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bowdich, thomas edward

Thomas Edward Bowdich, escritor e viajante inglês, nasceu em Bristol a 20 de junho de 1791 e faleceu em Banjul, capital da Gâmbia, a 10 de janeiro de 1824. Na sua juventude estudou em escolas públicas em Bristol, demonstrando maior inclinação para as letras do que para as ciências. Inicialmente pensou em seguir advocacia, mas seu pai, fabricante de chapéus e comerciante, colocou-o como sócio na firma. Em 1813 casou-se com Sarah Wallis, com a qual partilhava o interesse pela natureza, as viagens e a aventura. Inscreveu-se ainda em Oxford, mas não concluiu os estudos aí. Em 1814 conseguiu um lugar de escriturário na Royal African Company e partiu para a cidade de Cabo Corso, no Gana. Em 1816 integrou uma missão, que acabou por chefiar, ao Império Asante na Costa do Ouro, tendo obtido um acordo com o Rei no qual se assegurava a paz e se preservavam os interesses ingleses na região. Regressado a Inglaterra em 1818, Bowdich denunciou a corrupção e a ineficiência na Royal African Company. Mudou-se, dois anos depois, para Paris, onde estudou matemática, física e história natural. Aí tornou-se íntimo do barão Georges Cuvier, assim como de Alexander von Humboldt e outros eminentes sábios, que o receberam muito bem e o ajudaram na consolidação da sua cultura científica. Durante a sua estada em Paris publicou diversos trabalhos científicos, incluindo de história natural. Ficou famoso o seu ensaio sobre as superstições, os costumes e as artes comuns aos egípcios, abissínios e asantes, que constitui o primeiro grande estudo da cultura e história da África ocidental. Em 1822 viajou com a mulher para Lisboa, onde esteve pouco mais de um mês, consultando aí arquivos públicos e privados, e escrevendo um trabalho sobre as descobertas dos Portugueses em Angola e Moçambique que viria a ser publicado em 1824. De Lisboa seguiu para o Funchal, onde chegou no dia 14 de outubro de 1822. Permaneceu na Madeira um ano, tendo sido hóspede do comerciante e cônsul inglês Henry Veitch. Efetuou várias viagens pela Ilha visitando também Porto Santo. Durante esta estadia, efetuou observações meteorológicas assim como colheitas de plantas e animais. Observou os costumes da população e anotou as suas impressões sobre a política e a sociedade madeirenses. Todas estas observações ficaram registadas numa obra cuja publicação se deveu à sua mulher, a qual também a ilustrou, sendo editada em 1825, um ano após a sua morte. Este trabalho inclui também listagens, ou simples referências, de plantas, insectos, moluscos, aves e peixes. Neste último caso, incluiu a descrição original do chicharro, Seriola picturata, posteriormente chamado Trachurus picturatus, com a respetiva ilustração, da autoria de sua mulher. Neste trabalho Bowdich denota um grande interesse pelas medições de temperatura, pressão, humidade relativa e altitude durante as suas excursões pela Madeira, uma característica que lhe foi sem dúvida incutida por Humboldt durante a sua estada em Paris. Embora detalhado na descrição e até ilustração de aspetos da geologia da Madeira e do Porto Santo, não soube contudo, interpretá-los e determinar a origem das ilhas, negando a sua origem vulcânica submarina. Contudo, esta e outras incorreções não desmerecem o valor desta obra, pela riqueza e diversidade de observações registadas, não só de âmbito natural, mas também cultural, social e político da Madeira do primeiro quartel do séc. XIX. Bowdich, a mulher e os três filhos deixaram a Madeira no dia 26 de outubro de 1823, num brigue americano, em direção a Cabo Verde, dada a inexistência de navios com destino à Serra Leoa, o objetivo desta sua terceira viagem a África. Em Cabo Verde, onde chegou por volta de 10 de novembro, fez observações idênticas às que tinha feito na Madeira na ilha da Boavista, onde permaneceu algumas semanas. Visitou ainda a ilha de Santiago durante um dia, tendo prosseguido para Banjul, à época Bathurst, na Gâmbia, onde chegou no início de dezembro de 1823. Aí iniciou de imediato um trabalho de colheita de plantas e animais e o levantamento topográfico da foz do rio Gâmbia. Atacado pelo paludismo, morreu no dia 10 de janeiro de 1824. Sarah Bowdich e os três filhos regressaram a Inglaterra e um ano depois da morte do marido foi publicado o livro sobre a sua derradeira viagem a África.     Obras de Thomas Edward Bowdich: Mission from Cape Coast Castle to Ashantee, with a Statistical Account of that Kingdom, and Geographical Notices of Other Parts of the Interior of Africa (1819); Essay on the Superstitions, Customs, and Arts Common to the Ancient Egyptians, Abyssinians, and Ashantees (1821); An Introduction to the Ornithology of Cuvier (1821); Elements of Conchology Including the Fossil Genera and the Animals (1822); An Account of the Discoveries of the Portuguese in the Interior of Angola and Mozambique (1824); Excursions in Madeira and Porto Santo (1825).   Manuel Biscoito (atualizado a 27.10.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

