Mais Recentes

leacock, edmund erskine

Edmund Erskine Leacock foi um grande industrial e proprietário. Nasceu no sítio da Casa Branca, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, a 28 de novembro de 1891, no seio de uma família britânica que se estabeleceu na ilha da Madeira no séc. XVIII, ligada ao trato do açúcar e do vinho. Era filho de John Milberne Leacock (1847-1915) e de Mary Silence Erskine (?-1945), e neto, pela parte paterna, de Thomas Slapp Leacock e, pela via materna, de David Holland Erskine, que fora cônsul britânico na Madeira. Depois de ter estudado no Wellington College, em Berkshire, Inglaterra, e de ter servido no Exército britânico durante a Primeira Guerra Mundial, ocupando o posto de tenente na infantaria ligeira de Yorkshire, estabeleceu-se no Funchal. Casou-se duas vezes, tendo tido três filhos. Do primeiro casamento, com Muriel Hobhouse Hebblethwaite, teve John Trelawny Leacock, nascido a 14 de março de 1917, em Londres, que foi oficial da aviação britânica, falecido a 14 de julho de 1941, durante a Segunda Guerra Mundial; e Mary Patricia Erskine Rigby (?-1988), apelido resultante do casamento com Hugh John Macbeth Rigby, em 1946. Das segundas núpcias, com Eileen Vina Addie, teve William Addie Erskine Leackock, nascido a 23 de maio de 1941, no Funchal, e que, em 1968, viria a assumir os negócios da família, falecendo a 9 de maio de 2010. Edmund contribuiu para o desenvolvimento da indústria e do comércio insular. Foi, juntamente com seu irmão Julian Philip Leacock, diretor da importante e conceituada firma Leackock & C.ª Lda. Além do vinho Madeira, estendeu os seus negócios aos bordados, aos fertilizantes, ao tabaco e ao comércio automóvel, e estabeleceu ligações com inúmeras firmas, designadamente: Leacock Bordados; Leacock Adubos; Edmund Leacock, Lda.; Madeira Auto Car, Lda.; British Country Club; Empresa Madeirense de Tabacos, Lda.; e Sociedade de Automóveis da Madeira, Lda. No centro da cidade do Funchal (terrenos das ruas 5 de junho e Conde de Canavial) fez levantar um importante quarteirão fabril, projetado pelo arquiteto Edmundo Tavares, em 1938, para albergar os armazéns, escritórios e oficinas da empresa Leacock & C.ª Lda. Faleceu em Londres, Inglaterra, a 8 de dezembro de 1977, aos 86 anos, tendo os seus restos mortais chegado ao Funchal, por via aérea, na noite de 11 de dezembro, acompanhados pela esposa, Eileen, e pelo filho, William. O funeral teve lugar a 12 de dezembro, pelas 11.30 h, no cemitério britânico. Em sinal de pesar, as inúmeras firmas a que estivera ligado mantiveram as portas fechadas desde o dia 9 de dezembro até às 13.00 h do dia 12.     Ricardo Pessa de Oliveira (atualizado a 11.02.2017)

