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lira, antónio veloso de

Autor de Espelho de Lusitanos em o Cristal do Psalmo Quarenta e Tres, Cuja Vista em Summa, Representa Este Reyno em Tres Estados, uma obra publicada no contexto da Restauração da independência do reino de Portugal, António Veloso de Lira nasceu na freguesia da Calheta, a 16 de junho de 1616. Segundo uma informação veiculada por Diogo Barbosa Machado, no vol. I da Bibliotheca Luzitana, António Veloso de Lira descendia de uma família nobre e era filho de Manuel Dias de Lira e de Mécia Rodrigues do Couto. Entre os eventos relevantes da sua biografia, além da composição da obra referida, em 1643, destaca-se a sua nomeação, em 1671, para cónego da Sé do Funchal. A sua passagem por Salamanca, onde cursou Teologia e Filosofia, documentada em Espelho de Lusitanos, proporcionou a Camilo Castelo Branco matéria para a escrita de um artigo intitulado “Estudantes Portugueses em Salamanca”, publicado em Cousas Leves e Pesadas. Seguindo o modelo genealógico da História de Portugal (c. 1580) de Fernão de Oliveira, no que concerne a uma mitificação das origens lusas com base na narrativa fundacional de Tubal, neto do patriarca bíblico Noé, Veloso de Lira estabeleceu, em Espelho de Lusitanos, um paralelismo entre o povo lusitano e o povo de Deus. Através da exposição ilustrativa do salmo n.º 43 (Deus auribus nostris audiuimos…), o autor pretendeu representar, como se indica em frontispício, o reino de Portugal em três estados: o estado desde as origens do país, com todas as felicidades e grandezas, até à morte de D. João III; o estado das calamidades e dos infortúnios começados em D. Sebastião e continuados pelo governo castelhano; e, por fim, o terceiro estado, ou as maravilhas obradas por Deus na feliz aclamação e restauração de D. João IV. Exaltando as qualidades das terras, dos recursos, do clima e das gentes, e acentuando a passagem de um tempo de conquistas e de glória a um tempo de usurpação, onde imperariam sobre a monarquia portuguesa “as calamidades infaustas” trazidas pela morte do “sempre lamentado Sebastião” e o subsequente consórcio com Castela (LIRA, 1753, I, 88-91), este texto insere-se na corrente da história providencialista portuguesa que tem na Monarquia Lusitana (1597-1632), uma obra composta por Bernardo de Brito e por António Brandão, os seus exemplos paradigmáticos. Assim, à narrativa dos tormentos que assolavam o país durante o domínio filipino, qual Israel no meio dos horrores babilónicos – um tempo em que “Ardia a má, e corrupta vontade castelhana […], procurando a ruína total de todos nós” (Id., Ibid., 165), e em que, refere o autor, “Muito é de sentir um Rei, e um ministro estranho; e o que mais eficaz é, que ignorando os estatutos, e leis donde governa, dá lugar a que seja industriado por ânimos, e ministros, a quem o interesse traz desencadernados: sendo estes os que como feros verdugos vendem suas pátrias” (Id., Ibid., 164) –, Veloso de Lira acrescentou a enumeração dos milagres e profecias pelos quais Deus sempre aliviou e confortou o reino de Portugal, da mesma maneira que, por intermédio de Isaías, Deus prometera ao seu povo o fim de todos os tormentos e todas as angústias. Entre esses vaticínios são trazidos à colação a narrativa do milagre de Ourique, a profecia do Sepulcro de S. Tomé, a profecia de S. Metódio e ainda as trovas de Bandarra. O documento forjado das Cortes de Lamego, usado como justificação da legitimidade da Coroa portuguesa, também foi convocado neste contexto. Revestindo-se, pois, de um forte teor de exaltação nacionalista, com base no texto bíblico, a que se juntam, em comentário paratextual, referências a autores como Virgílio, Plutarco, Políbio, Lucano, Orósio e António Brandão, Espelho de Lusitanos termina com uma apoteose do destino lusitano, na aclamação de D. João IV, conferindo um sentido histórico às tribulações que haviam assolado o reino e o império de Portugal. A Restauração do trono português testemunhou, desta maneira, o esplendor do poder e da misericórdia divinos, que sempre acompanhou este povo, como nação “da honra de JESU[S] Cristo mais zelosa, […] que por seu nome maiores cousas obrasse” (Id., Ibid., 55). De notar, na parte final do texto, a inserção de um capítulo em que Veloso de Lira revela o seu testemunho pessoal relativamente às contendas entre Portugueses e Espanhóis no momento da aclamação de D. João IV, vistas a partir de Salamanca, onde estudava e residia em 1640. Barbosa Machado atribui ainda a este autor a composição dos seguintes títulos: Politica Christiana (dirigido a Filipe IV), Zodiaccus Ecclesia, Stella Matutina in Medio Nebula, Domus Sapientiae, Philosofia Muta, Glossa Sobre os Evangelhos, e Antiguidades da Ilha da Madeira, uma obra também intitulada Ubi Troya Fuit e pronta para a impressão no ano de 1658. Veloso de Lira morreu no Funchal, no ano de 1691. Obras de António Veloso de Lira: Espelho de Lusitanos em o Cristal do Psalmo Quarenta e Tres, Cuja Vista em Summa Representa Este Reino em Tres Estados (1643).     Marta Marecos Duarte (atualizado a 14.12.2017)

Literatura

júnior, daniel josé de frança

Daniel José de França Júnior (1906-1973) foi um poeta popular, natural de São Vicente, onde era conhecido como o “Poeta do Lanço” ou o “Poeta”. Era agricultor e escrevia, à noite, as suas histórias em verso; contudo, perderam-se muitos dos seus registos literários. Os versos que foram possíveis recuperar foram compilados em 2011, no opúsculo História da Guerra de 1939 e a Paz de 1945, de edição póstuma, pela Câmara Municipal de São Vicente, em colaboração com a família do poeta. Palavras-chave: “Poeta do Lanço”; Poesia Popular; São Vicente; Cultura e Tradições populares.   Daniel José de França Júnior foi um poeta popular madeirense. Nasceu a 27 de novembro de 1906, no Sítio do Passo, freguesia e concelho de São Vicente, situado na costa norte da ilha da Madeira, e faleceu a 17 de julho de 1973, na sua residência, no Sítio do Lanço, vítima de uma queda. Era filho de Daniel José de França, lavrador de condição, e de Teresa Joaquina Rosa, doméstica. Casou-se com Maria de Jesus, também natural de São Vicente, a 16 de junho de 1932, de quem teve 10 ou 12 filhos, dos quais sobreviveram apenas 3 (Teresa de Jesus de França, Belmiro José de França e António José de França). Aos 17 anos, foi com o pai e o irmão para o Brasil, designadamente para a cidade de Santos, onde esteve emigrado. Regressou algum tempo depois à Madeira e dedicou-se à agricultura, atividade que ocupava o seu quotidiano. À noite escrevia poemas e as suas histórias em verso, que aos domingos declamava no adro da igreja. Por vezes também improvisava alguns versos, quando encontrava alguém no seu caminho. Em São Vicente era conhecido como o “Poeta do Lanço” ou o “Poeta”. Num poema autobiográfico, o poeta dá-se a conhecer desta forma: “Eu sou um pequeno poeta do Sítio do Lanço / chamo-me Daniel José de França / moro acima da levada / como batatas graúdas /e feijão de grafada” (JÚNIOR, 2011, 4). Enquadrando-se na “literatura popular escrita tradicionalista”, segundo a nomenclatura proposta por João David Pinto-Correia (PINTO-CORREIA, 1985, 391), a ação destruidora do tempo fez desaparecer boa parte dos seus registos literários em folhas volantes. Ainda assim, o interesse do poder local por esse património literário permitiu resgatar alguns textos. Daniel José de França Júnior descreveu em verso vários acontecimentos relacionados com a Segunda Guerra Mundial, com o título de “História da Guerra de 1939 e a Paz de 1945”. Neste longo poema, narra de modo original factos históricos, expostos de forma simples e fáceis de entender pelo povo. O poema é composto por 104 quadras e segue o esquema de rima alternada (abcb). Começa por pedir licença para contar a história, declarando que tem pouca habilidade. Considera a data de setembro de 1939, para falar do início da Guerra, e evocar as grandes lutas travadas por mar, ar e terra, bem como os sofrimentos causados à humanidade. É uma história de dor, de miséria e de fome, passada nas várias nações que estavam envolvidas no conflito. Fala dos milhares de mortos ocorridos, menciona o choro dos órfãos e das mulheres que ficaram viúvas e salienta a dor causada pela separação de filhos ou maridos, que partiam para a guerra com a convicção de que iriam morrer. Indica os meios usados nos combates, como os transportes (aviões, barcos) e as armas (granadas, bombas, canhões), referindo ainda os recursos que iam faltando, como o petróleo e a gasolina. Anuncia um cenário de destruição nos campos de batalha, mas também no mar, com navios afundados, muitos carregados de comida, e marinheiros que morriam nas águas. Refere alguns episódios, nomeadamente ataques da Alemanha à Polónia e outros bombardeamentos e ofensivas alemãs a diversas cidades, causando destruição e milhares de mortos. Além de considerar a Alemanha causadora da Guerra Mundial, o poeta menciona também as mulheres germânicas que ingressaram no exército, para combater ao lado dos homens, e lembra a figura de Hitler como responsável pelo sofrimento de muitos pais e filhos. Nas quadras finais, o vate popular avança com a data de 5 de maio de 1945 como o dia em que chegou a paz a muitas nações. Este poema foi publicado em 2011, no livro História da Guerra de 1939 e a Paz de 1945, pela Câmara Municipal de São Vicente, em colaboração com a família do “poeta do Lanço”. O opúsculo, lançado no dia 24 de agosto de 2011, no âmbito do programa das Festas de São Vicente, reúne ainda algumas quadras soltas de Daniel José de França Júnior, resultado da compilação que foi possível resgatar. Destes poemas, destaque-se os versos que escreveu sobre o Funchal, onde salienta alguns locais e detalhes relacionados com aqueles pontos da cidade, provavelmente resultantes das suas impressões pessoais: “No meio das pedras brancas, / p’ra não acontecer mal, / são umas passagens livres / lá nas ruas do Funchal. // Da Pontinha para o Cais / e do Cais para a Cidade, / é um grande brilho / que faz, a sua eletricidade. // Da Pontinha para o Cais / e do Cais para a Pontinha, / onde descarregam o milho / e de lá sai a farinha. // Ao chegar à cidade / uma estátua é a primeira / é João Gonçalves Zarco / o descobridor da Madeira” (JÚNIOR, 2011, 13). Obras de Daniel José de França Júnior: História da Guerra de 1939 e a Paz de 1945 (2011).   Sílvia Gomes (atualizado a 18.12.2017)