borges, joão gonçalves

João Borges nasceu a 22 de setembro de 1922, na freguesia do Monte, concelho do Funchal, e faleceu nesta cidade a 26 de novembro de 2008. Empresário, desportista náutico e governante, destacou-se sobretudo nos sectores do turismo e do mar. A sua paixão pelo mar vem de muito novo quando, sendo asmático, encontra no mar alívio para a sua maleita. Ficaram célebres os seus mergulhos no Lido, pelo tempo que permanecia imerso. Foi pioneiro na caça submarina na Madeira, tendo ganho o primeiro lugar no primeiro concurso desta modalidade organizado pelo Clube Naval do Funchal, no Paul do Mar, em 27 de setembro de 1953. Foi também pioneiro no mergulho com escafandro autónomo, tendo acompanhado a equipa do Com. Cousteau (Cousteau, Jacques-Yves) durante a sua visita à Madeira em agosto de 1956. Em julho de 1966, acompanhou também os mergulhos do batiscafo francês Archimède na Madeira, tendo promovido uma conferência proferida no Funchal pelo Com. Georges Houot e pelo Eng. Henri-Germain Delauze, responsáveis pelo batiscafo. No plano associativo, pertenceu aos corpos dirigentes do Clube Naval do Funchal desde 1962 até 1988, tendo sido comodoro, vice-presidente e presidente da respetiva Assembleia-Geral. O entusiasmo pelo mar levou-o a interessar-se pela colónia de lobos marinhos, Monachus monachus, das ilhas Desertas, que nos anos 80 do séc. XX estiveram muito perto da extinção. Fruto deste interesse e das suas observações, participou na 1.ª Conferência Internacional sobre o Lobo Marinho, realizada em Rodes em 1978. Nesta apresentou uma comunicação intitulada “The monk seals of Madeira”, na qual deu conta da situação precária em que estes mamíferos marinhos se encontravam. Efetuou também várias deslocações às ilhas Selvagens, na companhia do seu amigo Paul Alexander Zino, tendo colaborado nos estudos das aves marinhas realizados por este ornitólogo amador. A sua capacidade de comunicação, as suas áreas de interesse e a fluência em línguas estrangeiras fizeram de João Borges um relações-públicas nato, levando-o a contactar com inúmeras personalidades que visitaram a Madeira. Em 1953, o realizador de cinema John Houston deslocou-se à Ilha para realizar algumas cenas do seu filme Moby Dick, tirando partido da existência, nessa época, de atividade baleeira. João Borges participa no filme, vestindo a pele de uma baleia branca. João Borges, na sua qualidade de “homem dos sete ofícios”, foi também um técnico de precisão muito conceituado, tendo fundado a relojoaria Big Ben em 1947, na então recentemente aberta Av. de Zarco. Na sua oficina, reparou muitos equipamentos náuticos de precisão, não só de desportistas locais, como também de iatistas que escalaram a Madeira. Esta sua aptidão levou-o a ser cronometrista de muitas provas náuticas, entre elas a Regata Oceânica Lisboa-Madeira, cuja primeira edição teve lugar em 1950. O seu talento para os contactos pessoais conduziu-o inevitavelmente ao sector do turismo. Assim, em 1969, ingressa na Delegação de Turismo da Madeira, ao lado de José Ribeiro de Andrade e António Bettencourt da Câmara, ficando responsável pelos sectores da promoção e das relações públicas. Torna-se assim o primeiro promotor oficial do turismo da Madeira, cargo que desempenhará por muitos anos, e que o levará aos principais países de onde são originários os turistas que visitam a Madeira. Na sequência da Revolução de 25 de abril de 1974, foi nomeado membro do Gabinete de Informação situado no Palácio de S. Lourenço e encarregado de dar informações aos jornalistas estrangeiros presentes, assessorando a primeira conferência de imprensa dada pelas novas autoridades no Funchal. Já na Direção Regional de Turismo, foi nomeado em 1981 diretor dos serviços de promoção, relações públicas e publicidade, e recebeu nesse ano o Golden Helm, galardão atribuído pela Associação Internacional de Relações Públicas. A 10 de janeiro de 1984, foi nomeado diretor regional de Turismo, cargo que ocupou até à sua aposentação, em 1992. A 18 de maio de 1986, o Governo regional da Madeira atribuiu-lhe a Medalha de Ouro de Mérito Turístico, e em 1987 recebeu a Medalha de Mérito Turístico instituída pela Associação Portuguesa das Agências de Viagem e Turismo, no decurso do seu XIII Congresso, em Marraquexe. Aquando da sua aposentação, os diretores dos centros de turismo de Portugal, reunidos no Funchal, homenagearam João Borges oferecendo-lhe uma placa na qual se lê a seguinte inscrição: “Ao ilustre embaixador da Madeira em todo o mundo, João Gonçalves Borges, como homenagem pelos relevantes serviços prestados ao turismo português”. A 10 de junho de 1993, é agraciado com o grau de comendador da Ordem de Mérito pelo Presidente da República, Mário Soares. João Borges foi casado com Deirdre Mary Isabella Shanks Borges, e teve dois filhos.   Obras de João Gonçalves Borges: “The Monk Seals of Madeira” (1978).   Manuel Biscoito (atualizado a 27.10.2017)

Biologia Marinha História Económica e Social Ciências do Mar

abreu, jaime césar de

Filho do Dr. José Sabino de Abreu, Jaime César de Abreu (1899-1967) nasceu na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, em 1922, com a tese Infecção Puerperal, vindo a fixar-se no Funchal. Ocupou as funções de radiologista e de médico no antigo Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Palavras-chave: Associações de Socorros Mútuos; Hospital da Misericórdia do Funchal; Medicina; Trabalhos científicos.     Filho de José Sabino de Abreu, médico natural de Lisboa, e de sua mulher, Augusta Matilde Figueira César de Abreu, Jaime César de Abreu nasceu na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, a 16 de fevereiro de 1899. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, curso que terminou em 1922, fixando-se no Funchal, onde casou com Cecília Tolentino da Costa, filha de Lúcio Tolentino da Costa (1870-1939) e de Maria Assunção Pereira. Deve ter sido o sogro, médico pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e antigo capitão médico do Exército, entretanto afastado por ter aceitado a presidência da Câmara Municipal do Funchal na sequência da Revolução da Madeira de 4 de abril de 1931 (Revolução da Madeira), que lhe abriu alguns caminhos profissionais no Funchal. Embora fosse oftalmologista, Lúcio Tolentino da Costa tinha sido o impulsionador e o responsável pela montagem de um aparelho de raios X na Associação de Socorros Mútuos 4 de Setembro de 1852, onde era médico, vindo aquela associação mutualista, através desta aparelhagem, a prestar relevantes serviços à comunidade naquela área. Jaime César de Abreu começou por ajudar o sogro na Associação e, em breve, ali desempenharia as funções de radiologista e de médico. Durante vários anos, foi também médico e diretor dos serviços de radiologia do Hospital da Santa Casa da Misericórdia (Santa Casa da Misericórdia do Funchal), no edifício que seria depois sede da Junta Geral e mais tarde do Governo regional. Durante alguns anos, foi igualmente presidente da comissão administrativa do Recolhimento do Bom Jesus e professor provisório do Liceu Nacional do Funchal  então chamado Jaime Moniz, em homenagem a Jaime Constantino de Freitas Moniz (1837-1917). Do seu casamento teve quatro filhos: José Tolentino da Costa César de Abreu, capitão da Marinha Mercante; Nicolau Tolentino da Costa César de Abreu, casado com Maria Dulce Leal Moniz César de Abreu; Maria Cecília Tolentino da Costa Cesar de Abreu, casada com João Tolentino da Costa César de Abreu, empregado bancário, com descendência. Escreveu e publicou Infecção Puerperal, tese de licenciatura que o Visconde do Porto da Cruz, Alfredo de Freitas Branco (1890-1962) regista como “indubitavelmente um trabalho de especialidade, mas [que] está escrito com elegância e clareza de frase” (PORTO DA CRUZ, 1953, 126). Foi sócio da Sociedade Portuguesa de Radiologia Médica e faleceu no Funchal, a 31 de dezembro de 1967, com 68 anos. Obras de Jaime César de Abreu: Infecção Puerperal (1922).   Rui Carita (atualizado a 14 de julho de 2017)

