferente em vários aspetos da organização das estruturas sintácticas. [...]. As dificuldades de comunicação só surgem – e surgem nos dois sentidos – quando há intercâmbio entre falantes de meios sociais diferentes. Neste aspeto, tanto tem que aprender o falante altamente alfabetizado com o pouco ou nada alfabetizado, como vice-versa. A linguagem de uns e doutros tem, por conseguinte, o mesmo valor linguístico e deve ser igualmente descrita pela Gramática” (Id., Ibid., 74). Merece igualmente destaque a publicação de João Andrade Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa (PERES e MÓIA, 1995), na qual os autores selecionam seis áreas críticas do português contemporâneo a partir da análise de material linguístico retirado de uma amostra de textos jornalísticos produzidos entre 1986 e 1994. As áreas selecionadas, nas quais se observa o uso de variantes não normativas, são indicadas em (1), seguidas de alguns exemplos: 1) a. estruturas argumentais: e.g., “supressão de argumentos”, como em “Desta vez atuaram no Porto, espancando um jovem negro até ficar inconsciente, colocando posteriormente sobre uns carris da linha de comboio” [Diário de Lisboa, 24/11/1989, p. 10] vs. “Desta vez atuaram no Porto, espancando um jovem negro até ficar inconsciente, e colocando-o posteriormente sobre uns carris da linha de comboio”[versão padrão proposta] (PERES e MÓIA, 1995, 60); b. construções passivas: por exemplo, “supressão de preposição”, como em “A nova onda chama-se Peugeot 309 Chorus. Uma onda fácil de entrar (apenas 1.460 contos) e agradável de estar” [Expresso, 31/12/1988, p. C-7 (publicidade)] vs. “A nova onda chama-se Peugeot 309 Chorus. Uma onda em que é fácil entrar (apenas 1.460 contos) e agradável estar” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 233); c. construções de elevação: como em “As conclusões deste estudo estavam previstas virem a ser apresentadas ainda no decorrer deste mês […]” [O Independente, Dinheiro, 23/12/1993, p. 5] vs. “Estava previsto as conclusões deste estudo virem a ser apresentadas ainda no decorrer deste mês […]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 266); d. orações relativas: e.g., “supressão de preposição de constituinte relativo”, como em “Os temas que os portugueses gostam [...]” [O Jornal Ilustrado, 31/3/1989, p. 35] vs. “Os temas de que os portugueses gostam [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 290); e. construções de coordenação: e.g., “supressão de constituintes relativos”, como em “[…] é o caso de Aspects of Love, que estreou-se no mês passado em Londres e já foram vendidos cinco milhões de libras de bilhetes [...]” [Europeu, 18/5/1989, p. 24] vs. “[…] é o caso de Aspects of Love, que se estreou no mês passado em Londres e de que já foram vendidos cinco milhões de libras de bilhetes [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 413); f. concordâncias: como em “Desta vez coube-nos em sorte três novelas de Mateus Maria Guadalupe [...]” [O Jornal Ilustrado, 12/5/1989, p. 20] vs. “Desta vez couberam-nos em sorte três novelas de Mateus Maria Guadalupe [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 453). Cerca de 20 anos depois deste texto de referência, o projeto CORDIAL-SIN (Corpus Dialectal para o Estudo da Sintaxe), coordenado por Ana Maria Martins, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL), vem dar ênfase à investigação em variação sintática no PE. Iniciado em 1999, este projeto visa estudar a variação sintática dialetal do PE, com recurso a dados empíricos, no âmbito da Teoria de Princípios e Parâmetros da Gramática Generativa. Para tal, foi constituído um corpus anotado de PE (CARRILHO e MAGRO, 2010), cuja extensão atual é de cerca de 600.000 palavras (70 horas de gravações que incluem um conjunto geograficamente representativo (42 pontos) de excertos de discurso livre e semi-dirigido). Estes dados foram selecionados a partir do arquivo sonoro do CLUL, construído ao longo de 30 anos, contendo no total cerca de 4500 horas de gravações, obtidas em mais de 200 localidades do território português, no âmbito dos projetos ALEPG (Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza, coord. de João Saramago), ALLP (Atlas Linguístico do Litoral Português, coord. de Gabriela Vitorino), ALEAç (Atlas Linguístico-Etnográfico dos Açores, coord. de João Saramago) e BA (Fronteira Dialectal do Barlavento do Algarve) (SEGURA, 1988). O desenvolvimento de uma área de interesse como a da descrição sintática do português trouxe, ao longo das duas últimas décadas, “avanços relevantes no conhecimento empírico dos dialetos e da variação sintática que as línguas naturais apresentam” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 125), e tal deve-se em grande parte ao projeto CORDIAL-SIN. Este recurso permitiu observar a dimensão geográfica da Sintaxe Dialetal, nomeadamente a distribuição geográfica de algumas construções sintáticas não-padrão do PE (CARRILHO e PEREIRA, 2011 e 2013). Para além destes trabalhos, há a registar, no domínio da sintaxe do gerúndio, e com recurso a dados do CORDIAL-SIN e a monografias dialetais, a presença da variante flexionada, numa área relativamente extensa do Sul de Portugal Continental e, pontualmente, no arquipélago dos Açores (LOBO, 2000, 2001, 2002 e 2008), de que são dados alguns exemplos a seguir, retirados de LOBO (2000): 2) a. orações adjuntas modificadoras da frase sem conector: “Sendem dois, são dois feixes, sendem quatro, são quatro feixes. (Odeleite, in Cruz (1969))”; “Tu querendos, podemos namorar às descondidas. (Monte Gordo, in Ratinho (1959))”. b. orações adjuntas introduzidas por preposição em (ou ende): “vendem a pessoa assim {pp} ou com uma idade {pp} [AB|ou, ou] ou mal ou qualquer coisa, {pp} uns têm consciência, outros não têm. (Cordial, PAL7)”; “Em sendem crescidos, levo-os a Lisboa. (Baixo Alentejo, in Delgado (1951))”. c. orações adjuntas introduzidas por advérbios: “Onde é que eles mesmo /trabalhandem/ /trabalhando/, em ganhando o dinheiro, podiam semear alguma coisinha para eles. (Cordial, PAL11)”. d. orações relativas livres introduzidas por onde e quando: “Onde estando a menina está alegria. (Nisa, in Carreiro (1948))”; “Quando ele estando demais, já cheira a azedo. (Cordial, PAL30) (27)”. Por fim, merece ser sublinhado o trabalho realizado por Eva Arim, Maria Celeste Ramilo e Tiago Freitas, do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), publicado em 2004, a partir de dados retirados do corpus Rede de Difusão Internacional do Português: rádio, televisão e imprensa (REDIP) (que contempla materiais de fala produzidos na rádio, televisão e imprensa, em Portugal, em 1998), sobre construções relativas em PE. Este trabalho põe em evidência o uso de construções relativas não-padrão nos meios de comunicação social portugueses, algo que já tinha sido observado para o PB. Com efeito, esta variedade, e de acordo com o trabalho de Marcos Bagno (2001), referido pelos autores, cujos resultados tiveram por base o corpus de PB falado do Projeto NURC (Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro) aponta para o uso de uma percentagem elevada de relativas não-padrão (79,5 %), com a seguinte distribuição: variante relativa cortadora, com supressão da preposição (94 %) e variante relativa resuntiva, com marcação não-padrão do caso do constituinte relativo (6 %). O mesmo autor mostra que na língua escrita, com base em material jornalístico, a percentagem de variantes não-padrão se mantém elevada (94 %). Tal como no PB, observa-se o uso de variantes de relativas não-padrão em PE, sendo a cortadora a mais frequente, com 59 % no registo oral, mas apenas 3 % no registo escrito, a seguir ilustrado, com dados retirados da publicação: 3) a. Relativa não-padrão (cortadora), oral: “A linha de crédito que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares” [Noticiário, RDP]; padrão: “A linha de crédito de que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares”; “O audiovisual também está neste conjunto que eu chamo multimédia e comunicações interativas” [Dinheiro Vivo, RTP2]; padrão: “O audiovisual também está neste conjunto a que eu chamo multimédia e comunicações interativas”; “São passos no sentido daquilo que se chama mais união política” [Noticiário, RDP]; padrão: “São passos no sentido daquilo a que se chama mais união política”; b. Relativa não-padrão (cortadora), escrita: “Os investigadores encontraram quatro linhagens diferentes que chamaram A, B, C e D” [Expresso, secção de ciência e tecnologia]; padrão: “Os investigadores encontraram quatro linhagens diferentes a que chamaram A, B, C e D”; “O diretor de O Jogo aumentou de dois para quatro pontos a vantagem que dispõe sobre o trio perseguidor” [Expresso, secção de desporto]; padrão: “O diretor de O Jogo aumentou de dois para quatro pontos a vantagem de que dispõe sobre o trio perseguidor”. Já a variante resuntiva é a menos produtiva e mais marcada. Como afirmam os autores, “das duzentas e sessenta e cinco orações relativas encontradas no corpus, apenas as duas que se seguem são claramente resuntivas” (ARIM et al., 2004): 4) Relativa não-padrão (resuntiva), oral: “É sobretudo a síntese de tudo aquilo e das pessoas que viveram à minha roda e que eu consegui dar-lhes forma” [“Acontece”, RTP2]; padrão: “É sobretudo a síntese de tudo aquilo e das pessoas que viveram à minha roda e que eu consegui dar forma”; “Pôr em causa um princípio que antes não pensavam muito nele” [Debate sobre o Referendo sobre a Regionalização, RDP]; padrão: “Pôr em causa um princípio em que antes não pensavam”. Variação sintática e sintaxe não-padrão nas variedades do português falado na Madeira Os estudos descritivos e sistemáticos sobre variação sintática da variedade do Português falado na Madeira (doravante, PFM), sobretudo sobre a “Variedade do Português Europeu falada no Funchal” (ou PE-Funchal), são muito recentes, como sublinhado por Aline Bazenga (BAZENGA, 2014b). As principais referências surgem após as coletas de dados empíricos realizadas por investigadores do CLUL nos anos 70 e 80 do séc. XX e no início do séc. XXI. Projeto CORDIAL-SIN (CLUL) O projeto CORDIAL-SIN, dedicado ao estudo da variação sintática, permitiu a reflexão e estudo de fenómenos variáveis do PE nos quais surgem algumas particularidades em uso na variedade do PFM. De entre os trabalhos publicados no âmbito deste projeto, merecem especial atenção aqueles que mostram a existência de algumas construções não sintáticas mais confinadas à Madeira e aos Açores, tais como os usos de (i) ter existencial, ilustrado pelo exemplo de uma ocorrência deste tipo num informante do Porto Santo, “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e (eu) não via a casa da minha mãe! (PST)” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 129); (ii) as construções com possessivo pré-nominal sem artigo, como no exemplo a seguir, de um informante de Câmara de Lobos: “Ah, meus filhos já vieram daí para cá. (CLC)” (Id., Ibid., 132); e (iii) com o uso do gerúndio, precedido de verbos aspetuais como “estar”, “ficar”, “andar”, como, por exemplo, no seguinte enunciado produzido por um falante madeirense do Porto Santo: “[…] toda a gente estava desejando de chegar ao Natal, que era para comer massa e arroz e um bocadinho de carne” (Id., Ibid., 130). Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias (CLUL-Portugal e UFRJ-Brasil) O estudo da variação sintática na variedade madeirense tem vindo a desenvolver-se essencialmente desde 2008, data de início do Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias, projeto internacional coordenado por investigadores do CLUL (Portugal) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (Brasil) e financiado pelo CAPES/GRICES (Brasil), mais concretamente a partir de 2010, data em que a Universidade da Madeira (UMa) passa a integrar o projeto, através da investigadora do CLUL e docente desta Universidade Aline Bazenga. Os primeiros estudos variacionistas sobre sintaxe do português insular, a partir de dados da variedade falada no Funchal, capital do arquipélago da Madeira, começaram a ser publicados a partir desta data. Os trabalhos publicados enquadram-se na perspetiva variacionista e laboviana da variação, na qual a heterogeneidade sistemática observada nos sistemas linguísticos é condicionada por fatores sociais. Para o corpus Concordância-Funchal, foram realizadas as primeiras entrevistas sociolinguísticas de informantes madeirenses do Funchal. O projeto de constituição do corpus, inicialmente previsto para obtenção de dados de falantes insulares e urbanos, tem vindo a ser alargado a outros pontos de localização na ilha da Madeira (Calheta/Paul do Mar, Porto Moniz, Funchal, Santa Cruz, Boaventura, Ribeira Brava, Caniçal, Santana e Câmara de Lobos), com vista à constituição de um corpus Madeira. Em 2014, o corpus Concordância-Funchal passa a ser designado por corpus Sociolinguístico do Funchal (CSF) e integra-se no Corpus Madeira, que inclui amostras de outras localidades insulares. No mesmo ano, o CSF contém dados de 60 informantes, num total de 34 horas e 45 minutos de gravações. Os informantes foram escolhidos em função dos critérios sociais defendidos por Labov, atendendo às variáveis idade, género, localidade e nível de escolaridade. Os dados recolhidos têm sido objeto de estudo e analisados em trabalhos de investigadores, não só por Aline Bazenga, em publicações, comunicações e trabalhos de alunos sob sua orientação, como também por Juliana Vianna, em Semelhanças e Diferenças na Implementação de a gente em Variedades do Português (dissertação de doutoramento, defendida em 2011), Lorena Rodrigues, sobre os pronomes e clíticos em variedades do português (dissertação de doutoramento, em curso em 2016), e Catarina Andrade, em Crenças, Perceção e Atitudes Linguísticas de Falantes Madeirenses (dissertação de mestrado, defendida em 2015), todos membros do Centro de Investigação em Estudos Regionais e Locais da Universidade da Madeira (CIERL-UMa), dirigido por Paulo Miguel Rodrigues. Construções sintáticas não-padrão em uso na Madeira A investigação realizada no âmbito dos projetos anteriormente referidos permitiu aprofundar a investigação em torno de algumas áreas da gramática do PE, para as quais os falantes madeirenses mais contribuem, através de usos de variantes sintáticas não-padrão. Assim, para além da variante com gerúndio em construções aspetuais com o verbo estar e do uso de possessivo pré-nominal sem artigo, são de assinalar, nas construções existenciais, o uso da variante com o verbo ter e, nas construções pronominais, o uso de a gente e variantes com ele e lhe em função objeto direto (OD), entre outras particularidades ligadas à sintaxe posicional dos clíticos. São de referir ainda as variantes de terceira pessoa do plural (PN6) na morfologia verbal, em vogal [u], com ou sem traço de nasalidade, e em ditongo nasal [ɐ̃j̃] alargado a outros paradigmas verbais, o que conduz à regularização das classes temáticas dos verbos no presente do indicativo e no pretérito imperfeito, para além da variante em vogal, isomorfa de terceira pessoa do singular (PN3), cuja produção parece estar motivada por fenómenos de fonética sintática. Muitos destes fenómenos, que serão apresentados de modo mais sucinto nas secções seguintes, são referidos no trabalho de Elisete Almeida, publicado em 1998, sobre as “Particularidades dos Falares Madeirenses, na Obra de Horácio Bento de Gouveia”, elaborado a partir da recolha de dados retirados da escrita de Horácio Bento de Gouveia, escritor madeirense que, tendo a perceção do uso de algumas variantes não-padrão, sobretudo por informantes menos escolarizados da ilha da Madeira, procurou integrá-las na caracterização de personagens do povo nos seus romances. Construção com possessivo pré-nominal sem artigo O exemplo atestado em Câmara de Lobos “Ah, meus filhos já vieram daí para cá.” (CLC), e citado por Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 132), ilustra a variante da construção-padrão, com realização do artigo definido a preceder o possessivo, como em “Ah, os meus filhos já vieram daí para cá.”. As autoras acima referidas, apesar de observarem a realização da construção sem artigo em várias localidades situadas em Portugal continental, reconhecem “um padrão de distribuição geográfica predominante na área insular, em especial no arquipélago da Madeira” (Id., Ibid.), sobretudo quando os possessivos são seguidos de nomes de parentesco. Outras ocorrências desta variante não-padrão são citadas por Aline Bazenga (BAZENGA, 2011c), tendo por base uma amostra do CSF: 5) a. tava eu tua avó e teu avô [padrão: a tua avó e o teu avô] tava-se ali sentades (FNC11_MC1.1 159-60); b. mas mê maride [marido] [padrão: o meu marido] não podia ajudar em nada (FNC11_MC1.1 200); c. minha mulher [padrão: a minha mulher] teve seis filhes [filhos] (FNC11_HC1 207); d. salete _mas [mais] minha prima [padrão: a minha prima] (FNC11_MA1 016); e. quande mê [meu] pai faleceu [padrão: o meu pai] mê [meu] pai [padrão: o meu pai] foi tratado pior que um cão (FNC11_MB2 079-80). Construção aspetual estar + gerúndio Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (CARRILHO e PEREIRA, 2011), com recurso a dados de informantes madeirenses integrados no corpus CORDIAL-SIN, observam também, em algumas zonas de Portugal Continental, sobretudo nas variedades dialetais centro-meridionais e insulares, o uso da variante da construção aspetual com o verbo “estar” seguido de gerúndio, para além da variante-padrão, com verbo no infinitivo. Na Madeira, esta construção está também atestada, conforme o exemplo a seguir indicado e retirado deste trabalho: 6) “[…] toda a gente estava desejando [padrão: estava a desejar] de chegar ao Natal, que era para comer massa e arroz e um bocadinho de carne (PST)” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 130). A propósito desta construção e do seu uso no PFM, Elisete Almeida crê que esta se deve ao contacto linguístico e cultural da comunidade madeirense com os ingleses, a um processo de transferência linguística da construção inglesa “it’s rainning” para “está chovendo” (ALMEIDA, 1999, 75). Construção com ter existencial A construção com ter existencial tem sido referida como uma variável que permite contrastar duas variedades normativas do português, PE e PB, como nos exemplos a seguir indicados e retirados de Maria Helena Mira Mateus (2002): 7) a. PB: tem fogo naquela casa; PE: há fogo naquela casa. b. PB: no baile tinha muitos homens bonitos; PE: no baile havia muitos homens bonitos. Yvonne Leite, Dinah Callou e João Moraes observavam que o “uso de ter por haver tem sido objeto de estudo sistemático e costuma-se dizer que essa substituição, em estruturas existenciais, constitui uma das marcas que caracterizam o português do Brasil [sublinhado nosso], afastando-o do português de Portugal e aproximando-o do de Angola e Moçambique” (LEITE et al., 2003, 101). Muito estudada no âmbito do PB (VIOTTI, 1999; MATTOS e SILVA, 2002; DUARTE, 2003; LOPES e CALLOU, 2004; CALLOU e DUARTE, 2005; AVELAR, 2006a, entre muitos outros), só recentemente esta construção foi objeto de análise no âmbito do PE. O artigo de Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (2011), com base no CORDIAL-SIN, mostra que esta construção está presente em variedades do PE, nos arquipélagos dos Açores e Madeira (fig. 1): Fig. – Mapa com a distribuição de “ter” impessoal e existencial no CORDIAL-SIN (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 130). Trata-se de uma construção em que o verbo ter é usado não com o seu valor de posse, como na gramática da variedade normativa do PE, mas sim como verbo existencial, em vez da variante normativa com haver, fenómeno que se encontra ilustrado através dos exemplos, em (7), retirados deste trabalho: 7) a. “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e não via a casa da minha mãe! (PST16)”; b. “Mas tinha muitos moinhos por aqui fora. (CLH03)” (Id., Ibid., 129). Aline Bazenga (BAZENGA, 2012a, 2012b), com base no CSF, confirma a vitalidade desta construção: 8) a. “nunca tive oportunidade só_só italiano lá em baixo no centro onde tem [padrão: há] um italiano espetacular. (FNC11_HA1)”; b. “Porque no Continente tem as discotecas onde vai toda a gente e tem [padrão: há] as discotecas que são escondidas só vai quem quiser. (FNC11_HA2)”; c. “no meu trabalho onde eu trabalho tem [padrão: há] muita gente de idade e há velhotes que têm pensões. (FNC11_MB2)”; d. “tem [padrão: há] bastantes colégios aqui na Madeira. (FNC11_MA3 111-2)”; e. “tem [padrão: há] pessoas com estudos e não têm trabalho. (FNC11_MC1.2 177)”; f. “na rua dos ilhéus onde tem [padrão: há] dez_vinte prédios de apartamentos. (FNC_CH 3.1 102)”. Em trabalhos de mestrado realizados em 2014, sob a orientação de Aline Bazenga, foi possível realizar um estudo sociolinguístico, recorrendo a duas amostras de seis informantes cada. Estas duas amostras, uma com informantes pouco escolarizados (TER-Funchal 1) e a outra com informantes licenciados (TER-Funchal 3), permitiram obter os primeiros dados quantitativos e configurar a variação no domínio das construções existenciais na variedade do PFM. A seguir (cf. figs. 2 e 3), são apresentados os resultados globais obtidos, em termos de percentagens: [table id=84 /] Estes resultados permitem concluir que o uso da variante construção existencial com ter é frequente na variedade popular do Funchal, i.e., junto de informantes pouco escolarizados e, por esse motivo, com menor contacto com a variante-padrão veiculada pela escola, sobretudo do sexo masculino (63,70 %) e mais jovens (faixas etárias A e B, com 68,3 % e 53,8 %, respetivamente). É, também, de salientar a preferência deste grupo de falantes pelo uso do verbo ter neste tipo de construções com o verbo no presente do indicativo (58,5 %) e quando seguido de um sintagma nominal (SN) cujo nome (N) apresenta um traço semântico [+ animado] (62,3 %). Os dados deste tipo de informantes contrastam com os produzidos por informantes com formação universitária e maior contacto com a variante-padrão (fig. 3). Neste conjunto, observa-se uma percentagem reduzida de ocorrências da variante com ter. [table id=85 /] A variante com ter com valor existencial estava presente na língua portuguesa nos sécs. XV e XVI, em concorrência com a variante em haver, primeiro com valor de posse, mas também com valor existencial, conforme exemplos dados em (9) e em (10): 9) valor de posse (dados do séc. XV) a. ter: “quanta herdade eu ey” (MATTOS e SILVA, 1997, 270); b. haver: “Ele non pode aver remedio” (MATTOS e SILVA, 1989, 591). 