História Económica e Social Personalidades

junta de planeamento 1975

A transição da Madeira para o processo democrático foi de certa forma calma, se comparada com a agitação vivida no continente ou nas antigas colónias portuguesas de África. As forças militares e militarizadas não colocaram especiais problemas ao Movimento das Forças Armadas (MFA), e a primeira agitação, aliás vaga, decorreu na manifestação do 1.º de Maio, quando apareceu um cartaz a colocar em causa a presença no Funchal dos ex-governantes Américo Thomaz (1894-1987) e Marcello Caetano (1906-1980), com os dizeres “A Madeira não é caixote de lixo”. A notícia chegou a António de Spínola (1910-1996), que presidia à Junta de Salvação Nacional e se comprometera com Marcello Caetano, no quartel do Carmo, a fornecer-lhe proteção pessoal, pelo que poucos dias depois se encontrava na Madeira um delegado do Movimento, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo Pinto Melo e Leme (1930-) (Azeredo, Carlos de). A função do delegado do Movimento era a segurança das altas figuras do final do Estado Novo, mas, embarcadas as mesmas para o Brasil, a 20 de maio, teve de aguardar a nomeação do governador civil do Funchal (Governo civil), Fernando Rebelo (1919-2002) (Rebelo, Fernando Pereira), somente exarada a 7 de agosto. O novo governador tomou posse em S. Lourenço a 8 de agosto e, nesse mesmo dia, Carlos de Azeredo regressou ao continente, fixando-se no Porto. A 13 de setembro de 1974, o novo governador civil do Funchal – em consequência do pedido de exoneração de Rui Vieira (1926-2012), pedido que nunca fora aceite por Carlos de Azeredo – nomeava nova presidência para a Junta Geral. A 10 de outubro, a Junta Geral é dissolvido e é nomeada uma comissão administrativa, que também não resistiu muito tempo. As nomeações que se seguiram, essencialmente de elementos sem impacto político e social nas restantes estruturas locais, que não haviam sofrido especiais alterações, tornariam a situação geral insustentável a curto prazo. A instabilidade que se viria a desenvolver depois na Ilha levou a que, por solicitação dos elementos do Movimento na Madeira, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo, então graduado em brigadeiro, regressasse no final desse ano de 1974 ao Funchal. A 11 março de 1975, em Lisboa, entretanto, registava-se novo pronunciamento militar. O grupo mais moderado de forças políticas e militares ligadas ao Gen. António de Spínola, que não tinha aceitado o seu afastamento, a 30 de setembro, na sequência do falhanço da manifestação da “maioria silenciosa” de dois dias antes, nem, essencialmente, o acelerado processo de descolonização e de politização progressiva da sociedade portuguesa, movimentou-se. Os grupos mais politizados e a Comissão Coordenadora estavam, no entanto, atentos à movimentação, pelo que a mesma se saldou por um novo fracasso, sendo o Gen. Spínola definitivamente afastado, e tendo tido, inclusivamente, de abandonar o país. As notícias chegadas ao Funchal levaram à realização de manifestações de rua em apoio ao MFA. O processo foi acompanhado pelos comandos militares madeirenses, não tomando o Brig. Carlos de Azeredo qualquer posição, dependente, até certo ponto, que estava ainda do governador civil, Fernando Rebelo. Carlos de Azeredo encontrava-se nessa manhã numa cerimónia de distribuição de diplomas e condecorações na sede da Polícia de Segurança Pública do Funchal, à R. dos Netos, e, tendo sido informado pelo Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015) do que se passava em Lisboa, não interrompeu a distribuição. Escreveria mais tarde que continuou “calmamente na cerimónia” (AZEREDO, 2004, 205), mas, regressado ao palácio de S. Lourenço, acompanhou a situação, como os vários oficiais do seu gabinete, com a máxima apreensão. Com o pronunciamento de 11 de março, as forças mais à esquerda desenvolveram o que ficou conhecido por Processo Revolucionário em Curso e popularizado como PREC. No dia seguinte, a Junta de Salvação Nacional e o Conselho de Estado eram extintos e substituídos pelo Conselho da Revolução, a que se seguiria um plano de nacionalização da Banca, dos Seguros, dos Transportes, etc. Este período constituiu a fase mais marcante da tentativa de revolução portuguesa, durante o qual as tensões políticas e sociais atingiram uma virulência nunca experimentada. Principalmente o verão desse ano de 1975, o chamado “verão quente”, prestou-se a todo o tipo de violências numa sociedade considerada até então de brandos costumes e que nesse período parecia ter querido deixar de o ser. As forças madeirenses ligadas ao velho Movimento Democrático mostraram-se completamente incapazes de fazer face à situação e, a 20 março, Fernando Rebelo deixava o cargo de governador civil. Nesse mesmo dia, em Lisboa, onde fora chamado, desconhecendo o motivo e tendo tido então as mais sérias reservas e apreensões, Carlos de Azeredo tomava posse desse cargo, por despacho do ministro da Administração Interna. A nomeação de um elemento dado como próximo do Gen. António de Spínola não foi bem aceite nos sectores militares e civis continentais ligados ao PREC, que preferiam a nomeação do Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015), mas representou uma vitória para os sectores mais moderados e marcaria, na Madeira, o início da progressiva demarcação em relação ao processo continental. O Brig. Carlos de Azeredo, como governador civil – mas sempre fardado –, quase de imediato, a 25 de março, dava posse no Funchal à Junta de Planeamento para a Madeira, criada pelo dec.-lei n.º 139/75, promulgado no polémico dia 11 de março, pelo Presidente da República, Gen. Francisco da Costa Gomes (1914-2001), e publicado a 18 seguinte. O dec.-lei já considerava este órgão com um cariz transitório, mas com forte poder de decisão, sendo composto pelo governador civil, que presidia, com voto de qualidade, e por três vogais. Este órgão vinha um pouco na sequência do grupo criado alguns anos antes no âmbito da Junta Geral, a comissão regional de planeamento, mas já com funções deliberativas mais amplas, superintendendo, inclusivamente, sobre a mesma Junta Geral que, embora dissolvida, continuava em exercício. Foram então empossados como vogais João Abel de Freitas (n. 1942), Virgílio Higino Pereira (n. 1941) e José Manuel Paquete de Oliveira (1936-2016), que dirigia o Diário de Notícias. A presença de João Abel de Freitas, ligado à comissão do salário mínimo, e mesmo dos restantes elementos, pois que a sua nomeação fora acordada em Lisboa, não reunia o consenso alargado que alguns sectores locais requeriam, pelo que a Junta de Planeamento foi alvo de críticas no Jornal da Madeira, o que levou Carlos de Azeredo a convocar a S. Lourenço Alberto João Jardim (1943-), recentemente colocado à frente daquele jornal pelo bispo do Funchal, D. Francisco Antunes Santana (1924-1982), embora tal não tenha refreado os ataques daquele periódico à nova estrutura governativa regional. As críticas ainda aumentaram com o dec.-lei de 2 de julho de 1975, que alargava os poderes da Junta de Planeamento para proceder ao saneamento dos serviços do Estado e dos corpos administrativos, podendo suspender por 90 dias os funcionários desses organismos e nomear comissões para efetuarem reclassificações dos mesmos. Foi por esse diploma que se acrescentou um quarto elemento à Junta de Planeamento, dado como representante do comando militar, Faria Leal, que desde o início participava já em todas as reuniões. A Junta de Planeamento sofreria uma contínua contestação, não só local, dado que, como o governador Carlos de Azeredo anunciara na sua formação, tinha sido escolhida de cúpula, por decisão autocrática, logo sem a consulta das forças políticas já sumariamente colocadas no terreno, como igualmente dos círculos mais à esquerda do MFA nacional, que a consideravam não revolucionária. Poucos dias depois, comemorando-se o segundo 1.º de Maio em liberdade, deslocar-se-iam à Madeira dois conselheiros da revolução, o Com. Carlos de Almada Contreiras e o Maj. José Manuel Costa Neves, que participariam na manifestação, mas que quase não contactaram os elementos das forças armadas de S. Lourenço, limitando-se o Brig. Carlos de Azeredo a depois os acompanhar ao aeroporto. Ao contrário do ano anterior, também nenhum dos elementos militares da Madeira participou na mesma manifestação que, inclusivamente, levou a alguns incidentes na baixa da cidade, o que não acontecera no ano precedente. A Junta de Planeamento começou a conhecer dificuldades de articulação interna a partir das eleições de 25 de abril de 1975 (Eleições Autonomia), que elegeram a Assembleia Constituinte (sendo a organização dessas eleições a mais importante missão de que a referida Junta estava incumbida). Assim, se até então a sua nomeação de cúpula, como havia sido referido por Carlos de Azeredo na sua apresentação pública, era defensável por não ter havido eleições na Região, a partir daquela data, tal já não era sustentável. Acrescia a isto o desgaste do “verão quente” de 1975, que começara a 11 de março, e logo a 4 de abril registara uma tentativa de assalto ao palácio de S. Lourenço por uma manifestação de produtores de cana-de-açúcar – situação geral à qual Carlos de Azeredo deu uma resposta que não foi entendida como correta, nem pela esquerda, nem pela direita, tentando limitar a sua atuação a uma gestão negociada de crise, que nunca fora bem aceite por alguns elementos da Junta de Planeamento. A cisão foi iniciada pelo pedido de demissão de João Abel de Freitas, a 5 de agosto de 1975, pois que o mesmo não poderia ter sido feito pelo Maj. Faria Leal, dada a sua condição militar, pretendendo ambos a detenção de alguns empresários madeirenses por sabotagem económica. A demissão de João Abel Freitas foi imediatamente aceite pelo Brig. Carlos de Azeredo, e seguiu-se-lhe a demissão dos restantes membros. Estava assim aberto o caminho para a constituição de um novo órgão de gestão governativa da futura Região Autónoma da Madeira, que, embora ainda não democrático nem verdadeiramente representativo das forças políticas com representação no terreno, caminhava já nesse sentido: a Junta Governativa e de Desenvolvimento de 1976. Levaria, no entanto, mais de seis meses para ser negociada e tomar posse.     Rui Carita (atualizado a 09.06.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

