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    Variação sintática em variedades do português A investigação sobre a variação no domínio da sintaxe do português, sobretudo nas suas variedades europeias, ou Português Europeu (PE), não tem merecido a atenção dos linguistas. Como sublinha Ernestina Carrilho, “As informações disponíveis sobre aspetos da sintaxe do PE dialetal são, assim, normalmente escassas e encontram-se, em grande parte, dispersas em muitos trabalhos monográficos” (CARRILHO, 2003, 19), ocupando um lugar muito marginal nos trabalhos dialetológicos. Assinale-se, a título de exemplo, as poucas páginas consagradas à sintaxe por Leite de Vasconcelos na sua tese de doutoramento Esquisse d'une Dialectologie Portugaise, de 1901 (VASCONCELOS, 1987, 121-122), obra de referência na dialetologia portuguesa, ou ainda a ausência de critérios de tipo sintático na caracterização sistemática de dialetos portugueses proposta por Manuel de Paiva Boléo e Maria Helena Silva (1961) e por Luís Filipe Lindley Cintra (1971). A investigação em variação sintática tem sobretudo privilegiado o contraste entre variedades nacionais do português, o PE e o Português do Brasil (PB), não só no âmbito da Teoria da Variação e da Mudança Linguística, proposto no clássico artigo de Uriel Weinreich, William Labov e Marvin Herzog (1968), “Empirical Foundations for a Theory of Language Change”, pioneiro da sociolinguística variacionista, mas também na perspetiva do Modelo de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1981) ou doutros modelos compatíveis com os pressupostos teóricos da Gramática Generativa. Os principais fenómenos que têm chamado a atenção de investigadores portugueses e brasileiros encontram-se na secção “Colóquio Português Europeu/Português Brasileiro: Unidade e Diversidade na Passagem do Milénio”, integrada no volume dedicado às Actas do XVI Encontro da APL (CORREIA e GONÇALVES, 2001), e prendem-se, entre outros, com o parâmetro do sujeito nulo (BARBOSA et al., 2001, 539-550), as estratégias de realização de objeto direto (KATO e RAPOSO, 2001, 673-686), o artigo antes de possessivo (BRITO, 2001, 551-575), as construções relativas (CORRÊA, 2001, 615-626), a concordância verbal com a gente (COSTA et al., 2001, 639-656) e o uso do gerúndio (NETO e FOLTRAN, 2001, 725-735). O primeiro trabalho de referência sobre sintaxe dialetal, sob o título de “Aspectos da Sintaxe do Português Falado no Interior do País”, foi realizado por João Malaca Casteleiro (CASTELEIRO, 1975), a partir de uma amostra de dados de português falado coletados no âmbito do projeto corpus Português Fundamental (NASCIMENTO et al., 1987). O seu estudo focaliza-se, entre outros aspetos sintáticos, na estrutura da frase e na sintaxe verbal, mais especificamente nos usos dos tempos e modos verbais, e permite observar algumas tendências da sintaxe do português falado por 45 informantes com nível baixo de escolaridade (4.ª ano do ensino básico) ou analfabetos, de oito distritos do interior de Portugal Continental, tais como o uso do “gerúndio precedido de em, isto é, em + gerúndio. [...] com valor e é muito utilizada na linguagem popular”, como em “Entra às nove, e em sendo aí meia-noite, uma hora, tem ali cama, vai-se deitar (Rececionista de um hotel, instrução primária, de Beja, R-297)” (CASTELEIRO, 1975, 62), ou ainda o recurso de “frases simples justapostas, sem coordenação explícita [...]” (Id., Ibid., 64) e da repetição como forma de se fazerem entender, sendo a frase passiva pouco utilizada. No que se refere à sintaxe do verbo, são de referir o uso frequente dos pronomes pessoais, as formas sujeito, com os verbos, embora tal não seja necessário, uma vez que no português as desinências verbais fornecem a informação relativa às categorias gramaticais de pessoa/número, como em “Mas nós temos a impressão que nem toda a gente se adapta ao nosso ambiente, porque felizmente nós temos aqui um ambiente bom (Bordadora, 4ª classe, Castelo Branco L-183)” (Id., Ibid., 65), ou ainda o uso de a gente com o verbo na 1.ª pessoa do plural, sobretudo no Sul do país, como em “A gente não tivemos festa, andamos de luto (Trabalhadora rural, analfabeta, de Sta Suzana, Évora, Q-42)” (Id., Ibid.). Os resultados deste estudo são, segundo o autor, “apesar da exiguidade da amostragem, [...] no domínio sintático, [...] pertinentes” (Id., Ibid., 58). O autor chama ainda a atenção para algumas características linguísticas de falantes pouco instruídos, cuja fala “não é nem mais pobre, nem mais rica do que a dos falantes média ou altamente alfabetizados. É apenas diferente em vários aspetos da organização das estruturas sintácticas. [...]. As dificuldades de comunicação só surgem – e surgem nos dois sentidos – quando há intercâmbio entre falantes de meios sociais diferentes. Neste aspeto, tanto tem que aprender o falante altamente alfabetizado com o pouco ou nada alfabetizado, como vice-versa. A linguagem de uns e doutros tem, por conseguinte, o mesmo valor linguístico e deve ser igualmente descrita pela Gramática” (Id., Ibid., 74). Merece igualmente destaque a publicação de João Andrade Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa (PERES e MÓIA, 1995), na qual os autores selecionam seis áreas críticas do português contemporâneo a partir da análise de material linguístico retirado de uma amostra de textos jornalísticos produzidos entre 1986 e 1994. As áreas selecionadas, nas quais se observa o uso de variantes não normativas, são indicadas em (1), seguidas de alguns exemplos: 1) a. estruturas argumentais: e.g., “supressão de argumentos”, como em “Desta vez atuaram no Porto, espancando um jovem negro até ficar inconsciente, colocando posteriormente sobre uns carris da linha de comboio” [Diário de Lisboa, 24/11/1989, p. 10] vs. “Desta vez atuaram no Porto, espancando um jovem negro até ficar inconsciente, e colocando-o posteriormente sobre uns carris da linha de comboio”[versão padrão proposta] (PERES e MÓIA, 1995, 60); b. construções passivas: por exemplo, “supressão de preposição”, como em “A nova onda chama-se Peugeot 309 Chorus. Uma onda fácil de entrar (apenas 1.460 contos) e agradável de estar” [Expresso, 31/12/1988, p. C-7 (publicidade)] vs. “A nova onda chama-se Peugeot 309 Chorus. Uma onda em que é fácil entrar (apenas 1.460 contos) e agradável estar” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 233); c. construções de elevação: como em “As conclusões deste estudo estavam previstas virem a ser apresentadas ainda no decorrer deste mês […]” [O Independente, Dinheiro, 23/12/1993, p. 5] vs. “Estava previsto as conclusões deste estudo virem a ser apresentadas ainda no decorrer deste mês […]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 266); d. orações relativas: e.g., “supressão de preposição de constituinte relativo”, como em “Os temas que os portugueses gostam [...]” [O Jornal Ilustrado, 31/3/1989, p. 35] vs. “Os temas de que os portugueses gostam [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 290); e. construções de coordenação: e.g., “supressão de constituintes relativos”, como em “[…] é o caso de Aspects of Love, que estreou-se no mês passado em Londres e já foram vendidos cinco milhões de libras de bilhetes [...]” [Europeu, 18/5/1989, p. 24] vs. “[…] é o caso de Aspects of Love, que se estreou no mês passado em Londres e de que já foram vendidos cinco milhões de libras de bilhetes [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 413); f. concordâncias: como em “Desta vez coube-nos em sorte três novelas de Mateus Maria Guadalupe [...]” [O Jornal Ilustrado, 12/5/1989, p. 20] vs. “Desta vez couberam-nos em sorte três novelas de Mateus Maria Guadalupe [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 453). Cerca de 20 anos depois deste texto de referência, o projeto CORDIAL-SIN (Corpus Dialectal para o Estudo da Sintaxe), coordenado por Ana Maria Martins, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL), vem dar ênfase à investigação em variação sintática no PE. Iniciado em 1999, este projeto visa estudar a variação sintática dialetal do PE, com recurso a dados empíricos, no âmbito da Teoria de Princípios e Parâmetros da Gramática Generativa. Para tal, foi constituído um corpus anotado de PE (CARRILHO e MAGRO, 2010), cuja extensão atual é de cerca de 600.000 palavras (70 horas de gravações que incluem um conjunto geograficamente representativo (42 pontos) de excertos de discurso livre e semi-dirigido). Estes dados foram selecionados a partir do arquivo sonoro do CLUL, construído ao longo de 30 anos, contendo no total cerca de 4500 horas de gravações, obtidas em mais de 200 localidades do território português, no âmbito dos projetos ALEPG (Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza, coord. de João Saramago), ALLP (Atlas Linguístico do Litoral Português, coord. de Gabriela Vitorino), ALEAç (Atlas Linguístico-Etnográfico dos Açores, coord. de João Saramago) e BA (Fronteira Dialectal do Barlavento do Algarve) (SEGURA, 1988). O desenvolvimento de uma área de interesse como a da descrição sintática do português trouxe, ao longo das duas últimas décadas, “avanços relevantes no conhecimento empírico dos dialetos e da variação sintática que as línguas naturais apresentam” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 125), e tal deve-se em grande parte ao projeto CORDIAL-SIN. Este recurso permitiu observar a dimensão geográfica da Sintaxe Dialetal, nomeadamente a distribuição geográfica de algumas construções sintáticas não-padrão do PE (CARRILHO e PEREIRA, 2011 e 2013). Para além destes trabalhos, há a registar, no domínio da sintaxe do gerúndio, e com recurso a dados do CORDIAL-SIN e a monografias dialetais, a presença da variante flexionada, numa área relativamente extensa do Sul de Portugal Continental e, pontualmente, no arquipélago dos Açores (LOBO, 2000, 2001, 2002 e 2008), de que são dados alguns exemplos a seguir, retirados de LOBO (2000): 2) a. orações adjuntas modificadoras da frase sem conector: “Sendem dois, são dois feixes, sendem quatro, são quatro feixes. (Odeleite, in Cruz (1969))”; “Tu querendos, podemos namorar às descondidas. (Monte Gordo, in Ratinho (1959))”. b. orações adjuntas introduzidas por preposição em (ou ende): “vendem a pessoa assim {pp} ou com uma idade {pp} [AB|ou, ou] ou mal ou qualquer coisa, {pp} uns têm consciência, outros não têm. (Cordial, PAL7)”; “Em sendem crescidos, levo-os a Lisboa. (Baixo Alentejo, in Delgado (1951))”. c. orações adjuntas introduzidas por advérbios: “Onde é que eles mesmo /trabalhandem/ /trabalhando/, em ganhando o dinheiro, podiam semear alguma coisinha para eles. (Cordial, PAL11)”. d. orações relativas livres introduzidas por onde e quando: “Onde estando a menina está alegria. (Nisa, in Carreiro (1948))”; “Quando ele estando demais, já cheira a azedo. (Cordial, PAL30) (27)”. Por fim, merece ser sublinhado o trabalho realizado por Eva Arim, Maria Celeste Ramilo e Tiago Freitas, do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), publicado em 2004, a partir de dados retirados do corpus Rede de Difusão Internacional do Português: rádio, televisão e imprensa (REDIP) (que contempla materiais de fala produzidos na rádio, televisão e imprensa, em Portugal, em 1998), sobre construções relativas em PE. Este trabalho põe em evidência o uso de construções relativas não-padrão nos meios de comunicação social portugueses, algo que já tinha sido observado para o PB. Com efeito, esta variedade, e de acordo com o trabalho de Marcos Bagno (2001), referido pelos autores, cujos resultados tiveram por base o corpus de PB falado do Projeto NURC (Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro) aponta para o uso de uma percentagem elevada de relativas não-padrão (79,5 %), com a seguinte distribuição: variante relativa cortadora, com supressão da preposição (94 %) e variante relativa resuntiva, com marcação não-padrão do caso do constituinte relativo (6 %). O mesmo autor mostra que na língua escrita, com base em material jornalístico, a percentagem de variantes não-padrão se mantém elevada (94 %). Tal como no PB, observa-se o uso de variantes de relativas não-padrão em PE, sendo a cortadora a mais frequente, com 59 % no registo oral, mas apenas 3 % no registo escrito, a seguir ilustrado, com dados retirados da publicação: 3) a. Relativa não-padrão (cortadora), oral: “A linha de crédito que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares” [Noticiário, RDP]; padrão: “A linha de crédito de que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares”; “O audiovisual também está neste conjunto que eu chamo multimédia e comunicações interativas” [Dinheiro Vivo, RTP2]; padrão: “O audiovisual também está neste conjunto a que eu chamo multimédia e comunicações interativas”; “São passos no sentido daquilo que se chama mais união política” [Noticiário, RDP]; padrão: “São passos no sentido daquilo a que se chama mais união política”; b. Relativa não-padrão (cortadora), escrita: “Os investigadores encontraram quatro linhagens diferentes que chamaram A, B, C e D” [Expresso, secção de ciência e tecnologia]; padrão: “Os investigadores encontraram quatro linhagens diferentes a que chamaram A, B, C e D”; “O diretor de O Jogo aumentou de dois para quatro pontos a vantagem que dispõe sobre o trio perseguidor” [Expresso, secção de desporto]; padrão: “O diretor de O Jogo aumentou de dois para quatro pontos a vantagem de que dispõe sobre o trio perseguidor”. Já a variante resuntiva é a menos produtiva e mais marcada. Como afirmam os autores, “das duzentas e sessenta e cinco orações relativas encontradas no corpus, apenas as duas que se seguem são claramente resuntivas” (ARIM et al., 2004): 4) Relativa não-padrão (resuntiva), oral: “É sobretudo a síntese de tudo aquilo e das pessoas que viveram à minha roda e que eu consegui dar-lhes forma” [“Acontece”, RTP2]; padrão: “É sobretudo a síntese de tudo aquilo e das pessoas que viveram à minha roda e que eu consegui dar forma”; “Pôr em causa um princípio que antes não pensavam muito nele” [Debate sobre o Referendo sobre a Regionalização, RDP]; padrão: “Pôr em causa um princípio em que antes não pensavam”. Variação sintática e sintaxe não-padrão nas variedades do português falado na Madeira Os estudos descritivos e sistemáticos sobre variação sintática da variedade do Português falado na Madeira (doravante, PFM), sobretudo sobre a “Variedade do Português Europeu falada no Funchal” (ou PE-Funchal), são muito recentes, como sublinhado por Aline Bazenga (BAZENGA, 2014b). As principais referências surgem após as coletas de dados empíricos realizadas por investigadores do CLUL nos anos 70 e 80 do séc. XX e no início do séc. XXI. Projeto CORDIAL-SIN (CLUL) O projeto CORDIAL-SIN, dedicado ao estudo da variação sintática, permitiu a reflexão e estudo de fenómenos variáveis do PE nos quais surgem algumas particularidades em uso na variedade do PFM. De entre os trabalhos publicados no âmbito deste projeto, merecem especial atenção aqueles que mostram a existência de algumas construções não sintáticas mais confinadas à Madeira e aos Açores, tais como os usos de (i) ter existencial, ilustrado pelo exemplo de uma ocorrência deste tipo num informante do Porto Santo, “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e (eu) não via a casa da minha mãe! (PST)” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 129); (ii) as construções com possessivo pré-nominal sem artigo, como no exemplo a seguir, de um informante de Câmara de Lobos: “Ah, meus filhos já vieram daí para cá. (CLC)” (Id., Ibid., 132); e (iii) com o uso do gerúndio, precedido de verbos aspetuais como “estar”, “ficar”, “andar”, como, por exemplo, no seguinte enunciado produzido por um falante madeirense do Porto Santo: “[…] toda a gente estava desejando de chegar ao Natal, que era para comer massa e arroz e um bocadinho de carne” (Id., Ibid., 130). Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias (CLUL-Portugal e UFRJ-Brasil) O estudo da variação sintática na variedade madeirense tem vindo a desenvolver-se essencialmente desde 2008, data de início do Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias, projeto internacional coordenado por investigadores do CLUL (Portugal) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (Brasil) e financiado pelo CAPES/GRICES (Brasil), mais concretamente a partir de 2010, data em que a Universidade da Madeira (UMa) passa a integrar o projeto, através da investigadora do CLUL e docente desta Universidade Aline Bazenga. Os primeiros estudos variacionistas sobre sintaxe do português insular, a partir de dados da variedade falada no Funchal, capital do arquipélago da Madeira, começaram a ser publicados a partir desta data. Os trabalhos publicados enquadram-se na perspetiva variacionista e laboviana da variação, na qual a heterogeneidade sistemática observada nos sistemas linguísticos é condicionada por fatores sociais. Para o corpus Concordância-Funchal, foram realizadas as primeiras entrevistas sociolinguísticas de informantes madeirenses do Funchal. O projeto de constituição do corpus, inicialmente previsto para obtenção de dados de falantes insulares e urbanos, tem vindo a ser alargado a outros pontos de localização na ilha da Madeira (Calheta/Paul do Mar, Porto Moniz, Funchal, Santa Cruz, Boaventura, Ribeira Brava, Caniçal, Santana e Câmara de Lobos), com vista à constituição de um corpus Madeira. Em 2014, o corpus Concordância-Funchal passa a ser designado por corpus Sociolinguístico do Funchal (CSF) e integra-se no Corpus Madeira, que inclui amostras de outras localidades insulares. No mesmo ano, o CSF contém dados de 60 informantes, num total de 34 horas e 45 minutos de gravações. Os informantes foram escolhidos em função dos critérios sociais defendidos por Labov, atendendo às variáveis idade, género, localidade e nível de escolaridade. Os dados recolhidos têm sido objeto de estudo e analisados em trabalhos de investigadores, não só por Aline Bazenga, em publicações, comunicações e trabalhos de alunos sob sua orientação, como também por Juliana Vianna, em Semelhanças e Diferenças na Implementação de a gente em Variedades do Português (dissertação de doutoramento, defendida em 2011), Lorena Rodrigues, sobre os pronomes e clíticos em variedades do português (dissertação de doutoramento, em curso em 2016), e Catarina Andrade, em Crenças, Perceção e Atitudes Linguísticas de Falantes Madeirenses (dissertação de mestrado, defendida em 2015), todos membros do Centro de Investigação em Estudos Regionais e Locais da Universidade da Madeira (CIERL-UMa), dirigido por Paulo Miguel Rodrigues. Construções sintáticas não-padrão em uso na Madeira A investigação realizada no âmbito dos projetos anteriormente referidos permitiu aprofundar a investigação em torno de algumas áreas da gramática do PE, para as quais os falantes madeirenses mais contribuem, através de usos de variantes sintáticas não-padrão. Assim, para além da variante com gerúndio em construções aspetuais com o verbo estar e do uso de possessivo pré-nominal sem artigo, são de assinalar, nas construções existenciais, o uso da variante com o verbo ter e, nas construções pronominais, o uso de a gente e variantes com ele e lhe em função objeto direto (OD), entre outras particularidades ligadas à sintaxe posicional dos clíticos. São de referir ainda as variantes de terceira pessoa do plural (PN6) na morfologia verbal, em vogal [u], com ou sem traço de nasalidade, e em ditongo nasal [ɐ̃j̃] alargado a outros paradigmas verbais, o que conduz à regularização das classes temáticas dos verbos no presente do indicativo e no pretérito imperfeito, para além da variante em vogal, isomorfa de terceira pessoa do singular (PN3), cuja produção parece estar motivada por fenómenos de fonética sintática. Muitos destes fenómenos, que serão apresentados de modo mais sucinto nas secções seguintes, são referidos no trabalho de Elisete Almeida, publicado em 1998, sobre as “Particularidades dos Falares Madeirenses, na Obra de Horácio Bento de Gouveia”, elaborado a partir da recolha de dados retirados da escrita de Horácio Bento de Gouveia, escritor madeirense que, tendo a perceção do uso de algumas variantes não-padrão, sobretudo por informantes menos escolarizados da ilha da Madeira, procurou integrá-las na caracterização de personagens do povo nos seus romances. Construção com possessivo pré-nominal sem artigo O exemplo atestado em Câmara de Lobos “Ah, meus filhos já vieram daí para cá.” (CLC), e citado por Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 132), ilustra a variante da construção-padrão, com realização do artigo definido a preceder o possessivo, como em “Ah, os meus filhos já vieram daí para cá.”. As autoras acima referidas, apesar de observarem a realização da construção sem artigo em várias localidades situadas em Portugal continental, reconhecem “um padrão de distribuição geográfica predominante na área insular, em especial no arquipélago da Madeira” (Id., Ibid.), sobretudo quando os possessivos são seguidos de nomes de parentesco. Outras ocorrências desta variante não-padrão são citadas por Aline Bazenga (BAZENGA, 2011c), tendo por base uma amostra do CSF: 5) a. tava eu tua avó e teu avô [padrão: a tua avó e o teu avô] tava-se ali sentades (FNC11_MC1.1 159-60); b. mas mê maride [marido] [padrão: o meu marido] não podia ajudar em nada (FNC11_MC1.1 200); c. minha mulher [padrão: a minha mulher] teve seis filhes [filhos] (FNC11_HC1 207); d. salete _mas [mais] minha prima [padrão: a minha prima] (FNC11_MA1 016); e. quande mê [meu] pai faleceu [padrão: o meu pai] mê [meu] pai [padrão: o meu pai] foi tratado pior que um cão (FNC11_MB2 079-80). Construção aspetual estar + gerúndio Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (CARRILHO e PEREIRA, 2011), com recurso a dados de informantes madeirenses integrados no corpus CORDIAL-SIN, observam também, em algumas zonas de Portugal Continental, sobretudo nas variedades dialetais centro-meridionais e insulares, o uso da variante da construção aspetual com o verbo “estar” seguido de gerúndio, para além da variante-padrão, com verbo no infinitivo. Na Madeira, esta construção está também atestada, conforme o exemplo a seguir indicado e retirado deste trabalho: 6) “[…] toda a gente estava desejando [padrão: estava a desejar] de chegar ao Natal, que era para comer massa e arroz e um bocadinho de carne (PST)” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 130). A propósito desta construção e do seu uso no PFM, Elisete Almeida crê que esta se deve ao contacto linguístico e cultural da comunidade madeirense com os ingleses, a um processo de transferência linguística da construção inglesa “it’s rainning” para “está chovendo” (ALMEIDA, 1999, 75). Construção com ter existencial A construção com ter existencial tem sido referida como uma variável que permite contrastar duas variedades normativas do português, PE e PB, como nos exemplos a seguir indicados e retirados de Maria Helena Mira Mateus (2002): 7) a. PB: tem fogo naquela casa; PE: há fogo naquela casa. b. PB: no baile tinha muitos homens bonitos; PE: no baile havia muitos homens bonitos. Yvonne Leite, Dinah Callou e João Moraes observavam que o “uso de ter por haver tem sido objeto de estudo sistemático e costuma-se dizer que essa substituição, em estruturas existenciais, constitui uma das marcas que caracterizam o português do Brasil [sublinhado nosso], afastando-o do português de Portugal e aproximando-o do de Angola e Moçambique” (LEITE et al., 2003, 101). Muito estudada no âmbito do PB (VIOTTI, 1999; MATTOS e SILVA, 2002; DUARTE, 2003; LOPES e CALLOU, 2004; CALLOU e DUARTE, 2005; AVELAR, 2006a, entre muitos outros), só recentemente esta construção foi objeto de análise no âmbito do PE. O artigo de Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (2011), com base no CORDIAL-SIN, mostra que esta construção está presente em variedades do PE, nos arquipélagos dos Açores e Madeira (fig. 1): Fig. – Mapa com a distribuição de “ter” impessoal e existencial no CORDIAL-SIN (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 130). Trata-se de uma construção em que o verbo ter é usado não com o seu valor de posse, como na gramática da variedade normativa do PE, mas sim como verbo existencial, em vez da variante normativa com haver, fenómeno que se encontra ilustrado através dos exemplos, em (7), retirados deste trabalho: 7) a. “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e não via a casa da minha mãe! (PST16)”; b. “Mas tinha muitos moinhos por aqui fora. (CLH03)” (Id., Ibid., 129). Aline Bazenga (BAZENGA, 2012a, 2012b), com base no CSF, confirma a vitalidade desta construção: 8) a. “nunca tive oportunidade só_só italiano lá em baixo no centro onde tem [padrão: há] um italiano espetacular. (FNC11_HA1)”; b. “Porque no Continente tem as discotecas onde vai toda a gente e tem [padrão: há] as discotecas que são escondidas só vai quem quiser. (FNC11_HA2)”; c. “no meu trabalho onde eu trabalho tem [padrão: há] muita gente de idade e há velhotes que têm pensões. (FNC11_MB2)”; d. “tem [padrão: há] bastantes colégios aqui na Madeira. (FNC11_MA3 111-2)”; e. “tem [padrão: há] pessoas com estudos e não têm trabalho. (FNC11_MC1.2 177)”; f. “na rua dos ilhéus onde tem [padrão: há] dez_vinte prédios de apartamentos. (FNC_CH 3.1 102)”. Em trabalhos de mestrado realizados em 2014, sob a orientação de Aline Bazenga, foi possível realizar um estudo sociolinguístico, recorrendo a duas amostras de seis informantes cada. Estas duas amostras, uma com informantes pouco escolarizados (TER-Funchal 1) e a outra com informantes licenciados (TER-Funchal 3), permitiram obter os primeiros dados quantitativos e configurar a variação no domínio das construções existenciais na variedade do PFM. A seguir (cf. figs. 2 e 3), são apresentados os resultados globais obtidos, em termos de percentagens: [table id=84 /] Estes resultados permitem concluir que o uso da variante construção existencial com ter é frequente na variedade popular do Funchal, i.e., junto de informantes pouco escolarizados e, por esse motivo, com menor contacto com a variante-padrão veiculada pela escola, sobretudo do sexo masculino (63,70 %) e mais jovens (faixas etárias A e B, com 68,3 % e 53,8 %, respetivamente). É, também, de salientar a preferência deste grupo de falantes pelo uso do verbo ter neste tipo de construções com o verbo no presente do indicativo (58,5 %) e quando seguido de um sintagma nominal (SN) cujo nome (N) apresenta um traço semântico [+ animado] (62,3 %). Os dados deste tipo de informantes contrastam com os produzidos por informantes com formação universitária e maior contacto com a variante-padrão (fig. 3). Neste conjunto, observa-se uma percentagem reduzida de ocorrências da variante com ter. [table id=85 /] A variante com ter com valor existencial estava presente na língua portuguesa nos sécs. XV e XVI, em concorrência com a variante em haver, primeiro com valor de posse, mas também com valor existencial, conforme exemplos dados em (9) e em (10): 9) valor de posse (dados do séc. XV) a. ter: “quanta herdade eu ey” (MATTOS e SILVA, 1997, 270); b. haver: “Ele non pode aver remedio” (MATTOS e SILVA, 1989, 591). 10) valor existencial (dados do séc. XVI retirados de VIOTTI (1988,46)) a. haver: “Hum dos nobres que hy ha ca este aiuda os dous” (AX 120.5); “Avya hi hua donzella muy fremosa” (CGE 93.12/13); “Ouve hy muitos mortos e feridos” (CGE 94.17); b. ter: “Antre esta coroa darea e esta ilha tem canal pera poder sahir” (MNS 314.2); “Para cima tendo dous bons canais hum aloeste e outro ao leste” (MNS 324.9); “Na sua ponta da banda da sua tem hua terra alta” MNS 326.19. De acordo com Evani Viotti (1988) e Rosa Virgínia Mattos e Silva (1989), a percentagem de uso da variante com ter (42 %) em construções de posse no séc. XV já se aproximava da variante com haver. No séc. XVI, o uso de ter de posse (86 %) suplanta o de haver, começando também a ser usado em construções impessoais com valor existencial. Nas variedades do PE continental, observa-se uma fixação nos usos destes dois verbos: o verbo ter em construções de posse e o verbo haver em construções existenciais impessoais, o que não ocorre de modo categórico na gramática de alguns falantes madeirenses. Nas variedades insulares do PE e nas variedades extraeuropeias do português, manteve-se o uso conservador da variante ter existencial, com maior ou menor frequência, segundo as situações discursivas e a influência exercida por fatores linguísticos e extralinguísticos anteriormente referidos. Construções pronominais Neste domínio da gramática do português, alguns dos fenómenos que mais têm sido estudados na variedade do PFM prendem-se com (i) as diferentes estratégias de marcação da função OD e as construções sintático-semânticas com o pronome a gente. Estratégia de marcação de OD de terceira pessoa: pronome ele, clítico lhe e OD nulo – O CSF permitiu observar o uso de variantes não-padrão (BAZENGA, 2011c), tais como a variante com o pronome ele, em (11), e a variante com o clítico lhe, em (12): 11) a. “ponho ele [ponho-o] a ver bonecos. (FNC11_MA1 243)”; b. “meto ele [meto-o] a andar de bicicleta. (FNC11_MA1 243)”; c. “e depois o marido deixou ela [deixou-a] e ficou na quinta. (FNC11_MC1.1 453)”. 12) a. “Tento-lhe explicar e lhe informar [informá-lo] sobre as coisas. (FNC11_HA1426)”; b. “Levo-lhe [levo-o] à escola. (FNC11_MA1 006)”; c. “eu não gostava dele nem lhe [nem o podia] ver à frente. (FNC11_MA1 204-5)”. Outras estratégias utilizadas são a variante em OD nulo, em (13), e a repetição lexical, em (14): 13) a. “faço o jantar sirvo [sirvo-o] à família. (FNC11_MA1:010)”; b. “a minha licenciatura termina-se antes do tempo pretendido_ tive que me enquadrar no bolonha e tive que [a] acabar mais cedo – (FNC-MA3.1:013)”. 14) a. “gostava de comprar uma mota_ e os meus pais detestam [detestam-nas] motas – (FNC-HA1:004)”; b. “queria a minha roupa vestia a minha roupa [vestia-a]. (FNC11_MA1:067)”. A seguir, apresentam-se os resultados de estudos quantitativos realizados com amostras retiradas do CSF – OD-Funchal-A(jovens), OD-Funchal-C(idosos) e OD-Funchal-1(pouco escolarizados) –, cada uma composta por seis informantes, que permitem observar as principais tendências no que se refere às estratégias de marcação de OD, por falantes inseridos numa comunidade urbana e insular do PE, o Funchal, capital da ilha da Madeira.   Fig. 4 – Gráfico OD-Funchal-A(jovens) (NÓBREGA e COELHO, 2014).     Fig. 5 – Gráfico OD-Funchal-C(idosos) (CAIRES e LUIS, 2014).       Fig. 6 – Gráfico OD-Funchal-1 (pouco escolarizados) (AVEIRO e SOUSA, 2014).     Os resultados mostram que o uso do clítico em função OD (-o, -a, -os, -as e as suas variantes contextuais, -no, -na, -nos, -nas e -lo, -la, -los, -las), e que corresponde à variante-padrão, é a estratégia, logo a seguir à variante com lhe (9 % (fig. 4), 2 % (fig. 5) e 4,2 % (fig. 6)), menos utilizada pelos falantes do Funchal, quer sejam jovens (cf. fig. 4, com 16 %), idosos (cf. fig. 5, com 18,2 %) ou com nível de escolaridade baixo (cf. fig. 6, com 2,8 %). As estratégias preferenciais traduzem-se pelo recurso à repetição lexical e à não-marcação desta função ou OD nulo. O uso da variante com ele apresenta valores mais expressivos quando se trata de falantes mais idosos (16,4 %) e pouco escolarizados (19,6 %); já a variante em -lhe regista a sua maior percentagem de uso na amostra dos seis informantes jovens (9 %). O fator “nível de escolaridade” (que categoriza os falantes em três níveis: com formação até ao ensino básico (nível 1), secundário (nível 2) e superior (nível 3)) parece ser aquele que maior incidência tem no uso da variante-padrão com clítico -o. A título de exemplo, podemos observar os resultados obtidos quando se tem em conta este fator na amostra de informantes mais idosos (fig. 7), no gráfico a seguir apresentado:   Fig. 7 – Gráfico OD-Funchal-C(idosos) e variável nível de escolaridade (CAIRES e LUIS, 2014).     Os falantes idosos mais escolarizados (com estudos do ensino superior) não recorrem, por exemplo, à variante com ele, muito utilizada por aqueles que têm poucos estudos (22 %); inversamente, utilizam a variante-padrão (25 %), em contraste com o uso pouco significativo (5,6 %) por parte de falantes menos escolarizados. Um estudo posterior, de Lorena Rodrigues (RODRIGUES, 2015) e da mesma autora juntamente com Aline Bazenga (RODRIGUES e BAZENGA, 2016), realizado junto de 412 estudantes da UMa, permite observar a forma como as variantes em ele e em -lhe, do PFM, sobretudo na variedade do Funchal, ou PE-Funchal, são avaliadas (fig. 8):   Fig. 8 – Gráfico com os resultados globais da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016).     A fig. 8 mostra que a variante não-padrão em ele é avaliada como de menor prestígio, sendo também maior o número de informantes que admite utilizar a variante em -lhe na oralidade. Relativamente à variante -lhe, dos 29 % que manifestam a sua discordância com a hipótese 1, a de se tratar de uma variante errada, e declaram não a usar nem na fala nem na escrita, são os jovens do sexo masculino aqueles que mais a aceitam (31 %), com 12 % dos inquiridos a afirmar a sua utilização na fala e na escrita e 8 % a considerar que se trata de uma variante correta (fig. 9).   Fig. 9 – Gráfico com os resultados da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016): fator social (género dos inquiridos).   