10) valor existencial (dados do séc. XVI retirados de VIOTTI (1988,46)) a. haver: “Hum dos nobres que hy ha ca este aiuda os dous” (AX 120.5); “Avya hi hua donzella muy fremosa” (CGE 93.12/13); “Ouve hy muitos mortos e feridos” (CGE 94.17); b. ter: “Antre esta coroa darea e esta ilha tem canal pera poder sahir” (MNS 314.2); “Para cima tendo dous bons canais hum aloeste e outro ao leste” (MNS 324.9); “Na sua ponta da banda da sua tem hua terra alta” MNS 326.19. De acordo com Evani Viotti (1988) e Rosa Virgínia Mattos e Silva (1989), a percentagem de uso da variante com ter (42 %) em construções de posse no séc. XV já se aproximava da variante com haver. No séc. XVI, o uso de ter de posse (86 %) suplanta o de haver, começando também a ser usado em construções impessoais com valor existencial. Nas variedades do PE continental, observa-se uma fixação nos usos destes dois verbos: o verbo ter em construções de posse e o verbo haver em construções existenciais impessoais, o que não ocorre de modo categórico na gramática de alguns falantes madeirenses. Nas variedades insulares do PE e nas variedades extraeuropeias do português, manteve-se o uso conservador da variante ter existencial, com maior ou menor frequência, segundo as situações discursivas e a influência exercida por fatores linguísticos e extralinguísticos anteriormente referidos. Construções pronominais Neste domínio da gramática do português, alguns dos fenómenos que mais têm sido estudados na variedade do PFM prendem-se com (i) as diferentes estratégias de marcação da função OD e as construções sintático-semânticas com o pronome a gente. Estratégia de marcação de OD de terceira pessoa: pronome ele, clítico lhe e OD nulo – O CSF permitiu observar o uso de variantes não-padrão (BAZENGA, 2011c), tais como a variante com o pronome ele, em (11), e a variante com o clítico lhe, em (12): 11) a. “ponho ele [ponho-o] a ver bonecos. (FNC11_MA1 243)”; b. “meto ele [meto-o] a andar de bicicleta. (FNC11_MA1 243)”; c. “e depois o marido deixou ela [deixou-a] e ficou na quinta. (FNC11_MC1.1 453)”. 12) a. “Tento-lhe explicar e lhe informar [informá-lo] sobre as coisas. (FNC11_HA1426)”; b. “Levo-lhe [levo-o] à escola. (FNC11_MA1 006)”; c. “eu não gostava dele nem lhe [nem o podia] ver à frente. (FNC11_MA1 204-5)”. Outras estratégias utilizadas são a variante em OD nulo, em (13), e a repetição lexical, em (14): 13) a. “faço o jantar sirvo [sirvo-o] à família. (FNC11_MA1:010)”; b. “a minha licenciatura termina-se antes do tempo pretendido_ tive que me enquadrar no bolonha e tive que [a] acabar mais cedo – (FNC-MA3.1:013)”. 14) a. “gostava de comprar uma mota_ e os meus pais detestam [detestam-nas] motas – (FNC-HA1:004)”; b. “queria a minha roupa vestia a minha roupa [vestia-a]. (FNC11_MA1:067)”. A seguir, apresentam-se os resultados de estudos quantitativos realizados com amostras retiradas do CSF – OD-Funchal-A(jovens), OD-Funchal-C(idosos) e OD-Funchal-1(pouco escolarizados) –, cada uma composta por seis informantes, que permitem observar as principais tendências no que se refere às estratégias de marcação de OD, por falantes inseridos numa comunidade urbana e insular do PE, o Funchal, capital da ilha da Madeira.   Fig. 4 – Gráfico OD-Funchal-A(jovens) (NÓBREGA e COELHO, 2014).     Fig. 5 – Gráfico OD-Funchal-C(idosos) (CAIRES e LUIS, 2014).       Fig. 6 – Gráfico OD-Funchal-1 (pouco escolarizados) (AVEIRO e SOUSA, 2014).     Os resultados mostram que o uso do clítico em função OD (-o, -a, -os, -as e as suas variantes contextuais, -no, -na, -nos, -nas e -lo, -la, -los, -las), e que corresponde à variante-padrão, é a estratégia, logo a seguir à variante com lhe (9 % (fig. 4), 2 % (fig. 5) e 4,2 % (fig. 6)), menos utilizada pelos falantes do Funchal, quer sejam jovens (cf. fig. 4, com 16 %), idosos (cf. fig. 5, com 18,2 %) ou com nível de escolaridade baixo (cf. fig. 6, com 2,8 %). As estratégias preferenciais traduzem-se pelo recurso à repetição lexical e à não-marcação desta função ou OD nulo. O uso da variante com ele apresenta valores mais expressivos quando se trata de falantes mais idosos (16,4 %) e pouco escolarizados (19,6 %); já a variante em -lhe regista a sua maior percentagem de uso na amostra dos seis informantes jovens (9 %). O fator “nível de escolaridade” (que categoriza os falantes em três níveis: com formação até ao ensino básico (nível 1), secundário (nível 2) e superior (nível 3)) parece ser aquele que maior incidência tem no uso da variante-padrão com clítico -o. A título de exemplo, podemos observar os resultados obtidos quando se tem em conta este fator na amostra de informantes mais idosos (fig. 7), no gráfico a seguir apresentado:   Fig. 7 – Gráfico OD-Funchal-C(idosos) e variável nível de escolaridade (CAIRES e LUIS, 2014).     Os falantes idosos mais escolarizados (com estudos do ensino superior) não recorrem, por exemplo, à variante com ele, muito utilizada por aqueles que têm poucos estudos (22 %); inversamente, utilizam a variante-padrão (25 %), em contraste com o uso pouco significativo (5,6 %) por parte de falantes menos escolarizados. Um estudo posterior, de Lorena Rodrigues (RODRIGUES, 2015) e da mesma autora juntamente com Aline Bazenga (RODRIGUES e BAZENGA, 2016), realizado junto de 412 estudantes da UMa, permite observar a forma como as variantes em ele e em -lhe, do PFM, sobretudo na variedade do Funchal, ou PE-Funchal, são avaliadas (fig. 8):   Fig. 8 – Gráfico com os resultados globais da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016).     A fig. 8 mostra que a variante não-padrão em ele é avaliada como de menor prestígio, sendo também maior o número de informantes que admite utilizar a variante em -lhe na oralidade. Relativamente à variante -lhe, dos 29 % que manifestam a sua discordância com a hipótese 1, a de se tratar de uma variante errada, e declaram não a usar nem na fala nem na escrita, são os jovens do sexo masculino aqueles que mais a aceitam (31 %), com 12 % dos inquiridos a afirmar a sua utilização na fala e na escrita e 8 % a considerar que se trata de uma variante correta (fig. 9).   Fig. 9 – Gráfico com os resultados da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016): fator social (género dos inquiridos).   A percentagem de aceitação desta variante aumenta quando estão reunidas duas propriedades linguísticas de N anafórico: nome [+humano] e do género masculino (vi-lhe [o Pedro] na missa). Assim, quando reunidas estas condições, 15 % dos inquiridos afirma utilizar esta variante na oralidade, em situações do discurso informais, e 11 % considera-a como sendo correta. Fig. 10 – Gráfico com os resultados da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016): fatores linguísticos (traço semântico [humano] e género de N).     Estes resultados parecem configurar uma ainda ténue distribuição na perceção social das duas variantes: a variante ele é mais estigmatizada pela jovem elite insular e a variante -lhe parece estar a progredir em termos de aceitabilidade. A variante a gente, forma estigmatizada e alternante com nós, é também muito usada na oralidade. Ambas as variantes podem denotar uma entidade plural, mas requerem, do ponto de vista normativo, formas verbais na 3PS (terceira pessoa do singular, no caso de a gente) e 1PP (primeira pessoa do plural, no caso de nós). No entanto, os falantes utilizam muitas vezes na oralidade uma estratégia regularizadora, transferindo os traços de nós para a variante a gente, de que resulta, por exemplo, a gente vamos. O trabalho de Juliana Vianna (VIANNA, 2011), intitulado Semelhanças e Diferenças na Implementação de a Gente em Variedades do Português, com recurso aos dados coletados em 2010 para o Projeto Concordância (UFRJ – CLUL), que integram o CSF atual, permite observar que, dentro das variedades do PE, o uso de a gente adquire maior expressão na variedade falada no Funchal (fig. 11). [table id=86 /] Este facto ganha ainda maior visibilidade quando considerados alguns fatores sociais, nomeadamente o fator nível de escolaridade (fig. 12) e género (fig. 13) dos informantes.     Fig. 12 – Tabela com os resultados dos usos das variantes a gente e nós em variedades do PE, atendendo ao fator nível de escolaridade dos informantes (VIANNA, 2011). Os resultados mostram que a variante a gente é utilizada pelos setores mais marginalizados da sociedade insular, ou seja, maioritariamente por informantes com um nível de escolaridade baixo (52 %) e do sexo feminino (51 %), gozando, por este motivo, de pouco prestígio social. Outra construção sintática não-padrão e na qual se encontra a forma pronominal a gente, estudada por Ana Maria Martins (MARTINS, 2009), encontra-se em (15), a seguir, com dados de um falante de Câmara de Lobos: 15) a. “Não sabem o que a gente se passámos aí. (CORDIAL-SIN. CLC)”; b. “Este pode ser a coisa que a gente se diz peixe-cavalo. (CORDIAL-SIN. CLC)”.   