Ciências da Saúde

vasconcelos, joão da câmara leme homem de, visconde e conde do canavial

A vida política, económica e social madeirense foi marcada no último quartel do séc. XIX pela personalidade conflituosa do futuro conde do Canavial, Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos. Filho do morgado António Francisco da Câmara Leme Homem de Vasconcelos e de Carolina Moniz de Ornelas Barreto Cabral, nasceu no Funchal a 22 de junho de 1829, foi simultaneamente clínico, professor, funcionário público, homem de ciência, jornalista e escritor, político e industrial, em todas essas ocupações revelando interessantes qualidades e capacidade e de trabalho, mas também uma personalidade algo conflituosa. Foi autor de uma vastíssima produção literária, quer científica, quer política, que é difícil trabalhar de forma científica, pois nem sempre se consegue separar o que era polémica científica e industrial do que eram atitudes políticas e pessoais. Concluídos os estudos secundários no Funchal, veio a formar-se em medicina pela Universidade de Montpellier, em França, bacharelando-se em 1852 e doutorando-se em 1857, colaborando ali em vários periódicos, fazendo traduções e tendo obtido o lugar de membro da Academia das Ciências e Letras daquela cidade. Começou assim logo por desenvolver um notável trabalho científico na sua área de especialidade a que, regressado à Madeira, juntou também a de investigador da área científico-industrial de tratamento do vinho da Madeira, de que era um dos mais importantes produtores. O Dr. João da Câmara Leme, regressado de França, fez em 1859 repetição dos seus atos académicos na Escola Médica de Lisboa, sendo no ano seguinte nomeado demonstrador de anatomia da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e, em 1867, professor proprietário. No ano seguinte, editava logo um Relatório e Projecto de Regulamento para a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal (1868), entrando de imediato em conflito com o Dr. António da Luz Pita (1802-1870), então deputado em Lisboa, polémicas que se prolongaram pelos anos seguintes. Escrevem os autores do Elucidário Madeirense, que o conheceram pessoalmente, que “teve de sustentar algumas lutas com os seus colegas no magistério, publicando a tal respeito dois grandes volumes, que, apesar da parcialidade com que possam porventura estar escritos, são trabalhos de incontestável valor” (SILVA e MENESES, 1998, I, 232). Paralelamente à sua atividade como médico e diretor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, promoveu ainda a fundação da Companhia Fabril de Açúcar Madeirense (CFAM), com sede junto à ribeira de São João, onde introduziu notáveis aperfeiçoamentos nos processos destinados ao fabrico da aguardente, essencialmente no sentido de um melhor aproveitamento da matéria-prima empregue. Registou de imediato patente da sua invenção, o que deu lugar a uma série de contestações e polémicas, voltando a, sobre esse assunto, publicar inúmeros folhetos. Na polémica viria a entrar outra das grandes figuras da Madeira do seu tempo, o depois comendador William Hinton (1817-1904), a qual polémica, embora não só, veio a inviabilizar alguns anos mais tarde a Companhia da ribeira de São João. A constituição e vida da CFAM, liderada pelo futuro visconde do Canavial, foi um bom exemplo do quadro geral em que se desenvolveu a atrasada revolução industrial na Madeira. Beneficiando do inegável espírito empreendedor do promotor, mas também da sua teimosia e, inclusivamente, de um experimentalismo algo deslumbrado, sempre à procura de uma nova tecnologia, e sem bases técnicas e científicas para tal, a vida da Companhia foi confrontada com a concorrência feroz dos comerciantes britânicos instalados na Madeira. A todo este quadro, juntaram-se as dificuldades de associação e de entendimento dos proprietários madeirenses, muito provavelmente ainda politicamente agudizadas pelos antigos morgados, entretanto radicados no espaço continental. Os estatutos da CFAM só foram aprovados em 1867, arrastando-se a constituição da Companhia por mais de 10 anos, o que implicou que a fábrica de São João só entrasse em funcionamento em 1871. O futuro visconde apetrechou-a com sofisticada aparelhagem, a que ainda associou outros aperfeiçoamentos da sua autoria, de que imediatamente registou a patente. No entanto, não só William e o filho Harry Hinton (1859-1948) vieram a contestar o registo dessa patente, como a sofisticada aparelhagem acabou por não se mostrar rentável. A 26 de agosto de 1878 foi solicitada a intervenção do Banco de Portugal por insolvência financeira da CFAM. A ideia voltou a aparecer em 1892, tomando como exemplo a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, chegando-se mesmo a propor em reunião camarária, de 11 de outubro desse ano, um subsídio anual de 100 mil réis e que a nova associação fosse presidida pelo conde do Canavial. Mas tal como já se inviabilizara o anterior projeto da fábrica de São João, também a associação se extinguia em 1902. Em 7 de setembro de 1876, organizava-se a partir do Pacto da Granja, no continente, uma nova fusão, então entre elementos das antigas formações histórica e reformista, de que nasceu o Partido Progressista, de Anselmo José Braamcamp, que foi o primeiro partido no sentido moderno do termo com programa, apresentando um regulamento interno, com assembleia geral e centros locais. O líder na Madeira viria a ser o Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos, depois visconde do Canavial, aderindo ao partido parte dos antigos membros do Partido Fusionista e do Regenerador. O Partido Fusionista teve como órgão o Correio do Funchal, substituído depois pelos periódicos A Fusão, A Voz do Povo e A Imprensa Livre. Em meados de 1879, com a queda do executivo, saía da Madeira o governador e conselheiro Afonso de Castro, logo assinando, a 21 de julho, a correspondência do governo civil, como membro do conselho do distrito, João da Câmara Leme, como visconde do Canavial, embora a 28 de agosto já não o faça, só voltando a assumir-se como