invejidade

O termo é considerado no “vocabulário madeirense”, sinónimo de “inveja”, mas não será bem assim. A melhor definição que encontramos é dada por Alberto Arthur Sarmento quando fala sobre os problemas em torno da construção e do funcionamento da estufa de John Light Banger, no Funchal, em 1768: “É termo bem característico madeirense – a invejidade, significando a inveja mal reprimida, encapotada, que mói e ginga, repisa e muito gira, a lançar mão de todos os meios para se alastrar, procurando anular a sombra que a escurece e molesta, húmida e fria, infiltrante, deprimindo o que é alheio, a roçar-se a esquina, para realização dos seus fins. É a inveja dinâmica, sem sentido, nem direção, impando uma coragem embexigada pela vacina do medo” (SARMENTO, 1944, 29). A inveja é um dos sete pecados capitais e pode ser entendida como o desejo de alguém em relação a determinados atributos, posses ou status do outro. Este sentimento materializa-se através de uma certa atitude do olhar, a que se chama “mau-olhado”, “olho gordo” ou “roxo”. Através do pensamento ou de tal atitude do olhar, atingimos os outros, provocando danos. Daí a necessidade de “limpar” ou desfazer esta energia. Para afastar os efeitos da invejidade, usam-se plantas, raízes, sementes e ervas, sob a forma de defumações e banhos que têm o efeito de purificar, proteger ou curar. Nos jardins de muitas casas madeirenses, há uma planta de alecrim, em conjunto com uma pimenteira e arruda, com o mesmo objetivo. O alecrim é mesmo conhecido como a “erva das bruxas”, sendo usado “para defesa dos domicílios e amuleto pessoal contra a inveja e mau olhado” (PEREIRA, I, 1989, 189). Para sarar esta inveja, é usual os madeirenses socorrem-se de curandeiros, que fazem umas rezas apoiados nas referidas plantas. E Sarmento refere-nos uma das muitas preces que existem na tradição popular: “Eu te curo de olhado mal invejado e empresado, em o nome que o padre te pôs na pia, com o nome de Deus e da Virge-Maria e das três pessoas da Santíssima Trindade. Se está mal invejada, no seu comer, ou no seu beber, no seu vestir, no seu calçar, no seu ter, na sua boniteza, na sua formosura [...] na sua gordura, no seu andar; quem invejou com mau mado não torne a invejar. Arrebenta-te, cão, vai-te p’ra o inferno. Alecrim verde, que nasce no campo, tirai este mal e este quebranto. Home bom, mulher irada, palhas aguadas, por onde este mal entrou por lá saia. Credo, três vezes credo, arrebenta cão nas profundas do inferno” (SARMENTO, 1912, 114-115). A diversidade destas rezas, o numeroso grupo de curandeiros que existe em quase todas as localidades da Madeira, bem como a insistente presença das plantas em questão nos jardins locais, nomeadamente na entrada das casas, indiciam que, no começo do séc. XXI, esta tradição se mantinha ativa na Madeira e que a inveja tinha aí um terreno fértil para medrar. Neste período, ao grupo de plantas que, por tradição, os madeirenses sempre usaram, juntaram-se outras, como a chamada língua de sogra ou espada de S. Jorge (Sansevieria trifasciata), o asplênio (Asplenium nidus) e as zamioculcas (Zamioculcas zamiifolia). Daqui ressalta a importância que, cada vez mais, a etnobotânica tem no quotidiano dos madeirenses: sabemos que, de forma clara, as plantas e flores deixaram de ter apenas uma função ornamental para se adequarem a outros papéis, em termos energéticos e espirituais, servindo para a “limpeza” e proteção espiritual de pessoas e casas. A invejidade é um traço comportamental que se torna mais notado em espaços pequenos, definidos pelos madeirenses como poios, mesmo na sociedade global do séc. XXI: ninguém larga o seu poio, ou seja, os seus hábitos, usos e costumes, as suas atitudes e os seus sentimentos. Não há estudos de caráter sociológico sobre os comportamentos dos madeirenses nos sécs. XX e XXI que permitam entender este particular. Também no campo da história, faltam estudos ou relatos que permitam entender a diversidade de atitudes e comportamentos que definem o madeirense. A invejidade é a cobiça refinada e destrutiva que limita o progresso e o convívio social. Não é visível em poucas palavras, manifestações e olhares. Funciona como uma mão invisível que todos negam, mas que está presente de forma diária nas atitudes, nos desejos e nas palavras da população e que se torna expressiva, por exemplo, na literatura popular madeirense, nas quadras que o povo canta. Com efeito, encontramos aí um discurso moral no sentido da sua erradicação: “Inveja é pranta ruim / Que lavra por toda terra. / Se traz raízes no mar / Já bota as folhas na serra” (PORTO DA CRUZ, 1954, 14). Na imprensa, como na literatura, é frequente o tema da invejosidade ou da inveja, atitude que aparece como um dos males que assola a Ilha. Assim, em 1874, alguém que assinou sob o pseudónimo de J. Fausto afirmava: “Das mesquinhas intrigas de inveja, de que está desgraçadamente infecionado o solo madeirense” (Estrella Litteraria, 1874, 4). Depois, em 1912, o já citado Alberto Arthur Sarmento, num conto sobre “A camada de olhado”, refere que a invejidade “em matéria de malefícios era d’arromba” (SARMENTO, 1912, 150). Ainda o mesmo autor, na questão sobre a estufa para beneficiação do trigo construída junto ao Pilar de Banger, dedica um capítulo ao que chama “a invejidade” para ilustrar os problemas decorrentes da construção dessa obra (Id., 1944, 30). Para além disso, temos alguns ditados populares que são expressivos, quanto à generalização da inveja. Em 1952, pode ler-se no periódico Re-nhau-nhau o seguinte adágio popular: “Se a inveja fosse tinha toda a gente andava tinhosa” (Re-nhau-nhau, 10 abr. 1952, 2). Depois, em 1996, afirmou-se no mesmo que “ambições, invejas, caprichos, interesses, egoísmos andam com os homens por onde eles vão para todos os rumos, não há direção que não sigam essas fraquezas da raça humana” (Id., 14 jan. 1996, 4). Vale a pena recordar que, em 1882, no Diário da Tarde, ao comentar-se os problemas e as reclamações em torno da ação do visconde de Canavial, foi afirmado: “ Ai! Se a inveja fosse tinha...” (Diário da Tarde, 21 dez. 1882, 2). É certo que estamos perante uma atitude universal, mas que ganha significado e evidência em espaços pequenos e a pequenez do “poio” pode ser um meio facilitador da sua propagação. Talvez por essa razão, Ferreira de Castro acentuou a questão, escrevendo “todos [...] os seus ódios, as suas invejas” (CASTRO, 1977, 159) e a escritora Agustina Bessa Luís, ao escrever sobre a Madeira, refere “a inveja e o ódio de muitos séculos” (LUÍS, 1996, 16).     Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social