Este tipo de construções, designadas por “duplo sujeito”, observada nos dados do CORDIAL-SIN, cujos informantes obedecem a um perfil social específico (geralmente idosos, analfabetos e que nunca saíram da região onde nasceram, sendo por este motivo considerados mais autênticos), está muito presente na ilha da Madeira, embora não seja específica da variedade insular, como referido pela autora em nota de rodapé: “The double subject SE construction is found in the archipelagos of Azores and Madeira as well as in continental Portuguese. It is much more common in the Centre and South of Portugal than in the North (where nonetheless it is also attested). It is fully ungrammatical in standard EP and has gone totally unobserved by philologists and linguists who dealt with dialect variation in European Portuguese” [A construção de duplo sujeito SE pode ser observada nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, bem como no português continental. Esta é muito mais frequente no Centro e no Sul de Portugal do que no Norte. É totalmente agramatical no PE-padrão, tendo passado despercebida a filólogos e linguistas que trabalham a variação dialetal no Português Europeu] (Ibid.). O CSF fornece mais exemplos deste tipo de construção, o que atesta a sua vitalidade, que não se limita ao seu uso por parte de falantes de comunidade rurais ou piscatórias, mas também de uma comunidade urbana, como a do Funchal: 16) a. “eu ainda falo um pouco lá como a gente fala-se lá na Calheta. (FNC11_HA1152-3)”; b. “a gente pede-se o bilhete de identidade tira-se o nome tira-se tudo gravas e depois vão dormir. (FNC11_MC1.1 099)”; c. “e cada vez a gente ouve-se  mais falar sobre isso. (FNC-MA3.1 271)”. Variantes de terceira pessoa do plural no verbo em contexto de concordância verbal O estudo da aplicação variável da regra de concordância verbal de 3PP (ou PN6) é o fenómeno morfofonológico e sintático mais estudado na variedade do PE-Funchal, sendo possível observar algumas tendências, em termos quantitativos e qualitativos, no que se refere aos padrões de variantes em coexistência nesta variedade urbana e insular do PE. Em termos de resultados globais de realização da concordância verbal com PN6, incluindo produções padrão e não-padrão da marca de Pessoa e Número (PN) no verbo neste contexto, Aline Bazenga (BAZENGA, 2012b) registou, a partir de uma amostra de dados retirados do Corpus Concordância, 84 % de concordância, percentagem que se relaciona fundamentalmente com o facto de ter incluído ocorrências do tipo tem/têm e construções com o verbo ser antecedido de SN topicalizado. Num estudo posterior, Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA, 2013), recorrendo também a uma amostra do mesmo corpus, mas adotando critérios uniformizados, registaram um índice de concordância de 94,7 %, valor que se situa numa posição intermédia, quando comparado com os resultados obtidos nas outras amostras, tanto europeias, como brasileiras e africanas: 99,1 % (Oeiras) e 99,2 % (Cacém), as duas amostras do PE continental; 89,1 % (Copacabana) e 78,2 % (Nova Iguaçu), do PB; e 92,1 % na amostra de São Tomé. Estes índices gerais permitem observar o contraste entre variedades do português, quanto ao tipo de regra (LABOV, 2003): as variedades do PE continental caracterizam-se por apresentarem uma regra semicategórica de concordância de terceira pessoa do plural, enquanto as variedades não europeias exibem uma regra variável. A variedade do PE-Funchal apresenta um comportamento que se situa no limite entre uma regra semicategórica e variável. Fica patente também neste trabalho, tal como em outros estudos variacionistas da concordância verbal de PN6 (MONGUILHOTT, 2009; RUBIO, 2012; MONTE, 2012), que o conjunto de fatores em atuação nas variedades do PE parece obedecer a condicionamentos morfofonológicos (sândi externo, um fenómeno de fonética sintática que ocorre no encontro de duas palavras, envolvendo uma vogal ou consoante final de uma palavra e uma vogal ou consoante inicial da palavra que está imediatamente a seguir, como em “bebe bem”, com a seguinte alteração ['bɛbɨ 'bɐ̃j̃]  ['bɛ 'bɐ̃j̃], ou em “gosta da amiga”, ['gɔʃtɐ dɐ ɐ’migɐ]  ['gɔʃtɐ da'migɐ]) e sintático-semânticos do tipo genérico ou de natureza “universal” (sobretudo posição e tipo de sujeito), restrições que afetam as línguas, independentemente da sua tipologia, como referido no trabalho de Greville Corbett (CORBETT, 2000). No entanto, tanto no trabalho de Aline Bazenga (BAZENGA, 2012b) como no já referido de Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (RODRIGUES e BAZENGA, 2013), a variedade do PE-Funchal distingue-se das variedades urbanas do PE por apresentar um conjunto de padrões de variantes flexionais de terceira pessoa do plural mais rico, comparável com os dados de subvariedades rurais ou semiurbanas (MOTA et al., 2003; MOTA e VIEIRA, 2008; MOTA, 2013) ou da variedade de Braga, estudada por Celeste Rodrigues (RODRIGUES,2012). Com efeito, na variedade do Funchal, para além das variantes flexionais-padrão (falam), foi possível constatar o uso de variantes não-padrão, marcadas pela realização de (i) um ditongo nasal não conforme com a morfologia verbal-padrão (falem, ou variante -EM) e (ii) da vogal oral (comero) ou nasal (comerõ) (variantes -U), para além da variante em vogal oral, resultante da não realização do traço de nasalidade, isomorfa de PN3, observada, ainda que de forma pouco produtiva, nas variedades do PE continental e normalmente analisada como não contendo a marca de número exigida pelo contexto de concordância verbal de PN6 (fala). Variantes flexionais não-padrão em contexto de concordância verbal de PN6 – A comparação das variantes flexionais não-padrão de PN6 (-EM e -U) atestadas no CSF (VIEIRA e BAZENGA, 2013) com as ocorrências observadas em amostras das subvariedades rurais/semirrurais do PE continental (dialetos setentrionais e dialetos centro-meridionais), retiradas de corpora (PE1, BB e AA) referidos no trabalho de Celeste Rodrigues e Maria Antónia Mota (RODRIGUES e MOTA, 2008), revela alguma especificidade da variedade urbana insular, caracterizada por uma maior diversidade, no que se refere tanto ao número de variantes como ao dos paradigmas verbais. Nesta variedade, o pretérito imperfeito do indicativo é objeto de maior variação, não só em termos quantitativos, mas também qualitativos. As gramáticas de falantes madeirenses do Funchal incluem neste tempo verbal, para além da variante-padrão e a variante isomórfica de PN3, as variantes -EM e -U. Na fig. 14, onde consta o conjunto de variantes atestadas no Funchal no trabalho de Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA, 2013), é possível observar que, depois da variante de PN6-padrão, inequivocamente com a realização canónica da concordância verbal (85,7 %), a variante mais expressiva, em termos quantitativos, é a que corresponde à forma verbal com uma terminação em ditongo nasal “deslocada” do seu paradigma e estendida a outros, representada por -EM (8,2 %), logo seguida da variante em vogal oral, isomórfica de PN3, analisada no referido trabalho como de não aplicação da concordância verbal de PN6.   Variantes não-padrão em vogal oral = isomórfica de PN3 Variante não-padrão em –EM Variante não-padrão em –U Variantes-padrão N.º de oc. % N.º de oc. % N.º de oc. % N.º de oc. % 48 /914 5,3 % 75/914 8,2 % 8/914 0,9 % 783/914 85,7 %   Fig. 14 – Tabela com as variantes flexionais em contexto de concordância verbal PN6 (VIEIRA e BAZENGA, 2013). As duas variantes (-EM e -U) representam cerca de 9 % dos dados, ou seja, 83 em 866 ocorrências totais de marcação explícita da concordância verbal, nos dados analisados por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA 2013), e quase o dobro das realizações sem a marca de número de PN6 (5,3 %). A realização em [ɐ̃j̃], presente no paradigma do presente do indicativo dos verbos com vogal temática (VT) /e/ e /i/, estende-se aos verbos com VT /a/, estabelecendo uma convergência na marcação PN6 Este processo de nivelamento na marcação de PN6 é também observado nos paradigmas do pretérito imperfeito do indicativo e do pretérito perfeito do indicativo (fig. 15), ilustrados pelos exemplos atestados em (17)-(19).   Variante PN6 não-padrão Presente Ind. Pretérito Imperfeito Ind. Pretérito Perfeito Ind. Totais VT /a/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ -EM [ɐ̃j̃] 19 oc. 24 oc. 16 oc. 9 oc 4 oc. - 3 oc. 75 oc. Totais 19 49 7   Fig. 15 – Tabela com a variante flexional -EM não-padrão na variedade do Funchal (VIEIRA e BAZENGA, 2013). 17) Presente do indicativo a. “aqueles carres [carros] que andem [andam] de noite. (C1h)”; b. “os próprios portugueses massacrem [massacram] os outros.” (C2m). 18) Pretérito imperfeito do indicativo a. “tanto é qu’as minhas primas elas diziem [diziam]. (B1M)”; c. “eles me chamavem [chamavam] madeirense de segunda. (C2m)”. 19) Pretérito perfeito do indicativo a. “as casas caírem [caíram]. (C1m)”; b. “depois eles mandarem-me [mandaram-me] reformar. (C1h)”. Os paradigmas verbais do PE dispõem de duas formas para marcação de PN6, ambas ditongos nasais, [ɐ̃w̃] e [ɐ̃j̃], mas com distribuições distintas. No português-padrão, a variante [ɐ̃j̃] integra os paradigmas do presente do indicativo dos verbos com VT /e/ e /i/, os do presente do conjuntivo dos verbos com VT /a/ e os do futuro do conjuntivo e do infinitivo pessoal, no conjunto das três conjugações (verbos com VT /a/, /e/ e /i/). Observam-se ainda alterações nas realizações fonéticas dos radicais dos verbos pôr (no pretérito perfeito) e ter (no pretérito imperfeito), transcritas como em (20): 20) a. “ponhem [punham] em terra gastava no calhau. (C1h)”; b. “todos eles tenham [tinham] dom. (B2h)”. Estas alterações poderão estar condicionadas por uma combinatória de restrições, relacionadas com as alterações que sofrem as realizações fonéticas das vogais tónicas /u/ e /i/ na variedade madeirense, por um lado, e pela estratégia de regularização de radicais (p[o]nhem/p[o]r; t[e]nham/t[e]r), por outro. As variantes com ditongo de PN6 da não-padrão realizam-se maioritariamente em contextos sintáticos em que o sujeito expresso está anteposto ao verbo (53,3 % e 40/75 ocorrências). Também ocorrem em 45,3 % (34/75) em contexto de sujeito não expresso, sendo de registar apenas uma ocorrência com sujeito posposto. A realização desta variante não parece ser condicionada por esta variável sintática. O mesmo não acontece em amostras de localidades situadas na zona dos dialetos centro-meridionais do interior do PE analisados por Maria Antónia Mota, Matilde Miguel e Amália Mendes, nas quais “a realização de vogal nasal está relacionada com a presença de sujeito nulo, o que indica a necessidade de se aprofundar o estudo das relações entre o marcador de PN6 e o tipo de sujeito (no caso, uma ‘redução’ fonética, do tipo ditongo nasal > vogal nasal ou uma não ditongação da estrutura /vogal n/): 54 % das ocorrências estão em frases com sujeito nulo; 24 %, com sujeito nominal; 20 %, com sujeito pronominal” (MOTA et al., 2012, 172). Quando considerados os contextos fonéticos adjacentes (forma verbal seguida de palavra iniciada por vogal, consoante (C) nasal, consoante não nasal e de pausa), observa-se a seguinte distribuição das ocorrências (fig. 16):   Variante de PN6 não-padrão + vogal + C nasal + C não nasal Pausa # -EM [ɐ̃j̃] 30 oc. 8 oc. 25 oc. 12 oc.   