visconde a partir de agosto do ano seguinte. Estranhamente, não se encontra qualquer documentação oficial da sua nomeação como visconde, mas apenas o dec. de 22 de abril de 1888, que o nomeia como conde, citando-se ainda a carta de 28 de março e o alvará de “mercê nova” de 15 de dezembro de 1888 (CLODE, 1983, 107), não havendo contudo confirmação alguma na chancelaria régia. A partir de então, desenvolveu o futuro visconde uma verdadeira campanha para vir a ocupar o lugar de governador civil do Funchal, assim como para passar a utilizar o título de visconde do Canavial. A luta política deve ter sido terrível, a avaliar logo pelos membros do conselho do distrito que assinam alternadamente a correspondência como governador substituto: o visconde do Canavial a 21 de julho e o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880) a 30 do mesmo mês. Luta que deve ter tido eco também nos corredores do poder em Lisboa, até pela utilização então intensiva do telégrafo submarino, através da Madeira Station no Funchal da Brazilian Submarine Telegraph Company Limited. A nomeação de João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos como governador substituto para o distrito do Funchal só viria a ser assinada a 30 de julho de 1879. O decreto terá chegado ao Funchal poucos dias depois e o futuro visconde, a 8 de agosto, logo emite proclamação impressa e inflamada ao sabor de alguns dos governadores anteriores, que eram, no entanto, efetivos, pois nenhum até então tinha feito especial alarido com o facto de ser “governador substituto” (ARM, Alfândega do Funchal, liv. 683). O novo governador substituto teria alguns curtos meses de estado de graça, pois em breve O Direito o acusava de se encontrar a receber três ordenados: o de governador substituto, o de professor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e o de delegado de Saúde. A 15 de fevereiro, o governador distribuía um comunicado com um desmentido atestado pelo delegado do Tesouro em como, passando a receber o ordenado de governador substituto, suspendera os outros. O futuro visconde do Canavial não seria confirmado naquela altura, pois, caindo o gabinete progressista em Lisboa, o novo gabinete regenerador demitiu de imediato os governadores civis progressistas e, a 26 de abril de 1881, já assina a correspondência do Funchal o vogal do Concelho do Distrito servindo de Governador Civil, João Maria Curado de Vasconcelos (1825-1896). A breve trecho, um autêntico terramoto político varreria o país, com epicentro na Madeira: a eleição do Dr. Manuel de Arriaga, candidato pelo Partido Republicano às cortes, a 26 de novembro de 1882, em eleições suplementares, dado o falecimento do deputado madeirense Dr. Luís de Freitas Branco (1819-1881). Ainda antes do anúncio oficial do apoio dos regeneradores ao líder do Partido Progressista, já O Direito alardeava não poder haver qualquer compromisso com os progressistas, temente, talvez, de ver candidatar-se pela Madeira o visconde do Canavial, até há pouco governador civil substituto do Funchal. Numa intensa campanha ao longo do ano entre os partidos monárquicos, acabou por ser eleito na Madeira o candidato republicano. Nos inícios do ano 1886, o presidente do ministério Fontes Pereira de Melo propunha um adiamento das eleições, para poder organizar uma série de diferendos, o que se estava a tornar um crescente motivo de tensão entre governo e oposição. O rei D. Luís não acedeu à proposta do chefe do governo, pelo que Fontes se viu na contingência de ter de pedir a demissão do gabinete. Foi então chamado ao governo o Partido Progressista, liderado por José Luciano de Castro, mas o início do novo governo progressista foi ocupado com as complicadas negociações que levaram ao casamento do príncipe herdeiro D. Carlos, atrasando uma série de nomeações. Teria sido o caso da nomeação do governador civil do Funchal, para o então líder dos progressistas, visconde do Canavial, lugar que só foi preenchido por dec. de 1 de julho de 1886. Após as eleições de março de 1887, o governador civil, visconde do Canavial, iniciou a convocação das eleições das juntas de paróquia, que somente ocorreram no Funchal e em Machico. O visconde do Canavial insistiu nas convocatórias por três vezes, sem resultado, essencialmente pelos custos que mais uma estrutura política acarretava, mas também por causa da conotação com a divisão eclesiástica tradicional e da ideia rural de que a paróquia era dirigida pelo “senhor pároco” ou “senhor vigário” e não por um elemento eleito entre os “senhores morgados”. A pressão do visconde do Canavial conduziu a um levantamento geral na ilha, que, começando nos meios rurais, quase envolveu o Funchal: a Parreca. Perante a contestação geral, mas só depois de muito pressionado, o visconde do Canavial veio a apresentar demissão a 26 de março de 1888, tendo sido entregue o governo ao visconde da Calçada, Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa (1812-1902). Apesar das dificuldades do seu governo e dos resultados da comissão de inquérito à Parreca, seria elevado a conde do Canavial no final desse ano de 1888, embora se desconheça a documentação oficial, como mencionámos acima. O conde do Canavial viria a falecer na sua residência, à rua da Carreira, a 13 de fevereiro de 1902. Quase 20 anos depois, surgiu a ideia de se levantar um monumento à sua memória, iniciativa de Abel Capitolino Batista; o trabalho foi entregue ao jovem escultor macaense Raul Xavier (1894-1964) e erguido sobre plinto de mármore branco, projeto do arquiteto Fernando Pires. A primeira pedra foi lançada a 1 de dezembro de 1921 e o monumento inaugurado a 2 de março de 1922, no passeio público, frente à sé do Funchal, tendo usado da palavra Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), em nome dos alunos do liceu (Diário de Notícias, 22 fev. 1922). A inauguração do monumento naquela altura e naquele local levantou enorme celeuma, dado o seu enquadramento monárquico, vindo a ser transferido para o Campo da Barca, a 6 de dezembro de 1932.     Rui Carita (atualizado a 31.12.2016)

