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À partida, a França não está nos horizontes da Ilha, não fora o seu empenho no comércio do açúcar e no processo de partilha do mundo com a expansão europeia, através de ações de pirataria e corso. Assim, nos primórdios da sociedade madeirense, foi evidente a presença dos mercadores franceses, que assumiram um papel destacado na partilha do comércio e dos lucros do açúcar produzido na Madeira. Essa possibilidade foi favorecida pelo facto de a Coroa portuguesa facilitar a atividade e circulação dos Franceses, bem como dos Italianos, flamengos e bretões. Tudo isto aconteceu porque o Funchal se transformou rapidamente num centro de negócios que os atraía. Em 1530, Giulio Landi refere que é o vinho e açúcar que traz à Ilha os “mercadores de países muito distantes: de Itália, França, Flandres, Inglaterra e da Península Ibérica” (ARAGÃO, 1981, 83). Atente-se que, a partir do séc. XVII, mais precisamente em 1626, mesmo ainda antes dos Ingleses, a França passou a poder ter representação consular na Ilha. O primeiro interesse dos Franceses é o comércio do açúcar da Madeira que, de acordo com os valores determinados para a produção deste produto em 1496, correspondia, no máximo, a 9000 arrobas, i.e., 13 % do valor total das exportações estipuladas pela Coroa portuguesa. No decurso da centúria, os mercadores franceses são referenciados no negócio do açúcar em 1503, 1526 e 1534. Depois, nos sécs. XVII e XVIII, estão interessados no comércio de conservas de casca e de cidra para Rochela e S. Malo. Este interesse pelo açúcar madeirense perdura no tempo, de modo que Francisco Pyrard de Laval afirmava, em princípios do séc. XVII, que “não se fala em França senão no açúcar da Madeira e da ilha de S. Tomé, mas este é uma bagatela em comparação do Brasil, porque na ilha da Madeira não há mais de sete ou oito engenhos a fazer açúcar e quatro ou cinco na de S. Tomé” (PYRARD, 1944, I, 228). O retorno de mercadorias vindas de França, embora ocasional, acontece e incide naquilo de que a Ilha mais precisa a partir do séc. XVI, os cereais. Há referências à importação de trigo deste país em 1610, 1617 e 1647, para acudir aos momentos de dificuldade, referindo-se para o último ano a quantia de 300 moios de trigo. Em 1669, testemunha-se a importância destas transações comerciais de Franceses, na Ilha. Quem o diz é o cônsul francês: “As nações que frequentam esta Ilha são os Franceses que trazem algumas vezes trigo, panos de toda a sorte, tecidos e sarjas de St. Messant, lã para colchões, cobertas, papel, ferro, azeite, breu, tafetás e outros estofos de seda. Para as conservas só pequenas embarcações de 30 a 40 tonéis e que não levam mais que seis a oito homens as quais correm grandes riscos por causa dos pequenos corsários de Salé. […] Para os navios da companhia e outros particulares que vêm carregar vinhos para as ilhas da América não correm nenhum risco porque são grandes barcos e fortes” (SILBERT, 1997, 113). Em 1689, porém, a situação mudara, pois “o comércio que os súbditos de Sua Majestade aqui fazem de ordinário são os açúcares para o Levante e cascas de limão. Mas como estas duas espécies de mercadorias dão prejuízo em França rejeitam este negócio e sempre vai de mal a pior. Antigamente carregavam-se vinhos para a América de que se tirava algum pouco proveito mas como foi proibida a exportação, o negócio acabou” (Id., Ibid., 114). Em 1716 a situação ainda não era favorável pois: “O comércio que os senhores franceses fazem nesta ilha é de pouca importância por causa de não terem aqui bons produtos para poderem dar em troca de suas fancarias e outras mercadorias que poderiam trazer de França, vendo que nesta ilha não há nenhum género que lhes possa interessar senão as cascas de limões e isto não vai todos os anos quando muito 400 caixas das ditas cascas, e este ano até ao presente nenhum navio francês carregou alguma para França”. De forma que, em 1717, “por ordem de Sua Majestade não é também permitido aos franceses como outrora transportar vinho deste país para as ilhas da América. Se isto é o comércio da França não se poderá restabelecer nesta Ilha, também não encontro no Funchal senão dois franceses casados que constituem toda a nação, dos quais um que era marinheiro começou a negociar e o outro que era criado de um português faz também algum pequeno comércio” (Id., Ibid.). Excecionalmente, a Madeira ainda recebeu pipas de vinho e de cerveja de França para abastecimento da comunidade britânica, tendo-se autorizado, em 1763, a importação de duas pipas de vinho e de igual quantia de cerveja. Note-se que, no decurso do séc. XVIII, foi constante a presença de navios franceses no porto do Funchal, de forma que, entre 1727 e 1802, passaram por este porto 226 embarcações, número que deverá no entanto considerar-se algo diminuto em relação aos 15.798 navios ingleses. Tudo isto porque está definitivamente assente a hegemonia britânica e a fama, a partir de 1735, dos Franceses como burlões. A opinião negativa alarga-se ao trigo francês, considerado o pior da Europa; não obstante, quer as embarcações, quer o trigo, reaparecerem em 1765. É um regresso muito saudado, que se afirma em 1777, mas que a Guerra da Independência dos Estados Unidos da América vai travar, pois, como refere Albert Silbert, “as guerras da Revolução e do Império levam os ingleses a dominar definitivamente” (Id., Ibid., 120). As relações comerciais com a França mantiveram-se nos sécs. XIX e XX, embora não com o mesmo fulgor e a importância de épocas anteriores. Para o séc. XX, destaca-se a importância do vinho, que ganhou grande peso na culinária, a exportação de bordados e o turismo de pessoas oriundas desse país. O contributo francês era variado e, segundo informação de 1961, tanto podia ser de bacalhau, como do trigo, óleos alimentares, tecidos, seda, fio de algodão, ferro e aço. Ao comércio, contudo, alia-se a cobiça pelo domínio e a partilha dos espaços e das rotas comerciais, que se expressa pela pirataria e o corso. D. João III, em carta de 2 de maio de 1534 dirigida a Rui Fernandes, referia que “os mares que todos devem e podem navegar são aqueles que sempre foram sabidos de todos, mas os outros que nunca foram sabidos, nem parecia que se podiam navegar e foram descobertos com tão grande trabalho por mim, esses não” (ALBUQUERQUE, 1938, 167). A resposta foi dada no desagravo de Francisco I ao Cardeal de Toledo: “O sol quando brilha é para todos; gostaria muito de ver a cláusula do testamento de Adão que me exclui da partilha do mundo” (WILLIAMS, 2012, 30), justificando assim as ações de corso, que se sucedem. No séc. XVI, a primeira ação conhecida relacionada com França é a de um corsário biscainho, em 1518, e alguns reflexos da pirataria e corso exercidos no estreito de Gibraltar e na costa portuguesa, que, por vezes, atingia embarcações saídas ou destinadas à Madeira. Estes piratas e corsários e geram uma situação de instabilidade para o comércio madeirense. Veja-se o célebre assalto francês de outubro de 1566: Bertrand de Montluc, ao comando de uma armada composta de três embarcações, perpetrava um dos mais terríveis assaltos à vila Baleira e à cidade do Funchal. Durante 15 dias, o Funchal ficou a mando deste pirata, que roubou os produtos agrícolas (vinho e açúcar), profanou igrejas (a Sé do Funchal) e roubou alfaias, e fez muitos escravos. Parte da presa foi leiloada no momento da partida entre os residentes, e outra parte vendida na ilha de La Palma, onde os navios fizeram escala depois da saída do Funchal. Com o dealbar dos conflitos que sucederam às revoluções americana e francesa, surgem novas ações de corso na Madeira, que marcam, de forma clara, os períodos entre 1793-1801 e 1804-1811. O final do séc. XVIII é particularmente importante, uma vez que foi o período em que a guerra naval britânico-francesa assumiu maior dimensão, com reflexos evidentes na estabilidade da economia marítima da Ilha. A França, molestada nos seus intentos de ocupação do continente americano, foi a primeira nação a reconhecer o novo país, assinando com ele, em 1778, um tratado de comércio; na sequência da Revolução Francesa (1789), os EUA seriam o preferencial aliado dos Franceses. O novo estado de coisas não foi favorável à Madeira, sendo natural a apreensão do governador da Ilha, em 1793, quanto a um possível ataque dos Franceses, a exemplo do que sucedera em Nápoles. O cônsul americano no Funchal, João M. Pintard, não nega o seu apoio à República Francesa pelo que a apreensão nas autoridades locais era evidente. O papel dos cônsules era fundamental, pois, por seu intermédio, divulgavam-se as informações e solucionavam-se problemas e conflitos; podiam mesmo assumir o papel de agitadores políticos, como sucedeu com os cônsules americano e francês. O francês, Nicolau de La Tuellierie, é considerado pelas autoridades madeirenses um agitador. Aliara-se ao comerciante José Pedro Monteiro, sendo casado com uma filha sua, Ana Carlota; é o sogro que ocupa o cargo consular na sequência da sua morte. A Revolução Francesa repercutiu-se de diversas maneiras na Ilha e criou as condições para uma afirmação hegemónica dos Ingleses. Estes, com medo de perderem a sua posição privilegiada, acabaram por ocupar a Madeira, por dois momentos, em princípios do séc. XIX, o que contribuiu para um reforço da posição e dos interesses ingleses na Ilha. Os problemas da segurança nos mares continuaram e o corso ganhou nova dimensão na conjuntura internacional, assumindo a Madeira um papel de centro dessa ação no mundo atlântico, o que implicava efeitos claros na sua vida. Assim, os mares do Funchal eram constantemente invadidos por corsários franceses e castelhanos que andavam em busca da sua principal presa, os navios ingleses. Em 1803, em face da tomada da galera espanhola por um comissário inglês, no porto de Ponta Delgada, nasce uma viva polémica, em razão de o ato se ter praticado em águas territoriais portuguesas. Uma das justificações avançadas no momento, e que legitimava aquela atitude, era a apresentação das ordens que o comissário inglês possuía para tomar navios franceses e holandeses. O caso repetiu-se, no mesmo ano, com o corsário Gordon, que tomou a galera espanhola N.