Fig. 16 – Tabela com a variante flexional -EM não-padrão e contextos fonéticos adjacentes (BAZENGA, 2015b). Esta variante não parece ser sensível ao contexto fonético à sua direita. Na variedade geográfica do Funchal, o ditongo [ɐ̃j̃], forma “peregrina” ou de “empréstimo” aos verbos com VT /e/ e /i/ cuja realização se estende aos verbos com VT /a/, insere-se num padrão marcado pela uniformização do marcador de PN6 no verbo, nos paradigmas verbais do presente, pretérito imperfeito e pretérito perfeito do indicativo. As variantes com final verbal em -U atestadas, no total oito, incidem apenas sobre o pretérito imperfeito (fig. 17), todas de um informante da faixa etária (36-55 anos), do sexo feminino e com escolaridade básica: 21) a. “quando os meus pais moravo na casa”; b. “eles vinho brincare”; c. “alevantavo-se durante a noite cede”.     Variante PN6 não-padrão Presente Ind. Pretérito Imperfeito Ind. Pretérito Perfeito Ind. Totais VT /a/ VT /e/ VT /i/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ -U [u] ou [ũ] - 5oc. 1 oc. 2 oc. - - - 8 oc.   Fig. 17 – Tabela com a variante flexional -U não-padrão e paradigmas verbais no CSF (BAZENGA, 2015b). Tal como a variante -EM, a variante em -U realiza-se maioritariamente em contexto de sujeito expresso (5/8 dos dados), situação que não parece corresponder ao observado por Maria Antónia Mota, Matilde Miguel e Amália Mendes em dados de variedades centro-meridionais, nos quais existem “indícios de que a realização de vogal nasal está relacionada com a presença de sujeito nulo, o que indica a necessidade de se aprofundar o estudo das relações entre o marcador de PN6 e o tipo de sujeito” (Ibid.). De acordo com as autoras, as realizações fonéticas em vogal nasal de PN6 corresponderiam a uma fase do processo morfofonológico anterior à realização canónica de ditongo nasal da forma fonológica /vogal N/. A variante em -U está também presente no conjunto de variantes observadas em fala espontânea informal na variedade urbana de Braga, que integra os dialetos setentrionais do PE, como mostra o estudo de Celeste Rodrigues (2012), com dados retirados do CPE-Var, um corpus que inclui 180 entrevistas sociolinguísticas de falantes de Lisboa e Braga, coletadas entre 1996 e 1998 (fig. 18). Variantes de PN6 [ɐ̃w̃] [ɐ̃w̃] 53 % [õ] 35,7 % [u] 8,1 % [ũ] 1,4 % Sem produção da terminação verbal = 1,6 % Variantes de PN6 [ɐ̃j̃] [ɐ̃j̃] 41,4 % [ẽ] 41,4 % [ẽj̃] 4,4 % Sem produção da terminação verbal = cerca de 12 % Fig. 18 – Tabela com as variantes flexionais de PN6 atestadas na variedade de Braga – PE (Corpus CPE-Var, utilizado em RODRIGUES, 2003; 2012, 221-222). Atendendo ao conhecimento histórico das mudanças ocorridas no português, a variante em -U (oral ou nasal) da forma padrão PN6 poderá ser considerada “histórica” ou “conservadora”, podendo ser associada às vogais nasais existentes no período arcaico da história do PE (-ã, -õ e -ão) (fig. 19), antes da convergência em ditongo nasal [ɐ̃w̃], que já no séc. XVI integrava a variedade-padrão do PE (português literário e língua culta do centro do país).   Nomes Flexão verbal -ã -áne -ánt -ant Indicativo presente dos verbos dar e estar e futuro de todos os verbos; Indicativo presente dos verbos da 1.ª conjugação, imperfeito, futuro do pretérito e pretérito mais-que-perfeito de todos os verbos e conjuntivo presente dos verbos da 2.ª e 3.ª conjugações. -õ -one - udine -unt -úm -unt Indicativo presente do verbo ser; 1.ª pessoa do singular do indicativo presente do verbo ser; Pretérito perfeito de todos os verbos. -ão -anu - anu   Fig. 19 – Tabela com as vogais nasais do português arcaico (CARDEIRA, 2005, 113). Clarinda de Azevedo Maia, fundamentando-se nas observações de Duarte Nunes de Leão, um gramático do séc. XVI, refere que “a pronúncia -õ era tida pelos gramáticos da época como característica da região interamnense” (MAIA, 1986, 604), o que leva Rosa Mattos e Silva a supor que durante o processo de convergência teriam convivido “como variantes no diassistema do português o ditongo [ɐ̃w̃], proveniente do etimológico [-anu], e do [ɐ̃], do etimológico [-ane] e [-ant]; e o ditongo [õw̃] de [õ], do etimológico [-one] e [-unt]”, com a norma que se estabelece no séc. XVI a selecionar o ditongo [ɐ̃w̃] como forma de prestígio em detrimento do ditongo [õw̃], avaliado negativamente e ainda hoje marcado como “popular, arcaizante e regional” (MATTOS e SILVA, 1995, 76). De salientar ainda o facto de as variantes em -U (vogal nasal [ũ] e vogal oral [u]) atestadas na amostra do Funchal analisada por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (2013) corresponderem à realização de PN6 apenas do pretérito imperfeito do indicativo, o que não está em conformidade com a vogal etimológica -o < -UNT) do pretérito perfeito de todos os verbos (fig. 19). Assim, apesar de poderem ser consideradas variantes não-padrão arcaizantes, as formas em -U da variedade urbana insular contêm traços inovadores. As variantes flexionais de PN6 não-padrão realizadas por uma vogal oral isomórfica de PN3 correspondem a 5,3 % dos dados atestados na variedade do Funchal (VIEIRA e BAZENGA, 2013), ou seja, a 49/914 ocorrências. Neste tipo de variantes, poderá estar em causa apenas a associação ou não do autossegmento flutuante /N/, tal como a representação formulada para o PE-padrão de Maria Helena Mira Mateus e Ernesto d’Andrade. Segundo esta proposta, as variantes sem ditongo podem resultar da propriedade de leveza que caracteriza os ditongos nasais finais não acentuados, de PN6 em formas verbais do PE-padrão. Estes ditongos, mas também aqueles que ocorrem em formas nominais simples (homem) ou com sufixo -agem (paragem, lavagem), são considerados pós-lexicais pelo facto de se encontrarem em palavras marcadas pela ausência de constituinte temático, por oposição aos ditongos nasais lexicais, gerados no léxico e que atraem o acento para o final de sílaba (pão) e admitem, como único segmento em coda, a fricativa /S/ (pães). Nos ditongos pós-lexicais, a semivogal é epentética, atendendo à sua inexistência a nível lexical, e surge após o processo de ditongação, ocupando os dois segmentos uma única posição no núcleo. O autossegmento flutuante /N/ projeta-se sobre o núcleo silábico, nasalizando os dois segmentos em simultâneo. O facto de este autossegmento nasal apenas se projetar no núcleo impede que qualquer segmento em posição de coda possa ser nasalizado (MATEUS e ANDRADE, 2000, 133). Considerando o efeito do contexto fonético à direita, observa-se que o contexto que mais favorece a realização da variante flexional em vogal oral é aquele em que a palavra seguinte se inicia por vogal (fig. 20).   + vogal + C nasal + C não nasal Pausa # 29/48 oc. 60,4 % 8/48 oc. 16,6 % 8/48 oc. 16,6 % 3/48 oc. 6,25 %   Fig. 20 – Tabela com as variantes PN6 não-padrão em vogal oral (isomórficas de PN3) e contextos fonéticos à direita da forma verbal (BAZENGA, 2015b). Atendendo a que “o contexto precedendo pausa […] é o que mais favorece a ativação do padrão com ditongo nasal” (MOTA et al., 2012, 171) e que, no âmbito da fonética sintática (sândi externo), podem ocorrer alterações fonéticas, nomeadamente quando a palavra seguinte se inicia por vogal ou consoante nasal, podemos considerar que, do ponto de vista da realização da forma verbal requerida em contexto sintático de concordância verbal em contexto sintático de PN6, apenas 11 das 49 ocorrências com vogal oral final nas formas verbais correspondem à não aplicação da regra de concordância, desprovidas da ambiguidade (oito ocorrências em 49, seguidas de consoante não nasal e três ocorrências seguida de pausa). Esta questão será abordada posteriormente, quando considerada a hipótese de concordância implícita, já referida na análise das variantes em -EM e -U, mas na sua versão mais recente e desenvolvida no artigo de Maria Antónia Mota de 2013. As variantes em vogal oral não-padrão de PN6 (isomórficas de PN3) correspondem maioritariamente a verbos com VT /a/ e /e/, representadas por -A e -E, respetivamente, cuja distribuição pelos paradigmas verbais consta da fig. 21, em contexto de palavra seguinte iniciada por vogal (21 das 29 ocorrências), registando-se ainda um exemplo com o verbo ir (quando vai aqueles pa agarrar o coisa – C1m):   Variante em vogal oral Presente do Indicativo Pretérito Imperfeito do Indicativo Pretérito Imperfeito do Conjuntivo vogal -A 2/21 11/21 - vogal -E 5/21 - 2/21   Fig. 21 – Tabela com a realização de variantes não-padrão em vogal oral (isomórficas de PN3) e paradigmas verbais (BAZENGA, 2015b). Nestes paradigmas, a distinção entre PN3 e PN6 na morfologia verbal-padrão resulta apenas da ancoragem ou não do autossegmento nasal /N/. Por outro lado, o contexto [+vogal] corresponde, na sua maioria (15 das 21 ocorrências de variantes -A e -E, realizadas foneticamente pelas vogais átonas [-ɐ] e [-ɨ]), às realizações fonéticas [a] e [ɐ]. Este encontro intervocálico na fronteira de palavra (sândi externo) resulta na elisão das finais verbais átonas e na ressilabificação das duas sílabas em contacto, como exemplificado a seguir: 22) a. “as mercearias na altura fechava às onze. (B1m)”; [fɨʃavɐ + aʃ] [fɨʃavaʃ] b. “os outros tinha as costas quentes. (C2m)”; [tiɲɐ + ɐʃ] [tiɲɐʃ] c. “das consequências que daí pode advir. (C2h)”. [podɨ + ɐdvir] [podɐdvir] Observa-se ainda que muitas das ocorrências com vogal oral -E correspondem ao item verbal inacusativo existir. Atendendo unicamente ao contexto de sujeitos pospostos, regista-se um total de 20 ocorrências de existir em 34, ou seja, 58, 8% (11 dados com ditongo-padrão de PN6 e nove dados não-padrão com vogal oral -E), no presente do indicativo (19 dados), registando-se apenas uma ocorrência no imperfeito do indicativo (“voltou a se provar que existia ainda substâncias” – B2h) (BAZENGA, 2015). Para além do verbo existir, observa-se a ocorrência de alguns itens verbais, tais como ter (dois dados) e vir no imperfeito do indicativo, cujos radicais contêm a consoante nasal palatal (-nh-) e que em princípio deveriam induzir a realização do segmento nasal do PN6-padrão, como afirma Jorge Morais Barbosa, a propósito da nasalização de vogais em contacto com consoantes nasais: “il semble que celle-ci [a nasalização] soim de règle lorsque la consonne nasale précède la voyelle, et que par contre dane le type voyelle + consonne la voyelle se maintienne souvent pratiquement orale” [parece que este fenómeno [a nasalização] segue a regra quando a consoante nasal precede a vogal e que, pelo contrário, no tipo vogal +consoante, a vogal mantém-se muitas vezes praticamente oral] (BARBOSA, 1965, 82). Um outro verbo parece ser bastante vulnerável. Trata-se do verbo ser, com seis dados no total, todos seguidos de uma palavra iniciada por consoante não nasal. 