incêndios

A história assinala, de forma evidente, os efeitos devastadores do fogo. Ao descobri-lo, o Homem revolucionou o seu modo de vida, colocando-se, ao mesmo tempo, perante novos perigos. Da mesma forma, o fogo assume um papel fundamental na história da Madeira, pois, logo nos seus primórdios, foi através desse elemento que o europeu purificou a terra e abriu clareiras para assentar morada. No contexto madeirense, é desde logo de salientar o incêndio que, de acordo com a tradição, lavrou a Ilha durante sete anos. À sua chegada, os navegadores portugueses terão ateado um incêndio à floresta densa para nela poder penetrar, mas este terá ganho tais proporções que os atemorizou. Foram sete anos de chama acesa, diz a narrativa tradicional. Segundo Cadamosto, foi com um violento incêndio que os povoadores “varreram grande parte da dita madeira, fazendo terra de lavoura” (ARAGÃO, 1981, 36). Por sua vez, João de Barros escreve: “assim tomou o fogo posse da roça e do mais arvoredo, que sete anos andou vivo no bravio daquelas grandes matas que a natureza tinha criado havia tantas centenas de anos. A qual destruição de madeira posto que foi proveitosa para os primeiros povoadores logo em breve começaram [a] lograr as novidades da terra: os presentes sentem bem este dano, pela falta que têm de madeira e lenha: porque mais queimou aquele primeiro fogo do que lentamente ora poderá delepar força de braço e machado” (BARROS, 1932, 19). Também Fernando Augusto da Silva relata o incêndio, dizendo: “Havendo na Madeira um denso arvoredo que impedia a agricultura, um dos primeiros trabalhos dos seus habitantes foi naturalmente a derruba: Zargo mandou lançar fogo ao arvoredo e ao funcho que havia em grande quantidade no sítio onde depois foi o Funchal, para que desnudado assim o terreno, o pudesse mandar cultivar” (VIEIRA, 1998, 160). Dizem, assim, alguns cronistas, como Manuel Tomás na Insulana, que o incêndio durou sete anos, tendo sido atingida toda a Ilha; porém, outros sustentam que só o foi a sua parte sul. Nesta medida, o incêndio é-nos relatado, primeiro por João de Barros e depois por Gaspar Frutuoso, como sendo parcial, o que parece mais verosímil. Frutuoso dá conta, nos termos seguintes, do incêndio no sertão da Madeira: “Daqui acordou o capitão (João Gonçalves Zarco), vendo que se não podia com o trabalho dos homens desfazer tanto, arvoredo que estava nesta Ilha desde o princípio do mundo ou da feitura dela, e para o consumir, e se lavrarem as terras, e aproveitar-se delas era necessário pôr-lhe o fogo; [...] e, por ser o vale muito espesso assim de muito funcho, como de arvoredo, ateou-se de maneira o fogo, que andou sete anos apegado pelas árvores, e troncos, e raízes debaixo do chão, que se não podia apagar, e fez grande destruição na madeira assim no Funchal, como em o mais da Ilha ao longo do mar na costa da banda do sul, onde se determinou roçar e aproveitar” (FRUTUOSO, 1968, 83). Referindo-se ao mesmo incêndio, Francisco Manuel de Melo diz, na “Epanáfora III”, o seguinte: “É força que duvide do incêndio que (Barros) afirma durou sete anos por toda a Ilha. Ao que, parece, implicam os bosques, que sempre nela permaneceram, dos quais há tantos anos, se cortam madeiras, para fábrica de açúcares: de que dizem chegou a haver na Ilha, cento e cinquenta engenhos; que mal poderiam continuamente sustentar-se, depois de um incêndio tão universal, e menos produzir-se depois dele: mas fique sempre salvo o crédito de tal Autor” (CASTRO, 1975, 78). Os argumentos de Melo são úteis para mostrar que o incêndio da Madeira nem durou sete anos, nem se estendeu a todos os pontos da Ilha, havendo ainda a acrescentar que, se ele tivesse sido geral, como pretendem alguns escritores, não poderia Cadamosto dizer, em 1450, que o país produzia madeiras muito apreciadas, entre as quais sobressaíam o cedro e o teixo. É ainda de salientar que, para o fogo durar sete anos consecutivos em matas constituídas especialmente por essências folhosas, seria preciso que durante esse longo período de tempo não caíssem na Ilha nenhuns dos violentos aguaceiros que continuamente inundam os vales do interior e dão origem a torrentes que se despenham em catadupas do alto das serranias. Ao longo do tempo, os incêndios passaram a deflagrar nas florestas, nas habitações e no espaço urbano. O fogo era indispensável em muitos aspetos do quotidiano, mas as condições de segurança do seu uso eram muito precárias, o que implicava um risco quase permanente. A par disso, houve uma diversidade de incêndios na floresta que resultou da incúria ou malévola iniciativa dos carvoeiros. As fogueiras ateadas para produzir carvão, indispensável à indústria e à vida caseira, era um foco de risco relevante, pelo que, no decurso do séc. XIX, os carvoeiros eram considerados os principais inimigos da floresta. Paulo Dias de Almeida, engenheiro militar, foi para a Ilha em comissão de serviço com o objetivo de atacar os males da aluvião. Na memória descritiva que elaborou em 1817, traça-nos, de forma clarividente, o panorama desolador que encontrou. O seu dedo acusador é apontado à ação devastadora dos carvoeiros, principais responsáveis pela destruição geral dos arvoredos. A sua visão é, a vários níveis, desencantada. Nesse sentido, constata: “as montanhas que não há muitos anos vi cobertas de arvoredos, hoje as vejo reduzidas a um esqueleto”, aditando que até mesmo o “centro da Ilha se acha todo descoberto de arvoredo, com apenas algumas árvores dispersas e isto em lugares onde os carvoeiros não têm chegado” (CARITA, 1982, 53). Outro testemunho atento sobre esta degradação do meio natural surge em meados do séc. XIX pela pena de Isabella de França, uma jovem inglesa que, sendo casada com um madeirense, estava em viagem pela Ilha. O seu olhar atento debruça-se sobre as diversas espécies botânicas e sobre o variado mundo animal, terrestre e marinho. Suscita-lhe particular interesse a flora do Palheiro Ferreiro e da Camacha, locais