ª Srª das Mercês dentro do porto. O governador da Ilha, em carta ao corsário, solicita a apresentação de uma prova do estado de guerra e da ordem de corso, pois, caso contrário, seria considerado pirata. O corso acontecia de forma permanente e estava sempre justificado. Bastava o navio pertencer a uma nacionalidade neutral em face dos conflitos para se justificar uma ação de corso. Outras vezes, era o facto de o navio transportar mercadorias de uma nação inimiga. A atuação, em face destas situações, bem como a organização e o apoio ao corso estavam regulamentados pelas respetivas ordenanças, das quais temos notícia, em França, para 1584, 1778, 1881; na Holanda, em 1597, 1622, 1705; em Inglaterra, apenas em 1707; na Dinamarca, em 1720; e em Espanha, nos anos de 1718, 1762, 1779, 1802. A questão da legitimidade jurídica destas ações de corso prende-se com várias noções difusas de direito internacional que marcaram os primórdios da expansão europeia. Parece nunca ter havido a possibilidade de entendimento, não obstante a criação de tribunais arbitrais para o efeito. As duas décadas finais do séc. XVI são marcadas por inúmeros esforços da diplomacia europeia, no sentido de conseguir a solução para as presas do corso. Para isso, Portugal e França haviam acordado, em 1548, a criação de dois tribunais de ar­bi­tragem, cuja função era anular as autorizações de represália e cartas de corso. Mas a sua existência não teve reflexos evidentes na ação dos corsários. Há ainda uma permuta pacífica de pessoas e conhecimentos, que estreitam as ligações da Ilha com França e que vão ao encontro de interesses comuns. Partilham-se produtos, mas também conhecimentos e técnicas. Na segunda metade do séc. XVIII, reforçam-se os contactos comerciais entre a Ilha e França, por força da grande demanda que tinham as aguardentes de França, para fortificar os vinhos da Ilha para exportação. Em 1704, W. Bolton refere que se fazia a adição de aguardente de França aos vinhos de exportação, tendo recebido, desde Londres, 10 pipas. A maior parte deste comércio não se fazia de forma direta, mas através dos Ingleses, que o controlavam. As relações e as influências culturais francesas reforçaram-se também através de muitos jovens que faziam os seus estudos universitários em França. Entre estes destacou-se o médico João da Câmara Leme, que manifestou especial atenção aos assuntos enológicos, tendo oportunidade de conhecer, em França, os sistemas de aquecimento usados desde o primeiro quartel do séc. XIX, nomeadamente os realizados em vaso fechado de Appert, Ervais, Verguette, Cemotte e Pasteur. No regresso à Madeira, ao ser confrontado com o processo de estufagem em uso, notou que o sistema de aquecimento lento com comunicação com o ar ambiente dava ao vinho um sabor a queimado muito desagradável, ao mesmo tempo que lhe retirava as propriedades essenciais; daí as tentativas de adaptação dos sistemas franceses, que o levaram à criação de um novo sistema de estufagem dos vinhos. As relações vitivinícolas com a França persistem no tempo e anunciam tanto inovações como problemas para a Ilha. Em fevereiro de 1851, ocorreu a doença da vinha, conhecida como o oídio, que deverá ter chegado à Ilha em castas trazidas de França. O oídio, também vulgarmente conhecido como “mangra da vinha”, surgiu em Inglaterra em 1845, alastrando depois a França e a outras regiões vinícolas da Europa. As soluções para esta doença tardaram e, por isso mesmo, os efeitos fizeram-se sentir, de forma prolongada, na produção. João da Câmara Leme, à altura em Paris, de imediato enviou à Ilha os esclarecimentos necessários sobre a doença e o modo de a atacar. Em de 30 de novembro de 1852 apresentou os meios usados em França para combater a mangra por meio de pó de enxofre. Ainda em França, o barão de Ornelas deu conta de um novo processo de tratamento com sulphur, que só começou a ser utilizado a partir de 1861. O desenvolvimento da indústria de construção de equipamentos para o fabrico de açúcar, seja de cana ou de beterraba, aconteceu em países onde a produção de açúcar assumia um lugar significativo na economia. Deste modo, a França e a Inglaterra assumiram a posição pioneira no desenvolvimento da tecnologia açucareira. À sua posição, no início da indústria do açúcar de beterraba, junta-se a colonial: os Franceses detinham importantes colónias açucareiras nas Antilhas. No âmbito tecnológico, não devemos descurar o papel do engenho do Hinton no quadro da tecnologia açucareira de princípios do séc. XX. Há uma evidente relação entre o que acontece em França e a evolução da tecnologia de produção de açúcar, acompanhada de perto por João Higino Ferraz. Por seu lado, da parte dos Franceses, havia interesse em conhecer o caso particular da Madeira, que poderia ser um meio para a penetração da tecnologia francesa usada para o fabrico do açúcar de beterraba no processo de laboração do açúcar a partir da cana doce. João Higino Ferraz, encarregado do engenho do Hinton, afirma-se como um perfeito conhecedor da realidade científica do entorno do engenho, opinando tanto sobre agronomia como sobre mecânica e química e mantendo-se sempre atualizado sobre as inovações e experiências na Europa, nomeadamente em França. Da sua lista de contactos e conhecimentos fazem parte personalidades destacadas do mundo da química e da mecânica, com estudos publicados. Assim, para além dos contactos assíduos com Naudet, refere-nos frequentemente os estudos de Maxime Buisson, E. Barbet, Saillard, F. Dobler, D. Sidersky, Luiz de Castilho, H. Bochet, Effort e Gualet. No sentido de dar continuidade ao processo de modernização da fábrica do Torreão, esteve de visita aos complexos industriais franceses que laboravam a beterraba para o fabrico de açúcar. A visita foi proveitosa, refletindo-se nas modernizações do sistema do engenho do Hinton. Certamente esta experiência terá sido importante para a visita que fez, em 1930, a Ponta Delgada (São Miguel), para dar alguns ensinamentos sobre o processo de fabrico de açúcar, nomeadamente a fermentação do melaço. Por outro lado, o engenho do Hinton acolhia especialistas de todo o mundo, na condição de visitantes ou como contratados para a execução dos trabalhos especializados. Para o fabrico de açúcar contrataram-se em França afamados cuisieurs, por forma a manter as orientações de Naudet. A partir de 1905, J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedera com o fabrico do açúcar, manteve-se permanentemente atualizado sobre a tecnologia francesa de fabrico de todo o tipo de bebidas fermentadas e destiladas, adaptando a tecnologia às condições do empreendimento que havia montado, à sua curiosidade e às suas experiência. São frequentes as referências a equipamentos franceses, bem como a inúmera literatura sobre o tema de que Ferraz era possuidor. Na déc. de 20, construiu uma loja de vinho onde foi possível montar um aparelho de evaporação Barbet e um moderno sistema de refrigeração. Ao nível da destilaria, devemos assinalar a sua presença em Almeirim, em 1916, para montar um aparelho francês. As experiências levaram-no a produzir cidra; cerveja; malte; vinho branco; xarope de uva; vinho de mesa e espumoso, que dizia de “fantasia” para não se confundir com o francês; vinagre; cidra; licores finos; anis escarchado; genebra, que vendia localmente e exportava para alguns mercados como a Alemanha. Tentou, ainda, imitar os vinhos franceses sauterne e o champanhe. Quanto à presença francesa na Ilha, note-se que, aos que foram diretamente de França, se devem acrescentar outros, chegados por via indireta, como a família Betencourt, originária da Normandia e chegada à Madeira por via das Canárias, com Jean de Betencourt (1362-1425). Estes Betencourt estabeleceram ligações com a família dos capitães do Funchal, através de Maria de Betencourt, que se casou com Rui Gonçalves da Câmara, proprietário da Lombada na Ponta de Sol, que trocou pela capitania da ilha de São Miguel, nos Açores. Acerca da presença de madeirenses nas universidades de França, destacam-se Gregório Joaquim Dinis (1863-1931), de São Vicente, que cursou Medicina em Paris, e João da Câmara Leme (1829-1902), que estudou em Montpellier. Não há muitos registos sobre a emigração de madeirenses para França, nem dados que permitam avaliar a importância da comunidade francesa, ao longo dos tempos, no Funchal. Para o período de 1872 a 1915, o livro de registo de passaportes assinala que saíram da Ilha para França 37 madeirenses, maioritariamente no séc. XIX. Estes eram oriundos maioritariamente de freguesias do Funchal, mas também do Estreito de Câmara de Lobos, de Câmara de Lobos, do Porto da Cruz e de São Vicente. No séc. XIX, aparecem na Ilha muitos Franceses, alguns acompanhados de criados e governantas, o que denota que viajariam em turismo. Outros, ainda, servem-se do Funchal para rumar a outros destinos, como Inglaterra, África e as Canárias. Embora haja referências sobre a emigração para França na déc. de 60 do séc. XX, nunca os madeirenses tiveram este país como um destino de relevo, pois tinham o caminho mais facilitado para outros destinos. Desta forma, podemos afirmar que as relações entre o arquipélago e França pautaram diversos momentos da história da Ilha e daquele país, sendo evidentes intercâmbios de diversa índole, que favoreceram a Madeira.     Alberto Vieira (atualizado 31.01.2017)