Ciências da Saúde História Económica e Social História Política e Institucional Personalidades

laboratório de genética humana

O Laboratório de Genética Humana (LGH) é uma unidade de investigação, na área da genética humana, da Universidade da Madeira. Foi fundado em 2001, com o objetivo de dotar a Região de um laboratório no qual fosse possível a realização de testes genéticos para apoio à população madeirense. Desde a sua criação, o laboratório foi dirigido pelo seu fundador, o Prof. Doutor António Brehm, investigador e docente na Universidade da Madeira. A partir desta data, passou a ser possível realizar na Madeira muitos testes genéticos que eram realizados apenas em território continental. É o caso dos testes de paternidade, dos testes para a deteção de anomalias genéticas e de testes de patologias diversas. O LGH tem duas linhas de atuação: investigação e prestação de serviços. Assim, como resultado de um protocolo estabelecido com o Instituto Nacional de Medicina Legal, o LGH presta serviços na área de genética forense e, em articulação com o serviço de saúde da Região Autónoma da Madeira, nomeadamente com o Hospital Central do Funchal (Hospitais) realiza testes genéticos para diagnóstico precoce de malformações congénitas em fetos humanos com apenas 10 semanas de gestação.   Ana Londral (atualizado a 11.02.2017)

Biologia Terrestre Educação

crenças e superstições

A comunidade madeirense, como qualquer outra, caracteriza-se por ter fé, crer em entidades superiores, adoptar modos de manifestar essa atitude de em relação àquilo em que acredita. Mas, por um lado, temos de distinguir as crenças, de acordo com uma fé considerada verdadeira ou aceitável, assente em princípios bem definidos e tidos por inabaláveis certezas, que também podem comportar conjuntos de devoções complementares de grau menos importante, e das superstições que sobrestimam aspectos de pormenor ou de fantasia que se insinuaram e se consolidaram nas convicções individuais ou colectivas, ou podem ter tido origem numa experiência de vida que tenha marcado profundamente o grau de persuasão pessoal numa direcção completamente inesperada. Ao contrário do que possamos pensar, as crenças, as crendices e as superstições foram em grande parte herdadas de patrimónios muito antigos, transmitidas ao longo de gerações, saltando fronteiras, adaptando-se às várias maneiras de aceitar e interpretar a vida e o mundo que constituem as religiões, e também os mitos e as lendas. Na Madeira, a religião comporta uma muito vasta quantidade de crenças e devoções, de “crendices” (na expressão do Visconde do Porto da Cruz) e superstições. No final, não foi esquecida a muito intensa afirmação do “sebastianismo” na Madeira, com a crença no regresso de D. Sebastião e na Ilha de Arguim. Palavras-chave: superstições; crenças; romarias; festividades religiosas; tradição popular.   Os conceitos de crenças e superstições são muitas vezes tomados como iguais ou confundem-se um com o outro. A palavra “crendices” tem uma conotação mais próxima de “superstições”, enquanto “crenças” se apresenta como mais adequada e próxima das exigências de disciplinas como a etnologia e antropologia, e diz respeito às interações dos indivíduos ou das comunidades com as muitas entidades e as várias modalidades religiosas, sobrenaturais ou consideradas mágicas, numa relação de aceitável legitimidade ou paralegitimidade quanto à doutrina e às práticas por parte de uma coletividade. É perfeitamente aceitável empregar os três termos nesta breve exposição, desde que bem explicados: crenças, crendices e superstições. Na Madeira, nos começos do terceiro milénio, as pessoas são, na sua grande maioria, crentes, i.e., dizem acreditar nos preceitos da religião, predominantemente católica, que, por tradição familiar ou sociocultural ou por opção pessoal, lhes são transmitidos ou que cada um descobre por sua própria iniciativa. Se os fundamentos doutrinais assentam em canónicas certezas e, portanto, constituem verdades tidas por irrefutáveis, a fé conduz a conceções, atitudes, sentimentos básicos e correlatos que impregnam ou ditam os comportamentos. Cada um crê e age segundo uma doutrina, seja ele católico praticante ou não, protestante ou adventista. Também haverá os agnósticos e ateus, mas em minoria. A fé é vivida por cada um, mas pode também manifestar-se coletivamente em sessões de culto, devoções, festividades. Interessa acrescentar que é certo que cada um desses indivíduos pode intimamente ser sensível a modalidades mais particulares e de pormenor que não constituem o todo principal da doutrina e que, portanto, não vão prejudicar ou diminuir a solidez da adesão à fé ou doutrina nos seus pilares ortodoxos. Podem, pelo contrário, contribuir até para uma maior robustez e afirmação dessa religião ou dessa doutrina. Neste caso, podemos falar de crenças. Todavia também pode haver desvios que consistem em sobrevalorizar aspetos de menor importância ou falsa representatividade, que levam a acreditar e atuar de modo mais discordante com uma fé esclarecida (aqui podemos falar de crendices). Também pode acontecer que o indivíduo ou mesmo a comunidade se apegue voluntária ou involuntariamente a conceitos irracionais ou mesmo a um não explicável preconceito, a um pormenor, a uma atitude ou a um aspeto da realidade, aos quais atribui exagerado significado e especial interpretação. Então, estamos a falar de superstições. De acordo com o que fica dito, adiantamos que a fé, e falamos principalmente da católica, se afirma para os madeirenses fundada nos principais instrumentos e ensinamentos transmitidos pela família, pela Igreja, pela sociedade: os mandamentos, as orações principais e, entre elas, o Credo, que quase todos vão aprender na catequese. Neste cômputo breve, saliente-se a importância da celebração do Natal como a celebração e festividade por excelência da devoção madeirense. Durante esta época do ano, que inclui desde o Advento até aos Reis e mesmo ao dia de S.to Amaro, são muitas as manifestações religiosas, mas também as da devoção que penetram as casas das famílias, sem esquecer as de natureza mais profana. No calendário litúrgico, a Madeira valoriza o Natal muito mais do que a Páscoa, o que tem sido explicado pela influência importante que a espiritualidade franciscana exerceu no início do povoamento e ao longo dos séculos. A sensibilidade à família, à natureza e à fraternidade marcou muito o sentimento religioso dos madeirenses, que valorizam mais o período natalício, conduzindo a uma atmosfera de emoção e de festejo da simplicidade, dos valores da família e da solidariedade social. As entidades de devoção são o Jesus Menino, a Sagrada Família, os pastores e os Reis Magos. A lapinha ou o presépio, com a rochinha, perfazem uma natureza acolhedora e afetiva, que motiva os afetos do encontro entre gerações, entre vizinhos e entre todas as camadas sociais. Ao mesmo tempo, ergue-se Jesus no trono na escadinha onde as laranjas, os peros, as searinhas, as cabrinhas e o alegra-campo