Literatura

jogos florais

Os jogos florais, conhecidos como “floralia”, eram festividades religiosas consagradas à deusa grega Flora, divindade que reinava sobre as flores dos jardins e dos campos, no mês que corresponde a abril do calendário romano. Segundo alguns estudiosos, nestes jogos, as cortesãs participavam dançando, sendo a vencedora coroada com um ramo de flores. Ao longo dos tempos, a forma de celebração dos jogos florais mudou. Na Baixa Idade Média, deu-se a instituição dos jogos florais como se tornaram posteriormente conhecidos, ou seja, como competições literárias. No ano de 1323, em Toulouse, França, segundo a tradição, um grupo de jovens poetas, com o desejo fazer renascer o brilhantismo da língua d’Oc e mantê-la em uso (mais tarde conhecidos pelos “mantenedores”), decidiram organizar uma competição das suas composições nessa mesma língua. No séc. XVIII, Luís XIV institui a Academia dos Jogos Florais com o objetivo de manter as tradições culturais da região e promover a criação literária. O aparecimento dos jogos florais em Portugal data de fevereiro de 1936. A Emissora Nacional, com o propósito de comemorar os 10 anos da revolução nacional que levou ao poder a ditadura do Estado Novo, lança ao público os primeiros jogos florais. Os autores podiam concorrer nas áreas da prosa e poesia, cada uma nas suas mais variadas formas, sendo dada maior importância à poesia e prosa que exaltasse nos versos o orgulho da pátria e o ser português. Os jogos florais em Portugal gozaram de grande vitalidade e visibilidade na época como grande evento público, em cuja comissão de honra apareciam as mais importantes figuras do Estado, sendo as obras vencedoras lidas nas emissões radiofónicas da Emissora Nacional. Na ilha da Madeira, a iniciativa dos jogos florais foi lançada pelo periódico Eco do Funchal, no dia 21 de setembro de 1941. O principal impulsionador e organizador dos primeiros jogos florais da Madeira foi o jornalista e poeta César Pestana (Pausania) que, conjuntamente com o diretor do Eco do Funchal, José da Silva, organizou o concurso literário tendo como modelo os primeiros jogos florais realizados pela Emissora Nacional e o Secretariado de Propaganda. Segundo o regulamento do concurso, os jogos florais da Madeira constituíam uma competição que tinha como objetivos valorizar a poesia madeirense e fomentar o cultivo das letras entre os poetas da Ilha. Os poetas podiam participar com as suas composições em quatro modalidades poéticas: soneto, quadra, poemeto e glosa. Na criação da glosa, eram obrigados a escrever composições com a seguinte mote: “Não canto por bem cantar/Nem por bem cantar o digo:/Canto só para espalhar/Mágoas que trago comigo”. Foram atribuídos três prémios para cada modalidade poética. O primeiro e o segundo prémio equivalia a uma flor e o terceiro a uma menção honrosa. O soneto vencedor do 1.º prémio receberia um Lys de Oiro e o do 2.º prémio um Lys de Prata. A quadra vencedora do 1.º prémio receberia um Cravo de Oiro e a do 2.º prémio um Cravo de Prata. O poemeto ao qual fosse atribuído o 1.º prémio receberia uma Túlipa de Oiro e o do 2.º prémio uma Túlipa de Prata. A glosa teria como 1.º prémio um Malmequer de Oiro e como 2.º prémio um Malmequer de prata. Nos números seguintes do Eco do Funchal foram sendo publicadas regularmente as poesias que em grande número afluíam à redação do jornal, gerando enorme entusiasmo entre a intelectualidade madeirense da época. Um entusiasmo que teve eco nos jornais do continente e dos Açores, sendo largamente transcrito um artigo escrito no Comercio do Porto a louvar a iniciativa, mas criticando a falta de empenho da Câmara Municipal e da presidência de Fernão de Ornelas em reunir as poesias num volume. O mesmo entusiasmo não chegou aos dois jornais diários madeirenses, que se manterão em silêncio relativamente à iniciativa do Eco do Funchal. No dia 18 de janeiro de 1942, o Eco do Funchal dá por encerrado a receção e publicação dos trabalhos, com um total de 75 poetas e poetisas, que concorreram com 30 sonetos, 37 quadras, 35 poemetos e 36 glosas, num total de 138 poesias inéditas. O júri que procedeu à leitura e avaliação dos primeiros jogos florais da Madeira foi constituído por cinco personalidades da sociedade madeirense, Eugénia Rego Pereira, Cón. António Homem de Gouveia, Jaime Vieira Santos, João Velez Caroço e Manuel Higino Vieira. A declamação dos poemas vencedores ficou a cargo da poetisa Idalina Salvador (Inah). A sessão solene para a entrega dos prémios dos jogos florais realizou-se no Ateneu Comercial do Funchal, no dia 12 de novembro de 1942. No sarau literário, reuniram-se as mais altas individualidades, contando com a presença, entre outros, de A. Branco Camacho, chefe do gabinete do governador do distrito, de Alberto Araújo e de Eduardo Homem de Gouveia e Sousa. Na sessão solene, celebraram-se várias iniciativas de cariz artístico antes da entrega de prémios aos concorrentes e da recitação dos poemas vencedores. Nas várias categorias poéticas, os grandes vencedores dos primeiros jogos florais foram: no soneto, Humberto Nunes da Silva com o poema “Filha”; na quadra, um poeta que permaneceu anónimo; no poemeto, Viterbo Dias, com o poema “Ilha da Madeira”; e na glosa, Abel Nunes com “Glosa n.º 9”. Deste primeiro concurso ressalva-se a promessa, por parte dos organizadores, da edição de um volume das melhores composições poéticas dos primeiros jogos florais da Madeira. No entanto, apesar do sucesso dos primeiros jogos florais do Eco do Funchal, a organização do concurso literário não voltaria a ter o apoio desta empresa, passando assim a ser organizados pelo Ateneu Comercial do Funchal. A 27 de agosto de 1945, o Diário de Notícias da Madeira anuncia a realização dos jogos florais pelo Ateneu do Funchal, presididos por Luiz de Sousa, com o objetivo de movimentar e tornar conhecidas as obras dos escritores madeirenses. No quadro organizativo da prova literária, encontravam-se como colaboradores Horácio Bento Gouveia e Manuel Silvério Pereira. As modalidades literárias em que os autores podiam participar eram o conto, o conto infantil, o soneto, a poesia alegórica à Madeira, a quadra popular, o poema filosófico e o poema lírico. O júri dos jogos florais do Ateneu Comercial do Funchal era constituído pelo presidente da instituição, Alberto Jardim, e por Ernesto Gonçalves, Horácio Bento de Gouveia, Jaime Vieira Santos e Marmelo e Silva. Os prémios atribuídos aos vencedores eram de valor monetário e, conforme a modalidade literária, iam dos 1.000$00 aos 300$00. A cerimónia solene de encerramento dos primeiros jogos florais do Ateneu Comercial realizou-se no dia 23 de maio de 1946, no edifício da associação recreativa e cultural, à semelhança do encerramento dos primeiros jogos florais do Eco do Funchal. Na cerimónia, discursaram o presidente do Ateneu Comercial do Funchal, Luiz de Sousa, Alberto Jardim e Jaime Vieira Santos; seguiu-se a entrega dos prémios aos vencedores nas várias categorias. Os primeiros classificados nas diversas modalidades literárias foram: no conto, “A última luz da candeia tem três bicos”, por Manuel dos Canhas, pseudónimo de Elmano Vieira; no conto infantil, o prémio foi para “Viagem ao Polo”, por Maria de Roma, pseudónimo de Lisetta Zarone D’Arco Vieira; na poesia alegórica à Madeira, o vencedor foi Silvado Prado, pseudónimo de Manuel Silvério Pereira, com o poema “Madeira”; na categoria do soneto, o vencedor foi Florival dos Passos, que assinou como Emanuel Jorge; no poema filosófico, o prémio foi para Humberto Nunes da Silva, Plauto, com o poema “Carta”; na poesia lírica, o vencedor foi António Jorge Gonçalves Canha, com o poema “Voltar à Escola”. Por fim, na categoria da quadra popular, foi A. Cílio, pseudónimo de Aurélio Nelson Pestana, o vencedor. Nos jogos florais do Ateneu Comercial do Funchal destacou-se a presença feminina entre os laureados do torneiro literário: o primeiro prémio para a modalidade de conto infantil foi ganho por Lisetta Zarone D’Arco Vieira e, na modalidade de poesia alegórica à Madeira, J. Crus Baptista Santos, com o nome de Ana Rosa, ganhou uma menção honrosa com o poema “Poesia à Madeira”. A tradição dos jogos florais na Madeira conta com dois momentos importantes, ou dois inícios por assim dizer, o Eco do Funchal inaugura a novidade da competição literária na Ilha e o Ateneu Comercial do Funchal continua com a competição dando-lhe um novo e renovado impulso até ao último quartel do séc. XX.     Carlos Barradas (atualizado a 18.12.2017)