Madeira Global

esoterismo

O esoterismo é o lado oculto e não revelado das doutrinas, das religiões e dos grupos espirituais, que apenas se transmite por via oral, de mestre para os discípulos. Também poderá estar associado ao misticismo, no sentido em que sinaliza a busca das leis e dos conhecimentos que regem o Universo. É a busca aprofundada do significado das coisas, naquilo que normalmente escapa à nossa perceção. Tendo em consideração a origem etimológica da palavra, pode-se dizer que o esoterismo é o contrário de exoterismo. Ou seja, esotérico é aquilo que está dentro, escondido e não pode ser revelado, em oposição ao que é exterior e é, ou pode ser, conhecido de todos. Sendo assim, reporta-se a conhecimentos teológicos, filosóficos, religiosos e teosóficos, que não podem ser publicados e revelados. Estes grupos ou ordens são definidos como iniciáticos, no sentido em que os novos membros são submetidos a um ritual de iniciação onde um dos aspetos é o juramento de guardar segredo, relativamente a diversos aspetos da ordem ou associação. Assim, no taoismo e tantra, os novos discípulos recebem um mantra secreto. A primeira utilização do conceito foi feita por Johann Gottfried Herder (1744-1803), em oposição ao racionalismo iluminista. Mas foi Eliphas Lévi (1810-1875) quem o vulgarizou, em conjunto com o ocultismo. Assim, o esoterismo pode ser entendido como ocultismo, misticismo e hermetismo. É ocultismo no sentido de que é oculto, pois há conhecimentos e realidades espirituais e sobrenaturais que não estão visíveis e que implicam o recurso a artes divinatórias, e.g., tarot, astrologia, runas, cartomância, iching, ou práticas espirituais, através da necromancia e da bruxaria. Já o misticismo, como o gnosticismo e a cabala, situa-se a um nível superior e pretende, a partir do estudo, de práticas e de rituais, estabelecer o contacto com o divino através da contemplação, enquanto o hermetismo defende uma realidade visível e invisível e o estabelecimento de contactos entre os dois mundos, estando ligado a Hermes e ao antigo Egito. Em primeiro lugar, é necessário considerar que a figura do chamado feiticeiro ou bruxo não tem qualquer significado esotérico. Aquele representa alguém que domina o conhecimento popular e que se afirma pelos dizeres e cantares, sendo uma referência para a comunidade. Destes, podemos salientar as figuras do Feiticeiro do Norte (Manuel Gonçalves, 1858-1927) e do Feiticeiro da Calheta (João Gomes de Sousa, 1895-1974). A ligação do esoterismo à Madeira começou a partir do momento em que se associou ao mito da Atlântida o próprio arquipélago, considerado como uma reminiscência daquela lendária ilha. Por outro lado, não se pode esquecer as ligações da Madeira à maçonaria, que remontam ao séc. XVIII. Todos os que foram contagiados por conhecimentos esotéricos sentem algo especial relativamente ao arquipélago da Madeira, fazendo da Ilha um local de peregrinação obrigatória na sua missão esotérica. A propensão de vários grupos esotéricos pela Madeira é reveladora dessa situação. Assim, para além do facto de a maçonaria em Portugal ter tido a sua primeira etapa na Madeira, assinalam-se múltiplas presenças pessoais e institucionais com ligações ao esoterismo, relacionadas com locais de emigração, e.g., Brasil, Venezuela e África do Sul. De entre as diversas personalidades adeptas e/ou estudiosas do esoterismo, pode-se assinalar, em primeiro lugar, a figura de Octávio José dos Santos, que assinava com o pseudónimo de Octávio de Marialva (1898-1992). Este apresentou, na sua trajetória, uma formação em escolas esotéricas e escreveu vários estudos (inéditos) sobre o esoterismo: Soluções, Sapiência, Cátedra, Polémicas, Mistérios, Cabala, Iniciação, Panaceia, Astrognose, Arcanos, Suma, Astramundo, Universo e Profecias. Referencie-se ainda o grupo Hermetismo e Nouesis, com ligações ao grupo Corpus Hermeticum, criado em 2000 na rede Facebook.     Alberto Vieira (atualizado a 23.01.2017)

Cultura e Tradições Populares Religiões

canovai, stanislao

Stanislao Canovai nasceu a 27 de março de 1740 em Florença, e nesta mesma cidade morreu a 17 de novembro de 1812. Foi um dos matemáticos e físicos mais famosos do séc. XVIII, e é considerado o iniciador da corrente científica que se afirmou na segunda metade deste século, nas Escolas Pias de Toscana. A par disto, Canovai foi considerado pelos seus contemporâneos um grande escritor, pela sua doutrina e pelo seu estilo preciso e eloquente. Estudou em Florença e Pisa, como iniciante na Ordem dos Esculápios, e em 1765, foi nomeado para a cátedra de Filosofia e Teologia no seminário episcopal de Cortona, onde lecionou Matemática durante 15 anos. Em 1768, interrompeu, por um período muito curto, o seu ensino em Cortona para ensinar Física matemática no colégio real de Parma. Em seguida foi chamado para ensinar Hidráulica no colégio florentino dos Esculápios. Publicou em Florença, com o editor Giovacchino Pagani, o volume Elogio di Amerigo Vespucci, che Riportò il Premio dalla Nobile Accademia Etrusca di Cortona nel dì 15 Ottobre dell'Anno 1788. Con una Dissertazione Giustificativa di questo Celebre Navigatore. A obra apresentava-se bem fundamentada e historicamente fundada. Canovai confrontou códices e publicações, e discutiu as escolhas e declarações de estudiosos anteriores, como Angelo Maria Bandini. A obra visava sobretudo considerar e enquadrar o significado cultural do empreendimento de Vespúcio num âmbito crítico e científico mais amplo, e acabou por provocar um debate animado. Canovai, como eminente cientista, queria estabelecer a jornada de Vespúcio de forma conclusiva, e, em particular, decidiu examinar as rotas, a fim de resolver a questão da longitude. A passagem pela Madeira era crucial, dado que a Ilha e o arquipélago eram um dos pontos geográficos fundamentais, tanto para os cálculos de Canovai, como para confirmar a verdade histórica das várias viagens de Vespúcio. Obras de Stanislao Canovai: Elogio di Amerigo Vespucci, che Riportò il Premio dalla Nobile Accademia Etrusca di Cortona nel Dì 15 Ottobre dell'Anno 1788. Con una Dissertazione Giustificativa di questo Celebre Navigatore (1798).   Valeria Biagi (atualizado a 28.01.2017)

Matemática

áustria

A partir do séc. XV, foram vários os contratos de casamento que se celebraram entre as casas reais de Portugal e da Áustria, o que fez com que se estabelecessem laços entre os dois países. A título de exemplo, D. Leonor, filha do Rei D. Duarte, da Casa de Avis, casou-se com o Imperador Frederico I da Casa Real da Áustria, i.e., da linhagem dos Habsburgos; D. Isabel, filha de D. Manuel I, casou-se com Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico e Rei das Espanhas. A dinastia dos Habsburgos estendeu-se ao longo de séculos e trouxe para Portugal várias rainhas: D. Leonor da Áustria, esposa em segundas núpcias de D. Manuel I; D. Catarina da Áustria, esposa de D. João III; D. Margarida da Áustria, esposa de Filipe II; D. Maria Ana da Áustria, esposa de D. João V; e D. Leopoldina da Áustria, esposa de D. Pedro IV. Por outro lado, também Portugal esteve de certa maneira sob a alçada do poder desta família durante a dinastia filipina, uma vez que Filipe I de Portugal era um Habsburgo, filho de D. Isabel de Portugal e de Carlos V. Foi igualmente através dos Habsburgos que a relação da Áustria com a ilha da Madeira se estreitou. No séc. XIX, a Madeira tornou-se num local de eleição para a nobreza europeia, tanto para fins turísticos como terapêuticos, mas também a escala ideal para quem fosse cruzar o Atlântico. D. Leopoldina, filha do Imperador Francisco I da Áustria, fez escala na Madeira entre 11 e 13 de setembro de 1817, a caminho do Rio de Janeiro, onde iria contrair matrimónio com o então infante D. Pedro (futuro D. Pedro IV de Portugal e Imperador D. Pedro I do Brasil). A futura imperatriz do Brasil ficou hospedada no Palácio de S. Lourenço, e ao longo destes dias esteve presente em várias festas e receções que lhe foram dedicadas por ilustres locais. Maximiliano de Habsburgo-Lorena, irmão do Imperador Francisco José da Áustria, terá estado para se casar com D. Maria Amélia de Bragança (filha de D. Pedro I e de sua segunda esposa, D. Maria Amélia). Todavia, ela faleceu na ilha da Madeira antes de o matrimónio se ter realizado. Maximiliano acabou por se casar com Maria Carlota da Bélgica e foi com ela para a Madeira a 6 de dezembro de 1859. O príncipe seguiu viagem para a América do Sul, enquanto a princesa ficou no Funchal até ao seu regresso, a 5 de março de 1860, partindo ambos para a Áustria uma semana depois. Uns anos mais tarde, após a sua aclamação como Imperador do México, Maximiliano voltou a passar pela Madeira, a 28 de abril de 1864, na fragata Navara, fazendo escala na viagem para a sua nova terra. Isabel da Áustria, cunhada do Imperador do México, por ser esposa do Imperador Francisco José, popularmente chamada Sissi, esteve por duas vezes na ilha da Madeira. Sissi chegou ao Funchal no iate real britânico Victoria and Albert, a 29 de novembro de 1860, para passar uma temporada, por um lado, para se restabelecer da depressão e anorexia causadas pela morte de sua filha Sophie, de dois anos, e, por outro, para recuperar forças e ânimo para a exigente vida palaciana em Viena, para onde regressou a 28 de abril de 1861. Durante estes cinco meses, residiu na Quinta Vigia, a então Quinta das Angústias, onde depois foi instalado o Hotel Casino Park, perto do qual se poderá encontrar uma estátua em tamanho real da Imperatriz. A segunda visita de Sissi à ilha da Madeira deu-se quase duas décadas depois. Desta feita, chegou no iate imperial austríaco Greif, a 23 de dezembro de 1893, ficando a residir inicialmente na Villa Cliff, casa pertencente ao então novo Reid’s Palace, e posteriormente no próprio hotel, até 4 de fevereiro de 1894. Não obstante o mediatismo de Sissi, um dos laços indeléveis entre a ilha da Madeira e a história da Áustria prende-se com o destino de seu sobrinho-neto, Carlos I, conhecido por “o último Imperador”. Carlos I subiu ao trono do Império Austríaco e do Reino da Hungria por morte de seu tio-avô, o Imperador Francisco José, em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, mas o seu reinado foi bastante curto. Em 1918, o fim da Guerra e a associação da Áustria com as forças derrotadas resultaram na dissolução do Império Austro-Húngaro e na implantação da república na Áustria, no ano seguinte. Neste enquadramento político, Carlos I e respetiva família imperial refugiaram-se na Suíça, enquanto se decidia entre os Aliados onde seria o seu exílio. Tanto Carlos I como a esposa, Zita de Bourbon-Parma, eram descendentes da portuguesa Casa de Bragança, ele neto de D. Maria Teresa de Portugal, casada com o Arquiduque Carlos Luís, e ela filha da infanta Maria Antónia de Bragança e do Duque Roberto I de Parma. Portugal, mais concretamente a ilha da Madeira, foi o destino escolhido para o “último imperador”, devido à sua geografia periférica. Com efeito, o casal imperial partiu para o exílio no navio da marinha britânica Cardiff, chegando ao porto do Funchal a 19 de novembro de 1921. Apenas uns meses depois, Zita conseguiu ir buscar os filhos, que ainda estavam na Suíça, partindo a 4 de janeiro e regressando a 2 de fevereiro de 1922. A família imperial residiu inicialmente no Funchal, na Villa Victória, propriedade do Hotel Reid’s Palace. Todavia, uma vez que os bens dos Habsburgos tinham sido congelados, a situação financeira da família era bastante delicada, o que os obrigou a mudarem-se para um domicílio mais modesto. Foram então para a Quinta do Monte, uma casa cedida pela família Rocha Machado. Apesar das circunstâncias, “o último imperador” era estimado pelas gentes da Ilha. Entretanto, porém, Carlos I adoecera e a permanência na residência do Monte só fez com que a sua saúde piorasse; a casa não era aquecida e por isso a broncopneumonia que o atingira revelou-se fatal, resultando no seu falecimento, a 1 de abril de 1922. O seu corpo foi sepultado na Capela do Imaculado Coração de Maria, do lado esquerdo da nave central da Igreja de N.ª S.ra do Monte, havendo ainda retratos seus e da sua família na sacristia da igreja. Porém, o seu coração foi levado para a cripta dos Capuchinhos em Viena, cumprindo a tradição dos Habsburgos. A viúva acabou por abandonar a ilha da Madeira a 19 de maio de 1922, rumando a Espanha. A Imperatriz Zita voltou à Madeira por duas vezes, de 9 a 11 de abril de 1967, com a filha mais nova, e de 10 a 13 de janeiro de 1968, com os dois filhos mais velhos. Ambas as visitas se prenderam com as obras da nova capela mortuária e a transladação do corpo para a dita capela. A descendência de Carlos I decidiu que o corpo não deveria ser transladado para a Áustria, mas manter-se na Madeira, em agradecimento por todo o apoio que o povo madeirense dera à sua família durante o difícil período do exílio.   Cláudia Fernandes (atualizado a 23.01.2017)