23) a. “enquanto elas fosse pequenas. (B1m)”; b. “as brincadeira era poucas. (C1m)”; c. “os professores chamados oficiais que era do_dos públicos. (C3m)”; d. “mas os dias foi [foram] passando. (A1m)”. Para além destes dados, é de registar o dado com o verbo ser, em (23d.), por ser semelhante a um dos tipos referidos (eles vai; eles cantou) por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga, como não sendo observado em variedades do PE, contrariamente ao que ocorre em algumas variedades do PB e em variedades africanas do português. Outros dados no pretérito perfeito do indicativo, sem o ditongo nasal final [ɐ̃w̃] de PN6, também são atestados, mas em contexto de sujeito posposto (“quando vai aqueles pa agarrar o coisa” (C1m); “caiu casas ali” (C1h); “aconteceu situações de tar [estar] em casa” (A1m)) (VIEIRA e BAZENGA, 2013, 23). Atitudes linguísticas de falantes madeirenses face à diversidade sintática da variedade insular do português: o continuum dialetal percetivo No âmbito da realização da dissertação de mestrado de Catarina Andrade, intitulada Crenças, Perceções e Atitudes Linguísticas de Falantes Madeirenses (2014), foi possível proceder à avaliação percetiva de construções sintáticas não-padrão em uso em variedades do português falado na Madeira, por parte de falantes madeirenses. Esta avaliação realizou-se através da aplicação de um questionário a uma amostra de 126 informantes, 18 por cada um dos sete pontos de inquérito na ilha da Madeira (Funchal, Santa Cruz, Machico, Câmara de Lobos, Santana e São Vicente e Calheta). Neste trabalho, a autora propõe um continuum dialetal através do qual apresenta as variantes sintáticas não-padrão alinhadas desde o polo à esquerda, onde se encontram as mais estigmatizadas, até às que gozam de maior prestígio, à direita, a partir de dados percetivos de informantes madeirenses (fig. 23).   Código Variante não-padrão Descrição Q.C.1.A “Comprei na feira.” Ausência de OD Q.C.6.A. “Porque estava chovendo.” Preferência para a forma do verbo estar + gerúndio Q.C.4.B. “Sim, eu sei, eu vi ele ontem.” Realização de OD com o pronome ele Q.C.5.A. “Tem muito trânsito nas ruas.” Preferência para o ter existencial Q.C.2.A. “Porque só no verão é que vai-se à praia.” Preferência para o uso do clítico se em posição incorreta Q.C.4.C. “Sim, eu sei, eu o vi ontem.” Realização de OD com o clítico o em posição incorreta Q.C.2.B. “Porque só no verão é que a gente vai-se à praia.” Realização da forma a gente com o se impessoal Q.C.3.A. “Não deve-se usar o telemóvel.” Realização do clítico se em posição incorreta Q.C.4.A. “Sim, eu sei, eu vi-lhe ontem.” Realização de OD com o clítico lhe Q.C.1.B. “Comprei-lhe na feira.” Realização de OD com o clítico lhe Fig. 22 – Quadro com as variantes sintáticas não-padrão consideradas para a construção de um continuum percetivo de falantes madeirenses (ANDRADE, 2014). A fig. 22 reúne o conjunto de variantes não-padrão consideradas para análise, cada uma associada a um determinado domínio gramatical do português. A forma de OD nulo parece ser privilegiada pelos madeirenses, especialmente na oralidade. Na sua dissertação, Catarina Andrade verificou, na sua abordagem geral no que se refere ao OD nulo, que, “dos 126 inquiridos, 59 % tem preferência para a omissão de OD e apenas 8 % para a sua realização com o clítico lhe” (ANDRADE, 2014, 151). A fig. 23 contém os resultados da avaliação realizada, com as variantes mais aceites à esquerda e as menos aceites e mais estigmatizadas à direita:   Fig. 23 – Gráfico com o continuum percetivo de variantes sintáticas não-padrão (ANDRADE, 2014).     Em traços gerais, as opções Q.C.1.A. (ausência de realização de OD), com 59 %, Q.C.6.A. (estar + gerúndio), com 58 %, e Q.C.4.B. (pronome ele OD), com 48 %, foram as variantes avaliadas de forma positiva pelos falantes madeirenses, em termos de aceitabilidade. Por seu turno, as opções/variantes Q.C.4.A. (12 %) e Q.C.1.B. (8 %), ambas relacionadas com a realização de OD através do clítico lhe, parecem ser fortemente estigmatizadas pelos inquiridos. Apesar de os falantes madeirenses terem acesso à norma-padrão através da escola, as variedades faladas na Ilha distanciam-se, em vários pontos do sistema linguístico, da variedade normativa, e os madeirenses têm consciência destas diferenças.   Considerações finais Tal como em outras variedades geográficas do português, a variação sintática está presente nas variedades faladas na Madeira, contribuindo para a caracterização sociolinguística e cultural da comunidade insular no seu todo. É notória também a presença de algumas variantes conservadoras, já não atestadas no PE continental, mas presentes também em variedades extraeuropeias do português (brasileira mas também africanas). As variantes inovadoras resultam, em muitos casos, de fenómenos de simplificação de subsistemas de marcação morfológica de categorias verbais e nominais, sendo os falantes menos escolarizados os que mais produzem este tipo de variantes. A presença destas características linguísticas no espaço insular deve-se provavelmente a uma história de contacto linguístico, social e cultural individualizante, quando comparada com outros territórios onde se fala o português. Parece clara também, tal como ocorre no PB, amplamente estudado por linguistas variacionistas, a influência de fatores sociais na variação sintática observada. Deste ponto de vista, as variantes, produzidas por falantes iletrados ou pouco escolarizados, mais velhos e do sexo feminino na comunidade de fala urbana do Funchal, podem ser consideradas como indicadores de localidade e de classe, ou seja, combinam o traço típico de “madeirensidade”, por se tratar de variantes não atestadas em variedades do PE continental até agora estudadas, e de “popularidade”, ou de grupo social, cuja variedade falada é marcada por usos de formas linguísticas não prestigiadas, excluídas da variedade-padrão do PE e objeto de estigma social. Embora as formas não marcadas manifestem uma tendência para sobreviverem à custa das formas marcadas por uma maior saliência percetual, esta tendência pode estar em risco, sob a influência de estereótipos sociais e regionais. Assim, as variantes flexionais não-padrão mais marcadas, de tipo -EM, por exemplo, tendem a ser produtivas, em detrimento de nivelamento linguístico, desejado pela elite madeirense desde o início do séc. XX. Funcionam como “indício” (no sentido que é dado pela semiótica de Peirce) de um sentimento de pertença a um território social. Numa comunidade de fala com as características marcadas pela insularidade, a mudança linguística poderia, assim, ser mais lenta, observando-se uma tendência para preservar as formas fortes e identitárias. A Dialetologia Percetual e os três estudos atitudinais e percetivos sobre a diversidade dialetal do PE (CABELEIRA, 2006, HADDAR, 2008 e FERREIRA, 2009), baseados em amostras com falantes que vivem em regiões de Portugal, fornecem outros argumentos para a individualização dos dialetos insulares, de um modo geral, e dos da Madeira, em particular. Nestes trabalhos, e no que se refere ao atributo “inteligibilidade”, as variedades do português falado nas ilhas portuguesas são avaliadas como menos inteligíveis, quando comparados com outras variedades do PE continental. Para tal contribuem não só alguns traços fonéticos e prosódicos, o léxico, mas também fenómenos morfossintáticos que efetivamente fazem parte da realidade linguística insular. O estudo similar, mas realizado junto de uma amostra de 126 informantes madeirenses, de Aline Bazenga, Catarina Andrade e António Almeida (2014) revela uma tendência para avaliar positivamente, em termos de prestígio, a variedade do português falado na Madeira, imediatamente a seguir à variedade-padrão (de Lisboa). A variedade dos Açores, contrariando a descrição linguística que a considera próxima da madeirense, é avaliada, pelos informantes madeirenses, como a menos compreensível e a mais distante da sua própria maneira de falar. Parece desenhar-se, assim, nos madeirenses uma representação de dupla filiação linguística: portuguesa, em primeiro lugar, seguida da “madeirensidade” (RODRIGUES, 2010), simbolizada por uma variedade falada distinta, também ela considerada de prestígio, um centro (regional/insular) dentro do centro do todo nacional – Lisboa, a capital –, a variedade de prestígio legitimado. A atitude positiva manifestada pelos madeirenses em relação à sua variedade falada poderia ser entendida a partir do conceito de “prestígio encoberto” (couvert), introduzido por Labov e também desenvolvido por Trudgill (1972), que procura explicar o uso de formas linguísticas não-padrão por parte de alguns grupos de uma comunidade de fala (os homens mais do que as mulheres, em particular). Estes usos constituem um padrão de prestígio implícito dentro da comunidade, com um valor simbólico de solidariedade para o grupo, em contraste com os valores de autoridade (clareza, elegância, pureza, competência) que caracterizam o prestígio legítim     Aline Bazenga Catarina Andrade (atualizado a 03.02.2017)  

Linguística Literatura

presidente do governo regional