onde a mão do Homem contribuiu para recuperar a paisagem, através do plantio de pinheiros e espécies exóticas. Aí, o principal depredador não é o carvoeiro, mas o vendedor de lenha na cidade, que saqueia as árvores “sem remorsos, de modo que estas crescem apenas para que as roubem, quando lhes chega a vez” (FRANÇA, 1969, 139). Também Manuel Braz Sequeira, no seu Opusculo de Propaganda, resultante do panorama vivido no verão de 1910, marcado por um incêndio de grandes proporções nas serras, volta o dedo acusador aos carvoeiros, aos pastores de gado e aos lenhadores. Confrontado com esse selvático “vandalismo que se está cometendo nas serras desta Ilha”, o autor clama por medidas e faz campanha em prol da sua arborização (VIEIRA, 1998, 149). Por editais de 23 de agosto de 1802 e de 6 de novembro de 1803, proibiu-se a construção de estufas no recinto da cidade, evocando o juiz do povo os inconvenientes que daí advinham para a saúde pública, pelo fumo e constante perigo de incêndio no período de laboração. Os comerciantes da praça do Funchal manifestaram-se contra, alegando os prejuízos e contrariando os argumentos infundados do referido juiz do povo. Até 1803, só houve três ameaças, sendo já posterior o incêndio que acometeu a estufa de Phelps Page & Ca, a 29 de outubro de 1806. Depois disso, temos referência a três incêndios na última década da centúria: a 20 de janeiro de 1894, o fogo devorou a estufa da firma de vinhos Araújo & Henriques; a 15 de dezembro de 1898, a estufa do conde de Canavial; a 11 de julho de 1900, um prédio da R. do Esmeraldo, propriedade dos herdeiros de Júlio Henriques de Freitas, que tinha, no primeiro andar, uma estufa com 49 pipas, que felizmente se salvaram. Nos inícios do séc. XX, a grande preocupação prendia-se com a necessidade de preservar o pouco manto florestal existente e de pugnar pela recuperação dos espaços ermos. Assim, a necessidade de regulamentação do pastoreio conduziu à lei das pastagens de 23 de julho de 1913. Neste contexto, várias são as vozes que clamam por um reordenamento dos pastos, como é o caso de José Maria Carvalho, ou pela arborização, como J. Henriques Camacho, que será posta em prática por Eduardo Campos Andrade na déc. de 50. O texto O Revestimento Florestal do Arquipélago da Madeira (1946), de Fernando Augusto da Silva, é revelador da forma como evoluiu o panorama florestal ao longo dos séculos e das insistentes medidas ordenadas pelas autoridades. Os dados apresentados provam que uma valiosa riqueza natural, se não for devidamente acautelada, prontamente desaparece, deixando efeitos nefastos sobre o meio. Os incêndios são, assim, uma presença constante na história da Madeira, tendo ficado registada a memória daqueles que mais se evidenciaram. Aqueles que tiveram lugar no espaço urbano, em oficinas, armazéns, padarias, lojas, mercearias e igrejas, tornaram-se mais conhecidos, na medida em que ficaram registados nas ocorrências das associações de bombeiros. Pelo contrário, falta muitas vezes o registo dos que deflagraram nas serras, e que foram uma constante no período estival, porque eram um encargo das câmaras municipais, sendo raramente registados na imprensa. Nos anais da história do arquipélago, encontramos o registo de vários incêndios florestais: 1419, 1838, 1919, 1994, 1995, 1996, 1997, 2000, 2001, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2012, 2014 e 2015. Destes fogos florestais, salientam-se o primeiro e os que se registaram a partir de princípios do séc. XX, que assolaram sobretudo a vertente sul, mais precisamente a área florestal sobranceira ao Funchal. Nas primeiras décadas do séc. XXI, estes destacaram-se pela sua grande violência. Quanto aos incêndios urbanos (habitações e indústrias), registam-se os seguintes: 1593, 1699, 1857, 1878, 1883, 1884, 1885, 1886, 1889, 1891, 1892, 1893, 1894, 1898, 1899, 1900, 1902, 1903, 1904, 1905, 1906, 1907, 1908, 1909, 1910, 1911, 1915, 1916, 1917, 1919, 1924, 1926, 1927, 1928, 1929, 1931, 1932, 1933, 1934, 1935, 1936, 1937, 1938, 1940, 1941, 1942, 1943, 1944, 1945, 1946, 1947, 1948, 1949, 1950, 1951, 1952, 1953, 1955, 956, 1957, 1958, 1959, 1960, 1961, 1962, 1963, 1964, 1965, 1966, 1969, 1971, 1993, 1994, 1995, 1996, 1997, 1998, 1999, 2000, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2016. Estes incêndios de que temos notícia revelam que as mercearias (atingidas em 1903, 1908, 1945, 1952 e 1962) foram espaços muito vulneráveis, às quais se juntam as casas de bordados (1916, 1949 e 1950) e as igrejas e construções religiosas: 12 de julho de 1908, na igreja de Ponta Delgada; 17 de agosto de 1958, na igreja velha do Porto da Cruz; 24 de abril de 1959, no mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, na Caldeira de Câmara de Lobos; 12 de setembro de 1960, na igreja do Faial. Dos incêndios que ocorreram no espaço urbano, alguns atingiram importantes edifícios públicos: 1699 – instalações do governador no palácio de S. Lourenço; 1885 (10 de agosto) – Casa dos Loucos do Hospital de Santa Isabel; 1906 (18 de dezembro) – Quartel do Regimento da Infantaria n.º 27; 1915 (25 de novembro) – engenho do Hinton; 1924 (4 de janeiro) – Casa dos Loucos do Hospital de Santa Isabel; 1927 (23 de fevereiro) – casino Vitória; 1928 (25 de março) – instalações do Tribunal e das Repartições Públicas de Santa Cruz; 1936 (12 de agosto) – Casa da Luz; 1938 (1 de novembro) – fábrica de aguardente nas Quebradas, em São Martinho; 1943 (12 de maio) – fortaleza de Santiago; 1943 (6 de novembro) – Fotografia Vicente, à R. da Carreira; 1947 (9 de janeiro) – palácio de S. Pedro; 1971 (25 de junho) – vários prédios no quarteirão da Casa das Balanças à R. Esmeraldo; 1986 – prédio à R. do Esmeraldo onde esteve instalada a Marconi e, posteriormente, a sede do Tribunal de Contas; 2007 (3 de junho) – edifício da Câmara do Comércio e Indústria da Madeira (ACIF) e do Club Sports Madeira, na Av. Arriaga       Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