Madeira Global

casal, gaspar do

Após a morte de D. Martinho de Portugal, primeiro e único arcebispo do Funchal, ocorrida em 1547, ficou a administração eclesiástica insular entregue aos cuidados de alguns provisores, nomeadamente do arcediago Amador Afonso, do tesoureiro Pedro da Cunha e do cónego Lopo Barreiros, os quais, em função do seu estatuto, não gozavam da amplitude de poderes de que desfruta um bispo. Esta questão da vacatura da cadeira episcopal teria de ser, em breve, resolvida e a decisão da indigitação do novo titular acompanhou o fim do arcebispado, bem como a correspondente redução da Madeira à categoria de simples bispado sufragâneo de Lisboa. Com efeito, na segunda metade de 1551, o Rei, D. João III, designou para a cátedra insular o sucessor de D. Martinho, tendo a escolha recaído, desta vez, no seu confessor, conselheiro e pregador da capela real, D. Fr. Gaspar do Casal, que ocupou o cargo entre 1551 e 1556. Era o novo prelado natural de Santarém, onde nascera em 1510, de pais até agora desconhecidos. Muito jovem ainda, ingressara na ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, onde professou em 1526. Da sua carreira académica sabe-se que frequentou a universidade em Lisboa, onde adquiriu o grau de doutor em teologia, tendo acompanhado a mudança da instituição para Coimbra, já na qualidade de professor. Em 1532, tornou-se o primeiro presidente da Mesa de Consciência e Ordens, instituição criada nesse mesmo ano com o propósito de tratar dos assuntos relativos aos mestrados das ordens religiosas.  A opção por D. Fr. Gaspar para ocupar os altos cargos referidos dá bem a medida da confiança que o rei nele depositava e não surpreende, portanto, que D. João III tenha decidido confiar-lhe, também, os destinos da diocese do Funchal. Mas é essa mesma confiança real que explica que o novo prelado não tenha vindo, pessoalmente, ocupar o lugar destinado, uma vez que o rei continuava a precisar dos seus serviços no reino. Apesar de a sua indigitação ser um sinal da mudança do paradigma dos bispos palacianos, que, por ação de Trento, se começaram a preterir em favor de antístites mais vocacionados para pastores de almas, a verdade é que a imposição do dever de residência ainda não se fazia sentir com o peso que depois ganharia, e, por isso, pôde D. Fr. Gaspar assumir a mitra sem a correspondente deslocação. Tendo tomado posse do lugar em 1552, designou D. Fr. Gaspar como seu provisor e vigário geral o licenciado António Costa, que já fora deão da sé de Angra, sendo, portanto, experiente nos assuntos respeitantes ao governo eclesiástico. Dele diz Frutuoso que foi igualmente visitador do bispado, tendo pautado a sua ação por um rigor que o fez ser muito temido, mantendo-se, assim, para as visitas, o pendor de aspereza já assinalado para os seus predecessores, Jordão Jorge e Álvaro Dias. Tendo vindo a ocupar, mais tarde, os lugares de chantre e deão da sé, António Costa acabou por falecer na Madeira. Apesar da boa conta que deu do seu recado, António Costa não era, de facto, bispo, pelo que estava impedido de proceder à execução de funções que só aos prelados competem, o que justifica a decisão do cabido e do convento de S. Francisco de aproveitar a passagem pela Madeira de D. Sancho, um bispo castelhano que desembarcara na Ilha, vindo das Canárias, e solicitar ao reino autorização para que o prelado castelhano pudesse ordenar, crismar e benzer a igreja do convento. Obtida a licença, pôde, então, D. Sancho prover aos sacramentos em falta, após o que, agradado da terra e das gentes, rumou ao continente para pedir ao rei a titularidade do bispado. Sabendo-se que a igreja de S. Francisco foi benzida a 14 de março de 1554, o pedido do castelhano só se poderia entender se houvesse razão para supor uma vacatura iminente da cátedra do Funchal, encontrando-se, de facto, intenções régias nesse sentido numa carta que, a 7 de julho do mesmo ano, o cardeal D. Henrique enviava ao monarca, tentando demovê-lo de enviar para o Funchal, como bispo, D. Fr. Gaspar dos Reis, alegando a falta que o clérigo lhe fazia ao serviço da Inquisição (Arquivo Histórico Português, vol. IV, p. 236). Esta intenção do rei indiciava que, já nesse momento, o monarca considerava outras funções para o ainda bispo do Funchal, provavelmente aquelas que acabou por materializar em 1556, quando indigitou D. frei Gaspar do Casal para a mitra de Leiria, vaga desde 1553. Assim, em 1556, foi frei Gaspar nomeado bispo daquela cidade, de onde, após uma permanência de 22 anos, saiu para ocupar a prelazia de Coimbra. Em Coimbra se conservou até à sua morte, ocorrida a 9 de agosto de 1584. No período em que se encontrava à frente dos destinos de Leiria, D. frei Gaspar ausentou-se também, mas desta vez por ter sido enviado a Trento, a fim de participar nos trabalhos da terceira parte do concílio. A escolha que sobre ele recaiu para representar o reino naquela reunião magna, a produção de uma obra teológica de algum vulto, materializada na publicação de diversas obras em latim, e o bom trabalho que desenvolveu nas dioceses que lhe foram cometidas, tornaram-se importantes contributos para que o seu nome esteja, hoje, posto ao lado de figuras maiores da nossa história religiosa do séc. XVI, como D. frei Bartolomeu dos Mártires ou D. frei Baltazar Limpo.   Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 20.12.2016)