Literatura Sociedade e Comunicação Social

nogueiras, viscondessa das

(Funchal, 1805-Funchal, 1888) Poeta e escritora, Matilde Isabel de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt foi autora de poemas longos e sentimentais, entre eles, “A Mulher Poeta”, “Uma Noite de Luar”, descrição romântica de fenómenos da natureza e “O Rouxinol”. Estes trabalhos revelam bem o modo empolgante como interrogava a existência através da poesia. Palavras-chave: poesia; literatura. Matilde Isabel de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, conhecida como viscondessa das Nogueiras, nasceu no Funchal, a 14 de março de 1805, e faleceu no seu solar, na mesma cidade, a 23 de dezembro de 1888. Era filha de José Joaquim de Vasconcelos e de Francisca Emília Teles de Meneses. Casou-se com Jacinto de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, 1.º visconde das Nogueiras, com quem teve dois filhos: Jacinto Augusto de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, que veio a ser 2.º visconde das Nogueiras e ministro de Portugal em Washington, nos E.U.A., onde acabaria por morrer (sem que sua mãe tivesse conhecimento), e Matilde Lúcia de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt. Foi avó de Matilde Sauvayre da Câmara e de Celina Sauvayre da Câmara, autora de De Nápoles a Jerusalém (1899), e cunhada de Maria do Monte. Fruto de uma educação privilegiada, enriquecida no decorrer dos anos por um constante amor ao trabalho, sabia falar e escrever corretamente francês e inglês, tinha bons conhecimentos de italiano e cultivava a música e o canto, embora fosse uma amadora. Pertencente às mais distintas famílias madeirenses, era uma senhora de claros dotes poéticos, que desde muito nova se interessou pela literatura. Nos últimos anos da sua vida, devido a uma saúde débil, dedicou-se mais intensamente à tradução e à poesia. Colaborou com artigos e poemas na imprensa portuguesa e em revistas literárias do estrangeiro. Foi umas das primeiras mulheres a escrever para o Almanaque Luso-Brasileiro de Lembranças. “‘Suaves Modestos Sons’ – Mulher e Poesia na Imprensa Madeirense da Segunda Metade do Séc. XIX”, de Luísa Marinho Antunes, é fonte importante de pesquisa no que diz respeito à sua colaboração na imprensa periódica. Constam composições da viscondessa das Nogueiras nas coletâneas Flores da Madeira, Album Madeirense e na obra Prelúdios Poéticos de J. Ramos Coelho. O escritor e poeta Bulhão Pato, que nos cantos VI e VII do seu poema “Paquita” faz uma bela descrição poética da Madeira, foi amigo íntimo do 2.º conde do Carvalhal e de Jacinto Augusto de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, 2.º visconde das Nogueiras, filho da viscondessa, e em sua companhia passou várias temporadas na Ilha, entre 7 de agosto de 1850 e 6 de março de 1851. A isso se refere em alguns dos seus livros com saudosa recordação. Em Sob os Ciprestes e nos três volumes das suas Memórias, ocupa-se de algumas pessoas e assuntos relacionados com madeirenses. Encontram-se ali largas e elogiosas referências não só ao conde do Carvalhal, mas também à viscondessa das Nogueiras, nomeadamente aos seus versos sentimentais e à sua prosa. Há registos bibliográficos dos seguintes títulos e traduções suas: Diálogos entre uma Avó e sua Neta, a sua obra principal, aprovada pelo Conselho Geral de Instrução Publica para as Escolas Oficiais e editada em Lisboa, pela Imprensa Nacional, em 1862; o romance O Soldado de Aljubarrota, publicado em 1857; Eurico le Prêtre, de Alexandre Herculano, tradução de Eurico, publicada em Paris, no ano de 1888, por iniciativa do príncipe Nicolau de Oldenburgo, que tivera ocasião de conhecer o respetivo manuscrito, tendo em conta que privava com os viscondes das Nogueiras e, assim, leu no solar da R. da Mouraria e achara excelente a tradução; Historia de Santa Monica. Por Monsenhor Bougaud, que foi a sua última tradução para português, pelo Centro de Propaganda Catholica em Portugal, e teve direito a uma segunda edição, em 1888, pela Guimarães; Castelãs de Roussilon, também uma tradução da obra do abade de Bougaud; Genoveva, traduzido de Lamartine; “Nota ao Mês de Maio”, que surge na tradução dos Fastos de Ovídio, pelo visconde de Castilho. A viscondessa das Nogueiras, como refere Bulhão Pato nas Memórias e, depois, o visconde do Porto da Cruz, era reconhecida também pela sua gentileza, possuindo, com efeito, um singular talento que, noutro meio com recursos menos limitados, poderia certamente ter conquistado um nome ilustre na história da literatura portuguesa. Poemas longos e sentimentais como “A Mulher Poeta”, “Uma Noite de Luar”, uma descrição romântica de fenómenos da natureza, e “O Rouxinol”, este último transcrito por Luís Marino na obra Musa Insular, revelam o modo empolgante como interrogava a existência através da sua poesia. Os seus restos mortais repousam no cemitério das Angústias. Obras de Matilde Isabel de Santana Vasconcelos Moniz: O Soldado de Aljubarrota (1857); Diálogos entre Avó e sua Neta (1862); “O Romance Bermudo e a Mesa de Prata de D. Dinis” (1879); Poemas (2013).   António José Borges (atualizado a 03.03.2018)