História Económica e Social

impostos e revoltas

A nossa história regista várias convulsões geradas por decisões em torno dos impostos. Entre elas, assinalamos as lutas da Patuleia, em parte, envolvendo o tema da atualização das matrizes; a Janeirinha, contra o imposto de consumo; e a Saldanhada, que compreendeu questões concernentes ao sistema fiscal. Estes tumultos refletiram-se na história do arquipélago da Madeira, onde se referenciaram algumas insurreições contra o lançamento ou a existência dos impostos em causa. Palavras-chave: impostos; tributação; revoltas; guerra; política. Os impostos nunca mereceram a aceitação da população, daí o seu nome. A nossa história regista diversas convulsões geradas por medidas concernentes a impostos e tributos. Entre elas, no séc. XVII, a Revolta do Manuelinho, que alastrou de Évora a Lisboa e Beja. Mais tarde, aconteceram as lutas da Patuleia, em parte, envolvendo o tema da atualização das matrizes; a Janeirinha, contra o imposto de consumo; e a Saldanhada, que compreendeu questões respeitantes ao sistema fiscal. Estes tumultos refletiram-se na história do arquipélago da Madeira, onde se referenciaram algumas insurreições contra o lançamento ou a existência destes impostos. “Maria da Fonte” ou “Revolução do Minho” é o nome por que ficou conhecida a revolta popular que irrompeu em maio de 1846 contra o governo do partido cartista chefiado por António Bernardo da Costa Cabral. A situação de tensão política do país, associada ao descontentamento popular, em consequência de algumas medidas governamentais, como as leis de recrutamento militar, as alterações fiscais e, acima de tudo, a proibição de realizar enterros dentro de igrejas conduziram a esta revolta popular. À sublevação inicial, sucedeu, a partir de 6 de outubro, uma situação de guerra civil que ficou conhecida como “Patuleia”, situação acima referida, e que perdurou até 30 de junho de 1847, altura em que foi assinada a Convenção de Gramido. Um dos principais motivos desta convulsão social foi a lei de 19 de abril de 1845 que dividiu a décima em outros três impostos: a contribuição predial, industrial e de juros. A queda do governo inviabilizou esta alteração tributária que foi revogada pelo dec. de 22 de maio de 1846, adiando a sua aplicação e obrigando-a a ser feita de forma faseada, mais tarde. Durante o último quartel do séc. XIX, estes foram um dos principais rastilhos das diversas convulsões populares que aconteceram por toda a Ilha, em 1880, 1897, 1899. À voz dos deputados, juntou-se, em 1887, a dos populares que se revoltaram, por toda a Madeira, contra a medida de implantação das juntas de paróquia criadas em 1836 e que foram adiadas por força do código administrativo de 1886 A oposição popular surgiu quando se divulgou a ideia de que, das mesmas juntas, resultariam novos impostos. Esta revolta representou a expressão do descontentamento popular perante o abandono a que a Ilha fora votada, o que se tornava evidente em momentos de aflição. Mas as juntas de paróquia não funcionaram em muitos dos casos e, apenas com a promulgação do código administrativo de 1886 se pretendeu implantar a referida estrutura na Ilha. O temor de que fossem portadoras de novos impostos conduziu a motins populares aquando das eleições para as mesmas, ficando estes conhecidos como “Parreca”. Os desacatos aconteceram por toda a Ilha, entre 1887 e 1888, com especial incidência no Faial, Caniço, Ponta de Sol e Santana, obrigando ao envio de batalhões militares dos Açores e de Lisboa. Em São Vicente, estes desacatos resultaram na queima de toda a documentação do arquivo municipal, perdendo-se, irremediavelmente, o que estava aí depositado. Em Ponta Delgada e Boaventura, resultaram na não concretização do ato eleitoral para as juntas de paróquia. Em qualquer uma destas convulsões, os agitadores políticos serviram-se dos argumentos que mais faziam alimentar o descontentamento popular. No concelho de São Vicente, estão referenciados tumultos da população, tendo dois como origem o sistema de cobrança de impostos. O mais relevante ocorreu em 12 de abril de 1868 e levou à destruição total do arquivo camarário, tal como referimos. Os tumultos confundem-se com a convulsão política que ocorreu a 8 de março de 1868 e que ficou conhecida como “Pedrada”. As eleições acirraram os ânimos entre os defensores dos partidos Popular e Fusionista e foi esta conjuntura de afrontamento que fez despoletar a revolta popular tendo como objetivo a aplicação do decreto sobre o sistema métrico decimal e a abolição do imposto indireto sobre a eira e o lagar que foi substituído pela contribuição predial. A rebelião alastrou também às diversas autoridades das freguesias. O governador civil enviou forças militares da Ponta do Sol e do Funchal, que aí se mantiveram por algum tempo, sendo suportadas pelo município. O maior problema daqui resultante foi a perda de documentação do arquivo municipal, à qual antes aludimos, que teve implicações negativas na administração corrente dos anos imediatos. Na verdade, quase toda a documentação concelhia foi levada pela população enfurecida e devorada pelas chamas. Assim, de data anterior, apenas restaram quatro livros de registo de testamentos (1801-1834), um livro de despesas do hospital provisório de São Vicente, lavrado aquando do surto de cholera morbus (1856), quatro livros de correspondência para as diversas autoridades do concelho (1843-1867), quatro livros de correspondência expedida às autoridades superiores do distrito (1845-1866) e outros quatro de registo de testamentos (1842-1878). Tudo o mais se perdeu. Depois disto, a população do concelho parece ter adquirido a fama de arruaceira. Sempre que eram tomadas decisões com implicações diretas na vida da população, o temor das autoridades camarárias era evidente. Em 1897, a vereação ordenou ao administrador do concelho que fizesse um auto de investigação para apurar a verdade sobre certos boatos subversivos contra a câmara, que era acusada de falsear as disposições das posturas atribuindo-lhe providencias e lançamentos de impostos revoltantes, talvez com o fim de levar o povo à sublevação. Sabe-se que, na freguesia do Seixal, havia ocorrido, em janeiro de 1868, uma manifestação de desagravo pela revisão das matrizes, o que obrigou a comissão revisora a abandonar o serviço. Certamente, em face disto, a vereação fez sentir, em 1899, a necessidade do serviço de três guardas-civis para a repartição, que apresentava tanto valor e destacou a “importância das loucuras dos contribuintes, face a um concelho tão populoso como este, que se acha excitado não só para praticarem os mesmos desatinos que os povos de Santana, como talvez perdas da Fazenda” (VIEIRA, 1997, 39). Tantas cautelas da câmara não impediram que, noutros momentos, não tivesse havido tumultos, como os que sucederam em abril de 1911, face às medidas governamentais que determinavam o encerramento das fábricas de aguardente. A 20 de março, a câmara apelara às autoridades para a necessidade de revogar esta decisão, face aos receios da ira popular, mas a resposta do governo foi o envio, em segredo, de uma força militar que não impediu que a revolta acontecesse. O resultado foi a prisão de 10 dos revoltosos: Manuel de Sousa Marinheiro, João José Serra, António Sebastião Costa, Vicente, filho de Vicente Vieira, Gregório Fernandes, Francisco Fernandes, João António Gonçalves, Manuel Pereira, Manuel Gonçalves Bacalhau e Manuel Pestana. Em 1880, a câmara decidiu lançar o imposto ad valorem, baseando-se a medida na necessidade urgente de criar receitas para satisfazer as despesas obrigatórias a que era mester atender a fim de conseguir-se o equilíbrio do orçamento da receita e despesa municipais. O imposto incidia sobre todos os produtos exportados do concelho: vimes, cana, carne, coiros, peles, cereais, vinho aguardente, aves, batata, lenha, madeira, nata e manteiga, bordados. O imposto motivou, uma vez mais, a ira popular, sendo um primeiro indício disso as afirmações do comandante da guarda fiscal, Manuel Filipe de Andrade, que havia “afirmado que o imposto ad valorem foi lançado apenas com o intuito de com o rendimento dele os vereadores comerem jantares, ceias e galinhas, isto em São Vicente, e de haver também escutado no Funchal que a atual vereação e município era composta de malandros sabendo ainda a comissão que o dito fiscal nunca perde o ensejo de poder maldizer quer da vereação quer dos seus atos” (Id., Ibid.). A hecatombe eclodiu no dia 10 de julho e levou a vereação a revogar tal imposto. Não sem antes criticar esta atitude. Assim, “considerando que, a forma tumultuosa dos movimentos populares dos dias dez e doze do corrente mês de julho neste concelho e vila, provou que a multidão por palavras e obras se revoltara com o intuito de não pagar impostos municipais, nomeadamente o imposto ad valorem e cuvatos; considerando que tais atos de rebelião coíbem e são a variação municipal duma ação proveitosa e útil dos seus esforços em benefício do mesmo município” (Id., Ibid.). No dia 10 de julho, um grupo de moradores de Boaventura marchou sobre a vila de São Vicente, onde chegou um grupo de mais de mil pessoas, que, em pouco tempo, duplicou. O primeiro alvo da ira foi Heliodoro de Sousa, oficial da repartição do Registo Civil e presidente da comissão executiva da câmara. Os populares acusavam-no de cobrar pelas cédulas um valor superior ao estabelecido no dec. 9521, de 14 de abril de 1924. Foram cercados os edifícios públicos e as casas dos seus responsáveis, que foram obrigados a fugir. Para serenar os ânimos, o Governo enviou uma força, no mesmo dia, que sitiou a vila. Alguns populares da Vargem e de Ponta Delgada obrigaram certas personalidades locais, mais influentes, a acompanharem-nos à vila. Os tumultos alargaram-se à Ribeira Brava e a Câmara de Lobos, municípios onde também se havia lançado o referido imposto ad valorem, criado em 1920 para taxar as mercadorias de exportação para fora do concelho. O relato dos acontecimentos correu nos periódicos funchalenses e despertou a atenção das autoridades. A 11 de julho de 1920, o Diário de Notícias do Funchal questionava a legitimidade das câmaras para sobrecarregar os seus munícipes com estes pesados encargos: “Não se capacitarão as câmaras municipais de que são mandatárias do povo e que, portanto, se eles impõe o dever de fiel e lealmente interpretarem o sentimento dos seus eleitores?” (VIEIRA, 1997, 41) Entretanto, o governador, em circular de 14 de julho, recomenda às câmaras a revisão deste imposto, a exemplo do que sucedera nos Açores. Todavia, a inevitável solução foi a sua extinção, que ocorreu a 11 de julho, na Ribeira Brava e só a 22 do mesmo mês, em São Vicente.   Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