contextualizam o ambiente festivo. Também a morte do porco com todo o seu ritual proporciona momentos de festejo e de convivência da família e dos vizinhos. Neste período, limpam-se a fundo as moradias, enfeitam-se as lojas, as pessoas e as famílias criam uma atmosfera de saudação e de prendas. O Natal, com os bolos de mel, os licores, os enfeites dos interiores das casas e varandas, as rituais visitas aos avós e outros familiares com que não se conviveu durante o resto do ano, reveste-se do significado mais comovente e mais feliz da existência do ilhéu. É, de facto, um tempo de festa, não só no campo, mas também na cidade. Na devoção, ficam como marcos a Missa do Galo, ainda nalgumas paróquias as missas do parto e, nas festividades de carácter profano, a consoada, a abertura das prendas e a continuação da atmosfera festiva pelos restantes dias do ano, sobretudo a noite de S. Silvestre, até ao dia de S.to Amaro, em que se varrem os armários. A sensibilidade dos fiéis madeirenses também se manifesta no período da Quaresma e Páscoa. As famílias passaram a preocupar-se menos com a aquisição das bulas que isentam da proibição comer carne durante o período da Quaresma. No entanto, há sempre o cuidado de, nas sextas-feiras, a culinária privilegiar o peixe e o bacalhau em nome do espírito da época. Na Semana Santa, principalmente na quinta-feira, as montras das lojas do Funchal ficam tradicionalmente decoradas com grande preocupação estética, mediante arranjos realizados com os artigos nelas vendidos e com muita quantidade de flores. Na devoção durante esse período, a população acorre às manifestações religiosas, não só aos principais atos litúrgicos, mas sobretudo à procissão do Senhor dos Passos. As procissões e as romagens também constituem de modo mais espetacular a afirmação exteriorizada e adesão forte dos crentes. Há que considerar as crenças no âmbito da religião, mas que dizem respeito a devoções, a festividades, a conceções do sobrenatural. Entre elas, salientam-se os cultos às entidades principais, com celebrações, devoções e romarias, como a devoção a Jesus Cristo (Senhor Bom Jesus, na Ponta Delgada; Senhor dos Milagres, em Machico) e, em todas as paróquias, a tão aguardada Festa do Senhor. Destacam-se ainda as festas à Virgem Maria (Nossa Senhora do Monte, no Monte, Nossa Senhora do Livramento, no Caniço) e ao Espírito Santo (com um conjunto de festividades e rituais, incluindo a visita ao domicílio dos fiéis). Também são importantes as devoções a santos, como S. João, S.to António, S. Pedro, S. Roque, e S.to Amaro, aos patronos das paróquias. A devoção das primeiras sextas-feiras, o uso do escapulário de N.a S.a do Carmo e a prática de rezar o terço têm também muitos seguidores. Outro ritual frequente é o indispensável sinal da cruz pelo qual se protege religiosamente o começo de muitas atividades ou se abençoam pessoas, animais e alguns produtos (o pão, e.g.), se assinala o respeito pelo espaço sagrado (ao entrar na igreja, ao passar em frente dela ou do sacrário, ou diante de um cemitério) e se assegura a proteção dos incautos dos assaltos do diabo, dos maus espíritos e das feiticeiras. Passando a considerar as “crendices”, está muito enraizado na população o medo do diabo (o grima, o demónio, o papão), das almas penadas, dos espíritos maléficos, das feiticeiras.“Embora a civilização tenha destruído muitas crenças populares outrora vulgares na Madeira, ainda hoje existem algumas entre nós, que nos parecem dignas de menção por estarem bastante arreigadas no ânimo do nosso povo” (SILVA e MENESES, 1998, I, 331-332), dizem os autores do Elucidário Madeirense, e passam a enumerar algumas dessas que julgam continuarem mais persistentes: “A crença nas feiticeiras, nas bruxas, no mau olhado, no ar mau e no poder que têm certos indivíduos de curar com palavras ou de adivinhar o futuro por meio de cartas, encontra-se não só nos campos, mas também na cidade, sendo de notar que há pessoas consideradas cultas, que não abandonaram ainda inteiramente certas alusões que nos transmitiu o passado” No final, têm, contudo, o cuidado de contrariar a opinião de todos quantos pensam que a Madeira “continua a ser muito atreita a crendices e a superstições, reconhecendo mesmo que na Europa, mesmo nos países mais adiantados, há maior número de superstições e de crendices do que na Madeira”. Mais adiante, prosseguem os dois estudiosos com mais pormenores sobre o que foi discriminado: “As feiticeiras no entender do povo, têm por mister fazer toda a casta de malefícios, e aparecerem algumas vezes sob a forma de uma botija a rolar nos caminhos, a qual se transforma numa mulher, que obriga a pessoa que provocou a transformação a conduzi-la às costas até casa; as bruxas têm por principal encargo chupar de noite o sangue das crianças, malefício este que pode no entanto ser evitado, colocando-se uma tesoura aberta sob o travesseiro da cama da pessoa que se quer proteger” (Id., Ibid., 332). Para afastar as feiticeiras e os espíritos maus, não há como exclamar em voz alta: “Tosca marrosca, olhos na cara e freio na boca”. A seguir, os autores do Elucidário referem que o Campo Grande, no Paul da Serra, é o local das reuniões das feiticeiras presididas pelo demónio que toma a forma de bode, sendo os fogos-fátuos interpretados como presença ou mesmo baile das feiticeiras. No Elucidário Madeirense, são ainda referidas as crendices sobre o poder de algumas pessoas adivinharem o futuro com cartas de jogar e lançando sortes. E aludem às artes de curar com palavras (ar mau, mau olhado e bucho encostado), aos cuidados a ter quando, no campo, se ouvem os cães a uivar, o que denota a presença de maus espíritos, de feiticeiras ou do diabo nas redondezas. A maneira de os fazer calar é muito simples e eficaz, afirma a população: colocar no chão um sapato ou uma bota de sola para cima. Há três épocas em que as crendices e as superstições são ainda em maior número pelo S. João, pelo S. Pedro e pelo S.to António: “É na véspera de S. João e de S. Pedro que qualquer pessoa pode conhecer uma parte do destino que lhe está reservada. O rapaz ou rapariga solteiros, que à beira das ave-marias encher a boca de água e se puser à escuta, conhecerá pelo primeiro nome de homem ou de mulher que ouvir qual o nome da pessoa a quem há-de ligar um dia os seus destinos, sendo possível chegar ao mesmo resultado por meio de sortes lançadas em água, se alguma delas se abrir durante a noite. Um ovo lançado num copo também pode dizer muito, se o deixarmos exposto ao ar na noite de S. João, e se nesta noite a água refletir a imagem de uma pessoa ao baterem as 12 horas, é porque uma pessoa tem a vida garantida até à festa do mesmo santo no ano imediato” (Id., Ibid.). O Visconde do Porto da Cruz também regista uma das sortes, na noite de S.to António, e igualmente para saber como se chama o futuro namorado: “Quando uma rapariga quer saber o nome daquele que virá a ser seu marido, salta três vezes e em três direções diferentes a tradicional fogueira