A percentagem de aceitação desta variante aumenta quando estão reunidas duas propriedades linguísticas de N anafórico: nome [+humano] e do género masculino (vi-lhe [o Pedro] na missa). Assim, quando reunidas estas condições, 15 % dos inquiridos afirma utilizar esta variante na oralidade, em situações do discurso informais, e 11 % considera-a como sendo correta. Fig. 10 – Gráfico com os resultados da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016): fatores linguísticos (traço semântico [humano] e género de N).     Estes resultados parecem configurar uma ainda ténue distribuição na perceção social das duas variantes: a variante ele é mais estigmatizada pela jovem elite insular e a variante -lhe parece estar a progredir em termos de aceitabilidade. A variante a gente, forma estigmatizada e alternante com nós, é também muito usada na oralidade. Ambas as variantes podem denotar uma entidade plural, mas requerem, do ponto de vista normativo, formas verbais na 3PS (terceira pessoa do singular, no caso de a gente) e 1PP (primeira pessoa do plural, no caso de nós). No entanto, os falantes utilizam muitas vezes na oralidade uma estratégia regularizadora, transferindo os traços de nós para a variante a gente, de que resulta, por exemplo, a gente vamos. O trabalho de Juliana Vianna (VIANNA, 2011), intitulado Semelhanças e Diferenças na Implementação de a Gente em Variedades do Português, com recurso aos dados coletados em 2010 para o Projeto Concordância (UFRJ – CLUL), que integram o CSF atual, permite observar que, dentro das variedades do PE, o uso de a gente adquire maior expressão na variedade falada no Funchal (fig. 11). [table id=86 /] Este facto ganha ainda maior visibilidade quando considerados alguns fatores sociais, nomeadamente o fator nível de escolaridade (fig. 12) e género (fig. 13) dos informantes.     Fig. 12 – Tabela com os resultados dos usos das variantes a gente e nós em variedades do PE, atendendo ao fator nível de escolaridade dos informantes (VIANNA, 2011). Os resultados mostram que a variante a gente é utilizada pelos setores mais marginalizados da sociedade insular, ou seja, maioritariamente por informantes com um nível de escolaridade baixo (52 %) e do sexo feminino (51 %), gozando, por este motivo, de pouco prestígio social. Outra construção sintática não-padrão e na qual se encontra a forma pronominal a gente, estudada por Ana Maria Martins (MARTINS, 2009), encontra-se em (15), a seguir, com dados de um falante de Câmara de Lobos: 15) a. “Não sabem o que a gente se passámos aí. (CORDIAL-SIN. CLC)”; b. “Este pode ser a coisa que a gente se diz peixe-cavalo. (CORDIAL-SIN. CLC)”.   Este tipo de construções, designadas por “duplo sujeito”, observada nos dados do CORDIAL-SIN, cujos informantes obedecem a um perfil social específico (geralmente idosos, analfabetos e que nunca saíram da região onde nasceram, sendo por este motivo considerados mais autênticos), está muito presente na ilha da Madeira, embora não seja específica da variedade insular, como referido pela autora em nota de rodapé: “The double subject SE construction is found in the archipelagos of Azores and Madeira as well as in continental Portuguese. It is much more common in the Centre and South of Portugal than in the North (where nonetheless it is also attested). It is fully ungrammatical in standard EP and has gone totally unobserved by philologists and linguists who dealt with dialect variation in European Portuguese” [A construção de duplo sujeito SE pode ser observada nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, bem como no português continental. Esta é muito mais frequente no Centro e no Sul de Portugal do que no Norte. É totalmente agramatical no PE-padrão, tendo passado despercebida a filólogos e linguistas que trabalham a variação dialetal no Português Europeu] (Ibid.). O CSF fornece mais exemplos deste tipo de construção, o que atesta a sua vitalidade, que não se limita ao seu uso por parte de falantes de comunidade rurais ou piscatórias, mas também de uma comunidade urbana, como a do Funchal: 16) a. “eu ainda falo um pouco lá como a gente fala-se lá na Calheta. (FNC11_HA1152-3)”; b. “a gente pede-se o bilhete de identidade tira-se o nome tira-se tudo gravas e depois vão dormir. (FNC11_MC1.1 099)”; c. “e cada vez a gente ouve-se  mais falar sobre isso. (FNC-MA3.1 271)”. Variantes de terceira pessoa do plural no verbo em contexto de concordância verbal O estudo da aplicação variável da regra de concordância verbal de 3PP (ou PN6) é o fenómeno morfofonológico e sintático mais estudado na variedade do PE-Funchal, sendo possível observar algumas tendências, em termos quantitativos e qualitativos, no que se refere aos padrões de variantes em coexistência nesta variedade urbana e insular do PE. Em termos de resultados globais de realização da concordância verbal com PN6, incluindo produções padrão e não-padrão da marca de Pessoa e Número (PN) no verbo neste contexto, Aline Bazenga (BAZENGA, 2012b) registou, a partir de uma amostra de dados retirados do Corpus Concordância, 84 % de concordância, percentagem que se relaciona fundamentalmente com o facto de ter incluído ocorrências do tipo tem/têm e construções com o verbo ser antecedido de SN topicalizado. Num estudo posterior, Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA, 2013), recorrendo também a uma amostra do mesmo corpus, mas adotando critérios uniformizados, registaram um índice de concordância de 94,7 %, valor que se situa numa posição intermédia, quando comparado com os resultados obtidos nas outras amostras, tanto europeias, como brasileiras e africanas: 99,1 % (Oeiras) e 99,2 % (Cacém), as duas amostras do PE continental; 89,1 % (Copacabana) e 78,2 % (Nova Iguaçu), do PB; e 92,1 % na amostra de São Tomé. Estes índices gerais permitem observar o contraste entre variedades do português, quanto ao tipo de regra (LABOV, 2003): as variedades do PE continental caracterizam-se por apresentarem uma regra semicategórica de concordância de terceira pessoa do plural, enquanto as variedades não europeias exibem uma regra variável. A variedade do PE-Funchal apresenta um comportamento que se situa no limite entre uma regra semicategórica e variável. Fica patente também neste trabalho, tal como em outros estudos variacionistas da concordância verbal de PN6 (MONGUILHOTT, 2009; RUBIO, 2012; MONTE, 2012), que o conjunto de fatores em atuação nas variedades do PE parece obedecer a condicionamentos morfofonológicos (sândi externo, um fenómeno de fonética sintática que ocorre no encontro de duas palavras, envolvendo uma vogal ou consoante final de uma palavra e uma vogal ou consoante inicial da palavra que está imediatamente a seguir, como em “bebe bem”, com a seguinte alteração ['bɛbɨ 'bɐ̃j̃]  ['bɛ 'bɐ̃j̃], ou em “gosta da amiga”, ['gɔʃtɐ dɐ ɐ’migɐ]  ['gɔʃtɐ da'migɐ]) e sintático-semânticos do tipo genérico ou de natureza “universal” (sobretudo posição e tipo de sujeito), restrições que afetam as línguas, independentemente da sua tipologia, como referido no trabalho de Greville Corbett (CORBETT, 2000). No entanto, tanto no trabalho de Aline Bazenga (BAZENGA, 2012b) como no já referido de Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (RODRIGUES e BAZENGA, 2013), a variedade do PE-Funchal distingue-se das variedades urbanas do PE por apresentar um conjunto de padrões de variantes flexionais de terceira pessoa do plural mais rico, comparável com os dados de subvariedades rurais ou semiurbanas (MOTA et al., 2003; MOTA e VIEIRA, 2008; MOTA, 2013) ou da variedade de Braga, estudada por Celeste Rodrigues (RODRIGUES,2012). Com efeito, na variedade do Funchal, para além das variantes flexionais-padrão (falam), foi possível constatar o uso de variantes não-padrão, marcadas pela realização de (i) um ditongo nasal não conforme com a morfologia verbal-padrão (falem, ou variante -EM) e (ii) da vogal oral (comero) ou nasal (comerõ) (variantes -U), para além da variante em vogal oral, resultante da não realização do traço de nasalidade, isomorfa de PN3, observada, ainda que de forma pouco produtiva, nas variedades do PE continental e normalmente analisada como não contendo a marca de número exigida pelo contexto de concordância verbal de PN6 (fala). Variantes flexionais não-padrão em contexto de concordância verbal de PN6 – A comparação das variantes flexionais não-padrão de PN6 (-EM e -U) atestadas no CSF (VIEIRA e BAZENGA, 2013) com as ocorrências observadas em amostras das subvariedades rurais/semirrurais do PE continental (dialetos setentrionais e dialetos centro-meridionais), retiradas de corpora (PE1, BB e AA) referidos no trabalho de Celeste Rodrigues e Maria Antónia Mota (RODRIGUES e MOTA, 2008), revela alguma especificidade da variedade urbana insular, caracterizada por uma maior diversidade, no que se refere tanto ao número de variantes como ao dos paradigmas verbais. Nesta variedade, o pretérito imperfeito do indicativo é objeto de maior variação, não só em termos quantitativos, mas também qualitativos. As gramáticas de falantes madeirenses do Funchal incluem neste tempo verbal, para além da variante-padrão e a variante isomórfica de PN3, as variantes -EM e -U. Na fig. 14, onde consta o conjunto de variantes atestadas no Funchal no trabalho de Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA, 2013), é possível observar que, depois da variante de PN6-padrão, inequivocamente com a realização canónica da concordância verbal (85,7 %), a variante mais expressiva, em termos quantitativos, é a que corresponde à forma verbal com uma terminação em ditongo nasal “deslocada” do seu paradigma e estendida a outros, representada por -EM (8,2 %), logo seguida da variante em vogal oral, isomórfica de PN3, analisada no referido trabalho como de não aplicação da concordância verbal de PN6.   Variantes não-padrão em vogal oral = isomórfica de PN3 Variante não-padrão em –EM Variante não-padrão em –U Variantes-padrão N.º de oc. % N.º de oc. % N.º de oc. % N.º de oc. % 48 /914 5,3 % 75/914 8,2 % 8/914 0,9 % 783/914 85,7 %   Fig. 14 – Tabela com as variantes flexionais em contexto de concordância verbal PN6 (VIEIRA e BAZENGA, 2013). As duas variantes (-EM e -U) representam cerca de 9 % dos dados, ou seja, 83 em 866 ocorrências totais de marcação explícita da concordância verbal, nos dados analisados por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA 2013), e quase o dobro das realizações sem a marca de número de PN6 (5,3 %). A realização em [ɐ̃j̃], presente no paradigma do presente do indicativo dos verbos com vogal temática (VT) /e/ e /i/, estende-se aos verbos com VT /a/, estabelecendo uma convergência na marcação PN6 Este processo de nivelamento na marcação de PN6 é também observado nos paradigmas do pretérito imperfeito do indicativo e do pretérito perfeito do indicativo (fig. 15), ilustrados pelos exemplos atestados em (17)-(19).   Variante PN6 não-padrão Presente Ind. Pretérito Imperfeito Ind. Pretérito Perfeito Ind. Totais VT /a/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ -EM [ɐ̃j̃] 19 oc. 24 oc. 16 oc. 9 oc 4 oc. - 3 oc. 75 oc. Totais 19 49 7   Fig. 15 – Tabela com a variante flexional -EM não-padrão na variedade do Funchal (VIEIRA e BAZENGA, 2013). 17) Presente do indicativo a. “aqueles carres [carros] que andem [andam] de noite. (C1h)”; b. “os próprios portugueses massacrem [massacram] os outros.” (C2m). 18) Pretérito imperfeito do indicativo a. “tanto é qu’as minhas primas elas diziem [diziam]. (B1M)”; c. “eles me chamavem [chamavam] madeirense de segunda. (C2m)”. 19) Pretérito perfeito do indicativo a. “as casas caírem [caíram]. (C1m)”; b. “depois eles mandarem-me [mandaram-me] reformar. (C1h)”. Os paradigmas verbais do PE dispõem de duas formas para marcação de PN6, ambas ditongos nasais, [ɐ̃w̃] e [ɐ̃j̃], mas com distribuições distintas. No português-padrão, a variante [ɐ̃j̃] integra os paradigmas do presente do indicativo dos verbos com VT /e/ e /i/, os do presente do conjuntivo dos verbos com VT /a/ e os do futuro do conjuntivo e do infinitivo pessoal, no conjunto das três conjugações (verbos com VT /a/, /e/ e /i/). Observam-se ainda alterações nas realizações fonéticas dos radicais dos verbos pôr (no pretérito perfeito) e ter (no pretérito imperfeito), transcritas como em (20): 20) a. “ponhem [punham] em terra gastava no calhau. (C1h)”; b. “todos eles tenham [tinham] dom. (B2h)”. Estas alterações poderão estar condicionadas por uma combinatória de restrições, relacionadas com as alterações que sofrem as realizações fonéticas das vogais tónicas /u/ e /i/ na variedade madeirense, por um lado, e pela estratégia de regularização de radicais (p[o]nhem/p[o]r; t[e]nham/t[e]r), por outro. As variantes com ditongo de PN6 da não-padrão realizam-se maioritariamente em contextos sintáticos em que o sujeito expresso está anteposto ao verbo (53,3 % e 40/75 ocorrências). Também ocorrem em 45,3 % (34/75) em contexto de sujeito não expresso, sendo de registar apenas uma ocorrência com sujeito posposto. A realização desta variante não parece ser condicionada por esta variável sintática. O mesmo não acontece em amostras de localidades situadas na zona dos dialetos centro-meridionais do interior do PE analisados por Maria Antónia Mota, Matilde Miguel e Amália Mendes, nas quais “a realização de vogal nasal está relacionada com a presença de sujeito nulo, o que indica a necessidade de se aprofundar o estudo das relações entre o marcador de PN6 e o tipo de sujeito (no caso, uma ‘redução’ fonética, do tipo ditongo nasal > vogal nasal ou uma não ditongação da estrutura /vogal n/): 54 % das ocorrências estão em frases com sujeito nulo; 24 %, com sujeito nominal; 20 %, com sujeito pronominal” (MOTA et al., 2012, 172). Quando considerados os contextos fonéticos adjacentes (forma verbal seguida de palavra iniciada por vogal, consoante (C) nasal, consoante não nasal e de pausa), observa-se a seguinte distribuição das ocorrências (fig. 16):   Variante de PN6 não-padrão + vogal + C nasal + C não nasal Pausa # -EM [ɐ̃j̃] 30 oc. 8 oc. 25 oc. 12 oc.   Fig. 16 – Tabela com a variante flexional -EM não-padrão e contextos fonéticos adjacentes (BAZENGA, 2015b). Esta variante não parece ser sensível ao contexto fonético à sua direita. Na variedade geográfica do Funchal, o ditongo [ɐ̃j̃], forma “peregrina” ou de “empréstimo” aos verbos com VT /e/ e /i/ cuja realização se estende aos verbos com VT /a/, insere-se num padrão marcado pela uniformização do marcador de PN6 no verbo, nos paradigmas verbais do presente, pretérito imperfeito e pretérito perfeito do indicativo. As variantes com final verbal em -U atestadas, no total oito, incidem apenas sobre o pretérito imperfeito (fig. 17), todas de um informante da faixa etária (36-55 anos), do sexo feminino e com escolaridade básica: 21) a. “quando os meus pais moravo na casa”; b. “eles vinho brincare”; c. “alevantavo-se durante a noite cede”.     Variante PN6 não-padrão Presente Ind. Pretérito Imperfeito Ind. Pretérito Perfeito Ind. Totais VT /a/ VT /e/ VT /i/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ -U [u] ou [ũ] - 5oc. 1 oc. 2 oc. - - - 8 oc.   Fig. 17 – Tabela com a variante flexional -U não-padrão e paradigmas verbais no CSF (BAZENGA, 2015b). Tal como a variante -EM, a variante em -U realiza-se maioritariamente em contexto de sujeito expresso (5/8 dos dados), situação que não parece corresponder ao observado por Maria Antónia Mota, Matilde Miguel e Amália Mendes em dados de variedades centro-meridionais, nos quais existem “indícios de que a realização de vogal nasal está relacionada com a presença de sujeito nulo, o que indica a necessidade de se aprofundar o estudo das relações entre o marcador de PN6 e o tipo de sujeito” (Ibid.). De acordo com as autoras, as realizações fonéticas em vogal nasal de PN6 corresponderiam a uma fase do processo morfofonológico anterior à realização canónica de ditongo nasal da forma fonológica /vogal N/. A variante em -U está também presente no conjunto de variantes observadas em fala espontânea informal na variedade urbana de Braga, que integra os dialetos setentrionais do PE, como mostra o estudo de Celeste Rodrigues (2012), com dados retirados do CPE-Var, um corpus que inclui 180 entrevistas sociolinguísticas de falantes de Lisboa e Braga, coletadas entre 1996 e 1998 (fig. 18). Variantes de PN6 [ɐ̃w̃] [ɐ̃w̃] 53 % [õ] 35,7 % [u] 8,1 % [ũ] 1,4 % Sem produção da terminação verbal = 1,6 % Variantes de PN6 [ɐ̃j̃] [ɐ̃j̃] 41,4 % [ẽ] 41,4 % [ẽj̃] 4,4 % Sem produção da terminação verbal = cerca de 12 % Fig. 18 – Tabela com as variantes flexionais de PN6 atestadas na variedade de Braga – PE (Corpus CPE-Var, utilizado em RODRIGUES, 2003; 2012, 221-222). Atendendo ao conhecimento histórico das mudanças ocorridas no português, a variante em -U (oral ou nasal) da forma padrão PN6 poderá ser considerada “histórica” ou “conservadora”, podendo ser associada às vogais nasais existentes no período arcaico da história do PE (-ã, -õ e -ão) (fig. 19), antes da convergência em ditongo nasal [ɐ̃w̃], que já no séc. XVI integrava a variedade-padrão do PE (português literário e língua culta do centro do país).   