História Económica e Social

imposição do vinho

A necessidade de encontrar uma fonte de receitas para cobrir as despesas do concelho levou os funchalenses a propor ao senhorio o lançamento da imposição do vinho sobre a venda do vinho “atabernado”, o que veio a acontecer em 22 de março de 1485. Para tal, solicitou-se o traslado do regimento da imposição do vinho aprovado para a cidade de Lisboa, que veio a ser publicado a 11 de junho de 1486. O lançamento da imposição do vinho foi determinado, em 1484, por D. Manuel, a exemplo do que se fazia no reino com o real do vinho e da água, ficando a receita para “enobrecimento e cousas do concelho” do Funchal (VIEIRA, 2003, 305). A imposição enquadra-se no conjunto de impostos camarários indiretos, uma vez que só a partir do séc. XVII passou para o controlo do erário régio e a receita a ser repartida. A imposição incidia também sobre outros bens de consumo para além do vinho. Destes, temos nota da carne, cereais, farinha e biscoito. Da referente aos cereais, sabemos que foi arrecadada em 1485, mas, depois, com as dificuldades relativas ao abastecimento deste produto, foi levantada por algum tempo, estando de novo implantada em 1488, altura em que sabemos ser esta de 1 real por alqueire. Para a arrecadação da imposição sobre a venda da carne, a Câmara do Funchal nomeava um oficial, com o encargo de assistir nos açougues ao peso da carne lançado, partindo daí o imposto. De acordo com o lançamento do imposto de 1484, a incidência era sobre o vinho vendido nas tavernas, onerando-se as transações locais entre o comerciante ou produtor e o taberneiro. Todos os que vendessem vinhos deveriam comunicar ao vereador que “o dito carrego tiverem pera se lhe ser esprito o perco a que o puser e lhe ser lancada a vara pera se saber quantos almudes tem […]. Do mesmo modo o mercador fara saber aos oficiais que o carrego teverem, todos os vinhos que trouxer e dos que vender atavernados sera obrigado a fazer a saber ante do abrir pera lhe ser esprito o preço e lhe ser lançada a vara [...]” (Id., Ibid., 305). Aos infratores aplicava-se a pena de 1.000 reais e “mais lhe sera logo levado em cheo todo ho que a dita pipa ou toda ou quanto avia de render a dita renda [...]”(Id., Ibid., 305). O taverneiro que baixasse o preço do vinho deveria participar ao escrivão e ao varejador, para a imposição da quantia ser arrecadada pelo novo preço, ou seja, “uma canada de vinho por almude de 13 canadas por canto a recebe em dinheiro do pouo que asy do dito vinho bebe” (Id., Ibid., 305), enquanto do vinho vendido na pipa deveria ser retirada uma canada ou um almude de 13 canadas. Para a arrecadação do referido imposto, a Câmara estabeleceu três funcionários: o varejador, o escrivão e o recebedor, que respondiam perante a vereação. A arrecadação desta renda fazia-se por arrematação, o que acontecia, anualmente, na presença do governador e do capitão general, do juiz de fora, dos vereadores, do procurador do Concelho e do procurador da Real Fazenda. O porteiro da Câmara, com um ramo verde na mão, fazia o pregão, que era dito durante “muito tempo” (Id., Ibid., 305). Os interessados faziam os lanços, sendo arrematado aquele que apresentasse valor mais elevado, recebendo ele o ramo. Antes de ficar legitimada a sua função de arrecadar a imposição, o arrematante deveria apresentar um fiador e prestar juramento. Para se proceder ao lançamento do tributo, o escrivão da Câmara fazia, no início do ano, uma vistoria às tabernas e lançava, num rol, o vinho aí existente. A partir deste rol, era arrecadada a imposição pelos rendeiros ou recebedor da Câmara. A vereação deveria igualmente nomear, de entre os mesteres, dois varejadores para procederem à vistoria do vinho. O arrieiro-mor conduzia os vinhos às tavernas. A eficácia das medidas de arrecadação do novo direito só foi possível com o recurso a um quadro administrativo. O cargo de condutor de vinhos para as tabernas, com o encargo de aí fazer chegar o vinho, mediante manifestos, foi criado para tornar o controlo da circulação dos vinhos mais eficaz. O varejador percorria as tabernas ou casas onde se vendesse vinho e lançava a vara em todas as vasilhas, dando conta ao escrivão da quantidade disponível, do preço de venda e do dia em que tinha procedido ao varejamento. O recebedor tinha o encargo de proceder ao recebimento e à arrecadação do dinheiro, tendo um livro onde assentava a conta, para dela ser deduzida a soma a pagar e dela dar notícia aos oficiais da Câmara, ao recebedor e ao escrivão da Câmara. O dinheiro coletado começou por ser usado no custeamento das despesas correntes da Câmara, mas, depois, em 1489, foi consignado ao que então se entendia como o “nobrecimento desta vila” (Id., Ibid., 305) e que incluía diversas obras públicas, como caminhos e pontes. Desta forma, por ser uma principal fonte de renda, foi usada, de várias formas, na realização de diversas obras e no custeamento de diferentes despesas. Em 1508, dois terços da imposição das carnes foram aplicados nas obras do baluarte e da fortaleza do Funchal, ficando, assim, estabelecidos dois ramos de arrecadação desta imposição. Nesta mesma data, ficou igualmente estabelecido que a imposição seria de duas canadas por almude de 14 canadas, isto é, um sétimo do vinho vendido nas tavernas. Por alvará de 20 de setembro de 1516, D. Manuel mandou aplicar parte deste produto à construção do hospital do Funchal. Para o período de 1581, foram aplicados dois terços da renda para as despesas de abastecimento de cereal à cidade. Em 1663, nos concelhos de Santa Cruz e Machico, estas rendas foram repartidas entre as obras das igrejas que estavam arruinadas e a construção dos muros das ribeiras. O valor da cobrança era de duas canadas