Literatura

falar(es) na escrita

As duas faces de uma língua viva Constituída por uma vertente oral e outra escrita, uma língua é, por princípio, bifacial. Contudo, nem sempre os dois lados coexistem. Se for uma língua viva, a face oral, tem-na por inerência, mas pode não contemplar a escrita. Os crioulos cabo-verdianos constituirão um caso paradigmático disso mesmo, embora a situação se esteja a alterar com a tendência crescente para a fixação da fala do criouléu cabo-verdiano de Santiago, divergente, por exemplo, do de São Vicente. Se se tratar de uma língua morta, sucederá o inverso. É assim com a língua latina, que, grosso modo, subsiste apenas na escrita. Pela sua prolífera cisão, esta deu origem às línguas românicas, que, inicialmente, eram apenas faladas e que, por razões históricas, ganhando dimensão nacional ou regional, se tornaram, na sua maioria, escritas. A língua portuguesa, com 800 anos de história contados a partir do Testamento de D. Afonso II, datado de 1214, é exemplificativa de uma língua latina com escrita fixada, havendo percorrido um longo percurso para o efeito. Todavia, há línguas que estavam mortas e que voltaram a ganhar vida, ou seja, readquiriram uma vertente oral. Foi o que aconteceu com a hebraica, aquando da criação do Estado de Israel. É possível contar com outras línguas que nunca foram escritas e que desapareceram ad aeternum com a extinção da sua comunidade de falantes (cf., p. ex., DN, 7 fev. 2011, 49). Algumas mantêm-se vivas pontualmente, como os versos sânscritos recitados em exercícios de ioga. Neste conjunto de línguas, seria igualmente viável inserir o latim, já que a Santa Sé o usa ocasionalmente, sendo a sua língua oficial, embora o italiano a substitua em grande parte das ocasiões em que é indispensável recorrer a um registo linguístico de viva voz. Assim sendo, compreende-se que a dinâmica de um idioma é dada pelo facto de ele ser falado, usado na comunicação diária dos membros de uma comunidade. Esta evidência reencontra-se na relação dos termos “comum”, “comunidade” e “comunicação”, ao integrarem a mesma família. Entre línguas naturais mortas (desaparecidas ou conservadas), ressuscitadas e vivas, a relação entre as suas duas faces, os dois registos, é incontestável. Podem esses dois lados (ou apenas um deles) encontrar-se num estado latente/implícito (sem escrita ou sem oralidade) ou patente/explícito (com escrita e com oralidade). No geral, é à comunidade de falantes (os usuários das línguas numa ou nas duas facetas) que cabe decidir o que pretende fazer. Acontece que, nas trocas linguísticas quotidianas, a variedade da língua empregue raramente corresponde, com completude, à que está padronizada nos dicionários e nas gramáticas, nos compêndios e nos prontuários, já que os membros de uma comunidade vão recorrendo quer a diversos níveis da linguagem, consoante as situações de comunicação em que se encontram – das mais formais às mais informais –, quer a variedades sociais ou diatópicas com cunho específico. É preciso ter em conta que estas últimas recebem a influência da área geográfica onde os falantes nasceram e vivem ou onde passaram a residir, sem aí terem nascido. Assim, sucede que na Região Autónoma da Madeira (RAM) se fala de uma maneira que não é integralmente comum à do restante território nacional, embora também se recorra, nesta área geográfica insular, à variedade padrão, de modo mais premente na escrita documental e oficial. Compreende-se, consequentemente, a razão por que a variedade regional tem somente registo oral, não possuindo nenhum registo escrito oficial. É famosa a frase “O grade azougou e foi atupido na manta das tenerifas”, apresentada como um exemplo ilustrativo do falar regional usado pela população, sendo incompreensível a quem seja de fora, isto é, estranho à comunidade. Aliás, vão-se divulgando textos escritos “à madeirense” (incluindo do Porto Santo: cf., p. ex., ROSADO, 2003). É também esta a ideia que perpassa, por exemplo, no texto “Linguagem Popular da Madeira”, da obra homónima (SILVA, 2013, 23-27), e na crónica “Falares Ilhéus” (JARDIM, 1996, 23-24). No arquipélago, é frequente ouvir dizer, mesmo numa situação formal de comunicação, que determinada tarefa leva “horas de tempo” (“Esse trabalho leva duas horas de tempo”), mas a expressão não se deverá escrever, já que, no plano da escrita, vigorará a norma que aceita unicamente “horas” (“Esse trabalho leva duas horas”). Esta discrepância é fácil de entender, visto que as entidades que controlam o idioma, nomeadamente no que se refere ao ensino, para o manterem homogéneo, o mais uniformizado possível, optaram por uma grafia única, a da norma, um padrão imposto às restantes variedades. Assim, a qualidade bifacial do Português assume, do lado da escrita, à partida, a invariabilidade, mas reconhece, do lado da fala, a variabilidade. Infere-se, daí, que a norma é a única variedade com menos variação. Todavia, a este propósito, sublinhe-se que a definição de “norma” pode não ser unânime. Embora este conceito tenha uma base incontestável, quando a definição remete para “que serve de modelo, de padrão”, foi posto em causa, ultimamente, devido à população referencial que a consubstancia. A que falantes corresponde a norma? Reporta-se aos mais instruídos, sejam eles de que parte do país, e do mundo, forem? Tem origem, em exclusivo, nos falantes mais escolarizados (estrato social médio-alto) de uma área geográfica precisa (Lisboa ou Coimbra-Lisboa)? Para o Português Europeu, equivaleu à variedade usada pela classe alta do eixo Lisboa-Coimbra, e para o Português do Brasil, à das classes altas do Rio de Janeiro (CUNHA e CINTRA, 1995). Como já referido, este conceito de cariz social e geográfico tem sido alvo de alguma refutação, estando, claramente, a ser reequacionado (cf., p. ex., EMILIANO, 2009), o que é compreensível numa sociedade do séc.XXI que, pesem embora as enormes desigualdades sociais, tende para a existência de uma classe média mais forte, com diminuição dos extremos no que toca ao poder económico. Este é, pelo menos, o cenário generalizado na sociedade ocidental. Esquecendo, momentaneamente, a problemática colocada pelo conceito de “norma linguística” e centrando a temática na questão das variedades, sabe-se que, habitualmente, os falantes regionais dominam, pelo menos, duas variedades linguísticas: a exógena (a normativa) e a endógena (a nativa). Diz-se, então, que existe um fenómeno de diglossia, muito semelhante ao bilinguismo. Torna-se evidente, porém, que isso se aplica em exclusivo ao registo oral, uma vez que, na escrita, predominará a ortografia estabelecida para a língua oficial. Por exemplo, num bilhete para um familiar, um madeirense poderá escrever algo como “Vamos ir lalá lalém com Maria. Junta a mochilha!”, hesitando na grafia de “lalá”: “lá-lá”/“lá lá” e de “lalém”: “l’além”/“lá-além”/“lá além”. Todavia, se ele tivesse de transmitir esta mensagem a alguém que não fosse da mesma variedade diatópica, encontrando-se, além disso, numa situação de comunicação que requeresse adequação linguística, deveria alterá-la, adaptando-a com uma proposta como “Vamos dar um passeio acolá com a Maria. Apanha a mochila!”. Numa comparação geral destas duas possibilidades, observa-se que as divergências existentes entre o registo exógeno e o endógeno são substanciais e mereceriam a elaboração de um dicionário (Regionalismos Madeirenses) e de uma descrição gramatical (REBELO, 2014a). Esta deveria dar conta de todas as marcas linguísticas que individualizam a variedade regional a nível da Fonética, da Morfologia, da Sintaxe e da Semântica, incluindo os outros campos dos Estudos Linguísticos, o que os vários trabalhos existentes, de que fazem parte as dissertações académicas, tenderam a fazer de modo parcial. Fica claro que a norma de uma língua viva tem uma vertente oral e uma escrita, mas tal não sucede com as variedades diatópicas, uma vez que possuem unicamente, em termos oficiais, registo oral. Pontualmente, quando se vê escrita nas mais diversas situações de comunicação, nem sempre, por diversas razões, é evidente a variante a fixar (REBELO, 2014b). Aliás, as corruptelas, ou seja, “pronúncia ou escrita de palavra, expressão, etc. distanciada de uma linguagem com maior prestígio social” (HOUAISS, 2001), presentes nas entradas de vocabulários e glossários são prova disso mesmo. Com frequência, surgem na imprensa (cf. os jornais regionais publicados diária ou semanalmente na RAM) hesitações. É o caso de “persiana”, um vocábulo que não se usa no arquipélago e que é, sistematicamente, substituído pelo termo tido como regional “tapa-sol” ou “tapassol”, parecendo difícil escolher entre uma ou outra variante. Acontece de igual modo com muitos outros termos registados nos vocabulários existentes (cf. RIBEIRO, 1929; SILVA, 1950; SOUSA, 1950; PESTANA, 1970; e CALDEIRA, 1993, entre