Configuração institucional O presidente do Governo Regional é o chefe do órgão executivo da Região Autónoma que tem a seu cargo a condução da política regional e funciona como estrutura superior da administração pública regional, sendo em torno da sua pessoa que se forma, organiza e funciona todo o Governo Regional; nenhum outro membro do Governo Regional pode ser nomeado sem proposta do seu presidente, assim como todo o Governo Regional se considera demitido em caso de exoneração, morte ou impossibilidade física duradoura da pessoa do seu presidente. O presidente do Governo Regional exerce, face à Região Autónoma, um papel semelhante àquele que, por força de uma normatividade constitucional não escrita ou não oficial, o primeiro-ministro da República possui face ao Governo da República e à condução da vida política do país: o presidente do Governo Regional é, jurídica e politicamente, o eixo central da vida política e governativa da Região Autónoma. A progressiva transformação, no final do séc. XX e princípio do séc. XXI, das eleições para a Assembleia Legislativa num processo de escolha da individualidade que ia exercer as funções de presidente do Governo Regional, centrando-se a intervenção e a campanha dos principais partidos políticos em torno do candidato de cada partido a esse cargo, conferiam ao presidente do Governo Regional uma verdadeira legitimidade democrática direta. Daqui resultavam importantes efeitos políticos, tais como: (i) Não era o presidente do Governo Regional que resultava da maioria parlamentar, antes a maioria parlamentar que surgia por arrastamento da escolha, pelo eleitorado, do candidato a presidente do Governo Regional; assim, os deputados da maioria deviam mais a sua eleição ao nome do candidato a presidente do Governo Regional do que este devia o seu cargo à escolha ou confiança política dos deputados da maioria parlamentar, o que significava que não estávamos diante de um presidente do Governo Regional resultante da maioria parlamentar, mas com uma maioria parlamentar do presidente do Governo Regional. (ii) O presidente do Governo Regional adquiria uma legitimidade política que fazia inverter a relação clássica de responsabilidade política do executivo perante o parlamento: havia uma debilitação do papel fiscalizador da Assembleia Legislativa perante um presidente do Governo Regional que, tendo uma legitimidade democrática superior a cada deputado, funcionava como motivo determinante da existência de uma maioria parlamentar. A circunstância de o presidente do Governo Regional ser, simultaneamente, o chefe do Governo e o líder da maioria parlamentar conferia à sua vontade política um ascendente sobre a atuação do executivo e um papel propulsor e determinante do sentido decisório da Assembleia Legislativa; em termos políticos, o presidente do Governo Regional pensava, o Governo e a Assembleia realizavam; o presidente do Governo Regional decidia, o Governo e a Assembleia executavam. Por efeito do desenvolvimento informal de uma normatividade constitucional não oficial, emergente de uma prática reiterada que ganhou convicção de obrigatoriedade, apesar de contrária às normas escritas da Constituição oficial e do Estatuto Político-Administrativo oficial, o sistema de governo da Região Autónoma da Madeira funcionava centrado na figura do presidente do Governo Regional; o sistema de Governo parlamentar consagrado nas normas jurídicas escritas evoluíra e fora substituído por um presidencialismo de primeiro-ministro.   Nomeação Compete ao Representante da República nomear o presidente do Governo Regional (CRP, art. 231.º, n.º 3), impondo o Estatuto Político-Administrativo da Madeira; no entanto, existem duas exigências meramente procedimentais (artigo 57.º, n.º 2): ouvir os partidos políticos representados na Assembleia Legislativa; ter em conta os resultados eleitorais. Cumpridas essas exigências, o Representante da República goza, à luz do texto constitucional e estatutário, de discricionariedade na escolha do nome do presidente do Governo Regional, por aqui passando uma vertente da função de orientação política protagonizada pelo Representante da República. Sucede, no entanto, que essa margem de liberdade de escolha pelo Representante da República do nome do presidente do Governo Regional a nomear, tal como resulta das normas escritas oficiais, pode ser esvaziada por uma normatividade constitucional e estatutária informal, não escrita ou não oficial. Transformadas as eleições regionais num processo de escolha do candidato a presidente do Governo Regional, assistindo-se à edificação de um sistema de presidencialismo de primeiro-ministro, num cenário em que, nos primeiros 40 anos de vigência do sistema resultante da Revolução de 25 de abril de 1974, existiu um único partido político com maioria absoluta dos lugares parlamentares, a amplitude da margem de liberdade decisória do Representante da República ficava completamente reduzida se, após a eleição da Assembleia Legislativa da Região Autónoma, existisse um partido vencedor cujo líder se apresentasse ao eleitorado e fosse eleito como candidato a presidente do Governo Regional: o Representante da República quase se limitava a homologar o nome que lhe era proposto pelo partido maioritário. Mostra-se particularmente controvertido saber se o Representante da República se encontrava obrigado a nomear o chefe do partido maioritário como presidente do Governo Regional: havia um costume regional nesse sentido, integrante da Constituição regional informal ou não oficial; a verdade, porém, é que a normatividade escrita e oficial não vinculava o Representante da República nomear como presidente do Governo Regional uma individualidade que careça da sua confiança política, podendo até nomear quem, sendo da sua confiança pessoal, não possua um apoio parlamentar explícito à partida. Naturalmente que, não se verificando qualquer um dos referidos cenários políticos de uma maioria parlamentar absoluta, o Representante da República adquire, de facto, uma margem alargada de liberdade na escolha da individualidade a nomear como Presidente do Governo Regional, designadamente se se verificar uma das seguintes situações: (i) ausência de maioria parlamentar ou de entendimento parlamentar passível de sustentar um Governo Regional maioritário; (ii) formação de uma coligação pós-eleitoral que, apesar de minoritária, tenha um maior número de deputados do que o partido que, sendo o mais votado, apenas obteve uma maioria simples de lugares na Assembleia Legislativa; (iii) demissão do Governo durante a legislatura, sendo impossível ou inoportuna a dissolução da Assembleia Legislativa, isto sem que o presidente do Governo Regional cessante e objeto de eleição popular queira ou possa continuar a exercer as funções de presidente do Governo Regional; (iv) se, existindo maioria absoluta de um partido ou coligação parlamentar, o seu líder político for o próprio Representante da República, hipótese que reconduz o presidente do Governo Regional à posição de seu “lugar-tenente”. Em qualquer caso, mesmo existindo maioria parlamentar absoluta a apoiar um nome indicado para ser nomeado presidente do Governo Regional, o Representante da República poderá condicionar essa nomeação à aceitação de compromissos políticos por parte da pessoa a nomear. Tal condicionamento do Representante da República pode incidir sobre o programa do Governo, o perfil dos membros do Governo e a própria distribuição das pastas – há aqui, a propósito da nomeação do presidente do Governo Regional, um espaço de possível exercício de uma função de orientação política a cargo do Representante da República. Resta saber se o não uso de uma tal prerrogativa por parte do Representante da República ao longo de várias décadas não terá gerado um desuso ou um costume em sentido contrário. Tal como o costume de índole constitucional, deve-se considerar a figura do presidente do Governo Regional indigitado, i.e., a situação jurídica informal de quem, tendo aceitado vir a assumir as funções de presidente do Governo Regional, foi encarregado pelo Representante da República de prosseguir uma, todas ou várias das seguintes tarefas: (i) tentar encontrar, se ainda não existir, uma solução governativa que disponha de maioria parlamentar, procedendo a diligências junto dos partidos com representação parlamentar; (ii) formar governo, recrutando um elenco de individualidades que aceitem integrar um Governo Regional por si chefiado, apresentando os nomes à consideração do Representante da República; (iii) começar a definir os traços essenciais das orientações políticas e das medidas a adotar ou a propor adotar pelo governo, isto é, elaborar o programa de governo a apresentar à Assembleia Legislativa. São quatro os principais efeitos da nomeação do Presidente do Governo Regional: (i) A nomeação do presidente do Governo Regional faz começar a contar o prazo máximo de trinta dias para ser apresentado, junto da Assembleia Legislativa, o programa do governo; (ii) A nomeação envolve a exigência de posse, pois só a partir deste momento o presidente do Governo Regional inicia o exercício das suas funções; (iii) A nomeação determina, se o presidente do Governo Regional era deputado, a imediata suspensão do seu mandato parlamentar; (iv) A data da nomeação e da posse do novo presidente do Governo Regional corresponde à data da exoneração do anterior presidente, sendo também esse o momento de cessação de funções de todos os restantes membros do anterior Governo, garantindo-se sempre, deste modo, a continuidade dos serviços públicos regionais.   Competência Tendo presente o quadro normativo de poderes conferidos ao presidente do Governo Regional, nos termos da Constituição e do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, mostra-se possível recortar o elenco das seguintes principais funções: (i) funções de gestação do governo; (ii) funções de direção política; (iii) funções de chefia administrativa; (iv) funções de representação governamental; (v) funções de controlo. Observemos, muito sumariamente, cada uma destas funções constitucionais do presidente do Governo Regional. Se o presidente do Governo Regional tem uma função geradora da formação do governo, sendo o seu progenitor junto do Representante da República e da Assembleia Legislativa, pode bem dizer-se que a primeira competência do presidente do Governo Regional se prende com a gestação do governo. Compete ao presidente do Governo Regional propor ao Representante da República os nomes dos restantes membros do Governo Regional, o que significa que, desde logo, lhe está atribuído um poder de organização intragovernamental, o qual que se configura nos seguintes termos: (i) Se é verdade que o presidente do Governo Regional não pode nomear os membros do seu Governo, também é certo que o Representante da República se encontra sempre sujeito aos nomes propostos pelo presidente do Governo Regional; sem o acordo do Representante da República, o presidente do Governo Regional não consegue formar uma equipa governamental, mas sem proposta deste, o Representante da República não pode nomear membros do Governo Regional. (ii) Deste modo, todos os membros do Governo Regional têm de merecer a confiança do presidente do Governo Regional, sem terem a oposição ou a desconfiança expressa do Representante da República. (iii) Ao indicar os nomes, o presidente do Governo Regional tem a inerente competência para traçar a arquitetónica organizativa do Governo, definindo a designação, o número e as atribuições das secretarias e subsecretarias regionais e as suas formas de relacionamento. (iv) Iguais poderes se têm de reconhecer ao presidente do Governo Regional num cenário de remodelação governamental, propondo ao Representante da República a exoneração dos membros do Governo Regional, substituindo-os por outros, mantendo ou alterando a respetiva arquitetónica governamental. (v) Num âmbito mais circunscrito, verificando-se não existir a figura do vice-presidente do Governo Regional, o seu Presidente tem a faculdade de, em caso de ausência ou impedimento, designar o Secretário Regional que entender para o substituir. Uma segunda função conferida ao presidente do Governo Regional diz respeito à direção política do Governo Regional, referindo o art. 73.