Nomes Flexão verbal -ã -áne -ánt -ant Indicativo presente dos verbos dar e estar e futuro de todos os verbos; Indicativo presente dos verbos da 1.ª conjugação, imperfeito, futuro do pretérito e pretérito mais-que-perfeito de todos os verbos e conjuntivo presente dos verbos da 2.ª e 3.ª conjugações. -õ -one - udine -unt -úm -unt Indicativo presente do verbo ser; 1.ª pessoa do singular do indicativo presente do verbo ser; Pretérito perfeito de todos os verbos. -ão -anu - anu   Fig. 19 – Tabela com as vogais nasais do português arcaico (CARDEIRA, 2005, 113). Clarinda de Azevedo Maia, fundamentando-se nas observações de Duarte Nunes de Leão, um gramático do séc. XVI, refere que “a pronúncia -õ era tida pelos gramáticos da época como característica da região interamnense” (MAIA, 1986, 604), o que leva Rosa Mattos e Silva a supor que durante o processo de convergência teriam convivido “como variantes no diassistema do português o ditongo [ɐ̃w̃], proveniente do etimológico [-anu], e do [ɐ̃], do etimológico [-ane] e [-ant]; e o ditongo [õw̃] de [õ], do etimológico [-one] e [-unt]”, com a norma que se estabelece no séc. XVI a selecionar o ditongo [ɐ̃w̃] como forma de prestígio em detrimento do ditongo [õw̃], avaliado negativamente e ainda hoje marcado como “popular, arcaizante e regional” (MATTOS e SILVA, 1995, 76). De salientar ainda o facto de as variantes em -U (vogal nasal [ũ] e vogal oral [u]) atestadas na amostra do Funchal analisada por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (2013) corresponderem à realização de PN6 apenas do pretérito imperfeito do indicativo, o que não está em conformidade com a vogal etimológica -o < -UNT) do pretérito perfeito de todos os verbos (fig. 19). Assim, apesar de poderem ser consideradas variantes não-padrão arcaizantes, as formas em -U da variedade urbana insular contêm traços inovadores. As variantes flexionais de PN6 não-padrão realizadas por uma vogal oral isomórfica de PN3 correspondem a 5,3 % dos dados atestados na variedade do Funchal (VIEIRA e BAZENGA, 2013), ou seja, a 49/914 ocorrências. Neste tipo de variantes, poderá estar em causa apenas a associação ou não do autossegmento flutuante /N/, tal como a representação formulada para o PE-padrão de Maria Helena Mira Mateus e Ernesto d’Andrade. Segundo esta proposta, as variantes sem ditongo podem resultar da propriedade de leveza que caracteriza os ditongos nasais finais não acentuados, de PN6 em formas verbais do PE-padrão. Estes ditongos, mas também aqueles que ocorrem em formas nominais simples (homem) ou com sufixo -agem (paragem, lavagem), são considerados pós-lexicais pelo facto de se encontrarem em palavras marcadas pela ausência de constituinte temático, por oposição aos ditongos nasais lexicais, gerados no léxico e que atraem o acento para o final de sílaba (pão) e admitem, como único segmento em coda, a fricativa /S/ (pães). Nos ditongos pós-lexicais, a semivogal é epentética, atendendo à sua inexistência a nível lexical, e surge após o processo de ditongação, ocupando os dois segmentos uma única posição no núcleo. O autossegmento flutuante /N/ projeta-se sobre o núcleo silábico, nasalizando os dois segmentos em simultâneo. O facto de este autossegmento nasal apenas se projetar no núcleo impede que qualquer segmento em posição de coda possa ser nasalizado (MATEUS e ANDRADE, 2000, 133). Considerando o efeito do contexto fonético à direita, observa-se que o contexto que mais favorece a realização da variante flexional em vogal oral é aquele em que a palavra seguinte se inicia por vogal (fig. 20).   + vogal + C nasal + C não nasal Pausa # 29/48 oc. 60,4 % 8/48 oc. 16,6 % 8/48 oc. 16,6 % 3/48 oc. 6,25 %   Fig. 20 – Tabela com as variantes PN6 não-padrão em vogal oral (isomórficas de PN3) e contextos fonéticos à direita da forma verbal (BAZENGA, 2015b). Atendendo a que “o contexto precedendo pausa […] é o que mais favorece a ativação do padrão com ditongo nasal” (MOTA et al., 2012, 171) e que, no âmbito da fonética sintática (sândi externo), podem ocorrer alterações fonéticas, nomeadamente quando a palavra seguinte se inicia por vogal ou consoante nasal, podemos considerar que, do ponto de vista da realização da forma verbal requerida em contexto sintático de concordância verbal em contexto sintático de PN6, apenas 11 das 49 ocorrências com vogal oral final nas formas verbais correspondem à não aplicação da regra de concordância, desprovidas da ambiguidade (oito ocorrências em 49, seguidas de consoante não nasal e três ocorrências seguida de pausa). Esta questão será abordada posteriormente, quando considerada a hipótese de concordância implícita, já referida na análise das variantes em -EM e -U, mas na sua versão mais recente e desenvolvida no artigo de Maria Antónia Mota de 2013. As variantes em vogal oral não-padrão de PN6 (isomórficas de PN3) correspondem maioritariamente a verbos com VT /a/ e /e/, representadas por -A e -E, respetivamente, cuja distribuição pelos paradigmas verbais consta da fig. 21, em contexto de palavra seguinte iniciada por vogal (21 das 29 ocorrências), registando-se ainda um exemplo com o verbo ir (quando vai aqueles pa agarrar o coisa – C1m):   Variante em vogal oral Presente do Indicativo Pretérito Imperfeito do Indicativo Pretérito Imperfeito do Conjuntivo vogal -A 2/21 11/21 - vogal -E 5/21 - 2/21   Fig. 21 – Tabela com a realização de variantes não-padrão em vogal oral (isomórficas de PN3) e paradigmas verbais (BAZENGA, 2015b). Nestes paradigmas, a distinção entre PN3 e PN6 na morfologia verbal-padrão resulta apenas da ancoragem ou não do autossegmento nasal /N/. Por outro lado, o contexto [+vogal] corresponde, na sua maioria (15 das 21 ocorrências de variantes -A e -E, realizadas foneticamente pelas vogais átonas [-ɐ] e [-ɨ]), às realizações fonéticas [a] e [ɐ]. Este encontro intervocálico na fronteira de palavra (sândi externo) resulta na elisão das finais verbais átonas e na ressilabificação das duas sílabas em contacto, como exemplificado a seguir: 22) a. “as mercearias na altura fechava às onze. (B1m)”; [fɨʃavɐ + aʃ] [fɨʃavaʃ] b. “os outros tinha as costas quentes. (C2m)”; [tiɲɐ + ɐʃ] [tiɲɐʃ] c. “das consequências que daí pode advir. (C2h)”. [podɨ + ɐdvir] [podɐdvir] Observa-se ainda que muitas das ocorrências com vogal oral -E correspondem ao item verbal inacusativo existir. Atendendo unicamente ao contexto de sujeitos pospostos, regista-se um total de 20 ocorrências de existir em 34, ou seja, 58, 8% (11 dados com ditongo-padrão de PN6 e nove dados não-padrão com vogal oral -E), no presente do indicativo (19 dados), registando-se apenas uma ocorrência no imperfeito do indicativo (“voltou a se provar que existia ainda substâncias” – B2h) (BAZENGA, 2015). Para além do verbo existir, observa-se a ocorrência de alguns itens verbais, tais como ter (dois dados) e vir no imperfeito do indicativo, cujos radicais contêm a consoante nasal palatal (-nh-) e que em princípio deveriam induzir a realização do segmento nasal do PN6-padrão, como afirma Jorge Morais Barbosa, a propósito da nasalização de vogais em contacto com consoantes nasais: “il semble que celle-ci [a nasalização] soim de règle lorsque la consonne nasale précède la voyelle, et que par contre dane le type voyelle + consonne la voyelle se maintienne souvent pratiquement orale” [parece que este fenómeno [a nasalização] segue a regra quando a consoante nasal precede a vogal e que, pelo contrário, no tipo vogal +consoante, a vogal mantém-se muitas vezes praticamente oral] (BARBOSA, 1965, 82). Um outro verbo parece ser bastante vulnerável. Trata-se do verbo ser, com seis dados no total, todos seguidos de uma palavra iniciada por consoante não nasal. 23) a. “enquanto elas fosse pequenas. (B1m)”; b. “as brincadeira era poucas. (C1m)”; c. “os professores chamados oficiais que era do_dos públicos. (C3m)”; d. “mas os dias foi [foram] passando. (A1m)”. Para além destes dados, é de registar o dado com o verbo ser, em (23d.), por ser semelhante a um dos tipos referidos (eles vai; eles cantou) por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga, como não sendo observado em variedades do PE, contrariamente ao que ocorre em algumas variedades do PB e em variedades africanas do português. Outros dados no pretérito perfeito do indicativo, sem o ditongo nasal final [ɐ̃w̃] de PN6, também são atestados, mas em contexto de sujeito posposto (“quando vai aqueles pa agarrar o coisa” (C1m); “caiu casas ali” (C1h); “aconteceu situações de tar [estar] em casa” (A1m)) (VIEIRA e BAZENGA, 2013, 23). Atitudes linguísticas de falantes madeirenses face à diversidade sintática da variedade insular do português: o continuum dialetal percetivo No âmbito da realização da dissertação de mestrado de Catarina Andrade, intitulada Crenças, Perceções e Atitudes Linguísticas de Falantes Madeirenses (2014), foi possível proceder à avaliação percetiva de construções sintáticas não-padrão em uso em variedades do português falado na Madeira, por parte de falantes madeirenses. Esta avaliação realizou-se através da aplicação de um questionário a uma amostra de 126 informantes, 18 por cada um dos sete pontos de inquérito na ilha da Madeira (Funchal, Santa Cruz, Machico, Câmara de Lobos, Santana e São Vicente e Calheta). Neste trabalho, a autora propõe um continuum dialetal através do qual apresenta as variantes sintáticas não-padrão alinhadas desde o polo à esquerda, onde se encontram as mais estigmatizadas, até às que gozam de maior prestígio, à direita, a partir de dados percetivos de informantes madeirenses (fig. 23).   Código Variante não-padrão Descrição Q.C.1.A “Comprei na feira.” Ausência de OD Q.C.6.A. “Porque estava chovendo.” Preferência para a forma do verbo estar + gerúndio Q.C.4.B. “Sim, eu sei, eu vi ele ontem.” Realização de OD com o pronome ele Q.C.5.A. “Tem muito trânsito nas ruas.” Preferência para o ter existencial Q.C.2.A. “Porque só no verão é que vai-se à praia.” Preferência para o uso do clítico se em posição incorreta Q.C.4.C. “Sim, eu sei, eu o vi ontem.” Realização de OD com o clítico o em posição incorreta Q.C.2.B. “Porque só no verão é que a gente vai-se à praia.” Realização da forma a gente com o se impessoal Q.C.3.A. “Não deve-se usar o telemóvel.” Realização do clítico se em posição incorreta Q.C.4.A. “Sim, eu sei, eu vi-lhe ontem.” Realização de OD com o clítico lhe Q.C.1.B. “Comprei-lhe na feira.” Realização de OD com o clítico lhe Fig. 22 – Quadro com as variantes sintáticas não-padrão consideradas para a construção de um continuum percetivo de falantes madeirenses (ANDRADE, 2014). A fig. 22 reúne o conjunto de variantes não-padrão consideradas para análise, cada uma associada a um determinado domínio gramatical do português. A forma de OD nulo parece ser privilegiada pelos madeirenses, especialmente na oralidade. Na sua dissertação, Catarina Andrade verificou, na sua abordagem geral no que se refere ao OD nulo, que, “dos 126 inquiridos, 59 % tem preferência para a omissão de OD e apenas 8 % para a sua realização com o clítico lhe” (ANDRADE, 2014, 151). A fig. 23 contém os resultados da avaliação realizada, com as variantes mais aceites à esquerda e as menos aceites e mais estigmatizadas à direita:   Fig. 23 – Gráfico com o continuum percetivo de variantes sintáticas não-padrão (ANDRADE, 2014).     Em traços gerais, as opções Q.C.1.A. (ausência de realização de OD), com 59 %, Q.C.6.A. (estar + gerúndio), com 58 %, e Q.C.4.B. (pronome ele OD), com 48 %, foram as variantes avaliadas de forma positiva pelos falantes madeirenses, em termos de aceitabilidade. Por seu turno, as opções/variantes Q.C.4.A. (12 %) e Q.C.1.B. (8 %), ambas relacionadas com a realização de OD através do clítico lhe, parecem ser fortemente estigmatizadas pelos inquiridos. Apesar de os falantes madeirenses terem acesso à norma-padrão através da escola, as variedades faladas na Ilha distanciam-se, em vários pontos do sistema linguístico, da variedade normativa, e os madeirenses têm consciência destas diferenças.   Considerações finais Tal como em outras variedades geográficas do português, a variação sintática está presente nas variedades faladas na Madeira, contribuindo para a caracterização sociolinguística e cultural da comunidade insular no seu todo. É notória também a presença de algumas variantes conservadoras, já não atestadas no PE continental, mas presentes também em variedades extraeuropeias do português (brasileira mas também africanas). As variantes inovadoras resultam, em muitos casos, de fenómenos de simplificação de subsistemas de marcação morfológica de categorias verbais e nominais, sendo os falantes menos escolarizados os que mais produzem este tipo de variantes. A presença destas características linguísticas no espaço insular deve-se provavelmente a uma história de contacto linguístico, social e cultural individualizante, quando comparada com outros territórios onde se fala o português. Parece clara também, tal como ocorre no PB, amplamente estudado por linguistas variacionistas, a influência de fatores sociais na variação sintática observada. Deste ponto de vista, as variantes, produzidas por falantes iletrados ou pouco escolarizados, mais velhos e do sexo feminino na comunidade de fala urbana do Funchal, podem ser consideradas como indicadores de localidade e de classe, ou seja, combinam o traço típico de “madeirensidade”, por se tratar de variantes não atestadas em variedades do PE continental até agora estudadas, e de “popularidade”, ou de grupo social, cuja variedade falada é marcada por usos de formas linguísticas não prestigiadas, excluídas da variedade-padrão do PE e objeto de estigma social. Embora as formas não marcadas manifestem uma tendência para sobreviverem à custa das formas marcadas por uma maior saliência percetual, esta tendência pode estar em risco, sob a influência de estereótipos sociais e regionais. Assim, as variantes flexionais não-padrão mais marcadas, de tipo -EM, por exemplo, tendem a ser produtivas, em detrimento de nivelamento linguístico, desejado pela elite madeirense desde o início do séc. XX. Funcionam como “indício” (no sentido que é dado pela semiótica de Peirce) de um sentimento de pertença a um território social. Numa comunidade de fala com as características marcadas pela insularidade, a mudança linguística poderia, assim, ser mais lenta, observando-se uma tendência para preservar as formas fortes e identitárias. A Dialetologia Percetual e os três estudos atitudinais e percetivos sobre a diversidade dialetal do PE (CABELEIRA, 2006, HADDAR, 2008 e FERREIRA, 2009), baseados em amostras com falantes que vivem em regiões de Portugal, fornecem outros argumentos para a individualização dos dialetos insulares, de um modo geral, e dos da Madeira, em particular. Nestes trabalhos, e no que se refere ao atributo “inteligibilidade”, as variedades do português falado nas ilhas portuguesas são avaliadas como menos inteligíveis, quando comparados com outras variedades do PE continental. Para tal contribuem não só alguns traços fonéticos e prosódicos, o léxico, mas também fenómenos morfossintáticos que efetivamente fazem parte da realidade linguística insular. O estudo similar, mas realizado junto de uma amostra de 126 informantes madeirenses, de Aline Bazenga, Catarina Andrade e António Almeida (2014) revela uma tendência para avaliar positivamente, em termos de prestígio, a variedade do português falado na Madeira, imediatamente a seguir à variedade-padrão (de Lisboa). A variedade dos Açores, contrariando a descrição linguística que a considera próxima da madeirense, é avaliada, pelos informantes madeirenses, como a menos compreensível e a mais distante da sua própria maneira de falar. Parece desenhar-se, assim, nos madeirenses uma representação de dupla filiação linguística: portuguesa, em primeiro lugar, seguida da “madeirensidade” (RODRIGUES, 2010), simbolizada por uma variedade falada distinta, também ela considerada de prestígio, um centro (regional/insular) dentro do centro do todo nacional – Lisboa, a capital –, a variedade de prestígio legitimado. A atitude positiva manifestada pelos madeirenses em relação à sua variedade falada poderia ser entendida a partir do conceito de “prestígio encoberto” (couvert), introduzido por Labov e também desenvolvido por Trudgill (1972), que procura explicar o uso de formas linguísticas não-padrão por parte de alguns grupos de uma comunidade de fala (os homens mais do que as mulheres, em particular). Estes usos constituem um padrão de prestígio implícito dentro da comunidade, com um valor simbólico de solidariedade para o grupo, em contraste com os valores de autoridade (clareza, elegância, pureza, competência) que caracterizam o prestígio legítim     Aline Bazenga Catarina Andrade (atualizado a 03.02.2017)  