outros). Esta variação gráfica assinala-se, inclusive, nos estudos linguísticos, como os de Käte Brüdt (1938) e de Millet Rogers (1940, 1946 e 1948), que anotaram as palavras da forma como as ouviram pronunciadas pela população. A audição com apontamento foi a metodologia seguida por grande parte dos estudiosos da variedade insular madeirense. Aliás, estes dois investigadores, como quase todos os outros dos três primeiros quartéis do séc. XX, arranjaram uma transcrição sui generis para grafar a dinâmica da fala madeirense (REBELO, 2002b). Este método de registo do(s) falar(es) faz lembrar o da “pronúncia figurada” (REBELO e SANTOS, 2013, submetido), que se empregou extensivamente antes de haver alfabeto fonético internacional. Veja-se o seguinte exemplo para “vinho”, evidenciando a diferença entre a pronúncia figurada, como a expressa em “vâinho” (BRÜDT, 1937-1938), e uma transcrição fonética que se poderá considerar equivalente: ['vɐjɲu]. Sinteticamente, a expressão “pronúncia figurada” significa aquilo que os termos constituintes evidenciam, ou seja, é a representação escrita (figurada), através das letras do alfabeto latino e de determinados sinais adicionais, como acentos gráficos, usada para poder ser reproduzido por meio da leitura (articulação) um modo de dizer (pronúncia) de uma língua estrangeira ou de uma variedade geográfica. A única face visível da variedade diatópica madeirense A variedade insular madeirense, no seu todo, tem, consequentemente, patente a face oral, uma vez que é exteriorizada através da verbalização, e latente (invisível) a faceta escrita, dado que não possui gramática oficial, nem ortografia definida. O mesmo se verifica para as restantes variedades regionais portuguesas ou para as outras realidades não diatópicas lusófonas, como as africanas ou as asiáticas. Podem existir estudos que descrevam ou registem particularidades da oralidade das variedades, mas são restritos e pontuais. Aliás, a “transcrição alinhada” que acompanha as gravações dos CD’s Português Falado (BACELAR DO NASCIMENTO, 2001) normaliza consideravelmente a vitalidade da fala, distanciando-a bastante da grafia que surge a acompanhar o registo oral dos falantes gravados. Porém, esta situação tem vindo a ser alterada, dando-se visibilidade ao registo da variedade, como aconteceu para São Vicente (cf. FREITAS, 1994), embora não se tenha acesso às gravações realizadas pela pesquisadora. Quase todos os trabalhos, incluindo os académicos, curiosamente, facultam o registo escrito (transcrição), mas não dão o registo oral gravado que motivou a transcrição, sucedendo o mesmo com os trabalhos dos atlas linguísticos (REBELO e NUNES, 2009), em que apenas se publica a transcrição fonética dos termos cartografados. É assim desde o início das investigações, mas ressalva-se que, antigamente, os meios técnicos eram praticamente inexistentes. Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo e Lindley Cintra interessaram-se pelo estudo da variação diatópica portuguesa, procurando atestar (por escrito) estas realidades linguísticas ultradinâmicas. Quanto à existência de uma única variedade madeirense ou de muitas, uns preferem o singular (VASCONCELOS, 1901, 1970) e outros o plural (CINTRA, 1990, 2008). Escreveu Lindley Cintra que “[...] não parece certo afirmar sem hesitação que o grupo de dialetos madeirenses (como, aliás, os açorianos) pertence ao grupo dos dialetos meridionais do continente, como também será inexato associá-los sem reservas ao grupo dos setentrionais. Misturam-se neles características próprias de ambos os grupos, o que obriga a situá-los num grupo à parte – ‘insular’. Dentro desse grupo os dialetos madeirenses isolam-se dos restantes devido à existência, que procurei rapidamente apresentar, de fenómenos raros, ausentes dos dialetos de outras ilhas, do continente e por vezes até – podemos acrescentar – do resto daquilo a que chamamos România” (CINTRA, 2008, 104). No entanto, apesar de optar pelo plural, não os identifica, nem os localiza. Indicar, unicamente, diversas particularidades não parece suficiente para justificar a existência do plural “dialetos madeirenses”. Foi testado o reconhecimento auditivo da variação na variedade insular madeirense (REBELO, 2011) e comprovou-se que dificilmente os ouvintes conseguem identificar, simplesmente pelo falar, a origem regional dos falantes. Assim, por falta de provas e de estudos consistentes sobre este assunto, opta-se por referir a variedade no geral e, consequentemente, no singular. Aliás, a designação “madeirense” (até prova em contrário) serve perfeitamente para o efeito, fazendo equivaler a linguagem regional ao identificativo do habitante (língua e gentílico), como acontece com a maioria das línguas vivas (REBELO, 2014a). Antes de os estudos pós-saussurianos centrarem a análise linguística na parole (fala), em vez de se concentrarem na langue (língua), os filólogos debruçavam-se sobre os textos escritos, em especial os literários. Deles colhiam informações pertinentes para o estudo da langue, em particular da sua diacronia e história. Criando-se a Linguística como disciplina científica, o que passa a interessar não são os textos fixados em suportes deterioráveis como o papel, mas a riqueza sincrónica da fala multivariável, com um suporte físico “imaterial” (o ar). Este afastamento da escrita levou os especialistas da linguagem, sobretudo os dedicados à análise da fala, num plano sincrónico, a olvidarem totalmente os registos literários. Ora, para os linguistas que têm procurado estudar o português falado na RAM, através de transcrições e de gravações, é de todo conveniente observar, igualmente, os contributos dos escritores regionais. No séc. XX, sobremaneira na primeira metade, indo mesmo aproximadamente até à déc. de 70, as transcrições linguísticas presentes em dissertações de licenciatura, e noutros trabalhos académicos, como se referiu, não diferiam muito das propostas presentes em textos literários, nos diálogos de personagens tipicamente regionais, estando ambos (trabalhos académicos e textos literários) muito próximos do método da “pronúncia figurada”. A descrição da fala regional importa aos estudiosos da linguagem e a um número considerável de escritores, embora numa abordagem menos científica do que a que orienta um linguista. Logo, é a Literatura que vai permitir registar a escrita do modo regional de falar, mesmo se algumas produções literárias não têm seguido esta via, o que aconteceu na recolha de contos populares (FREITAS, 1996) ou de rimances (FERRÉ e BOTO, 2008). Não se almeja, no entanto, abordar a questão da “Literatura Madeirense” (cf., p. ex., HOMEM, 1999 e SANTOS, 2007, 2008), mas tão-somente valorizar, para o falar da variedade madeirense na escrita, o contributo de textos literários de alguns escritores, mais ou menos conhecidos, consagrados ou não, relevantes ou insignificantes quanto ao cânone literário (SANTOS, 2008). A escrita da variedade madeirense: a relevância do texto literário Em termos linguísticos, se o português falado na RAM é apenas unifacial por possuir exclusivamente a face oral, quando olhado sob o prisma literário, torna-se bifacial. Contudo, a dimensão escrita que adquire não é ortográfica, mas fonográfica ou grafofónica (REBELO, 2013 e 2014, no prelo). Estes dois últimos termos estabelecem uma íntima relação entre a dimensão “gráfica” (representação escrita) e a “fonia” (produção oral) para dar conta das características regionais ou locais de um modo de falar. Consistem, por assim dizer, no mesmo processo empregue no registo da “pronúncia figurada”. Posto isto, convém, todavia, clarificar que as representações escritas do registo oral regional vão variando consoante os escritores e a maneira como captaram as sonoridades insulares, não havendo, portanto, uma relação unívoca entre estas duas faces. As causas para este fenómeno serão múltiplas e não se equacionam de momento. A poligrafia literária faz lembrar o polimorfismo próprio do Português Arcaico (cf., por exemplo, VÁZQUEZ CUESTA e LUZ, 1988). Por exemplo, o Dicionário Houaiss apresenta a evolução histórica dos significantes e verifica-se que nem sempre um determinado vocábulo (ex.: “igreja”) se escreveu da mesma maneira, tendo tido, num mesmo período ou em mais, várias formas (ex.: “egreja” e “ygreja”, entre outras possibilidades). Em parte, isso verifica-se porque os diversos autores tidos como regionais foram fixando e dando corpo gráfico, visibilidade impressa, às sonoridades insulares, segundo a sua própria captação da fala. Este processo de materialização dos diversos níveis da variedade insular (como o social: calão, gíria, etc.) na escrita literária sucedeu no plano internacional (p. ex., em França, com Raymon Queneau, e em Moçambique, com Mia Couto) e nacional, com escritores como Lídia Jorge ou Aquilino Ribeiro. Aliás, é sabido que já Gil Vicente procurara