Religiões

clero e conflito

Ao longo da história da Madeira, as manifestações de conflito entre as instâncias religiosas e as detentoras dos poderes civis foram uma constante. A oposição que caracterizou o relacionamento institucional surge a propósito dos mais variados motivos, que englobam a necessidade de se demarcarem jurisdições, problemas do foro económico ou político e, até, questões de índole mais pessoal. Mas a realidade do enfrentamento manifesta-se, ainda, no próprio interior da hierarquia católica, opondo seculares a regulares, bispos a confrarias e cabidos, congregações a congregações, pois todos os intervenientes têm interesses cuja defesa impõe o confronto. Palavras-chave: conflitos; jurisdição; bispos; poder civil; ordens religiosas. O clero, primeiro estado da sociedade do Antigo Regime, representava o patamar superior do escalonamento social, estando-lhe atribuído esse lugar cimeiro por lhe competir a mais nobre de todas as tarefas deste mundo – a de velar por que todos os cristãos tivessem a possibilidade de aceder à salvação eterna. Para esse efeito, devia realizar todos os atos de culto, além de apoiar os fiéis no quotidiano, dando-lhes o superior exemplo de uma vida imaculada. Apesar de este ser o quadro teórico em que os seus elementos teriam de operar, o facto de os eclesiásticos serem seres humanos, com virtudes e defeitos, e de o grupo, enquanto tal, ter de interagir com a sociedade em geral, percorrida pelos mais variados interesses e motivações, levava a que, em muitos momentos, ocorressem situações em que o conflito se tornava inevitável, provocado quer pela personalidade dos próprios intervenientes, quer pela necessidade de disciplinar comportamentos, quer, ainda, pelo choque de jurisdições, que, por vezes, implicava uma luta mais acesa pela definição dos campos em que os diversos agentes se movimentavam. Com efeito, nem do lado dos poderes do Estado nem do lado das instituições eclesiásticas existiam corpos perfeitamente homogéneos, mas antes organismos compostos de pessoas com variadas motivações, que conflituavam não só dentro das suas próprias hierarquias mas também um com o outro, o que obrigava a um esforço permanente para dirimir as diferenças. As situações de desentendimento, mais ou menos relevantes, entre elementos do clero ou entre eclesiásticos e entidades civis declararam-se, na Madeira, logo a partir dos inícios do povoamento, registando-se ao longo dos tempos choques entre os diferentes atores religiosos e laicos. O necessário exercício de apaziguamento, que implicava muitas vezes o recurso a instâncias superiores de um e outro foro, é, em si mesmo, sinal da permanência de uma conflitualidade que se traduzia em queixas e apelações, em agravos e capítulos, em ataques e atropelos que opunham os clérigos entre si ou a instâncias civis variadas, como governadores, provedores da Fazenda, câmaras municipais ou outros. É sabido que a acompanhar os primeiros povoadores se estabeleceram na Ilha alguns Franciscanos, a quem esteve cometida, durante algum tempo em exclusividade, a responsabilidade da prestação dos cuidados religiosos a diversos núcleos populacionais que se foram constituindo sobretudo ao longo da costa sul da Madeira. Em 1459, porém, o infante D. Henrique, mestre da Ordem de Cristo, à qual estava atribuída, desde 1433, a tutela sobre o espiritual do arquipélago, expulsou da Madeira os Franciscanos por estes, tendo ligações à comunidade seráfica das Canárias, poderem fazer perigar o domínio da Ordem de Cristo no território madeirense, sendo este o contexto em que se registou o primeiro episódio documentado de conflito envolvendo membros do clero. Sanado esse diferendo, os Franciscanos regressaram à Ilha. Assim, por volta de 1464, Fr. Francisco de Arruda e outros quatro religiosos, todos portugueses, reinstalam-se na Ilha, estando na origem da fundação do Convento de S. Francisco, no Funchal, que, de ora em diante, será um importante centro de prestação de serviços à comunidade, servindo, depois, designadamente, de panteão à nobreza madeirense, mas também de última morada a elementos do povo em geral. Aos Franciscanos, não só aos radicados no Funchal, como em outros pontos do território – Câmara de Lobos, Calheta, Santa Cruz –, serão, também, incumbidas funções de pregação, no desempenho das quais se registaram situações que determinaram graves atritos com diversos bispos. Logo em tempo de D. Luís de Figueiredo Lemos (1586-1608), o prelado se viu obrigado a reprovar o comportamento de alguns frades seráficos, que usavam o púlpito para fins impróprios, e uma situação semelhante volta a acontecer no episcopado de D. Fr. Gabriel de Almeida (1671-1674), que teve de proibir estes religiosos de confessar e pregar, o que, segundo Fernando Augusto da Silva, lhe teria inclusivamente precipitado a morte. A questão pôs-se, neste último caso, a propósito de dois Franciscanos que usaram o púlpito para se descomporem um ao outro, o que motivou a respetiva suspensão e uma advertência ao comissário da ordem no sentido de ter mais cuidado na escolha dos oradores, sob pena de ver inibida a presença dos seus correligionários em funções de parenética. Esta não foi a única razão de divergências entre Franciscanos e o bispo D. Fr. Gabriel de Almeida, uma vez que o prelado procurou intervir para normalizar o diferendo que então opunha os Franciscanos às suas irmãs de S.ta Clara, os quais se traduziam em “censuras de parte a parte” que perturbavam o povo, “com menos exemplo do que uns e outros haviam de dar aos moradores” (VERÍSSIMO, 2000, 381-382). A envolver as duas ordens registou-se também um incidente, reportado para o reino pela Câmara do Funchal, relativo a subornos perpetrados pelos frades que tinham viciado o processo de eleição da abadessa. A razão da intervenção do Senado neste processo explica-se pelo facto de, sendo o Convento um dos grandes empresários insulares, e sendo as freiras parentes próximas dos homens da governança, não lhes ser indiferente a identidade da vigária, responsável pela gestão do património e pela configuração da rede de interesses a ela conexa. A possibilidade de os membros da Ordem Seráfica servirem de confessores no bispado foi, também, severamente questionada por D. José de Castelo Branco (1698-1721), que, em 1706, os inibiu dessa tarefa, fazendo depender o retorno à função de uma submissão a exame. A réplica do custódio, segundo a qual assim ficaria a Ordem quase sem confessores, não demoveu o prelado, que argumentava ser a confissão mais melindrosa que a pregação, pois no segredo do confessionário se poderiam veicular as mais erróneas teorias, pelo que nunca eram demais as precauções a tomar sobre aqueles a quem se deveria entregar o múnus (DGARQ, Cabido da Sé, mç. 12, n.º 34, fls. 9-9v.). Outros focos de conflito que se abriram envolvendo os Franciscanos diziam respeito ao temor com que os frades seráficos encaravam a presença de membros de outras ordens religiosas que eles consideravam ameaçadoras das suas prerrogativas. A ida dos Jesuítas para o Funchal configurou um desses momentos, pois os Franciscanos “entraram em zelos e delírios que lhes faltaria com a nossa assistência as esmolas com que os socorriam e sustentavam aqueles cidadãos”, segundo informava um cronista da Companhia (CARITA, 1991, 111). Este receio esteve na origem de prédicas seráficas, primeiro nas suas casas e, depois, publicamente, nas quais imperava um discurso antijesuítico, prontamente contrariado pela parenética da Companhia, que passou a exortar os fiéis no sentido de não descurarem as esmolas devidas a S. Francisco, “encarecendo e louvando com os maiores encómios as suas extremadas e observantes pobrezas” (Id., Ibid., 111). Ultrapassada esta questão, uma outra semelhante se volta a colocar quando, em finais do séc. XVII, uns frades capuchinhos tentaram, incentivados pelo bispo D. Fr. José de Santa Maria, ele próprio capucho, instalar-se de forma mais permanente no Funchal. A intenção acabou por desencadear a apresentação, em 1701, de uma reclamação à Câmara do Funchal por parte da comunidade seráfica, acabando o processo por ser inviabilizado. Pouco tempo depois, entre 1730 e 1732, foi a vez dos Carmelitas, que igualmente pretendiam estabelecer na Madeira uma comunidade mais expressiva. Os frades do Carmelo haviam chegado à Madeira nos meados do séc. XVII, e tinham-se agasalhado num modesto hospício que habitualmente abrigava um frade, e, de vez em quando, alguns outros irmãos de passagem pela Ilha. Acontece que, em 1730, os Carmelitas iniciaram umas obras nas suas instalações, o que os Franciscanos interpretaram como uma tentativa de melhorar as condições de estadia, com o intuito de trazerem para a terra um maior contingente de frades. O temor da Ordem Seráfica continuava a ser o de ter de repartir recursos, já escassos, com um maior número de religiosos, bem como o de perderem a preferência de alguns madeirenses na hora de escolherem a sepultura, pois aos enterramentos iam buscar não poucos dividendos, traduzidos em missas que se mandavam celebrar pela alma do falecido. O diferendo subiu a tribunal eclesiástico, e a sentença foi favorável aos frades seráficos que bem esgrimiram o argumento de ser seu direito exclusivo a posse de conventos na Madeira, com base no facto de terem sido os primeiros que a ela tinham chegado. No que respeitava ao comportamento dos frades a título individual, também se registavam anomalias, como a que foi reportada, logo em 1603, por Filipe III ao geral da Província. Queixava-se o Rei do comissário dos Franciscanos na Madeira, acusando-o de não cumprir as suas obrigações, de estar envolvido em desordens e excessos e de impedir as visitações. A opinião que os próprios visitadores manifestavam em relação aos frades era, frequentemente, a de serem “relaxados”, o que se comprova, e.g., pela expulsão, em 1755, do Fr. João de S. José e do Fr. João do Rosário. Pouco antes, em 1753, o problema fora de sinal contrário, como se atesta pela petição do custódio provincial no sentido de lhe serem reenviados três frades ausentes em Lisboa, cujo prazo de licença se encontrava largamente ultrapassado. O seu envolvimento em negócios encontra-se igualmente comprovado na pessoa do guardião do Convento, Fr. António de S. Guilherme, que, em 1768, se viu enredado em práticas de contrabando. Por outro lado, e extramuros, frades havia que não cumpriam com o que deles se esperava, como aconteceu, e.g., em Santa Cruz, quando, em 1790, Fr. Francisco de N.ª Sr.ª das Dores foi apanhado na devassa por ter dois filhos de uma jovem, em cuja casa vivia “encaixado” (ABM, APEF, doc. 92, fl. 76). Alguns anos depois, foi a vez de o religioso responsável pelos serviços divinos na capela de São Pedro ser referenciado por não doutrinar o povo, como era sua obrigação, sendo a responsabilidade da punição, em qualquer dos casos, cometida ao guardião do Convento de N.ª Sr.