Linguística Literatura

psicologia na educação especial

Em 1978, na sequência da política de regionalização dos serviços, foi criado o Centro Regional de Educação Especial (CREE), no qual foram integrados os estabelecimentos de ensino para deficientes auditivos, visuais e intelectuais. Entre 1965 e 1978, o apoio a crianças e jovens que frequentavam os estabelecimentos de ensino para crianças e jovens com deficiências da audição e da fala, intelectual e visual funcionava na dependência de um serviço nacional, o Instituto de Assistência aos Menores, posteriormente integrado no Instituto da Família e Ação Social. Nessa altura, as crianças e jovens deficientes eram apoiados, na área da psicologia, pelo Centro de Observação e Orientação Médico Pedagógico, cujos técnicos se deslocavam à Região Autónoma da Madeira (RAM), sob a orientação do Dr. Bairrão Ruivo. Foi em 1980 que o CREE contou com o primeiro psicólogo nos seus quadros. A 7 de abril do ano seguinte, foi criada a Direção Regional de Educação Especial (DREE), que imprimiu uma nova dinâmica no apoio às crianças e jovens com deficiência da Região. Na sua orgânica, integrou, pela primeira vez, um Serviço de Psicologia, com a função de “apoiar os Serviços Técnicos de Educação, incumbindo-lhe a observação, o diagnóstico e a orientação psicopedagógica dos educandos e futuros utentes, em colaboração com outras valências e serviços”. Em 1984, com a reestruturação do Governo da RAM, a DREE, que até então constituía um departamento da Secretaria Regional dos Assuntos Sociais, foi integrada na Secretaria Regional de Educação, privilegiando-se, nesta nova fase, a interação entre todos os graus de ensino e estabelecimentos de ensino regular. A designação “Direção Regional de Educação Especial e Reabilitação” (DREER) surgiu em 1997, no decreto regulamentar regional n.º 13-A/97, de 15 de julho, estabelecendo a criação e descentralização de vários serviços de atendimento às crianças e jovens com necessidades educativas especiais. A necessidade de integrar psicólogos nas equipas multidisciplinares que entretanto se foram constituindo na DREER tornou-se cada vez mais notória na déc. de 90, período ao longo do qual o número de psicólogos admitidos duplicou. Aos poucos, os psicólogos foram-se afirmando como um grupo profissional indispensável na resposta psicopedagógica às crianças e jovens com necessidades educativas especiais. Com a alteração da estrutura orgânica da Direção Regional de Educação Especial e Reabilitação, aprovada pelo despacho n.º 103/2005, é criada, em setembro de 2005, a Divisão de Psicologia, que em novembro de 2008 passa a designar-se Divisão de Psicologia e Orientação Vocacional (DPOV), dirigida por um psicólogo, chefe de divisão. A existência desta divisão na orgânica da DREER possibilitou uma forte coesão e identidade socioprofissional, bem como uma resposta consistente e atualizada em termos técnico-científicos, tornando-se uma referência para outros psicólogos da RAM. Com cerca de 40 psicólogos, alguns dos quais a exercerem funções de coordenação e direção, a DPOV tinha por missão “garantir a intervenção psicológica junto dos alunos / utentes dos diferentes serviços técnicos de educação e de reabilitação profissional e programas ocupacionais, em colaboração com a família e comunidade, contribuindo para o seu equilíbrio sócio emocional”. A sua atuação regia-se pelos princípios e orientações subjacentes ao Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), de onde se destacavam valores como respeito pela dignidade e direitos da pessoa, competência, responsabilidade e integridade. A DPOV apresentavaas seguintes atribuições e competências: “a) Observar, diagnosticar e orientar os educandos e futuros utentes com vista à adaptação ou reeducação escolar, profissional e social, consoante as características individuais, disfunções ou perturbações; b) Prestar apoio psicoterapêutico, nos casos em que apresentem perturbações emocionais e comportamentais resultantes de deficiência ou de sobredotação; c) Acompanhar e supervisionar a intervenção protagonizada pelos elementos desta área afetos aos diferentes serviços da DREER”. A intervenção do psicólogo da DPOV era muito versátil pela variedade de áreas, faixas etárias e serviços que apoiava. O psicólogo intervinha desde a idade precoce (0-6 anos), junto de alunos com necessidades educativas especiais a frequentar os 1.º, 2.º e 3.º ciclos até à idade jovem e adulta; a sua atuação abrangia o domínio sensorial (audição e visão), o domínio cognitivo e da aprendizagem (deficiência intelectual, dificuldades intelectuais, dificuldades de aprendizagem específicas e perturbação da linguagem e da fala), o domínio motor (perturbações das aptidões motoras e problemas motores/neuromotores), o domínio cognitivo, motor e/ou sensorial (multideficiência), o domínio da comunicação, relação e afetivo-emocional (perturbação da relação e comunicação, perturbações do espectro do autismo e perturbações emocionais ou comportamentais graves) e outras condições não enquadradas nos domínios anteriores, tais como atraso global de desenvolvimento, défice de atenção com ou sem hiperatividade e sobredotação. O psicólogo tinha uma participação ativa nas equipas multidisciplinares dos vários serviços técnicos de educação especial e reabilitação (Serviços Técnicos de Educação, Centros de Apoio Psicopedagógicos e Centros de Atividade Ocupacionais, Serviço Técnico de Integração e Formação Profissional, entre outros) e trabalhava não só com o aluno/utente, mas também com os pais/tutores, professores e demais agentes comunitários, em prol do desenvolvimento educativo, socioprofissional e pessoal. Deste modo, contribuía para o desenvolvimento da própria instituição escolar ou ocupacional e da comunidade. Na avaliação multidisciplinar, o psicólogo assume um papel importante na elegibilidade de crianças, jovens e adultos com necessidades especiais. A sua atuação, pautada por uma intervenção mais próxima da abordagem ecológica e de respostas inclusivas, centradas no eixo preventivo, estava orientada no sentido de promover as potencialidades das crianças e jovens com necessidades especiais, procurando minimizar as suas diferenças e maximizar as suas capacidades, facilitando, assim, a sua inserção nos vários contextos e promovendo, em alguns casos, a sua transição para a vida ativa. Muitas vezes, o recurso ao apoio psicológico visava promover o processo de aprendizagem e integração social do aluno, em virtude de, em muitos casos, às necessidades especiais estarem associados problemas emocionais ou, até, perturbações psicopatológicas, os quais exponenciam as dificuldades de aprendizagem e integração. A intervenção do psicólogo contemplava, por vezes, uma vertente clínica/terapêutica. O psicólogo da DREER desempenhava, igualmente, funções de formação de novos psicólogos, nomeadamente através da orientação de estágios profissionais promovidos pela OPP e pelo Instituto de Emprego da Madeira, e colaboração na orientação de estágios curriculares dos finalistas do Mestrado em Psicologia da Educação da Universidade da Madeira; da colaboração na supervisão clínica e educacional dos estágios; da participação no ensino da unidade curricular de Psicologia da Educação, da licenciatura em Psicologia da Universidade da Madeira – a saber, através da intervenção em painéis em que era abordado o papel do psicólogo nos diferentes contextos educativos e da receção de alunos para contacto direto com a praxis do psicólogo na educação especial. A prática do psicólogo contemplava ainda atividades de pesquisa e investigação e a utilização dos respetivos resultados na prática educacional. Bibliog.: AGUIAR, E., “História do apoio à deficiência na RAM”, Educação Especial, n.º 30, 1985, pp. 11-25; dec. reg. n.º 13/81, de 23 de junho; dec. reg. n.º 12/84, de 22 de novembro; dec. reg. regional n.º 13-A/97, de 15 de julho; desp. n.º 5/78, de 5 de abril; desp. n.º 103/2005. Líria Maria Jardim Fernandes Luísa Valentina Teixeira de Mendonça Correia (atualizado a 03.02.2017)