conferir um estilo linguístico a determinados tipos de personagens, moldando a grafia segundo traços de pronúncia. Logo, esta especificidade não se observa unicamente na RAM, uma vez que é comum a outras variedades, registos ou línguas. Deste modo, não é uma estratégia exclusiva do espaço criativo madeirense. Contudo, é aqui que a interessa observar, esboçando-lhe os contornos para a configurar. São, sobretudo, as personagens representativas das camadas sociais mais baixas, tipicamente populares, que, nos textos literários, vão “falar à madeirense”. O valor científico da linguagem popular (BOLÉO, 1942) e a problemática da relação entre “popular” e “regional” (VERDELHO, 1982) são tópicos prementes para o estudo do registo escrito das variedades. A escrita ficcional tende a querer assumir traços de realismo linguístico (REBELO, 2008, 2013, 2014 no prelo). Portanto, as personagens, enquanto entidades literárias intratextuais, ganham pujança extratextual, representando um modo de falar de um povo de uma região. Têm entidade individual, muitas vezes com nome próprio, mas identificam o conjunto, a comunidade. O texto adquire, então, um colorido regional quando estas personagens populares, quer iletradas quer pouco ou nada instruídas, falam, sendo recriadas pelos autores. A grafia da fala representada passa a ser desviante porque é uma “transgressão ortográfica”, visto corresponder a uma transcrição gráfico-fónica. As letras do alfabeto latino são usadas para escrever a pronúncia regional que se afasta da representação ortográfica normativa (como no processo da “pronúncia figurada” e de modo distinto da transcrição alinhada, representação ortográfica que acompanha linha a linha a produção de um texto oral). São, assim, as sonoridades específicas da variedade diatópica madeirense que passam a ser escritas. É complexo saber quem terá sido o primeiro autor a procurar registar o falar regional madeirense na escrita, nomeadamente literária, uma vez que a tendência foi quase sempre a de normalizar a grafia. Sem considerar o registo pontual de Mariana Xavier da Silva (1884), Ricardo Jardim, que passou alguns anos em Inglaterra, apresenta-se, com Saias de Balão, como o percursor, até que se descubra outra referência. Este autor regista a fala na escrita de maneira muito incipiente e de forma esporádica. Esta acontece, essencialmente, quando os “criados” falam, como se verifica no seguinte excerto: “Menêina, nã vaia p’ra riba!... Menêina, vai-se pisar!... Menêina, aprante-se p’ra aí! Esteja quètinha!... Credo! Abrenúncio!” (JARDIM, 1946, 32). Desta deixa, sobressai, entre mais particularidades, a ditongação do <i> tónico (êi), considerada como tipicamente madeirense. Em contraponto com Ricardo Jardim, indubitavelmente, um dos autores que mais empregaram este processo da escrita do falar terá sido, por certo, Horácio Bento de Gouveia (SANTOS, 2007). Se não o fez em todos os contos, usou-o, pelo menos, sistematicamente nos seus romances (ALMEIDA, 2000). Apresenta-se um excerto da obra Torna-Viagem: o Romance do Emigrante (GOUVEIA, 1995, 56): - Q’ aconteceu? - O navoeiro matou mê filho! - Aonde? - Na beira da rocha. - Antão ’tá no fundo da ribeira. – E chamou, repentinamente, com toda a força da arca do peito: - Manel? Manel? - O quia, mê pai? - Vem cá. Neste breve diálogo, além de outros fenómenos, regista-se a ditongação com crase em “quia” (que é), sendo notória, no início do diálogo, a ausência do artigo definido antes do possessivo (Sintaxe) com a frequente monotongação deste (“mê filho”). Estes traços são correntes na variedade madeirense, embora, como se sabe pelos trabalhos de vários estudiosos e linguistas como, p. ex., Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo ou Lindley Cintra, comuns a outras variedades portuguesas. Entre estas duas tendências extremas (usar pouco – Ricardo Jardim – e empregar muitíssimo – Horácio Bento de Gouveia), diversos autores foram escrevendo a variedade diatópica madeirense. No entremeio, estará, p. ex., António Marques da Silva, com a “crónica romanceada” Minha Gente, obra póstuma, mas cuja finalização data de 1951. Dando voz às gentes da zona de São Jorge (Santana), reproduz o autor o falar do povo local, como evidencia a citação que se transcreve (SILVA, 1985, 13): – O mê digosto é nã poder botar-me desta terra pá rua. Ainda cum queira mercar um casaco pá missa, nã se pode. Anda-se atolado em lameiro todo loi dias e o que se ganha mal dá pá barreiga... – E si que dê graças a Deus em ter uma buxada para meter na boca... – acrescentou o outro, no mesmo tom melancólico. – Si amode canda reinando ca vida, Man’leinho? – soltou de lá um mais folgazão. – Ora! Cadmiração! Por aquei é com ’um porco que tá dentro do chequeiro. No há com’as outras terras! O Rodrigues, porém, insistia: – Poi sim... Mas si que veja o prove do João Perfeiro, do Farrobo, um homem como um teil, que veio arrebentado daquelas terras do fasteio!... Destaca-se também nesta amostra da escrita da fala a ditongação de <i> tónico (“Man’leinho” – Manuelinho, “barreiga” – barriga, “aquei” – aqui, “teil” – til, “fasteio” – fastio). Este ditongo, com semivogal divergente da palatal ou da velar normativas, reencontra-se, p. ex., no estudo acústico sobre o falar do Porto Santo (REBELO, 2005). Sobressai o uso da forma de tratamento com “si”, entre vocabulário típico (“mercar”, “um lameiro” ou “reinando”) e diversos fenómenos fonéticos, como mudanças de timbres, supressões, etc. Realça-se a forma do artigo definido masculino plural “loi” e a monotongação do possessivo “mê” (meu), mas, aqui, antecedido do artigo (“o mê”). Como se verifica, a exploração das particularidades linguísticas registadas deveria ser alvo de uma investigação aprofundada, podendo, crê-se, ter um considerável interesse para o linguista. A reaproximação da Linguística à Literatura merece, assim, para o estudo da variedade insular, uma atenção especial. Além destes três autores mencionados, apontam-se outros por serem, porventura, os que mais ilustram esta estratégia linguístico-literária, recorrendo a uma transcrição linguística reconstruída (ficcionada) que aproxima a grafia da fonia. Decerto, os autores que viveram o período da Revolução dos Cravos, em meados da déc. de 70 do séc. XX, experimentaram uma revalorização de tudo o que se relacionava com o povo. Textos publicados nesse período tenderam, por isso, a sobrevalorizar o falar regional, na sua vertente popular e regional. É o que acontece com Pernas Ceifadas, de Maurício Melim Teixeira, com prefácio de Horácio Bento de Gouveia. Nesta obra, o autor, conferindo-lhe um cunho de realismo, afirma que “[...] a história apresentada se baseia em factos reais [...]. À parte algumas criações minhas, outros arranjos e outra disposição, ela sustenta-se num (entre tantos) caso real, bem funesto da sociedade madeirense” (TEIXEIRA, 1975, 9-10). O pendor realista é ainda salientado por Horácio Bento de Gouveia no prefácio da obra: “A prova evidentíssima reside no conteúdo da novela, no realismo das cenas, no aspecto fónico do linguajar das personagens”. Acrescenta Gouveia, a propósito: “Nota-se uma natural preocupação de gosto pelo termo raro, muitas vezes forçado. Infere-se, da sintaxe, muita leitura, bem que não completamente escoimada dos prejuízos inerentes à busca da verdade linguística” (Ibid., 12-13). Reencontra-se esta tendência nos diálogos que dão conta de um falar divergente do registo normativo (Ibid., 153-154): – Olhe nã repare nesta desarrumação qu’ at’ ia ûa vergonha! ’Tava [sic] acabande d’almoçar, sabe cuma ia... Mas antão o qu’ ia qu’ a trai pro cá? Precisa dalgûa coisa, ia? S’ iu puder ajudar ia só dezer, faça-se de casa, nã faça cirmónia! [...] – Eu gostava de tilfonar... Hesitava. – Pôs ia tilfonar... ora venha daí... largue lá esses acanhamentes... por ’quei, por ’quei... – e balançava-se, afanada. – Sabe qu’ o nosso... quer dizer... o mê pai trancou o tilfone e iu preciso muito tilfonar... desculpe vir incomodar... – Ora essa! Ora essa! Incomodar, proquia? Nã incomoda nada, nem um belisque... Ah, mas o sê pai trancua? Ora essa! – repetia – Mas antão proquia? – [...] – Tudo por causa do mê namorado... O qui é que quer? Ele é assim! Embirrou e agora? É teimoso que nem um jerico! Vá lá entender-se isto! O diabo do homem pendeu prá ‘li e tirem-lho da carcaça! – Ah, e iu a pensá qu’o sinhô Francisque era um home compreensive, honeste! Olhe que nem parece ser o qu’ ia! – estava despeitada – Sabe o qu’ ia: a gente vê, fala, mei nunca ia cuma se vivesse cum ele, nã se lhe conhece ei manhas. Aparências... Olhe menina: nem tude o que luz ia oure! Ora, são todes bons! Homes! Todes iguais, nem um só s’ escapa! Ia tude ûa súcia de bandides, ûa canhalha! Concluía por fim: – Mei vá lá, vá lá, nã demore mais aquei, qu’a meinha c’riosidade já lhe tirua munte tempe. Ia aquei, ia aquei! Pegue, ‘teija à