ª da Piedade, a quem pertencia a tutela dos frades daquela instituição. Mas não só os Franciscanos homens foram protagonistas de eventos marcados pelo conflito, pois, nos conventos femininos, também nem sempre se conseguiu evitar o despoletar de situações de atrito que mancharam o relacionamento das comunidades monásticas com o mundo que as rodeava e do qual, à partida, deveriam estar isoladas. Assim, no caso específico do Convento de S.ta Clara, emergem os problemas decorrentes do abastecimento de água à instituição, que, não estando dotada de nascente dentro dos muros do edifício, dependia do exterior para esse efeito. Esta circunstância explica graves desentendimentos ocorridos com os Jesuítas, por cuja propriedade da Qt. dos Frias passava o cano abastecedor e que nem sempre respeitavam a porção que deveria derivar para as freiras de S.ta Clara, o que determinou diversas queixas destas, inclusivamente para o juiz de fora, e implicou, no limite, o rompimento da clausura, suprema forma de protesto para uma comunidade obrigada à reclusão. As questões com a água não foram, no entanto, as únicas que opuseram as freiras aos Jesuítas, pois que em 1639 há registo de outro foco de tensão, desta vez respeitante à cobrança de uns dízimos da Ribeira Brava e de outras freguesias que os padres queriam cobrar às irmãs. Estas alegavam isenção desse pagamento, mas os padres contrapunham que, sendo-lhes devidos os dízimos cobrados em tais localidades, a mesma obrigação impendia sobre as terras conventuais. O pleito arrastou-se por diversos anos, até que, em 1644, a razão foi dada à pretensão das freiras. Comportamentos menos abonatórios das irmãs de S.ta Clara estão, por outro lado, identificados numa denúncia para o Tribunal do Santo Ofício relativa a uma procissão de troça realizada dentro dos muros do Convento, conforme consta do estudo realizado por Maria do Carmo D. Farinha, “A Inquisição na Madeira no Período de Transição entre os Séculos XVII e XVIII (1690-1719)”. No tocante ao Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação, a ocorrência mais destacada a provar severos desentendimentos entre as freiras e a tutela, neste caso pertencente ao bispo, deu-se em tempo do rigoroso D. Fr. Manuel Coutinho, que, desagradado com as frequentes intrusões no Convento por parte de visitantes e familiares muito ligados à Câmara Municipal do Funchal, então também envolvida em graves litígios com o prelado, determinou mudar-se a porteira do mosteiro, como forma de minimizar os contactos. As freiras, indignadas com a atitude, irromperam para fora dos muros do Convento e desceram rua abaixo em direção ao paço episcopal, onde pretendiam confrontar-se com o antístite. Só a pronta intervenção do desembargador conseguiu evitar o agudizar de uma situação que muito escandalizava os funchalenses, convencendo as irmãs a recolher ao Convento. A opinião que sobre esta irmandade se foi recolhendo a partir do exterior continuou a não ser elogiosa, uma vez que, em 1757, dois visitadores consideravam as freiras demasiado tomadas de mundanismo, acusando-as de seguirem, no vestuário, as modas do século. Em tempo de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1757-1785), um novo episódio envolvendo as freiras da Encarnacão veio a público, desta feita relativo a afirmações proferidas, dentro do Convento, contra o prelado por parte do médico Manuel Caetano Tavares, irmão de um cónego que também se malquistara com D. Gaspar. Dos insultos proferidos contra o bispo resultara o cerco do Convento, ordenado pelo governador que saíra em auxílio do antístite, o qual visava impedir que no edifício não entrasse nem saísse “carta ou papel”. A reação das freiras tomou a forma de “grande tumulto” pois queriam “sair fora do convento e vir libertar o dito médico”, que entretanto fora preso (CARITA, 1996, 325). Em consequência de todos estes desmandos, surge, com D. José da Costa Torres (1786-1796), uma nova expressão de desagrado relativo àquela casa monástica, e, em 1788, o prelado, invocando o parecer de D. Fr. Manuel Coutinho (1725-1741) sobre o Convento proferido 40 anos antes, segundo o qual “melhor seria se não o houvera”, seguia-lhe as pisadas, declarando fazer-se surdo aos apelos da abadessa para que se aumentasse o número de freiras. Testemunhava, então, o bispo, em missiva enviada ao ministro Martinho de Melo e Castro, que, em vez de consentir no aumento, se não fossem “certas considerações” que o embaraçavam, “já teria mandado pôr fora do convento uma grande parte delas” (AHU, Madeira, pasta 5, doc. 842). À margem da agitação que, episodicamente, afetava a vida destes dois conventos, há que registar o clima de paz que normalmente reinava sobre o de N.ª Sr.ª das Mercês, o qual, por abrigar professas de mais baixa extração social e pertencer à primeira regra de S.ta Clara, não sofria tanto a influência do mundo exterior como os seus congéneres da segunda regra – S.ta Clara e Encarnação. Os registos de sobressaltos que se verificam nas Mercês não são atribuíveis às freiras nem ao seu modo de vida, ficando antes a dever-se a fatores extrínsecos. Assim acontece com a grande desavença registada entre D. Fr. Manuel Coutinho e o protetor do Convento, Agostinho Berenguer, suspeito de má gestão e suspenso de funções pelo prelado, ou com o recurso a tribunal motivado por questões relacionadas com o padroado do Convento, questão que suscitou grandes cisões na família Berenguer, ou ainda com o caso insólito da M.e Isabel Filipa de Santo António, uma jovem de boas famílias obrigada a ingressar no mosteiro que lutou contra essa situação com todas as suas forças, chegando, até, a admitir pacto com o demónio. A ida da Companhia de Jesus para o Funchal, registada na sequência do grande saque de corsários franceses que vitimou a cidade em 1566, não foi, também, um processo isento de algum conflito, consubstanciado, desde logo, na má receção de que foram objeto por parte dos Franciscanos e nos problemas surgidos a propósito do abastecimento de água a S.ta Clara, como se viu. Mas, mesmo no interior da própria Ordem Jesuítica, se registou alguma turbulência provocada pela atuação do P.e Manuel Guerreiro, que, por ser de personalidade pouco afável, gerou um mal-estar na comunidade que acabou por ser responsável pelo atraso nas obras da edificação do Colégio. Este padre esteve, ainda, ligado a problemas na atribuição dos cargos de reitor e vice-reitor, na sequência dos quais se levantou uma contestação tal que obrigou à intervenção do Gov. António Pereira de Macedo. Para apaziguar os ânimos foi, então, nomeado outro reitor, Pantaleão da Ponte, que, em 1593, escrevia para Roma a informar que “os padres e irmãos procedem [agora] bem, ainda que alguns desgostos tenha havido entre eles e o padre vice-reitor”. Não deixava, porém, de alertar para as consequências nefastas que os desentendimentos tinham provocado, e que se haviam traduzido no sentimento do povo que, informado das desavenças, se “desedificava, dizendo alguns principais que também entre os nossos havia semelhantes paixões”. Ultrapassada a questão, registava o novo reitor, com agrado, que, cessado esse rumor, as pessoas vinham, agora, “aos nossos sermões com muito concurso” (CARITA, 1991, 277). Os Jesuítas haveriam de se ver novamente ameaçados quando, em 1669, na sequência da sedição liderada pelo deão Pedro Moreira, que, em 1668, prendera o Gov. D. Francisco de Mascarenhas, tomaram partido pelo governante deposto, com quem sempre tinham mantido as melhores relações. Como do afastamento forçado de D. Francisco de Mascarenhas resultara uma carta, enviada para o reino, contra o governador, a qual os Jesuítas, ao contrário dos Franciscanos, se recusaram a assinar, os promotores da queixa haviam “feito grandes ameaças” à Companhia, “dizendo que nos haviam de botar fora da Ilha”, conforme se pode ler em missiva enviada para Roma pelo então reitor do Colégio, o P.e Pereira (Id., 1987, 158). A posição dos Franciscanos não fora, porém, sancionada pelo provincial da Ordem Seráfica, que depusera do cargo o superior do Convento de S. Francisco e castigara os frades que tinham subscrito o documento, pelo que, e também graças à ação do novo governador da Madeira, Aires de Saldanha, tudo se ia “pondo em paz”, voltando a abrir-se os portos que haviam estado fechados para que se impedisse a comunicação com o reino (Id., Ibid., 158-159). Mas o grande desaire sofrido pela Companhia de Jesus estava por vir, e chegou em tempo do marquês de Pombal, que, por um vasto conjunto de circunstâncias que não cabe aqui invocar, tomou a decisão de expulsar os Jesuítas do país. A nível regional esse desígnio será cumprido pela mão do bispo D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1757-1785), um iluminista sintonizado com o marquês, que, a 27 de junho de 1759, mandou publicar a pastoral em que apodava os Jesuítas de “religiosos pervertidos da Companhia de Jesus” e fazia suspender do “ministério de pregar e confessar nesta nossa diocese” os mesmos religiosos (ACDF, cx. 45, doc. 25, fl. n. n.). As acusações contra os Jesuítas baseavam-se no atentado perpetrado contra D. José, no qual se consideravam implicados aqueles religiosos, que eram igualmente acusados de promover “antievangélicas doutrinas que, como ímpias, sediciosas e destrutivas da caridade cristã”, não poderiam deixar de ser condenadas (Ibid.). Assim, logo após estas determinações, os Jesuítas foram cercados nas suas instalações e deu-se início ao processo de sequestro de todos os seus bens, ao mesmo tempo que a tutela da igreja e do Colégio passava para o prelado. No dia 3 de setembro de 1760, o bispo, em nova pastoral, dava conta de ter recebido de Lisboa instruções contidas na lei de 3 de setembro do ano anterior, na qual o Rei mandava “exterminar, desnaturalizar e expulsar de todos os seus reinos e domínios aos religiosos da Companhia de Jesus”, o que implicou o embarque dos religiosos para Lisboa, ocorrido a 16 de julho de 1760 (SILVA, 1984, II, 188). Apesar da consumação da expulsão dos padres da Companhia do território madeirense, as autoridades mantiveram-se alerta, o que explica que, em 1767, o Gov. José Correia de Sá informasse Lisboa das diligências empreendidas para evitar um hipotético regresso de qualquer Jesuíta, ou que o Corr. Francisco Moreira de Matos comunicasse ter recebido do reino instruções para proceder à devassa das confrarias da igreja do Colégio. Nesse mesmo ano de 1767, ainda se mantinha sob supervisão o escrivão da Câmara Eclesiástica, P.e Manuel de Oliveira, antigo Jesuíta expulso da Ordem em 1749, e o governador dava conta da passagem pela Ilha, a bordo de um barco inglês, de um membro da Companhia, originário das Canárias, que fora absolutamente proibido de ir a terra e de contactar com pessoa alguma. De regresso, agora, aos tempos do povoamento da Madeira, poder-se-ão analisar outro tipo de conflitos que terão como protagonistas já não membros de ordens religiosas, mas outros eclesiásticos com intervenção relevante na realidade regional e local. Com a crescente complexificação da sociedade madeirense, e em resposta a sucessivas solicitações para que se aumentasse o efetivo de clérigos na Ilha, a Ordem de Cristo esforçou-se por corresponder, enviando, em 1476, Fr. Nuno Gonçalves, que foi para a Madeira como vigário do Funchal. A estadia de Fr. Nuno Gonçalves foi, no entanto, pontuada por desentendimentos com a população, ainda que se ignore a sua razão de ser, pelo que, em 1485, mandava-se o vigário regressar ao reino. Em sua substituição foi, mais tarde, em 1490, designado Fr. Nuno Cão para servir no Funchal. Ao contrário do antecessor, este foi tão bem acolhido que permaneceu na Madeira até à sua morte (c. 1531). No intervalo de tempo que mediou entre a chegada de Fr. Nuno Cão e o seu falecimento, fundou-se, em 1514, a Diocese do Funchal, sendo cometida ao antigo vigário do Funchal a função de deão, o que evidencia a sua aceitação. Com a criação da Sé do Funchal, tem de forçosamente surgir o cabido, o qual rapidamente se torna fonte de desavenças, algumas severas. Entre 1526, data da morte do primeiro bispo do Funchal, D. Diogo Pinheiro (1514-1525), e 1533, momento em que é apresentado o seu sucessor na pessoa de D. Martinho de Portugal (1533-1547), várias são as ocasiões em que os capitulares se enfrentam, sobretudo a partir do momento em que, por morte do titular, ficou vago o deado. Os “capítulos” apresentados ao Rei sucediam-se, pelo que o Monarca, “por ver estas desordens”, informou que mandaria um provisor para tomar conta da Diocese, o que acabou por se materializar no envio de Afonso Mexia, que por pouco tempo se incumbiu da função (COSTA, 2001, 28). Nesta contenda teria desempenhado papel de relevo o arcediago Amador Afonso, que, segundo Noronha, seria mesmo “o motor” das desinteligências, o que é confirmado por dois documentos em que se referenciam queixas relativas à sua pessoa, uma por ter gravemente