de Santo António, deixando cair no braseiro uma moeda. Ao outro dia, antes de romper o sol, procurará a moeda entre as cinzas para a entregar ao primeiro pobre que encontrar e a quem perguntará o nome” (PORTO DA CRUZ, 1954, 9) E prossegue: “As sortes não se limitam às questões de amores. Deitam-se sortes para tudo! […] Colocando debaixo da cama um prato com terra, outra com água e um terceiro com ouro e indo ao acaso tatear, logo se sabe o destino: – se tocar na terra é a morte, se for na água é viagem e no ouro a fortuna. […] Colocar debaixo do travesseiro, três favas – uma inteira, outra meia descascada e a terceira descascada. Ao bater a última badalada da meia-noite apanha-se uma das favas ao acaso; se for a inteira é que a vida seguirá na opulência; se for a meia descascada é a mediania e aquela que não tem casca significa a pobreza.” (Id., Ibid., 17). As três conclusões mais habituais nas sortes nos dias de S.to António e sobretudo de S. João, depois da interpretação feita pelo entendido ou entendida no que respeita às formas que assume o ovo que se quebra e deita para dentro do copo com suficiente água (copo e água, têm de ser bem transparentes, para que tais formas/figuras surjam bem definidas) ligam-se às três principais formas possíveis que a clara assume dentro da água – uma igreja, um caixão ou um barco. As bentas também merecem referência desenvolvida no Elucidário: “As bentas são ramos de árvores e arbustos colhidos na manhã de S. João, quando, diz o povo, todas as plantas têm virtude, à exceção da malfurada. Colocados à porta ou dentro das habitações, anulam os efeitos do mau-olhado e evitam muitos sortilégios a que está sujeita a humanidade. O alecrim é de entre as plantas existentes na Madeira, a que mais usada é para combater os artifícios diabólicos” (SILVA e MENESES, 1998, I, 332). Muitas pessoas fazem-se acompanhar de uma cruz feita com dois pequenos ramos de alecrim, que põem no bolso ou dentro da carteira, para proteção. Segundo a tradição, além do alecrim, a arruda também pode ser usada para afastar os maus espíritos ou o ar mau, plantada em vaso ou no jardim. Voltando à época festiva de S.to António e de S. João, um costume da predileção dos madeirenses, como aliás doutras gentes de Portugal, é saltar à fogueira, num simpático gesto de saudação de todos, sobretudo dos jovens, ao novo período do ano, com a chegada do solstício, no ensejo do aperfeiçoamento dos indivíduos e do universo. Aliás, nesse período solsticial, os dois elementos de eleição são a água e o fogo, ambos bem significativos da purificação e renovação da natureza. Muitos madeirenses acreditam que “os espíritos voltam ao mundo quando por cá lhes ficou qualquer coisa para cumprir. Para libertar as almas de promessa por cumprir e que as faz penar diz-se – ‘se é sinal de morto venha outro’ – e no caso de vir outro sinal então logo vem ao pensamento o modo como se procederá” (PORTO DA CRUZ, 1954, 18). Grande estima é dedicada aos animais, sobretudo os de criação, que merecem os cuidados no dia a dia, mas também os que, acompanhando a população na vigilância, podem proteger, auxiliar ou simplesmente acompanhar. Nos de criação, são muitos os cuidados para tratar das aves de capoeira, das cabras e principalmente do porco, cuidar da vaca que, na Ilha, fica resguardada no palheiro, o que é claramente devido às características orográficas da paisagem, mas também devido ao receio dos olhares dos estranhos que poderão exercer má influência no gado. Todo o cuidado é pouco para os proteger do mau-olhado, principalmente no que toca ao porco que vai ser um trunfo para a economia da família ao longo do ano seguinte. E os animais são objeto de outras atenções se se verificar moléstia ou estado débil que faça o dono suspeitar de qualquer mau espírito, mau ar ou olhar pérfido, recorre-se a processos ao alcance de todos com utensílios adequados, e.g.: colocam-se chifres de boi ou de carneiro, garrafas vazias e ramos de alecrim amarrados aos paus do chiqueiro e um carvão escondido num buraco do muro ou do barranco; para quebrar as invejas dos que cobiçam um suíno, esconde-se com o carvão um prego torcido e um pedaço de alecrim. Mas os cuidados com outros animais são levados muito à risca: os ovos das galinhas não podem ser chocados de modo que os pintos nasçam na fraqueza da lua. Também os cães são muito apreciados, porque podem constituir preciosa ajuda na defesa dos humanos e dos seus pertences, mas também como exteriorizada indicação de momentos de revelação do mundo dos maus espíritos, da presença do diabo e das feiticeiras, que denunciam com o seu uivar. A convivência com animais, alguns bem pequenos, pode fornecer sinais a serem interpretados de maneira que o homem esteja mais consciente do que se passa ou vai passar-se ao seu redor e sugerir soluções para os problemas e dificuldades quotidianas. Assim, abelha que entra em casa é boa nova, uma mosca varejeira é visita, um besoiro é mau agoiro, borboleta preta é má notícia, borboleta branca anuncia felicidade, uma aranha de manhã é agoiro; ao meio-dia preocupações e à noite esperanças, uma pomba branca que entra em casa traz paz e ventura, casa onde haja baratas terá dinheiro, se um rato atravessa o caminho à nossa frente prevê mau resultado no que se vai fazer, se um morcego bate nos vidros da janela, por cada pancada é um ano de vida que resta a quem ouvir, um fio de teia de aranha que atravessa um caminho é um resto de linhas da Virgem, animal que nasce em noite de S. João traz varinha de condão. E outras, não menos insólitas: quando as abelhas ferram, curam o reumatismo, o sangue da crista de galinha preta, espalhada na pele, chama os vermes intestinais, ingerir formigas faz apurar a vista, friccionar o casco da cabeça com moscas frita em azeite de baga de louro faz nascer o cabelo, beber chá de esterco de pombos faz bem à asma, a sopa de caracóis faz bem às forças perdidas e dá abundância de leite às amas, comer o coração cru das andorinhas dá bom fôlego, matar um gato faz atrasar a boa sorte sete anos, e matar um bisbis é pecado. Interpretam-se os voos das aves, principalmente da cagarra e da coruja; o aparecimento de uma aranha preta, se é de manhã ou à noite; o cantar do grilo que pode ser benfazejo para uns, maléfico para outros; um gato preto que aparece a atravessar a estrada ou a rua é sinal de mau prenúncio. No que toca ao convívio das crianças com alguns destes animais, o poisar de uma joaninha constituirá motivo de júbilo, e motivo para tentar agarrá-la, não para lhe fazer mal, mas para a guardar quase como talismã (“poisa, poisa, Maria Loisa …”); e os piolhos preocupam pais e familiares que, para alertar os miúdos a que tenham cuidado, dizem-lhes que, se não colaborarem em catá-los, os bicharocos podem arrastá-los a eles e às criancinhas até ao mar. Para os vegetais também há usos e interpretações. Como se disse anteriormente, o alecrim é considerado a planta por excelência do uso no ritual, dotada de poderes especiais. A arruda, assim como o