º, n.º 1, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, a faculdade que tem de dirigir as reuniões do Governo Regional: ao presidente do Governo compete impulsionar, promover, predeterminar ou definir a política geral do Governo Regional, garantindo a sua execução por todos os secretários regionais; nenhuma política governamental escapa à intervenção do presidente do Governo Regional. No âmbito do recorte da função de direção política do Governo Regional, acentuada pela transformação das eleições parlamentares num processo de legitimação político-democrática direta do presidente do Governo Regional, pode dizer-se que a competência do presidente do Governo Regional encontra as seguintes expressões: (i) O presidente do Governo Regional tem um papel central na elaboração do conteúdo do programa de Governo a apresentar à Assembleia Legislativa; compete-lhe definir ou, pelo menos, expressar a sua concordância política integral com “as principais orientações políticas e medidas a adotar ou a propor nos diversos domínios da atividade governamental” (CRP, art. 188.º); nada pode ser incluído no programa do Governo Regional contra a vontade do seu Presidente. (ii) Independentemente dessa manifestação de direção política, ao presidente do Governo compete dirigir a política geral do Governo Regional, o que significa o seguinte: (a) propor a determinação ou definição das linhas gerais da política regional ao Conselho do Governo Regional; (b) convocar e presidir ao Conselho do Governo Regional, dirigindo os seus trabalhos e orientando o seu sentido decisório coletivo; implementar as linhas gerais da política governamental e da sua execução, objeto de definição pelo Conselho do Governo Regional, dirigindo o funcionamento do Governo, coordenando e orientando a ação política de todos os seus restantes membros; (c) assinar os decretos regulamentares regionais e demais atos colegiais do Governo Regional, ou seja, todas as principais decisões normativas governamentais devem contar com a intervenção do presidente do Governo Regional. (iii) ainda no contexto da direção política do Governo Regional, o seu Presidente goza do poder de propor ao Representante da República a exoneração e substituição de qualquer membro do governo, afastando os elementos não sintonizados com a linha política por si pretendida para o governo e, por essa via, controlando a intervenção do Conselho do Governo Regional na definição das linhas gerais da política regional. (iv) a direção política a cargo do presidente do Governo Regional permite-lhe propor e, se necessário, forçar o Conselho do Governo Regional a deliberar sobre a apresentação de uma moção de confiança à Assembleia Legislativa, procurando obter um conforto ou uma clarificação parlamentar sobre o sentido das linhas políticas propostas ou já executadas pelo Governo Regional. Naturalmente que a unidade do poder político gerada por uma maioria parlamentar fiel ao chefe do executivo, tal como sucedeu na Região Autónoma da Madeira nos últimos anos do séc. xx e primeiros do séc. xxi, reforça a centralidade decisória do presidente do Governo Regional. Em torno do presidente do Governo Regional encontravam-se aglutinados os principais poderes de decisão política regional. Neste sentido, o presidente do Governo Regional impulsionava e dirigia a ação do Governo e, sendo líder político de uma maioria parlamentar, comandava o sentido decisório da Assembleia Legislativa. Por outro lado, a ordem jurídica confere ao presidente do Governo Regional funções de chefia administrativa, e isto num duplo sentido: (i) O presidente do Governo Regional dirige o funcionamento do Governo no exercício da função administrativa regional, excluindo aqui a intervenção no âmbito da direção política, coordenando e orientando os restantes membros do Governo Regional nos respetivos domínios do agir administrativo. (ii) O presidente do Governo Regional pode também administrar e gerir, igualmente numa posição de chefia, os serviços administrativos integrados na presidência do governo, tal como pode chamar a si a gestão de determinados dossiers administrativos, sendo os termos definidos pelo regulamento referente à organização e ao funcionamento do Governo, sem prejuízo de também poder acumular a presidência com a gestão de qualquer outro departamento regional. O Presidente do Governo Regional exerce ainda, por via constitucional e estatutária, funções de representação, que envolvem as duas principais faculdades seguintes: (i) representa o Governo Regional e a própria Região Autónoma junto dos restantes órgãos e instituições, garantindo a expressão da vontade dos órgãos de Governo próprio da Região Autónoma; (ii) protagoniza a responsabilidade política do Governo Regional perante a Assembleia Legislativa, o que significa que: (a) o presidente do Governo Regional deve comparecer perante o plenário da Assembleia Legislativa tratando-se de debates sobre o Governo e de interpelações ao Governo sobre assuntos de política regional; (b) O presidente do Governo Regional deve comparecer junto da Assembleia Legislativa se for desencadeada uma moção de censura ou solicitada uma moção de confiança. Compete ao presidente do Governo Regional, por último, o exercício de funções de controlo, o que se traduz na legitimidade processual ativa para, nos termos do art. 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição, solicitar junto do Tribunal Constitucional, a declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade, com força obrigatória geral, de quaisquer normas com fundamento em violação dos direitos das regiões autónomas ou do seu Estatuto Político-Administrativo.   Termo e suspensão de funções Todas as situações que impliquem a demissão do Governo envolvem o correlativo termo de funções do presidente do Governo Regional. Mostra-se possível recortar, por conseguinte, quatro diferentes grupos de causas de termo de funções do presidente do Governo Regional: (i) causas decorrentes da responsabilidade do Governo Regional perante a Assembleia Legislativa: não aprovação (ou rejeição) do programa do Governo; não aprovação (ou rejeição) de uma moção de confiança; aprovação de uma moção de censura; (ii) um ato voluntário do próprio presidente do Governo Regional: o pedido de demissão ou exoneração, que se encontra todavia dependente de aceitação do Representante da República, sem prejuízo do princípio geral da renunciabilidade aos cargos públicos; (iii) uma causa resultante da intervenção do Presidente da República: a dissolução da Assembleia Legislativa; (iv) causas alheias à vontade de qualquer um destes intervenientes: início de nova legislatura; morte do presidente do Governo Regional; impossibilidade física duradoura (sem ser necessário que seja permanente) do presidente do Governo Regional; condenação definitiva do presidente do Governo Regional, por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções (lei n.º 34/87, de 16 de julho, art. 31.º). Note-se que, salvo em casos da sua morte ou impossibilidade física duradoura, o efetivo termo de funções do presidente do Governo Regional coincide, por razões decorrentes do princípio da continuidade dos serviços públicos, com a tomada de posse do novo presidente do Governo Regional. No caso, porém, de demissão forçada por condenação criminal, o presidente do Governo Regional passa imediatamente a estar impedido de continuar a exercer funções, procedendo-se, até à nomeação e posse de um novo presidente do Governo Regional, à sua rápida substituição, nos termos definidos pelo art. 73.º do Estatuto Político-Administrativo. Se, ao contrário do anterior cenário, que pressupunha a condenação definitiva, estiver apenas em causa um procedimento criminal movido contra o presidente do Governo Regional, tendo ele sido acusado definitivamente, o art. 64.º do Estatuto Político-Administrativo determina que seja sempre necessária a intervenção da Assembleia Legislativa para decidir da sua suspensão. Há aqui a diferenciar, no entanto, dois cenários: (i) se se tratar de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, uma vez que a Assembleia Legislativa se encontra obrigada a decidir pela suspensão, o presidente do Governo Regional é substituído, se não apresentar a sua demissão; (ii) se não estiver em causa um crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, a Assembleia Legislativa é livre de decidir se haverá ou não suspensão do presidente do Governo Regional; se a Assembleia Legislativa decidir pela suspensão, aplica-se o que se acabou de referir na alínea (i); se, pelo contrário, a Assembleia Legislativa decidiu pela não suspensão, entendemos que há a diferenciar ainda duas hipóteses: (a) se estiver em causa uma acusação por crime praticado no exercício de funções públicas e por causa desse exercício, o presidente do Governo Regional deve considerar-se, por uma questão de ética constitucional e dignidade do cargo, impedido de continuar a exercer funções, procedendo-se à sua substituição; (b) se não estivermos diante de uma acusação por crime praticado no exercício de funções públicas e por causa desse exercício, o presidente do Governo Regional não se encontra eticamente obrigado a considerar-se impedido temporariamente de exercer funções.   Paulo Otero (atualizado a 03.02.2017)

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