Ciências da Saúde Educação História da Educação

colégio de machico

O Externato Tristão Vaz Teixeira, também conhecido por Colégio de Machico, foi inaugurado em 11/10/1965 e foi estatizado em 30/09/1976. Precedido pelo colégio de S. Vicente, pioneiro do ensino secundário no meio rural, inaugurado em 1964, foi a segunda escola superior ao 1.º ciclo do básico criada na ilha da Madeira fora do Funchal, tendo desempenhado um papel assaz relevante no desenvolvimento pessoal e social das populações daquela zona no leste da ilha. No início do séc. XXI, passou a existir no seu lugar a Escola Básica e Secundária de Machico. O Colégio foi fundado por dois professores vindos do continente. Em setembro de 1965, o Dr. Emídio César de Queiroz Lopes, professor de Matemática, Física e Química, que era diretor da Escola Secundária de Santa Comba Dão, e a sua esposa, também professora, a Dr.ª Maria Ariete Teixeira de Aguiar, filha de Machico, professora de Português, História e Geografia, foram convidados por João Carlos de Sousa, então presidente da Câmara de Machico, para abrirem um colégio do ensino secundário naquela localidade. O autarca prometeu o apoio da Câmara, que pagaria, durante três anos, uma verba anual de 30 contos desde que fosse recebida uma meia dúzia de jovens de famílias sem meios para pagar o ensino. No mês seguinte, com a autorização do Ministério da Educação, o Dr. Emídio Lopes chegou a Machico, tendo ficado logo decidida a instalação do novo colégio. Para local foi escolhido o Hotel de Machico, há muito encerrado. Foi mandado fazer localmente o mobiliário escolar necessário. Foi difícil recrutar os professores necessários, pois foram abertos logo os cinco anos do curso liceal e o curso comercial; aproveitaram‑se os talentos locais, cientes de que a sua dedicação sairia recompensada. Do Funchal vieram as professoras de Inglês e Francês; couberam as Ciências Naturais às farmacêuticas de Machico e Santa Cruz, recrutaram‑se professoras primárias das duas vilas; Manuel Araújo, chefe do posto policial, habilitado com o Curso Comercial, lecionou Datilografia e Caligrafia a alunos que obtiveram altas classificações nos exames da Escola Industrial e Comercial do Funchal; as aulas de Trabalhos Oficinais, que eram na altura exigidas no Ciclo Preparatório do Curso Comercial, foram desempenhadas pelo mestre Fernando, habilitado com o curso de faróis e faroleiro da ponta de São Lourenço, que já tinha construído as estruturas de metal das novas carteiras dos alunos; coube ao padre da freguesia do Caniçal lecionar Religião e Moral. Todos ensinaram com brio as disciplinas que lhes foram confiadas. O primeiro dia de cada período era dedicado à formação de professores que, em discussão de grupo, comentavam textos pedagógicos selecionados pelo diretor, habilitado com curso de Ciências Pedagógicas, que recebia regularmente documentação do Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Calouste Gulbenkian, dirigido então por Alberto Martins de Carvalho, de quem fora aluno no Liceu D. João III. O nome do Colégio é o do navegador Tristão Vaz Teixeira, escudeiro do infante D. Henrique (acompanhou‑o a Ceuta e Tânger), descobridor da ilha de Porto Santo e, em 1440, e o primeiro responsável pela Capitania do Machico em 1440. Na cerimónia de inauguração, no início do ano letivo de 1965/1966, estiveram presentes o presidente da Junta Autónoma da Madeira, Homem Costa, o presidente da Câmara de Machico, juntamente com alguns membros da vereação, o P.e Manuel Andrade, o pároco local, para além de muitos elementos da população, que encheram a sala. Discursaram o presidente da Junta Autónoma e o presidente da Câmara. O Colégio rapidamente ganhou reconhecimento. Mais tarde, todos os alunos ocupavam os seus tempos livres em atividades prescritas pelo método pedagógico de Freinet, uma corrente da chamada “escola nova”: agricultura, tela e bordado, cestaria, marcenaria e serralharia. Desenvolveram‑se campos de agricultura em Santa Cruz, perto do Aeroporto da Madeira, e no Caniçal. Os trabalhos de serralharia, orientados pelo mestre Fernando, decorriam no edifício do cabrestante, que estava sem uso e que foi cedido pela Câmara para esse efeito. Os produtos destas atividades e as peças em ferro forjado, algumas encomendadas, eram vendidos pela Cooperativa dos Alunos. Também se confecionaram enxovais para crianças de famílias mais carenciadas (na déc. 60 do séc. XX naquela região da Madeira, a pobreza era manifesta). O Colégio interessou‑se pelo cultivo das artes. As aulas de Educação Musical foram lecionadas pelo pianista João Luís Abreu, professor do Conservatório do Funchal. Compraram‑se dois pianos, um para o Colégio e outro para a Escola do Ciclo Preparatório. Além do ensino da Música, onde se iniciou o maestro da Banda Municipal, Amaro Nunes dos Santos, os alunos representaram no Cinema de Machico, com lotação esgotada, a peça O Auto do Curandeiro, de António Aleixo. Em 1967, não existia ainda Escola de Hotelaria da Madeira. Assim, a empresária de turismo Fernanda Pires da Silva, que desenvolveu a Matur, proprietária do Hotel Holiday Inn, que muito contribuiu para o desenvolvimento de Machico, solicitou ao diretor do Colégio que formasse as empregadas de que o seu empreendimento necessitava. Eram precisos conhecimentos de inglês, de serviço hoteleiro (quartos e refeições), de etiqueta, etc. As empregadas preparadas pelo Colégio revelaram‑se boas profissionais na Matur. Em 1968, o Colégio realizou com êxito, durante dois dias, um curso de formação de alunos, presidido por D. Maurílio de Gouveia, mais tarde bispo de Évora, com a colaboração do vice-presidente da Junta Geral, do diretor dos Serviços Sociais da Madeira e de vários professores, que desenvolveram com os alunos temas de formação pessoal, social e valores. Em 1970, dado o visível aumento do número de alunos e na impossibilidade de os acolher a todos, diretor dirigiu‑se ao ministro da Educação, Veiga Simão, de quem fora colega na Universidade de Coimbra, solicitando-lhe que fosse criada no local uma escola do ciclo preparatório, ficando o Colégio apenas com os ensinos liceal e técnico. O ministro acedeu e, em outubro de 1970, foi criada uma secção da Escola Gonçalves Zarco, sediada no Funchal, que funcionou durante dois anos no Colégio, enquanto o edifício da nova escola não ficava concluído. Os alunos do ciclo preparatório passaram então do ensino privado para o ensino público. A escola do ciclo recebeu também adultos que buscavam complemento de formação. Quando se abriram, na escola preparatória, as inscrições para o primeiro curso de adultos, em 1972/1973, foi tão grande a procura, que foi necessário abrir duas turmas para acolher 60 pessoas em regime noturno. Em reconhecimento pela sua qualidade pedagógica, em 1971/1972 e 1972/1973, o Colégio foi encarregado pelo Ministério da Educação de proceder à distribuição e recolha das provas de exame do ciclo preparatório nos colégios do campo na Madeira. Em 1972/1973, foi pedido ao seu diretor que desse um curso de formação em Matemática Moderna aos professores do ciclo preparatório da Madeira, que decorreu naquele ano letivo, na Escola Gonçalves Zarco. A qualidade do ensino era avaliada por inspeções do Ministério da Educação. No ano letivo de 1972/1973, coube a inspeção a Paulo Crato – pai de Nuno Crato, que foi ministro da Educação no XIX Governo constitucional –, que almoçou com professores e alunos no refeitório, em edifício atrás do Mercadinho. O alargamento da escolaridade obrigava a medidas de inclusão. A partir do ano letivo de 1973/1974 foi celebrado um contrato de associação com o Estado. Todos os alunos do Colégio (liceal e técnico) passaram então a desfrutar de ensino gratuito. O número de alunos cresceu rapidamente; tendo-se iniciado com 78 alunos em 1965, as duas escolas serviam, em 1975/1976, cerca de 1200 alunos. A Revolução de 25 de abril de 1974 provocou grandes mudanças. Em 1974/1975, os 10 colégios do ensino particular da Madeira elegeram por unanimidade o Colégio de Machico para defender o ensino privado, contra a política de estatização do ensino então prevalecente, em várias reuniões com o secretário da Educação e o presidente da Junta Governativa. Foi uma luta perdida. O Colégio passaria para a mão do Estado em setembro de 1976, transformando‑se numa escola inteiramente pública. No dia 10 de outubro de 2015 foram celebrados os 50 anos da fundação do Colégio, numa festa onde se relembraram os tempos antigos. Foi formulada uma proposta para dar os nomes do primeiro diretor e da professora sua mulher à escola que o substituiu. O antigo diretor, que fora viver para Oeiras, aproveitou o seu tempo de reforma para desenvolver materiais pedagógicos para o ensino da Matemática, exercer tarefas de voluntariado em escolas e traduzir vários livros de grande interesse para a história da ciência, como obras de Descartes, Newton, Huygens, Lavoisier e Fresnel. Para ajudar na sua difusão, criou a sua própria editora, a Prometeu.   Carlos Fiolhais (atualizado a 29.01.2017)

Educação Património História da Educação

galerias de arte

Entre os finais do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX, as poucas exposições de arte que ocorreram na Madeira foram organizadas em espaços improvisados. A designação galeria de arte foi usada em 1922, no contexto da primeira exposição de arte moderna que teve lugar no Funchal. Nas décadas seguintes, foram espaços como o Ateneu Comercial do Funchal e a Junta Geral que chamaram a si a organização de exposições. A partir dos anos 60, surgiram projetos privados mais próximos do conceito de galeria, destacando-se as galerias Tempo, Decorama, Mundus, Quetzal, Funchália, Porta 33, Edicarte e Mouraria. Dentro das iniciativas de caráter institucional, merecem registo a galeria da SRTC e o teatro municipal do Funchal. Fora do desta cidade, refira-se a Casa das Mudas, as casas da cultura de Santa Cruz e de Câmara de Lobos e a Galeria dos Prazeres. Palavras-chave: exposições; artes plásticas; artistas. O Grémio Artístico, nos finais do séc. XIX, e a Sociedade Nacional de Belas Artes, a partir de 1901, dominaram o panorama das exposições de pintura e escultura em Portugal, com os seus frequentes “Salões” de inspiração francesa. Na Madeira, em contraste com Lisboa, as exposições esporádicas de que há notícia aconteceram em espaços improvisados de hotéis e casinos da cidade do Funchal. Contudo, o protagonismo dos artistas madeirenses Francisco Franco, Henrique Franco e Alfredo Miguéis, tanto em Lisboa como em Paris, motivou o inesperado aparecimento, embora efémero, da primeira galeria de arte moderna no Funchal, em abril de 1922. A Galeria de Arte do Casino Pavão, como ficou conhecida, foi uma iniciativa do banqueiro e mecenas Henrique Vieira de Castro. Este espaço foi especialmente construído para acolher a, também primeira, exposição de arte moderna na Ilha, e na qual os artistas referidos participaram ao lado dos estrangeiros Bernard England e Madeleine Gervex-Émery, e do aguarelista continental Roberto Vieira de Castro, formando assim o Grupo dos Seis, que deu nome à exposição. Dois meses antes da sua abertura, um artigo no Diário de Notícias do Funchal, anunciando esta inédita exposição, insistia na necessidade de dotar a cidade com museus e galerias de arte, de maneira a promover o necessário e urgente desenvolvimento cultural da Madeira. Apesar das intenções de ali se organizar anualmente uma exposição de arte moderna, tal nunca veio a acontecer. Nesta déc. de 20, encontramos apenas a iniciativa isolada de Adolfo de Noronha que, em 1929, com o apoio da Câmara Municipal, abriu ao público o Museu Municipal do Funchal, que contemplou, nos primeiros anos, uma sala de pintura e escultura, mas que logo se especializou nas ciências naturais. Durante o regime do Estado Novo, o número de galerias privadas a nível nacional foi verdadeiramente exíguo, tendo cabido às instituições do Estado o controlo e organização das exposições artísticas. Nas décs. de 30 e 40, passaram pela Madeira, muito esporadicamente, algumas exposições de pintura organizadas pelo Estado, tendo o átrio da então Junta Geral funcionado como sala de exposições temporárias. Como exemplo, é de mencionar a visita do pintor Alberto de Sousa, que ali expôs em 1934. Às salas de hotéis e casinos que acolheram as exposições no período anterior, acrescentam-se, a partir dos anos 40, espaços não menos provisórios em associações comerciais, clubes, e galerias, que eram mais lojas de antiguidades do que espaços de exposição. Da iniciativa privada, destaca-se o papel dinamizador do Ateneu Comercial do Funchal, que, fundado em 1898, ganhou algum protagonismo cultural, a partir dos anos 30. Durante os anos 40 e 50, o Ateneu promoveu diversas atividades, sobretudo no âmbito da poesia e literatura, através