ofendido o deão Filipe Rebelo, e outra, oriunda da Câmara da Calheta, por causa da sua conduta (PEREIRA, 1990, II, 425). Deve, no entanto, registar-se opinião abonatória que sobre este clérigo foi deixada em carta da muito provável autoria de Jordão Jorge, que, em 1538, visitava a Madeira a mando do arcebispo D. Martinho de Portugal. Registava, então, o visitador, num contexto em que se queixava do povo da Ilha, tanto dos leigos como dos eclesiásticos, por todos deverem dinheiro à chancelaria e serem todos “gente de menos verdade”, que de tais reclamações se devia excetuar o arcediago Amador Afonso, por até ao momento o não ter achado falso (COSTA, 1987, 9). Já do cabido não poderia Jordão Jorge ter pior opinião, na medida em que o achava “acostumado” a faltar à pregação em todos os domingos ou ocasiões de sermão, altura em que saíam todos os cónegos da igreja, e, se algum ficasse no coro, não fazia mais que “palrar”. Interpelados os capitulares, responderam que não ficavam no coro porque não conseguiam ouvir nada, e, quando se lhes propôs porem-se os bancos na entrada da capela, para que ficassem mais cómodos, retorquiram que dali lhes viam as pernas as mulheres e outras “mil parvoíces” (Id., Ibid.). O referido visitador, que, na companhia de outro, Álvaro Dias, percorreu toda a Ilha em visitação, deixou também más recordações entre os insulares, de quem se “fizeram malquistos […] com sua aspereza”, o que se poderia explicar, segundo Noronha, pela vontade de empreender a reforma que se encontra bem documentada na carta referida (NORONHA, 1996, 83). O cabido, órgão colegial composto, na generalidade dos casos, por clérigos oriundos das melhores famílias regionais, virá, por mais de uma vez, a assumir-se como promotor de algumas das situações em que a conflitualidade emerge, não só por lhe ser cometido o governo da Diocese em períodos de Sé vacante, o que, por vezes, faz com que lhe seja difícil aceitar a autoridade do bispo seguinte, como pelo facto de dissensões entre as famílias de origem dos capitulares, ou, pelo contrário, a existência de solidariedades de sangue, se verem, ocasionalmente, transportadas para o exercício das funções do canonicato. A ilustrar uma situação em que a Sé se achava sem bispo, estando o governo do bispado cometido ao deão, Pedro Moreira, ocorreu aquele que será, porventura, o mais grave incidente que opôs parte do cabido a um governador, neste caso D. Francisco de Mascarenhas. O problema prendia-se com a forma de atuar do governador, que pretendia pôr cobro a algumas arbitrariedades, designadamente cometidas por clérigos, tendo chegado a queixar-se ao cabido de lhe estarem a ser cerceadas possibilidades de administrar a justiça, “pelas insolências com que os eclesiásticos violentamente e absolutos encontram as suas ordens e lhas impedem quebrando as leis e perturbando a república” (VERÍSSIMO, 2000, 159). A sua conduta, mais ativa que o habitual, contra o estado eclesiástico terá desagradado ao deão, o qual, segundo declarações dos sublevados, foi o promotor de uma surtida, integrada por, entre outros, sete clérigos, que surpreendeu o governador a caminho da quinta dos Jesuítas, no Pico dos Frias, conseguindo prendê-lo. Em sua substituição, foi nomeado Aires de Ornelas Vasconcelos, sendo soltos os presos do presídio e eleitos novos vereadores. Todos estes insólitos eventos seriam comunicados à corte, que deliberou o envio de um desembargador com a missão de apurar os reais contornos da situação. Da atuação deste magistrado resultou uma sentença do Tribunal da Relação, de acordo com a qual foram condenados os intervenientes seculares, acompanhada de uma outra, com origem em Tribunal Eclesiástico, que igualmente punia os sete clérigos e o próprio deão, Pedro Moreira. Situações de atrito que envolviam diretamente bispos, ou seus representantes, e membros do cabido encontram-se, e.g., no episcopado de D. Fr. Manuel Coutinho, que, por se ter incompatibilizado com o protetor das Capuchas, Agostinho Berenguer, parente do Cón. Bartolomeu César de Andrade, acabou se ver envolvido num conflito com o cónego, o qual, por solidariedade familiar, cortou relações não só com o prelado, como com o restante cabido. Daqui resultou a prisão do capitular e uma posterior devassa ao cabido que visava sanar a conflitualidade existente, o que foi conseguido. Uns anos antes, no episcopado de D. Jerónimo Fernando, dois capitulares desentenderam-se gravemente em pleno coro, tendo chegado a agredir-se e a ferir-se mutuamente, com grande escândalo do povo. Na origem do conflito estaria uma dívida contraída por um dos intervenientes junto do outro, tendo sido as dificuldades de pagamento que ditaram a desavença. Neste caso, o bispo, em face do arrependimento manifestado pelos contentores, acabou por sancioná-los apenas com multa e alguns dias de prisão. Outras questões mantidas entre prelados e cónegos estão vertidas nas Memórias dos Acontecimentos Ocorridos no Episcopado do Bispo D. Frei Manuel Coutinho, 1725-1738 (ABM, APEF, doc. 270, fls. 27-27v.), nas quais se reportam prisões de capitulares às ordens de outros prelados ou governadores do bispado, como acontecera com o Cón. João de Freitas, mandado prender por Pedro Álvares Uzel, na altura governador do bispado, ou, durante o episcopado de D. José de Sousa de Castelo Branco, com dois capitulares aprisionados por autorizarem uma procissão sem consentimento do antístite. A situação de instabilidade nacional provocada pelas invasões francesas e pela retirada da corte para o Brasil repercutiu-se na vida eclesiástica da Madeira, onde, por estar a Sé vacante, decidiu o cabido nomear não um vigário capitular, como mandava Trento, mas sim um provisor e um vigário-geral, em claro desrespeito pelo preceituado. Avisado o Rei, logo este ordenou que se repusesse a normalidade, ao que resistiu parte do cabido, que assim se cindiu entre os que se propunham acatar as regras e os que persistiam na divisão. Designado para assumir os destinos da Diocese, o bispo de Meliapor, D. Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde (1811-1821) (D. Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde), procurou pacificar o cabido desavindo, precisando para isso de assumir uma postura tão dura que o levou até a questionar a sua capacidade de dar “conta do lugar” (AZEVEDO, 2015, II, 564). O advento do liberalismo, com o seu pendor anticlerical, ocasionou um terreno fértil para a eclosão de conflitos, que foram emergindo sob a forma de críticas visando bispos e capitulares. Uma destas críticas recaiu sobre D. Francisco de Andrade (1821-1834) (D. Francisco Rodrigues de Andrade), que foi interpelado na imprensa sobre a fraca qualidade de dois cónegos que o aconselhavam, os quais não tinham “letras nem virtudes”, salientando o periódico em causa – O Patriota Funchalense –  as vantagens de o prelado os trocar por liberais, com quem faria “a mais excelentíssima reforma na sua casa” (SOUSA, 1991, 183). A receção dispensada a D. Manuel Martins Manso (1850-1858) foi, também, perturbada por um cabido dividido, muito por causa de questões pessoais e políticas, do qual se salientava a pessoa do Cón. Vicente Nery, que rapidamente assumiu uma forte contestação à atuação quer do bispo, quer de parte do capítulo, acusados de práticas pouco favoráveis ao liberalismo (D. Manuel Martins Manso). O Cón. Nery viria, porém, a ser tão destratado pelo prelado seguinte, D. Patrício Xavier de Moura (1858-1872), que se chegou a imputar a esse tratamento a morte do capitular. Todas estas dissidências eram, agora, em pleno séc. XIX, muito amplificadas pela imprensa que se multiplicava em periódicos, uns contra e outros a favor das posições da Igreja, de que constituem bons exemplos o já referido O Patriota Funchalense, de pendor claramente liberal, e o Pregador Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei, dirigido pelo truculento Cón. João Crisóstomo Spínola de Macedo e publicado entre 1823 e 1824, que se assumia como porta-voz de uma fação bem mais conservadora. Voltando agora, e uma vez mais, aos inícios da estruturação da presença da Igreja na Diocese do Funchal, cumpre lembrar que o facto de os três primeiros bispos não terem chegado a ocupar presencialmente o seu lugar acabou por criar ao quarto, D. Fr. Jorge de Lemos (1556-1569), um ambiente mais tenso para governar, pois a prolongada situação de Sé vacante deixara que se instalasse um clima de certa relaxação que o novo prelado entendeu dever corrigir. A sua atuação nesse sentido não poderia deixar de ser estranhada e registada como “áspera”, oferecendo ao prelado ocasião para alguns “atritos e dificuldades” (SILVA, 1946, 106), o que pode, inclusivamente, explicar as cartas régias de D. Sebastião no sentido de as justiças seculares se disponibilizarem para acudir ao poder eclesiástico sempre que este o solicitasse. Depois de mais um episcopado com bispo ausente, ocupou, em 1574, a mitra do Funchal D. Jerónimo Barreto (1574-1585), um homem já tridentino que procurará implantar na Madeira as diretrizes conciliares. A prová-lo está, e.g., a reunião de um sínodo do qual resultará a publicação das primeiras Constituições Sinodais especificamente desenhadas para o arquipélago, às quais ficará o prelado a dever o primeiro grande enfrentamento entre a autoridade do bispo e a jurisdição camarária. De facto, entendeu o Senado do Funchal não serem aceitáveis alguns pontos do texto constitucional por serem lesivos das suas prerrogativas, da mesma forma que, em 1593, já no episcopado de D. Luís de Figueiredo Lemos, a Câmara do Funchal se queixava para o reino da intolerável intromissão do poder eclesiástico no secular, tendo obtido decisão favorável às suas pretensões, registada no fl. 168 do tomo III do arquivo da referida Câmara. O episcopado deste bispo ficou, de resto, marcado por outras dissensões com o Senado, nomeadamente por causa da nomeação de um capelão para a igreja de S. Sebastião, de jurisdição camarária, bem como da pretensão de opinar sobre o destino a dar à residência daquele clérigo, situações em que a posição do prelado viria a sair perdedora. Os episódios de carácter protocolar revestiam-se de grande importância numa sociedade em que a hierarquização se traduzia na rigorosa observância do local que a cada um pertencia em cerimónias, públicas ou não, sendo essa a razão que subjaz a mais uma questão que opôs este bispo ao governador.  