alho, também ocupam um lugar importante entre as plantas protetoras; e o mesmo se diga do louro, preferido nas decorações festivas e nas preparações de culinária. Nas lapinhas, privilegia-se o alegra-campo, mas não podem ser esquecidas as searinhas (de trigo ou lentilhas) e as cabrinhas (daválias), ao lado das laranjas e dos peros. A significação das flores, na Madeira como no resto do território português, constitui um conjunto de códigos, que guardam uma linguagem variada e muito específica: o amor-perfeito significa pensamento; a camélia branca, pensamentos puros; a camélia vermelha, grandeza de alma; a camélia singela, arrependimento; o cravo simples vermelho, amor vivo e puro; o cravo seco, desprezo; a dália vermelha, teus olhos abrasam-me; a hera, amizade firme; o junquilho, desejo ardente; a laranjeira, castidade; o lírio branco, inocência; o lírio roxo, fogo de amor; a madressilva, laços de amor; a magnólia, simpatia; a margarida branca, sociedade; a margarida vermelha, responde-me; a papoila vermelha, alívio; a petúnia branca, convicção; a petúnia roxa, pouca confiança; a rosa amarela, infidelidade; a rosa branca, segredo; a rosa magenta, teus olhos perderam-me; a tulipa, declaração de amor; a urze, amor eterno; a violeta branca, promessa; a violeta dobrada, amizade; a violeta roxa, modéstia. Esta lista baseia-se em convenções da tradição que foram sobejamente divulgadas por folhetos de cordel e inspira mensagens trocadas entre namorados apaixonados ou desiludidos, assim como pode servir para a composição dos ramos em casamentos, aniversários e funerais. A figa que consiste em colocar o dedo polegar da mão entre o indicador e o médio faz parte dos gestos de proteção e suposta eficácia em momentos difíceis, sobretudo de arriscada decisão, para evitar alguma ameaça ou atrair alguma coisa boa. O Visconde do Porto da Cruz anota: “Quando se encontra um corcunda e para que ele traga a felicidade nesse dia, levanta-se a mão direita ao mesmo tempo que se faz uma figa dizendo: ‘– Ai Giba, ai Giba/Que entorta prá frente/Vai, vai diligente/E deixa-m’em paz/Golfinho Gibinha/Não mais me persiga/Aí vai uma figa/Nam olhes p’ra trás/Vai em nome de Maria Pandilha/E de toda la sua famila/Que nam enguices rico nem prove/Nem ninguém que o cáu covre – Amen”. E acrescenta: “A figa feita a um ‘Giba’ só se desfaz quando aparece uma farda e também não se deve ficar querendo mal ao Giba, que é para que a figa não perca o seu valor.” (PORTO DA CRUZ, 1954, 19-20). Um gesto que no passado era muito comum na Madeira, pelo menos entre os jovens, era o beliscão: quando se encontrava uma pessoa de cor e se estava acompanhado, dava-se um beliscão ao companheiro ou companheira, e pedia-se a realização de um desejo se a pessoa de cor fosse homem, e, pelo contrário, que se afastasse um mau sucesso se fosse mulher. Em Portugal, dar um passo com o pé direito é necessário quando se comemora o aniversário ou se entra no Ano Novo, na noite de S. Silvestre. E pedir a bênção ao pai, à mãe e a outros membros da família mais velhos, incluindo os padrinhos também e o sacerdote, era quase obrigatório: consistia em chegar a criança ou o jovem e mesmo o adulto ao pé da outra pessoa-autoridade e dizer: “Pai, a sua bênção”, sendo a resposta: “Deus te abençoe!” Os sonhos também ocupam um lugar especial nas crendices e superstições dos madeirenses. As interpretações seguem as da tradição, que constam das publicações pseudopedagógicas e didáticas da literatura de cordel (almanaques e livros de sonhos); e.g., sonhar com flores prevê morte de pessoa de família ou conhecida, sonhar com excrementos, dinheiro, ter sorte. No caso da Madeira, saliente-se a sua utilização para a previsão do resultado de alguns jogos, sobretudo a lotaria ou o jogo do bicho. A terminar, registe-se ainda um aspeto paralelo, o mito de D. Sebastião, e os que se encontram relacionados com ele, como o da ilha de Arguim ou ilha da esperança, situada numa concreta ilha submersa que alguns afirmam ter avistado de alguns sítios da Ilha (do norte e mesmo do sul, e.g. Câmara de Lobos e na Ponta do Sol), e que será um cenário idílico de ordem social, harmonia entre os seus habitantes, trabalho produtivo, grande abundância, beleza, saúde e paz, essa ilha que um dia se crê vir a emergir, substituindo a Madeira, que, assim, poderá desaparecer nas águas do oceano. Estes testemunhos manifestam a permanência de uma narrativa, abrangente ou fracionada em vários episódios, todos eles bem reconhecidos como estando ligados à crença sebástica, i.e., derivados da importação do mito do sebastianismo. Registamos, seguidamente, alguns testemunhos sobre esta matéria, recolhidos por universitários madeirenses junto de informantes para o Arquivo Digital de Literatura Oral Tradicional (ADLOT). O primeiro é uma pequena narração em que se encontram, como acontece frequentemente, algumas contaminações (no princípio, “São” por “Dom” ou “Rei”, o que resulta em curiosa variação): “São Sebastião veio de África durante a guerra para a Madeira onde se instalou. Foi avisado por um anjo que ia ser atacado. Então com um só golpe de espada formou o Curral das Freiras, onde se foi esconder dos inimigos. Quando estes chegaram viram que não conseguiam atacá-lo e desistiram, pois não havia maneira de lá entrar. A quantidade de rocha tirada pela espada foi posta onde é hoje a Penha de Águia. Dom Sebastião há de voltar um dia, e no dia que este voltar o ponto da Madeira vai ser as escadas da Igreja do Monte. Tem-se de andar sempre para a frente, pois se olharmos para trás ficamos em estátuas – ah/lembrei-me – Uma das ilhas vai afundar, ou a Madeira ou o Porto Santo, para se erguer a ilha onde está o rei Dom Sebastião” (ADOLT – Madeira; informante: Maria Estela Nunes Mota, 58 anos, Santa Cruz, 1993; coletores: Jordão C. R. Freitas e João Dário). Mais duas pequenas histórias narradas por uma mesma informante. A primeira: “Umas pessoas que vinham de Câmara de Lobos encontraram dois cavaleiros que lamentavam a dureza da sua vida. Aquelas acompanharam os viajantes. Chegados à Penha os cavaleiros desceram-na. Curiosos, os chavelhos seguiram-nos e viram eles [sic] entrar pelo mar adentro”. E a outra, semelhante numa circunstância, mas importante por introduzir a ilha de Arguim no cenário, ainda por cima situada em pleno Funchal: “Na manhã de São João umas pessoas que vinham de Câmara de Lobos para o Funchal com carga para o mercado, descansaram junto da Penha de França, ali na descida para a Pontinha. Viram uma terra, a terra de Arguim. Baixaram-se para atirar um punhado de terra, mas quando se levantaram a terra já tinha desaparecido” (ADLOT – Madeira; informante: Maria do Carmo Freitas, 60 anos, Eiras, Santa Cruz, 1993; coletor: Jordão C. R. Freitas). Outras narrativas consideradas lendas poderão ascender ao estatuto de mitos: o Cavalum nas furnas de Machico (autêntico Adamastor madeirense) e o Bicho do Cidrão.   João David Pinto Correia (atualizado a 01.03.2017)

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