de concursos e prémios. Contudo, é de salientar a criação, em 1936, de um núcleo de fotografia, que promoveu a realização do I Salão de Arte Fotográfica no Funchal, em 1937. Aquando do estabelecimento do museu da Quinta das Cruzes, em 1946, à data conhecido como Museu César Gomes, foi pensada a criação de um espaço que serviria de ateliê a artistas visitantes e um outro que funcionaria como sala de exposições temporárias. Mas tal não aconteceu, a não ser muito pontualmente, pois esta não seria a vocação do museu. A primeira exposição temporária ocorreu em 1949, com a Exposição de Estampas Antigas da Madeira e, durante os anos 50, há notícia de duas mostras, uma do pintor Francisco Maya, em 1953, e outra de desenhos de Egon von der Wehl, no ano seguinte. Para além dos espaços referidos, na sede da Sociedade de Concertos da Madeira ocorreram algumas exposições. Em 1950, foram exibidos 42 trabalhos – entre aguarelas e desenhos de paisagem – de Américo Marinho, pintor de origem continental e, por essa altura, professor da Escola Industrial e Comercial do Funchal. No mesmo ano, foi notícia na revista Das Artes e da História da Madeira uma exposição de aguarelas e óleos de uma pintora inglesa, Bryce Nair, desta vez nas Galerias da Madeira. Este local comercial, situado na esquina da rua 5 de Outubro com a rua Bettencourt, era vocacionado, sobretudo, para a venda de antiguidades. Por sua vez, o Clube Funchalense, entidade de carácter social e cultural, já criada no séc. XIX (foi fundado em 1839), organizava, mormente, bailes e soirées, e só apresentou exposições de arte muito esporadicamente; sendo de destacar, no séc. XX, a primeira exposição individual de Lourdes Castro, em 1955, uma das poucas que realizou na Madeira, e uma mostra de António Aragão, no ano seguinte. A partir dos anos 60, o número de galerias aumentou, em Portugal continental, de forma significativa, passando de três, no início da década, para cerca de 30. Alguns novos projetos seguiram o figurino de loja-galeria ou galeria-livraria, em voga nessa época. Em 1964, é o tempo de inaugurar, na Madeira, o primeiro espaço próximo deste figurino, a Galeria de Artes Decorativas Tempo, sita na rua do Bom Jesus. Iniciativa do Arqt. Rui Goes Ferreira e do escultor madeirense Amândio de Sousa, esta galeria apostou na comercialização de objetos de design moderno e também em exposições temporárias. Na sua exposição inaugural, Sete Pintores Portugueses, foram apresentados trabalhos de Manuel Mouga, Jorge Pinheiro, Espiga Pinto, Manuel Pinto, José Rodrigues, Ângelo de Sousa e Júlio Resende. Num figurino semelhante, merece destaque a abertura da Galeria Mundus, em 1965. Neste espaço comercial foram realizadas as primeiras exposições de arte moderna de uma nova geração de artistas madeirenses. Em 1966, foram expostos desenhos surrealizantes de António Vasconcelos (Nelos) e Humberto Spínola; assim como pintura abstrata de Danilo Gouveia e Ara Gouveia. Por esta galeria passaram também artistas continentais mais ou menos conhecidos, entre os quais António Palolo, que ali expôs individualmente em 1967. Outra iniciativa integrada no conceito de loja-galeria foi a fugaz Decorama, da responsabilidade de João Silvério Cayres. Esta trouxe ao Funchal mobiliário e objetos de gosto contemporâneo, mas cedo deu lugar a uma loja mais vocacionada para mobiliário clássico, mais ao gosto do comprador local. Um projeto ambicioso foi o da utópica Casa do Artista, que partiu da ideia trazida por alguns críticos e galeristas franceses de visita à Madeira por ocasião da II Exposição de Arte Moderna realizada no Funchal, em 1967, entre outros, Victor Lacks e Michel Tapié de Céleyran. A proposta atraiu alguns artistas empreendedores da Região, nomeadamente Amândio de Sousa e António Aragão, que cedo contribuíram para transformá-la num projeto, que chegou a ser apresentado à Junta Geral do Funchal, em 1968. Aquela que parece ter sido a primeira tentativa real para criar uma estrutura cultural de apoio e divulgação das manifestações artísticas de vanguarda, e que incluía um espaço de exposições, próximo do conceito de galeria, acabou por não vingar, por desinteresse das entidades governamentais. Entrados os anos 70, novas intenções de constituir espaços para a exposição de arte moderna foram surgindo, mas não tiveram continuidade. Lembremos o caso da Sociedade de Empreendimentos Turísticos Matur, que organizou duas exposições em 1973, uma com artistas locais e outra com convidados do continente. O objetivo era criar um museu/galeria no Hotel Atlantis, pertencente àquele grupo, mas a ideia não vingou. No pós-25 de Abril, as anteriores iniciativas privadas foram desaparecendo. O Governo Regional, através de algumas galerias institucionais, foi promovendo o desenvolvimento dos espaços expositivos. Foi o recém-criado Instituto de Artes Plásticas da Madeira (ISAPM) que se constituiu como uma das alternativas mais atuantes ao longo das décs. de 80 e 90. Na sua sede, na rua da Carreira, foi criada uma pequena galeria de exposições aberta ao público, onde foram realizadas inúmeras mostras escolares e, com alguma frequência, exposições de artistas locais, nacionais e estrangeiros. Em simultâneo, a galeria da Secretaria Regional do Turismo e Cultura (SRTC), situada na avenida Arriaga, e conhecida localmente como Galeria do Turismo, desempenhou um papel importante ao longo das décs. de 80 e 90 na realização de exposições de artistas locais, nacionais e estrangeiros, tirando partido da sua localização privilegiada no centro da cidade, o que permitiu uma afluência considerável de visitantes. Por outro lado, e no mesmo período, o salão nobre do teatro municipal Baltazar Dias também acolheu numerosas e diversificadas iniciativas apoiadas pela Câmara Municipal do Funchal, em estreita colaboração com várias instituições, sobretudo com o ISAPM e o Cine Forum do Funchal. Ainda na déc. de 80, e em diálogo com as instituições acima mencionadas, assiste-se ao aparecimento de alguns espaços de iniciativa privada, hoje desaparecidos, tais como a galeria Quetzal, em 1981, e a galeria Funchália, em 1989. A primeira, da responsabilidade de Francisco Faria Paulino, e associada a uma editora homónima, trouxe ao Funchal exposições de artistas portugueses contemporâneos. A Quetzal não abriu portas em local próprio, tendo sido as suas exposições montadas em espaços como o teatro municipal Baltazar Dias, o Museu de Arte Sacra do Funchal, e a galeria da SRTC. No contexto da sua atividade como galerista, Francisco Faria Paulino foi também o principal responsável, em 1987, pelo Festival de Arte Contemporânea MARCA-Madeira, evento inédito no Funchal que contou com a participação de 31 galerias portuguesas e incluiu um congresso de arte contemporânea, entre outras ações paralelas que muito dinamizaram o ambiente artístico regional, por esses anos. Por sua vez, a galeria Funchália foi inaugurada no centro comercial Eden Mar sob a direção de Manuel Brito, Maurício Fernandes e Rui Carita, entre outros. De iniciativa local, esta galeria constituiu a primeira iniciativa com sede própria dedicada à arte contemporânea local e nacional. Ali foram organizadas um total de 31 exposições, sete das quais com artistas locais, tendo cessado a sua atividade em 1994. Expuseram na Funchália artistas como Helena Vieira da Silva, Celso Caires, João Moreira, André Sander, Cruzeiro Seixas, Rocha Pinto e António Botelho. Preenchendo o vazio deixado pelo encerramento da Funchália, o galerista Francisco Faria Paulino propôs um novo projeto, desta vez com sede própria: a galeria Edicarte, inaugurada em 1996, com sede na rua dos Aranhas, e que foi responsável pela realização da segunda e terceira edições do festival MARCA-Madeira onde, uma vez mais, estiveram representadas importantes galerias portuguesas. Ainda nos anos 90, regista-se a abertura de uma delegação, na zona turística do Caniço, da galeria Falkenstern Fine Art, sediada na ilha de Sylt, na Alemanha, vocacionada para mostrar trabalho de artistas estrangeiros de passagem pela Madeira e também do seu fundador, Siegward Sprotte. No começo do séc. XXI, a sede alemã continua em atividade, mas a delegação da Madeira, aberta em 1991, revelou-se um projeto efémero. Um caso à parte é a galeria Porta 33, criada em 1989 e ainda em funcionamento. Concebido, nos seus estatutos, como associação cultural, este espaço tem trazido ao Funchal nomes importantes da arte contemporânea. Para mais, tem desenvolvido com alguns artistas projetos específicos de exposição; tem promovido o debate com críticos convidados de âmbito nacional e internacional; e tem organizado diversos workshops e palestras. A Porta 33 trouxe ao Funchal obras de artistas de recorte nacional como Graça Pereira Coutinho, Ilda David, João Penalva, Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Pedro Croft e Pedro Calapez. De entre os artistas locais ou madeirenses que fizeram carreira no exterior, destacam-se Lourdes Castro, António Aragão, Rigo, António Dantas e Rui Carvalho. Esta galeria também tem participado em feiras de arte internacionais, tais como a ARCO, em Madrid. No dealbar do séc. XXI, foi inaugurado um novo espaço comercial, a Galeria Mouraria, da responsabilidade de Ricardo Ferreira, e que trouxe ao Funchal algumas coletivas com representantes do contexto nacional, apresentando obra de artistas locais, assim como desenvolvendo a iniciativa project room, com mostras de carácter mais experimental. Alguns dos artistas que a galeria representou individualmente ao longo da sua existência foram reunidos numa coletiva comemorativa do seu 10.º aniversário, em 2011, a saber: Cristina Perneta, Filipe Rodrigues, Guareta, Hernando Mejia, Marcos Milewski, Maria São José, Patricia Morris, Roberto Bolea, Sílvio Sousa Cró e Trindade Vieira. Meses depois, este projeto galerístico fechou portas. O início do séc. XXI viu desaparecer a galeria da SRTC, em 2006, pondo-se assim fim a um intenso trabalho de divulgação e dinamização cultural no centro da cidade. Um ano antes, fora também encerrado o Centro Cívico Edmundo Bettencourt, situado na rua Latino Coelho, e cuja ação foi muito menos marcante do que a daquela galeria, por se ter resumido a exposições coletivas de pouco impacto e com critérios de organização pouco consistentes. Fora do Funchal, outros espaços, sob a tutela das autarquias locais, foram cumprindo a missão de organizar exposição de artes plásticas, complementando assim o trabalho das poucas galerias privadas que se foram mantendo em atividade. É exemplo a Casa da Cultura de Santa Cruz, cuja atividade profícua teve como coordenadores José Baptista e o escultor António Rodrigues, e que apresentou, ao longo dos anos 90, para além de inúmeras coletivas, mostras individuais de António Aragão, Hélder Baptista e Lagoa Henriques. Por sua vez, e sob a coordenação de Paulo Sérgio BEJu, a Casa de Cultura de Câmara de Lobos privilegiou, entre 2005 e 2010, as mostras coletivas em formato de instalação, com propostas temáticas que desafiavam a criatividade dos aristas convidados. Para além destas, foram apresentadas mostras individuais de artistas locais, tais como Teresa Jardim, Domingas Pita e Rita Rodrigues. Neste contexto, é importante destacar o papel da Casa das Mudas, Casa da Cultura da Calheta, inaugurada em 1997, coordenada por Luís Guilherme Nóbrega até 2007. Esta galeria aproveitou a sua localização para operar uma descentralização cultural e uma ação direta no meio. Alguns dos artistas ali apresentados foram José Manuel Gomes, Lígia Gontardo, Élia Pimenta e Ara Gouveia, do contexto local, e Alberto Carneiro, António Palolo e José de Guimarães, do contexto nacional. Este espaço privilegiou também a linguagem fotográfica, trazendo à Madeira mostras coletivas e individuais neste âmbito, assim como mostras de importantes coleções de fundações nacionais, como a da Fundação Serralves. Uma outra iniciativa descentralizadora é a que levou à criação da Galeria dos Prazeres, inaugurada em 2008 e orientada por Patrícia Sumares até 2012. Trata-se de um projeto galerístico inserido na Quinta Pedagógica dos Prazeres, uma iniciativa, por sua vez, de origem paroquial e com carácter recreativo e cultural. A galeria propriamente dita pauta-se por uma estreita ligação com natureza e com o património local, privilegiando exposições de artistas locais e estrangeiros que desenvolvem propostas artísticas nesse sentido. A partir de 2013, a galeria passou a ser coordenada por Hugo Olim, artista visual e docente na Universidade da Madeira. Nesse espaço, destacam-se, para além de artistas estrangeiros, as mostras individuais de artistas locais como Carla Cabral, António Dantas, Paulo Sérgio BEju, Jose Manuel Gomes, Filipa Venâncio, Ara Gouveia, Martinho Mendes e o Arqt. Paulo David.   Carlos Valente (atualizado a 01.02.2017)