Tratava-se, agora, de uma disputa sobre o tipo de precedências a respeitar quando o governador estivesse presente na Sé, diferendo que foi apresentado ao Monarca, que o resolveu a favor do prelado. O protocolo voltou a estar no centro de uma desinteligência que opôs, desta vez, o Senado do Funchal ao bispo D. Fr. Lourenço de Távora (1610-1617), que entendeu fazer a sua entrada solene na Diocese a cavalo debaixo do pálio, o que motivou queixa da Câmara para a corte (D. Fr. Lourenço de Távora). Embora, aparentemente, o bispo só estivesse a pôr em prática o novo cerimonial romano publicado em 1600, os camaristas entenderam ter sido lesada a sua jurisdição, e, mais uma vez, obtiveram decisão que legitimava o seu protesto. As colisões entre os poderes eclesiástico e camarário são um topos ao longo da história da Madeira, ocorrendo a propósito das mais diversas matérias. Em 1603, por ocasião da procissão de Corpus Christi, o vigário-geral pretendeu interferir com a organização do cortejo, competência que o município entendia ser sua. De novo, após apresentação de reclamação para o Rei, este deliberou a favor dos camaristas. Em 1680, foi a vez de o Senado questionar a posição do caudatário do prelado, argumentando que imediatamente atrás do bispo deviam ir os oficiais camarários, e não o clérigo que sustinha as vestes episcopais. Desta feita, porém, a questão resolveu-se a favor do poder eclesiástico, pois a própria posição de caudatário obrigava a que aquele religioso precedesse a vereação. Outro incidente registado envolvendo a mesma procissão ocorreu no episcopado de D. Fr. Manuel Coutinho (1725-1741), sendo motivado pela publicação de um edital de origem episcopal, em que o bispo mandava que se arranjassem as ruas da cidade para a solenidade. Entendeu a Câmara que a supervisão das ruas era prerrogativa sua, assumindo-se, assim, o cortejo como o catalisador ideal da crispação que já vinha de trás. A coroar o episódio, acabou por ser preso um vereador, António Carvalhal Esmeraldo, que se havia refugiado no edifício da sede municipal, cuja porta foi derrubada à machadada. Outro dos motivos recorrentemente presentes nos diferendos que opuseram Câmara e bispos tinha a ver com a questão do provimento dos benefícios, o que, por legislação várias vezes reiterada, deveria ser preferencialmente de clérigos naturais da Madeira. Como isto nem sempre se verificava, por preferirem os prelados nomear para os apetecidos lugares remunerados pessoas da sua confiança oriundas de outras partes do reino, o conflito encontrava aqui, de novo, razão para eclodir. O motivo pelo qual o Senado interferia neste assunto era o da defesa dos interesses regionais materializáveis na nomeação de parentes dos edis, o que, para além da não negligenciável componente remuneratória, ainda apresentava as vantagens de favorecer uma maior ligação entre os párocos e os seus fregueses. Um exemplo ilustrativo desta situação pode colher-se no episcopado de D. Jerónimo Fernando (1618-1650), que, por ter insistido no provimento de alguns indivíduos não naturais da Madeira, “contra a observância das provisões reais que dispõem a favor dos naturais”, se viu objeto de queixa por parte do Senado (NORONHA, 1986, 112). O mesmo volta a acontecer com D. Fr. Manuel Coutinho, que, além de ser contestado pela Câmara pelas mesmas razões, viu alastrar o conflito à provedoria da Fazenda, entidade pagadora que igualmente se imiscuía em tais assuntos. Com efeito, sendo o clero local pago a partir da Fazenda régia, representada pelo provedor da Fazenda, também com este magistrado se registarão diferendos envolvendo as autoridades eclesiásticas. Apesar das determinações, repetidamente confirmadas, de que os clérigos deveriam ser os primeiros a ver satisfeitos os seus pagamentos, a verdade é que nem sempre isto se verificava, pelo que as reclamações pela falta da pronta satisfação das quantias em dívida se vão sucedendo. Isto mesmo se pode concluir da produção de numerosos alvarás em que os reis insistem na forma de remunerar o clero, salientando sempre o carácter prioritário que tais remunerações devem assumir na sua folha de pagamentos. Apesar disto, o sínodo de 1615 teve como preocupação deliberar no sentido de se apresentar queixa ao Papa do mau cumprimento pela Coroa portuguesa das obrigações remuneratórias a que o padroado da Ordem de Cristo a obrigava, sendo igualmente de destacar o facto de, pouco tempo depois, D. Jerónimo Fernando, ainda antes de chegar à Diocese, excomungar o provedor em virtude de falta de pagamentos, tendo de registar-se a intervenção do Monarca para que o bispo revertesse a censura. As questões que envolviam dinheiro constituíam outro foco de desentendimento entre prelados e comunidade insular, manifestando-se tanto a propósito da não satisfação dos encargos resultantes de testamentos, como até da contabilidade das confrarias. No primeiro caso, o hábito de se vincularem os rendimentos de partes de propriedades à celebração de ofícios divinos por alma dos instituidores de capelas levava a que, por desvalorização do património ou por aumento do preço das missas, alguns anos depois o montante disponível se mostrasse insuficiente para honrar os compromissos. Como isto implicava o fim dos sufrágios tidos como indispensáveis à salvação das almas, os bispos não podiam deixar de reagir, e, ao pugnarem pelo cumprimento dos desejos testamentários, acabavam por ter de se confrontar com os executores faltosos. A agravar esta situação, acontecia ainda que a maioria dos testamenteiros pertencia às elites insulares, que, pouco recetivas a ingerências, toleravam mal as observações, originando-se aqui pleitos intermináveis que se iam arrastando pelos tribunais (Doações). No que respeitava às confrarias, a gestão dos bens por que cada uma era responsável, e nos quais se incluíam, muitas vezes, legados testamentários, nem sempre se pautava por grande clareza, dando origem a interpelações pouco cordiais por parte do poder episcopal. Sendo este um problema que atravessou todos os episcopados dos bispos do Funchal, podem, no entanto, adiantar-se situações que, a título de exemplo, melhor ilustram as circunstâncias do conflito. Uma delas aconteceu com D. Fr. Manuel Coutinho, que determinou a execução de um formulário que normalizasse a tomada de contas e ameaçou com o encerramento aquelas irmandades que persistissem na omissão dos resultados financeiros, argumentando rispidamente, quando confrontado com o deficit frequente justificado pela celebração de festas, que “quem é pobre não faz festas” (TRINDADE, 2012, 246). Outra situação que ajuda a ilustrar este problema verificou-se em 1774, quando D. Afonso da Costa Brandão ameaçou de prisão os tesoureiros que lhe não apresentassem as contas, ordenando mesmo aos párocos que recolhessem os livros de contabilidade. A figura do governador militar, responsável pela defesa do arquipélago mas também magistrado politicamente influente, foi das que mais chocou com a dos prelados, pelo que era frequente que, por razões de jurisdição ou outras, se registassem embates e atropelos. Enfrentamentos entre as duas figuras de topo da sociedade insular ocorreram com D. Fr. Gabriel de Almeida e com o Gov. João de Saldanha, acusado pelo primeiro de ter desrespeitado a autoridade eclesiástica quando mandara prender o deão Pedro Moreira, já referido. Em tempo de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1757-1785), um incidente de sinal contrário, ocorrido com a prisão do bacharel António Xavier Pimentel às ordens do juízo eclesiástico, deu início a grave contenda entre o prelado e o governador, João Gonçalves da Câmara. Este episódio fez correr muita tinta, nomeadamente porque envolveu a troca abundante de correspondência entre os dois intervenientes e o envio de cartas também para o reino. Em resposta a uma das missivas, remetida pelo governador para um ministro, muito provavelmente Martinho de Melo e Castro, o ministro, incomodado pela insistência, responde ao governante que na Ilha “há um bispo respeitável, não só pela qualidade de prelado, mas também pelas virtudes e proveta idade”, pelo que não competia ao governador pronunciar-se sobre o desempenho do antístite, dado essa ser prerrogativa dos ministros régios (AHU, Madeira, cx. 2, doc. 74). Apesar das tentativas de apaziguamento da questão, a tensão continuou a crescer, tendo mesmo o bispo desrespeitado uma ordem de libertação do prisioneiro, impondo-lhe uma caução que o bacharel não podia pagar. O séc. XIX será, igualmente, palco de severos contenciosos entre prelados e governadores, traduzidos, e.g., no desterro do bispo D. Luís Rodrigues Vilares (1797-1810) para o Santo da Serra a mando do governador ([Símbolo] D. LUÍS RODRIGUES VILARES) ou, no caso de D. Fr. Joaquim de Ataíde (1811-1821), no enfrentamento a Sebastião Xavier Botelho, governador cuja autoridade foi bastante contestada pelo prelado (D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde). No início do séc. XX, a implantação do regime republicano, com as suas extremadas posições anticlericais, veio, uma vez mais, oferecer a ocasião para o despoletar de situações de conflito entre o clero e as instituições políticas que, também no caso da Madeira, se traduziram em punições para os padres que desobedeceram às leis da República. Assim, logo a 4 de maio de 1911, o padre do Estreito de Câmara de Lobos, Miguel Pestana Reis, foi intimado a comparecer perante o Governo Civil, para responder às acusações de ofensas ao Governo provisório e às leis da República, para o que se teria servido do púlpito. Esta determinação causou grande comoção na população, que seguiu no encalço do pároco e, armada de paus e de foices, conseguiu deter o clérigo e os seus acompanhantes ainda na freguesia de São Martinho. Momentaneamente impedido de obedecer à convocatória, o padre viu-se na iminência de ser preso, pelo que acabou por voltar ao Funchal no dia seguinte, tendo sido proibido de voltar à paróquia até ao cabal esclarecimento dos factos. Paralelamente, muitos dos populares sublevados acabaram, esses sim, por serem remetidos à prisão. Nas freguesias de Santana e Machico, os párocos também se distinguiram pelos apelos feitos à população, no sentido da resistência à aceitação das novas determinações republicanas, sendo, portanto, também parcialmente responsáveis pelos motins que daí decorreram. No Funchal, o vigário do Monte, João Vicente de Faria e Sousa, acabou por ser expulso da Ilha por um ano, na sequência da acusação de ter aconselhado um amigo a não aceitar o cargo de homem-bom, que o faria participar do arrolamento dos bens da Igreja implicado na Lei de Separação das Igrejas do Estado. Por sua vez, em Santa Luzia, o P.e Júlio António do Vale foi preso por incitar o sacristão a distribuir aos paroquianos exemplares do “Protesto Colectivo dos Bispos Portugueses contra o Decreto de 20 de Abril de 1911 que Separa o Estado da Igreja”, o mesmo acontecendo com o vigário de São Gonçalo. Em virtude da insistência em usar o hábito talar, outra das proibições contidas na Lei da Separação, foram também condenados os párocos do Jardim do Mar e de São Vicente. A Revolução de 28 de Maio de 1926 e a consequente instalação da ditadura militar e, depois, do Estado Novo, ao acarretarem a supressão de muitas liberdades individuais, tornaram mais difícil a manifestação de opiniões divergentes, diminuindo, portanto, a possibilidade de conflito expresso. Isto não obstou, no entanto, a que, mesmo em tempos em que o silêncio se impunha como a mais prudente das posições, surgisse a figura do P.e César Teixeira da Fonte, cuja postura de solidariedade com o povo durante a Revolta do Leite – movimento que mobilizou o povo contra um decreto-lei que instalava o monopólio na indústria de laticínios, em 1936 – lhe valeu o encarceramento, primeiro na Madeira e depois em Caxias. Com a Revolução do 25 de Abril, e a profunda turbulência que o novo regime democrático imprimiu à sociedade, de novo avultaram conflitos que, desta feita, opuseram o bispo D. Francisco Santana (1974-1982) a alguns elementos do clero local. De destacar a figura do P.e José Martins Júnior, cuja assunção frontal de posições que contrariavam a hierarquia lhe valeu uma suspensão ad divinis (D. Francisco Santana). As situações de conflito que acabam de ser apresentadas, e que mais não pretendem ser que um elencar necessariamente breve dos diferendos que foram opondo os protagonistas religiosos da história da Madeira entre si ou em relação aos poderes civis, retratam uma realidade que, não sendo exclusiva do território insular, o marcaram de forma indelével. Enquanto elementos indispensáveis à vivência do quotidiano em tempos absolutamente marcados pela Igreja, que registava os momentos decisivos da vida dos fregueses – nascimento, casamento, morte, festas, lutos, alimentação, comportamentos e calendário –, os clérigos, em geral, e os bispos, em particular, não podiam escusar-se de lutar pelo que entendiam ser os seus direitos, quer dentro quer fora da instituição a que pertenciam. Não admira, assim, que o conflito fosse um elemento constitutivo da sua existência e se manifestasse ao longo dos tempos, respondendo a cada momento à alteração das circunstâncias, à posição dos adversários ou até à vontade de protagonismo e características dos diversos intervenientes.    Cristina Trindade (atualizado a 30.12.2016)

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