vontade! Neste diálogo, assinala-se, de novo, a ditongação de <i> acentuado (“aquei”, “meinha”), que, porém, nem sempre ocorre (“compreensive”, “bandides”), assim como a de “é” (“ia”), entre múltiplas outras especificidades, como a mudança de timbre de <o> em posição final absoluta ou não (“todes”, “tempe”). Certos traços ocorrem igualmente no conto de Jorge Sumares “Mai Maiores qu’ essei Serras”, que data também do mesmo período de mudança política, assim como de paradigma estético-literário e linguístico, já que foi escrito em finais da déc. de 60 e publicado, parcialmente, em 1974, no Diário de Notícias da Madeira. Não sendo escritor de profissão, Sumares redigiu este texto aproximando os grafemas dos fonemas, ou melhor, as letras dos fones, como se constata da leitura do passo que se recortou da integralidade textual (um diálogo em que se “ouve” apenas uma das duas vozes, um dos dois interlocutores, o idoso popular, marcadamente regional): “Filhos? Tive nove. Seis homes e três melheres. Tudo se criua à conta de Deus. Inté a nossa Rosaira já tava criada cando Deus a chamua à sua devina presença. Já andava nui vinte. Veio-le um bicho no estâmego – lá foi” (SUMARES, 2005, 177). Curiosamente, a ditongação de <i> tónico não se verifica neste excerto, mas ocorre no decorrer do conto (REBELO, 2013). Porém, o fenómeno da ditongação sucede, p. ex., com o fonema [o] (<ou>) em “criua” (criou), “chamua” (chamou). Também sobressai a mudança de timbre vocálico por, na maioria dos casos, assimilação ou dissimilação, o que é evidente em “melheres” (mulheres), “devina” (divina) e “estâmego” (estômago). Dá-se ainda, e apenas, relevo ao plural “nui” (nos), assinalando um traço que é identificado como madeirense, isto é, o plural em <i>. Este fenómeno gerou controvérsia quanto à sua explicação, nomeadamente entre Millet Rogers e Eduardo Antonino Pestana (PESTANA, 1970) (Sintaxe). É indispensável referir que, antes destes autores, Ernesto Leal, no conto com o título homónimo da obra O Homem que Comia Névoa, de 1964, experimentara este exercício, mesmo se, como Ricardo Jardim, não lhe conferiu grande relevo na sua obra. No entanto, não se pode deixar de mencionar, ilustrando esta escrita fónica com um breve trecho (LEAL, 1964, 68-69): Na Portela das Mantas, à hora da névoa da manhã, o vilão grita assim e os sons ficam no ar, a baloiçarem-se: – Ó Maruia!... […] E a viloa responde: – Qu’é? […] – Onde estás, que não te vejo, ca névoa? […] – Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro. Mais uma vez, o <i> tónico surge ditongado (“Maruia” – Maria, “ruiba” – riba) e sobressai enquanto marca madeirense perante fenómenos populares geograficamente mais amplos, como a elisão em “Qu’é?” ou a aglutinação presente em “ca”. Estranhamente, as formas verbais “estás” e “Estou” mantêm-se intactas, quando correntemente se reduzem a “tás” e “Tou”. O mesmo acontece com o ditongo de “não”, que tende a monotongar na oralidade (“nã”). O vocábulo “couves” é, popularmente, por certo, mais empregue com a variante do ditongo “oi”, mas, neste excerto, mantém-se inalterado. Esta observação, aplicada a outros fenómenos e vocábulos, é válida para os restantes autores que seguem o processo de escrever o falar, já que, por vezes, não assinalam traços que se sabe serem comuns no registo da fala. Aliás, isso é notório em Francisco de Freitas Branco, que, embora não tenha escrito textos literários, seguiu esta estratégia em crónicas com alguma literariedade. Orientou-se este autor por uma transcrição alfabética do falar madeirense (da Madeira e do Porto Santo) inconstante e cambiante, muito versátil, como o comprovam a leitura das crónicas “Sobre Habitantes da Ilha: Apontamento Linguístico”, “Ê Tenho esta Ideia Comeio (Crónica Literária)” e “Ainda nam Teinha Trêzianes, Comecei Cêde: Tentativa para Reprodução Escrita da Fala Viva” (REBELO, 2002a, 2004, 2008, 2013, 2014 no prelo). O processo terá desagradado aos falantes que se sentiram desvalorizados por considerarem que aquela escrita estava repleta de “erros”. Ora, o facto de as transcrições de Freitas Branco se reportarem a pessoas (reais – entidades extratextuais) e não a personagens (de papel e palavras – entidades intratextuais) terá criado equívocos difíceis de resolver, já que estas transcrições queriam sublinhar a riqueza da dinâmica da fala. Parece, então, que, se se sair do plano ficcional, a variedade diatópica continua a ser unifacial. Caberá aos linguistas ultrapassar esta dificuldade, se se pretender que a variedade endógena seja bifacial fora dos limites da Literatura, que, porém, tem continuado a alimentar o processo de transcrição da fala. Mais recentemente, um dos últimos autores que procuraram passar para a escrita o falar dos ilhéus do arquipélago terá sido Lídio Araújo, que recorre, abundantemente, ao processo em Filhos do Mar. A leitura deste livro é animada pelos diálogos recriados, que, além de serem muito enfáticos, como à partida o são os reais, transmitem um colorido local. As marcas do nível popular preenchem o discurso dialógico, como o seguinte excerto o evidencia (ARAÚJO, 2002, 83-84): – Pedro, acorda! Al’vãta-te O [sic: sem ponto] pae leiva-t’ô maar! [...] – O qu’ia pae, ô maar? – Seim! Êu t’prom’tei, um deia. Hôje vaes c’agênte! [...] – Ia ve’dade, pae? – interrogou, incrédulo, arregalando os olhos. – Ia seim! – E a mãe já saabe? – Já! D’spacha-te! Ao ler-se estas deixas das personagens, é como se se ouvisse as pessoas a expressarem-se nos seus modos de falar marcadamente sincopados e com múltiplos fenómenos estudados pela fonética combinatória (Fonética). A supressão de fonemas é assinalada pelo apóstrofo, como em “Al’vãta-te” (Levanta-te) e “t’prom’tei” (te prometi/prometi-te). A duplicação vocálica poderá indiciar vogais longas e/ou com um grau de abertura considerável, representando para o leitor a necessidade de as “dizer” duas vezes (“maar” – mar, “saabe” – sabe), como se houvesse duas vogais/duas sílabas. Este último fenómeno confere melodia ao falar, alongando os vocábulos por parecerem ganhar uma sílaba. Como para os autores já mencionados, além de o nível popular se destacar, surgem também nesta obra de Lídio Araújo particularidades regionais, como a ditongação de <i>, quer oral – “deia” (dia) –, quer nasal – “seim” (sim). Regista-se ainda a da vogal anterior semiaberta, que se encontra, p. ex., em “qu’ia” (que é) e em “leiva” (leva). Poderia alargar-se a exemplificação, mas esta parece ser suficiente para comprovar o valor deste livro, que, através da recriação do autor, reproduz o falar das gentes do mar madeirense de Câmara de Lobos. Nesta síntese, fica claro ser inviável referenciar todas as obras de cunho madeirense (que começam a ser em número considerável) em que o recurso da escrita da fala ocorre. Pelo traço característico que as permite reagrupar aqui, os escritores mencionados e as obras citadas, além de todos os restantes não referidos, aguardam um estudo linguístico aprofundado. Seguindo as pegadas dos filólogos do passado, o linguista do presente, dedicado à variação regional, terá todo o interesse em analisar as diversas transcrições literárias para a representação gráfica do falar insular, que revelam constituir um rico património (REBELO e GOMES, 2014). Muitas vezes, são dados impressionistas (REBELO, 2003, 2011) e intuitivos, já que, p. ex., a palatalização da lateral antecedida de [i] nem é comum (ANDRADE, 1994) nos textos transcritos. No entanto, não se distanciam substancialmente dos que as dissertações de licenciatura apresentaram (MACEDO, 1939; ROGERS, 1940, 1946, 1948; MONTEIRO, 1945, 1950; PEREIRA, 1952; PESTANA, 1954; NUNES, 1965). A título meramente exemplificativo, veja-se, em baixo, a Tabela 1, com algumas representações literárias da autoria de Ricardo Jardim, Ernesto Leal, Jorge Sumares e Francisco de Freitas Branco. A variação no modo de grafar a vogal indica uma pronúncia particular que cada autor escreve à sua maneira, como a ouve. A tabela foi elaborada a partir de um levantamento de dados anteriormente realizado (REBELO, 2008) e nela facultam-se exemplos, destacando-se a negrito os segmentos a considerar. [table id=95 /] Assim, constata-se que há todo um trabalho de sistematização linguístico-literário a realizar para dar visibilidade à face escondida (a escrita da fala) da variedade insular madeirense, que, todavia, figura em vários textos literários, segundo os critérios individuais dos seus autores. É urgente compará-los para compreender em que pontos são credíveis, ou não, as suas propostas de escrita da fala da variedade diatópica madeirense. Enquanto isso não suceder e não houver interesse em escrever o falar madeirense (os falares madeirenses?), a variedade insular continuará a ser apenas unifacial, sobrevivendo no registo oral, até a comunidade regional assim o desejar.   Helena Rebelo (atualizado a 07.12.2017)  