Artes e Design Cultura e Tradições Populares Educação Madeira Cultural

formação de professores

A formação de professores na Madeira inicia-se no ano de 1900 com a criação da Escola Distrital do Funchal, que se situava num edifício da R. dos Aranhas, e conferia a habilitação para o exercício do Magistério Primário. Nos anos seguintes, e correspondendo a diferentes reformas legislativas que ocorrem entre 1900 e 1921, a escola foi mudando de designação, passando a partir de 1904 a Escola Normal do Funchal e, a partir de 1919, a Escola Primária Superior do Funchal, designação esta que se mantem até 1921. O seu primeiro diretor foi Pedro José Lomelino, médico, nascido na ilha do Porto Santo a 19 de novembro de 1864. O primeiro curso tem a duração de dois anos e abarca as seguintes disciplinas: Aritmética e Geometria, Moral e Doutrina, Lavores, Desenho e Música, Português, Geografia, Ciências Naturais, Gramática, Caligrafia, Direitos e Deveres e História. Em 1921, inicia-se um hiato na formação de professores que se prolonga até 1943, ano em que, pelo dec.-lei n.º 33.019 de 1 de setembro, se cria a Escola do Magistério Primário do Funchal, que vem suprir a falta de professores primários no arquipélago da Madeira devido ao interregno que este período de 20 anos provocara na formação. A Escola do Magistério funciona, inicialmente, numa sala do Liceu Jaime Moniz, por determinação do art. 2.º do referido decreto, e tem, por inerência, como seu primeiro diretor o reitor do mesmo, na altura, o Dr. Ângelo Augusto da Silva. No ano letivo de 1943-1944, primeiro ano de existência da Escola, do seu corpo docente fazem parte António Marques da Silva, Lúcio Santana Bartolomeu do Rosário e Miranda, José Nunes Parro, William Edward Clode, Gustavo Augusto Coelho, Adelino dos Santos Lã, Ernesto Marçal Martins Gonçalves, Cón. Manuel Francisco Camacho e Judite Adriana Teixeira de Sousa Moniz. A frequência do curso passa pela aprovação num exame de admissão com prova escrita e oral, e a sua conclusão, após a aprovação em Exame de Estado, mais tarde Termo de Conclusão do Magistério Primário, confere habilitação para o magistério primário. Os cursos têm, inicialmente, a duração de dois anos e fazem parte do seu plano curricular as seguintes disciplinas: Pedagogia e Didática Geral; Psicologia Aplicada à Educação; Higiene Escolar; Educação Física; Desenho e Trabalhos Manuais; Educação Feminina; Música e Canto Coral; Organização Política e Administrativa da Nação; Educação Moral e Cívica; Prática Pedagógica; Didática Especial; Legislação. O plano curricular do curso sofreu alterações e, a partir de 1977, passa a ter uma duração de três anos letivos. Mais tarde, já no final dos anos 70, a Escola do Magistério Primário do Funchal alarga a sua área de ação na formação e abarca a formação inicial de educadores de infância. Assim, no ano letivo de 1977-1978, através de um protocolo com a Escola João de Deus de Lisboa, inicia esta formação. Este curso funciona nas instalações da Escola do Magistério Primário do Funchal, na altura sediada na Qt. da Ribeira, à Calç. da Cabouqueira n.º 5, em estreita colaboração com a escola mãe – que dava apoio pedagógico e científico ao curso, deslocando à Madeira pessoal docente para garantir algumas disciplinas diretamente relacionadas com aspetos técnicos e metodológicos de aplicação do método João de Deus –, mas no essencial garantido por docentes da Escola do Magistério do Funchal. A escola João de Deus apresenta a particularidade de usar um método específico de iniciação à leitura e à escrita, o método João de Deus, criado em 1920 pelo pedagogo João de Deus Ramos, filho do poeta João de Deus, patrono da escola. A turma deste curso, que é composta por 25 alunos, conclui a sua formação no ano letivo 1979-1980, vindo a responder a uma grande necessidade de profissionais na educação infantil e reforçando, assim, a resposta educativa profissionalizada na Madeira. No ano letivo 1982-1983, a Escola do Magistério Primário ganha independência da outra instituição, criando o seu próprio Curso Normal de Educadores de Infância, que funciona até à sua integração na Escola Superior de Educação da Madeira. A 21 de setembro de 1982, é criada a Escola Superior de Educação da Madeira (ESEM), pelo dec.-lei n.º 395/82, e inicia-se um longo processo de estruturação da escola, que só se efetiva após a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (lei n.º 46/86, de 14 de outubro), que tem um forte impacto na formação de professores na região autónoma. A formação de professores reforça-se, pois para além do Curso do Magistério Primário e do Curso Normal de Educadores de Infância, que transitam da Escola do Magistério, a ESEM chama, ainda, a si a formação pedagógica de professores já integrados no sistema de ensino, particularmente nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário, através da profissionalização em serviço, sistema coordenado pelo então criado Centro Integrado de Formação de Professores (CIFOP), estrutura da ESEM que abarca esta modalidade de formação, que se encontra enquadrada no dec.-lei n.º 287/88 de 19 de agosto. A partir do ano de 1982 são criados no Funchal centros de apoio de estabelecimentos de ensino superior universitário, ao abrigo do dec.-lei 205/81, de 10 de julho. O despacho normativo 262/82 cria, na Região Autónoma da Madeira, sob proposta do Governo regional e ouvida a Universidade de Lisboa, o Centro de Apoio da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa; pelo despacho normativo 182/83, é criado o Centro de Apoio da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O Centro de Apoio da Faculdade de Ciências funciona na R. Bela de Santiago, num antigo anexo do Liceu Jaime Moniz, onde já havia funcionado a Escola do Magistério Primário e o da Faculdade de Letras na R. dos Ferreiros n.º 163. Os cursos lecionados nestas extensões universitárias – de formação de professores especialistas para áreas determinadas do currículo do 3.º ciclo e do ensino secundário – reforçaram o corpo docente de muitas escolas que foram surgindo por quase todas as freguesias da Madeira, por força de uma política de expansão do parque escolar. O número de professores profissionalizados em disciplinas como a História, o Português, o Francês, o Inglês, o Alemão e a Geografia, formados pelo então Centro de Apoio da Faculdade de Letras de Lisboa, cresce significativamente, contribuindo para que a grande maioria das escolas reforce o seu corpo docente e complete os seus quadros com professores profissionalizados. O mesmo se passa com a formação de professores em Matemática, Química, Física e Ciências. Nos últimos dois anos dos seus cursos, estes Centros integram formação em Ciências de Educação e estágio integrado em escolas do 3.º ciclo e do ensino secundário, garantindo com isso a profissionalização efetiva e o ingresso na carreira docente de um corpus cada vez mais coeso de profissionais de ensino científica e pedagogicamente habilitado. Ainda em 1982, cria-se a extensão à Madeira da UCP, que assume um papel importante na formação de professores de Português do 3.º ciclo e do ensino secundário, bem como de professores de Latim e Grego para o ensino secundário. É importante destacar que todos estes cursos, que funcionavam em regime de extensão universitária, eram ministrados por professores que se deslocavam das respetivas universidades e tinham lugar ao fim de semana, de sexta-feira a domingo. Não menos importante – e por se tratar da formação de professores de nível de mestrado (formação essa que se tornava cada vez mais necessária tendo em conta a emergência do ensino superior na Região e a necessidade de docentes especialmente vocacionados para o ensino politécnico e universitário) – é o facto de em 1984 se iniciar, através de um protocolo com a Universidade do Minho, um mestrado em Análise e Organização do Ensino, que tem a duração prevista de dois anos e que forma um grupo considerável de docentes habilitados. Os anos 80 foram anos de intensa atividade no que diz respeito à preparação do terreno para o aparecimento de uma instituição que pudesse chamar a si tão variadas experiências formativas na área docente, que se revelaram importantíssimas para a evolução e garantia de qualidade do sistema educativo na Região. Toda a tradição de formação de professores que tinha vindo a ser construída desde o início do séc. xx, com a criação da Escola Distrital de Funchal e a consequente formação dos primeiros professores habilitados para o exercício do magistério, frutificou na criação da Universidade da Madeira (UMa), um espaço destinado nomeadamente a manter a continuidade desta formação. A UMa herda, como já foi referido, a tradição da formação de professores dos diferentes graus e níveis de ensino. Vinda já do CIFOP, a Universidade ganha também a profissionalização em serviço, uma modalidade de formação que não confere grau académico, e que pretende responder à necessidade de preparar os profissionais de ensino para os desafios decorrentes da aplicação da Lei de Bases. O dec.-lei n.º 287/88, de 19 de agosto, que cria a profissionalização em serviço, diz no seu preâmbulo a este respeito: “Os professores dos quadros de nomeação provisória, agora com direito à profissionalização em serviço, apresentam perfis de experiência muito diversos e, em resultado da nova conceção e organização dos concursos, realizarão a sua formação profissional numa rede de escolas caracterizada pela dispersão geográfica e pela diferenciação. As suas legítimas expectativas tornam imperioso imprimir um ritmo rápido ao processo de profissionalização. Assim, urge rendibilizar os recursos humanos e materiais disponíveis, de modo a responder, com eficiência e racionalidade, às exigências da situação no menor prazo de tempo possível, desejavelmente não superior a cinco anos.” Este modelo de formação contínua de professores nasce da necessidade de proporcionar, o mais depressa possível, a formação pedagógica adequada a um grande grupo de professores que à data exerciam a profissão com estatuto de professores provisórios devido ao facto de apenas serem portadores de formação académica mas não possuírem a necessária formação pedagógica. A inexistência deste requisito levava a um bloqueio no acesso à progressão na carreira docente. O modelo apresenta duas componentes de formação: formação na área das Ciências da Educação e Prática Supervisionada, que se efetiva pela implementação do Projeto de Formação e Ação Pedagógica. A componente de Ciências da Educação abarca áreas como a Teoria e Desenvolvimento Curricular, a Sociologia da Educação, a Gestão e Administração Escolar e a Didática Específica, que pode ser uma ou duas consoante o grupo disciplinar a que o professor pertence seja mono ou bidisciplinar. As disciplinas referidas são garantidas inicialmente pela ESEM e mais tarde pela UMa, com a criação do seu departamento de Ciências da Educação. A componente de implementação de projeto é realizada na escola à qual o professor pertence e é acompanhada, preferencialmente, por um orientador da respetiva escola, que deverá ser o delegado de disciplina e que aqui assume a função de orientador pedagógico, e por um orientador da ESEM/UMa, que assume a função de orientador científico. Estes coordenadores acompanham o trabalho do professor em formação, assistindo a aulas e reunindo-se com o objetivo de avaliar não só momentos particulares da atividade do professor, mas também o seu desempenho geral (avaliação final). A conclusão deste percurso formativo com avaliação positiva concede ao professor a possibilidade da sua integração na carreira docente, passando da figura de professor de nomeação provisória para a de nomeação definitiva. O dec.-lei n.º 287/88 de 19 de agosto prevê ainda que os professores que à data da conclusão do primeiro ano da sua profissionalização (ou seja, à data da conclusão da componente de Ciências da Educação) possuam seis ou mais anos de serviço docente fiquem dispensados da frequência do 2.º ano, podendo passar imediatamente à condição de professor de nomeação definitiva. A profissionalização em serviço, enquanto programa de formação de professores com vínculo provisório, prolongou-se até ao ano letivo de 2013-2014, ano em que este modelo de formação deixou de funcionar na UMa. Este não foi o único modelo de profissionalização que se implementou na RAM. Outra área que no final dos anos 70 apresentava grande carência de docentes capacitados era a Educação Especial, que funcionava com muito poucos professores e educadores especializados, que entretanto se iam especializando em escolas de Lisboa, sendo a grande maioria dos seus docentes somente portadora de formação inicial em professores do 1.º ciclo do ensino básico e educação de infância. Para solucionar esta situação, a RAM, através da Direção Regional de Educação Especial (DREE), abre em 1983, em colaboração com o Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, a entidade formadora nacional, sediada em Lisboa, que então centralizava toda a formação de professores especialistas para a Educação Especial, uma turma de 26 alunos. Os professores/alunos que compõem a turma são selecionados por concurso público e destacados para a frequência do curso. Esta turma funciona em regime de extensão, numa sala especialmente preparada para o efeito, no Lar do Internato da Quinta do Leme. As aulas são lecionadas por professores do referido Instituto, que se deslocam à Madeira. No primeiro ano, os estudantes frequentam a sede da Escola onde ficam a conhecer a instituição; os restantes momentos formativos funcionam no Lar do Internato da Qt. do Leme, no Funchal. O curso tem a duração de três anos letivos, dois dos quais são teóricos, sendo um de estágio na área de especialização de opção de cada formando. As áreas de especialização são as seguintes: Deficiência Auditiva, Deficiência Intelectual, Deficiência Motora e Deficiência Visual. Dos 26 professores/estudantes que iniciam a formação, 23 concluem-na com aproveitamento e passam a integrar o quadro da DREE, exercendo funções nos seus diferentes serviços técnicos: Serviço Técnico de Educação de Deficientes Auditivos; Serviço Técnico de Educação de Deficientes Intelectuais; Serviço Técnico de Educação de Deficientes Motores e Serviço Técnico de Educação de Deficientes Visuais. Após este primeiro curso, a DREE estabelece protocolos com escolas superiores de educação do continente, que tinham começado a dar resposta de formação de professores de educação especial por força da extinção do Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, que ocorre no ano de 1989. Promove formação em regime de extensão, primeiramente pela Escola Superior de Educação do Porto e, mais tarde, pela Escola Superior de Educação de Lisboa. Estes cursos são cursos de estudos superiores especializados e já proporcionam não só a obtenção de habilitação profissional para o exercício da função de professor de Educação Especial, como também a obtenção de grau académico de diploma de estudos superiores especializados, equiparado para todos os efeitos a licenciatura. Os docentes de educação especial que frequentaram cursos que não conferiam este grau deslocaram-se à Escola Superior de Educação de Lisboa, que promoveu módulos de formação adicional de modo a permitir a este grupo de docentes a referida habilitação académica e o consequente impacto na sua carreira. Esta foi a primeira etapa da formação de professores de educação especial na Madeira, a qual mais tarde foi ganhando outras formas através de cursos de formação à distância e mista, online e presencial, proporcionados por algumas escolas de formação particulares do continente. Podemos, assim, considerar que a Madeira construiu um corpo docente que permitiu responder a esta modalidade educativa de forma adequada. Por força da aplicação do dec.-lei n.º 255/98 de 11 de agosto, que operacionaliza o estabelecido na lei 115/97, que refere no seu artigo 2.º que o Governo definirá por decreto-lei as condições em que os educadores de infância e professores do ensino básico sem o grau académico de licenciatura o poderão adquirir, criam-se os cursos de complemento de formação científica e pedagógica para educadores de infância e professores do ensino básico com o grau de bacharéis. Tais cursos são organizados e funcionam em escolas superiores de educação e em estabelecimentos de ensino universitário; no caso da Madeira, centram-se na UMa. O acesso aos cursos é feito por concurso, sendo os candidatos seriados por análise curricular. A sua frequência é gratuita. As primeiras turmas são de educadores de infância, professores do 1.º ciclo do ensino básico e professores do 2.º ciclo dos grupos bidisciplinares de Matemática e Ciências, e Português e História. Esgotada a formação dos professores bacharéis do 2.º ciclo, a formação continua agora exclusivamente dirigida a educadores de infância e professores do 1.º ciclo. Estes cursos têm a duração de três semestres e funcionam nas instalações da UMa, ao Campus da Penteada, em horário pós-laboral, de segunda a sexta-feira e aos sábados de manhã. Os professores que os concluem com aproveitamento adquirem o grau de licenciatura e o seu tempo de serviço é recontado para efeitos de carreira docente como se tivessem iniciado a carreira como licenciados. Isto provoca um acréscimo salarial de todos estes docentes na ordem de um ou dois escalões, consoante o seu tempo de serviço docente e o escalão onde se encontravam. Estamos perante um processo de formação que influi simultaneamente na carreira e na habilitação académica dos professores que a ele se sujeitam. Nos anos 80 do séc. XX, situações de formação idênticas a estas, que permitiram a obtenção de grau académico de licenciatura, foram também proporcionadas aos professores de Educação Tecnológica e Trabalhos Manuais pela Universidade Aberta e a professores de Educação Física pela UMa. Todas estas respostas de formação de professores se encaminham para a construção de um corpo docente com uma habilitação académica do mesmo nível, acabando assim com a grande variação de habilitações presente na carreira docente, que implicava, logo à partida, diferenças salariais significativas. Entre os anos 80 do séc. XX e os primeiros cinco anos do séc. XXI a formação de professores viveu um período de grande efervescência, que agitou a classe e a envolveu em processos formativos que trouxeram grandes benefícios para os professores em particular, e para as escolas em geral, enquanto espaços onde essa formação tinha impacto real. O Estatuto da Carreira Docente pode ser considerado o motor na procura de formação de nível de mestrado e doutoramento por parte dos professores e na sua consequente oferta pelas universidades, dado o reconhecimento que tal Estatuto lhes confere na carreira docente. A UMa não foge à regra e em 2001 abre o seu primeiro curso de mestrado destinado, fundamentalmente, a professores e educadores. O mestrado é da responsabilidade do Departamento de Ciências da Educação; enquadra-se na área das Ciências da Educação/Supervisão Pedagógica e tem lugar em colaboração com a Faculdade de Ciências de Educação da Universidade de Lisboa e da Universidade do Porto. Todos os mestrandos concluem o curso com aproveitamento e as dissertações apresentadas fornecem uma perspetiva crítica e reflexiva sobre diferentes âmbitos da realidade educativa regional. Seguiram-se mestrados em Inovação Pedagógica e Administração e Gestão Escolar, que devolvem às escolas professores mais aptos e capazes para o exercício de outras funções educativas, como a gestão dos estabelecimentos de ensino, a avaliação docente e a implementação de estudos centrados em problemáticas que emergem da situação das escolas e do sistema educativo. Aos cursos de mestrado seguem-se os doutoramentos em educação na área do Currículo e da Inovação Pedagógica, que também são procurados pelos professores. A par da formação inicial e por força da implementação do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, introduzido pelo dec.-lei n.º 139-A/90 de 28 de abril, em conjugação com o dec.-lei 409/89, de 18 de novembro – que aprova a estrutura da carreira do pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário e no art. 9.º estabelece as normas relativas ao seu estatuto remuneratório, definindo como um dos critérios para a progressão nos escalões da carreira docente a frequência com aproveitamento de módulos de formação –, a questão da formação contínua dos professores adquire uma grande dimensão, dada a importância que assume na garantia da sua progressão remuneratória. A formação contínua de professores, que durante muitos anos foi regularmente promovida pelas entidades com responsabilidades na educação na Madeira (desde a Secretaria da Educação às escolas, passando pelas diferentes associações profissionais de professores) através de ações de formação pontuais e de jornadas pedagógicas (com destaque para as jornadas organizadas pelo Sindicato dos Professores da Madeira), ganha estatuto legal em 1992, ano em que foi aprovado o 1.º regime jurídico da formação contínua de professores, pelo dec.-lei n.º 249/92, de 9 de novembro. Nele se definem os princípios a que deve obedecer esta modalidade de formação, as áreas sobre as quais deve incidir e as várias modalidades e níveis que deve assumir. Definem-se igualmente as instituições e as entidades vocacionadas para a formação de professores. É assim que, ao lado das instituições de ensino superior, surgem os Centros de Formação de Associações de Professores. As primeiras instituições que chamam a si a formação contínua de professores já nos moldes previstos no seu regime jurídico – formação creditada e acreditada pelo Conselho Coordenador da Formação Contínua de Professores, depois Conselho Científico-Pedagógico – são a Secretaria Regional de Educação, o Centro Integrado de Formação de Professores da UMa e o Centro de Formação do Sindicato dos Professores da Madeira. Sendo uma associação profissional, o Sindicato dos Professores da Madeira, no cumprimento da legislação em vigor, submete-se a um processo de acreditação que culmina a 14 de agosto de 1993 com a aquisição do 1.º certificado de acreditação do seu Centro. Este é o único Centro de Formação que, no plano regional, atinge tal objetivo. A sua primeira diretora foi a Prof.ª Isabel Sena Lino. Mais tarde, outras organizações profissionais de professores, através de protocolos com centros de formação do continente, promovem também ações de formação contínua – o que vem alargar o leque de formação, bem como o número de ações disponíveis. Surgem também as comissões de formação nas escolas, órgãos que dependem dos Conselhos Pedagógicos e que têm como missão divulgar e organizar formação para os professores da sua escola, em primeiro lugar, e de outras escolas, caso o número de vagas o permita. As várias revisões do Estatuto da Carreira Docente, do regime jurídico da formação contínua e de outros documentos legais que configuram a carreira docente, bem como a recessão económica que teve efeitos mais evidentes na economia no início de 2010, colocaram um travão à quantidade de oferta formativa disponível para a formação contínua de professores, que se tornou cada vez mais escassa e sujeita a apertados controlos financeiros. A oferta formativa da UMa, em cursos de mestrado e doutoramento em educação, manteve-se, mas a sua procura baixou significativamente nestes anos.     Fernando Luís de Sousa Correia (atualizado 31.01.2017)

Educação História da Educação

canovai, stanislao

Stanislao Canovai nasceu a 27 de março de 1740 em Florença, e nesta mesma cidade morreu a 17 de novembro de 1812. Foi um dos matemáticos e físicos mais famosos do séc. XVIII, e é considerado o iniciador da corrente científica que se afirmou na segunda metade deste século, nas Escolas Pias de Toscana. A par disto, Canovai foi considerado pelos seus contemporâneos um grande escritor, pela sua doutrina e pelo seu estilo preciso e eloquente. Estudou em Florença e Pisa, como iniciante na Ordem dos Esculápios, e em 1765, foi nomeado para a cátedra de Filosofia e Teologia no seminário episcopal de Cortona, onde lecionou Matemática durante 15 anos. Em 1768, interrompeu, por um período muito curto, o seu ensino em Cortona para ensinar Física matemática no colégio real de Parma. Em seguida foi chamado para ensinar Hidráulica no colégio florentino dos Esculápios. Publicou em Florença, com o editor Giovacchino Pagani, o volume Elogio di Amerigo Vespucci, che Riportò il Premio dalla Nobile Accademia Etrusca di Cortona nel dì 15 Ottobre dell'Anno 1788. Con una Dissertazione Giustificativa di questo Celebre Navigatore. A obra apresentava-se bem fundamentada e historicamente fundada. Canovai confrontou códices e publicações, e discutiu as escolhas e declarações de estudiosos anteriores, como Angelo Maria Bandini. A obra visava sobretudo considerar e enquadrar o significado cultural do empreendimento de Vespúcio num âmbito crítico e científico mais amplo, e acabou por provocar um debate animado. Canovai, como eminente cientista, queria estabelecer a jornada de Vespúcio de forma conclusiva, e, em particular, decidiu examinar as rotas, a fim de resolver a questão da longitude. A passagem pela Madeira era crucial, dado que a Ilha e o arquipélago eram um dos pontos geográficos fundamentais, tanto para os cálculos de Canovai, como para confirmar a verdade histórica das várias viagens de Vespúcio. Obras de Stanislao Canovai: Elogio di Amerigo Vespucci, che Riportò il Premio dalla Nobile Accademia Etrusca di Cortona nel Dì 15 Ottobre dell'Anno 1788. Con una Dissertazione Giustificativa di questo Celebre Navigatore (1798).   Valeria Biagi (atualizado a 28.01.2017)

Matemática