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atividades marítimo-turísticas

As empresas de animação turística são as entidades que exercem regularmente atividades lúdicas, culturais, desportivas ou de lazer, destinadas a turistas ou visitantes. O licenciamento, o exercício da atividade e a fiscalização das empresas de animação turística na Região Autónoma da Madeira (RAM) é regulamentado pelo dec. leg. regional n.º 30/2008/M, de 12 de agosto, o qual subdivide as atividades em três grandes áreas: 1 – Atividades de animação turística geral; 2 – Atividades de animação marítimo-turística; 3 – Atividades de animação turístico-ambiental. As atividades de animação marítimo-turística são as seguintes: passeios marítimo-turísticos organizados; mergulho, escafandrismo, caça submarina e snorkeling; observação e natação com cetáceos; observação de aves; pesca turística ou pesca desportiva; pesca-turismo (pesca artesanal dirigida a turistas efetuada em embarcações de pesca); passeios em submersível; aluguer de embarcações com ou sem tripulação; serviços efetuados por táxis marítimos; esqui aquático, vela, remo, canoagem, windsurf, surf, bodyboard, wakeboard e kite surfing; serviços de natureza náutica prestados mediante a utilização de embarcações atracadas ou fundeadas e sem meios de locomoção próprios ou selados; aluguer de motos de água e de pequenas embarcações dispensadas de registo e outros serviços, nomeadamente os de reboque de equipamento de carácter recreativo. O regime de acesso e exercício da atividade das empresas de animação turística, incluindo os operadores marítimo-turísticos, encontra-se regulamentado pelo dec.-lei n.º 108/2009, de 15 de maio, alterado pelo dec.-lei n.º 95/2013, de 19 de julho e pelo dec.-lei n.º 186/2015, de 3 de setembro. Em 2014, foi publicado o dec.-lei n.º 149/2014 de 10 de outubro, que aprova o Regulamento das Embarcações Utilizadas na Atividade Marítimo-Turística e estabelece as regras aplicáveis às embarcações utilizadas por empresas de animação turística e operadores marítimo-turísticos, no âmbito da atividade marítimo-turística, em todo o território nacional. Na Madeira, as atividades marítimo-turísticas surgiram com o mergulho e a pesca desportiva. O primeiro compressor de ar comprimido apareceu no posto náutico do Clube Naval do Funchal em 1968, clube que no ano seguinte organizou o I Curso de Mergulho Amador, dirigido por João Caldeira, da Federação Portuguesa de Atividades Subaquáticas, e contou com a participação de 40 pessoas e com a colaboração de Jorge de Castro e João Borges, já experientes no mergulho. A primeira escola de mergulho a surgir na Madeira foi o Garajau Madeira Diving, em 1980, no Garajau, propriedade de Rainer Waschkewitz que ficou para sempre associado à conservação e divulgação do mar da Madeira. Juntamente com seu amigo e parceiro de negócios Jorge de Castro, realizaram um sonho de criar a primeira reserva marinha em Portugal, a Reserva Natural Parcial do Garajau, em 1986, pressionando as autoridades e pedindo apoio a personalidades como Jacques-Yves Costeau. No início do séc. XXI, existiam 17 centros de mergulho na RAM, estando 15 localizados na Madeira e 2 na ilha do Porto Santo. A pesca desportiva na ilha da Madeira teve a sua origem com a fundação do Clube Naval do Funchal, em 1952, e a sua adesão à International Game Fish Association (IGFA) em 1953. A partir desta data o Clube Naval passou a estar associado à organização de pequenas provas desta modalidade. Em 1954, António Ribeiro (sócio fundador do Clube Naval) bate dois recordes nacionais de pesca, um a 19 de setembro com a captura de um espadim branco de 37,5 kg e outro a 24 de setembro com a captura de um atum patudo de 94,5 kg. Mas o grande impulso desta modalidade deu-se na déc. de 1970 onde inúmeros recordes foram alcançados, entre os quais o recorde da Europa, conquistado por António Ribeiro, ao capturar um espadim azul de 510 kg em 1977. Embora historicamente a prática desta modalidade esteja associada a este médico que ao longo da sua vida capturou os maiores exemplares de que há memória, nomes como o de Jorge Brum do Canto, realizador cinematográfico e escritor, e Américo Durão, também médico, não podem ser esquecidos, pelo importante contributo que deram para o desenvolvimento desta atividade na região. No início do séc. XXI, ainda existiam recordes mundiais obtidos na Madeira, como o recorde feminino para o espadim azul com 321 kg (708 libras) obtido em 1996 por Nikki Campbell (mulher do lendário pescador de records IGFA Stewart Campbell) ao largo da Madeira. Os fantásticos resultados obtidos no passado, tanto em provas nacionais como internacionais, em muito contribuíram para a dinamização de uma atividade que passou a ser considerada como um produto turístico distintivo da ilha da Madeira, fazendo dela um local único para a prática desta modalidade desportiva. Embora o turismo representasse a principal atividade económica da região, resultado do clima ameno e da posição geográfica privilegiada, a influência da corrente quente do Golfo mantinha a ilha da Madeira na lista dos destinos europeus de eleição para a prática da pesca grossa. Na época de pesca desportiva, que decorre entre os meses de maio e agosto, muitos eram os turistas que viajavam até à ilha da Madeira com a ambição de capturar uma das grandes espécies pelágicas e migratórias, como os espadins e os atuns, entre outros. A primeira empresa de pesca desportiva na Madeira, a Turispesca, surgiu na déc. de 1970 na marina do Funchal; a ela se juntaram outras oito empresas nesta marina e três na marina da Calheta. Na déc. de 1990, assim como nos inícios do séc. XXI, apareceram na Madeira várias empresas de passeios marítimo-turísticos organizados, empresas para observação e natação com cetáceos e observação de aves marinhas, operando em embarcações tão diversas como catamarans, embarcações semirrígidas, veleiros, e mesmo numa réplica em tamanho real da nau Santa Maria, de Cristóvão Colombo, propriedade de Rob Wijntje; este holandês construiu a nau no estaleiro de Câmara de Lobos com a ajuda de calafates locais, lançando-a à agua em junho de 1998. Este Santa Maria tem 22,30 m de comprimento, 3 mastros, o mais alto com 16 m, e foi construído em mogno. Operando com catamarans com mais de 100 pessoas, existiam duas empresas. A empresa VMT Madeira surgiu em 2004 com o nome Prazer do Mar, cujo objetivo inicial era proporcionar aos visitantes da Madeira uma viagem costeira para a observação da beleza morfológica da costa a bordo do seu primeiro catamarã, o Sea Pleasure. Quatro anos mais tarde surge o segundo catamarã, o Sea The Best, aumentando o número de lugares disponíveis para 168. Em 2013, a empresa mudou de nome, lançando a marca comercial VMT Madeira (Viagens Marítimo Turísticas da Madeira), e adquiriu o Sea Nature, um catamarã de dois decks, construído em Lagos, no Algarve, com capacidade para 220 pessoas. Existiam ainda empresas especializadas em nichos como a observação de aves marinhas, das quais se destacam a Ventura do Mar e a Madeira Windbirds. Surgiram igualmente empresas dedicadas a organizar atividades como formação e passeios de vela, canoagem, windsurf, surf e bodyboard. De referir o crescimento que se verificou nos primeiros anos do séc. XXI no que diz respeito a empresas e escolas de surf. Por último, resta mencionar as empresas que se dedicam ao coasteering, atividade que combina rappel, escalada, saltos para o mar, natação e mergulho, tudo numa única atividade que permite descobrir as escarpas sobre as baías, as grutas e os recantos com água translúcida existentes na Ilha. Um dos locais mais procurados para esta atividade é a Reserva Natural da Ponta de São Lourenço onde se pode desfrutar do percurso de coasteering que permite conhecer as belezas naturais da baía d’Abra.   Teresa Mafalda Freitas (atualizado a 09.10.2017)

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