em cada almude de 14 canadas, ou a sétima parte, o que equivale a 14,3 % de imposto. A partir do séc. XVII, a Câmara ficava apenas com um terço do tributo, sendo o remanescente receita da Coroa. O fiador do rendeiro tinha de ser pessoa “abonada”, caso contrário havia quebra de contrato, repetindo-se o ato da arrematação, poucos dias depois. O taverneiro estava igualmente obrigado a apresentar fiador, “para que ele possa na sua taverna vender vinho e tudo o que nele tiver para vender” (Id., Ibid., 305), pagando a imposição. Este imposto incidia sobre o vinho vendido a retalho, havendo obrigatoriedade de os proprietários manifestarem o vinho, ato que era repetido, anualmente, antes de começar a venda do vinho novo. As vendeiras não cumpridoras, geralmente denunciadas pelo rendeiro, eram chamadas à Câmara. Em junho de 1724, o rendeiro da imposição relembrava a Lei Real que proibia as vendeiras de vinho de vender aguardente, sob pena de 6$000 réis e cadeia, e que o pagamento do vinho da imposição não fosse medido por almude. Em 1725, um terço da renda da imposição do vinho no Funchal revertia para os lázaros. Este imposto, sendo embora uma boa fonte de receitas, onerava a vida dos contribuintes, situação agravada quando coincidia com o pagamento do finto. Assim, a 27 de julho de 1729, Sebastião Figueira, rendeiro da imposição do vinho no Funchal e seu termo, queixou-se de 18 ou 19 vendeiras de vinho, as quais, por sua vez, também se queixaram do aumento dos impostos. Parece que, entretanto, fora lançada uma finta, por ordem de Lisboa, o que provocou uma reação dos pagadores e cobradores. Já em finais do séc. XV, o vinho apresentava-se como um produto de grande relevo na economia madeirense, sendo uma importante fonte de receita, por intermédio da imposição, lançada para custear as despesas do concelho ou seu enobrecimento. Esta nova fonte de receita, lançada em 1483 e autorizada em 1485, foi regulamentada pelos regimentos de 1485, 1628, 1640, 1776 e 1782. No séc. XVII, o vinho afirmava-se já como o principal produto da economia madeirense, apresentando-se como a primacial fonte de rendimentos da administração da Ilha. Assim, houve necessidade de melhorar a forma da sua arrecadação, tornando-a mais eficaz e de acordo com o aumento do volume de vinho transacionado nas tabernas. Em 1628, temos novo regimento, em que se delegava toda a responsabilidade da sua arrecadação no juiz, que tinha sob a sua alçada o feitor e o escrivão da Câmara. O juiz assentava o preço, o que recebiam dos direitos, as pipas vazias e os almudes das pipas já abertas. Só após ser colocada a “insígnia de Juiz” (Id., Ibid., 306) o vinho podia ser vendido, procedendo-se à arrecadação dos direitos aos quartéis. Com o decorrer dos anos, aumentou a importância do vinho, assim como os subterfúgios dos taberneiros para se furtarem ao pagamento da arrecadação. Assim sucedeu em finais do séc. XVIII, com a sua arrematação, em lanços bienais, passando a sua alçada para os denominados administradores da renda, que procediam à arrematação dos contratos ao rendeiro ou arrematador, recebendo destes os respetivos valores, aos quartéis, em data estabelecida no contrato. A renda era estabelecida a partir do vinho coletado no ano anterior, sendo deduzida através da abertura do preço corrente do barril de vinho do ano em causa. O rendeiro arrematava a arrecadação da imposição do vinho, em praça pública, obrigando-se a proceder à sua arrecadação, com o auxílio do varejador e do arrieiro-mor ou condutor dos vinhos “atabernados”. Segundo documento de 1784, este último tinha por obrigação “examinar continuadamente por todas as tabernas da cidade o vinho que para elas vai a vender e no fim de cada dia dar conta ao rendeiro para este arrecadar o devido imposto” (Id., Ibid., 310). Até 1796, o arrieiro-mor era nomeado pela Câmara, mas, desde sempre, o rendeiro da imposição do vinho tinha o privilégio de eleger e nomear os seus cobradores. Contudo, no meio rural, manteve-se o hábito da sua eleição pela Câmara, como sucedeu, em 1819, em Santa Cruz. Aliás, em 1834 existiam dois arrieiros – José de Freitas e José da Costa Martins – com o encargo da condução dos vinhos das freguesias do norte para as tabernas. Feita a inspeção para avaliação da quantidade de vinho e estabelecimento do seu preço de venda, procedia-se à sua arrecadação, em género ou em dinheiro. Segundo o regimento de 1628, a imposição era paga em quartéis, de três em três meses. O rendeiro, conforme o contrato, estava obrigado a entregar ao administrador da renda os quartéis estipulados. Depois de deduzidas as despesas inerentes à sua arrecadação, ele deveria confiar metade à Câmara e a outra ao administrador da renda ou à Junta da Real Fazenda. Em 1794, da parte desta última, retirava-se, no Funchal, para o Senado da Câmara. A boa administração desta renda definia-se quer por uma forma prática e responsável da sua arrecadação, quer por medidas proibitivas ou limitativas da venda do vinho a retalho. Assim, por regimento de 1485, foi determinada a imposição de pena de 1000 réis e a apreensão do vinho não varejado. Em 1628, esta pena passou para 2000 réis, e, em 1715, a venda do vinho, por miúdo, sem a insígnia do juiz de fora, na taberna com ramo à porta implicava a perda do vinho encontrado em armazéns e dois meses de prisão irremissíveis, consagrando a proibição de vender vinho na cidade. Ao denunciante era atribuída parte do vinho aprisionado, ao mesmo tempo que se mantinha segredo sobre este. Em muitas freguesias rurais da Ilha escasseavam os agentes económicos interessados na arrematação das rendas, ficando a cargo da Câmara respetiva. O mesmo sucedia na ilha do Porto Santo, onde eram arrecadadas, por inteiro, pela Câmara, que delas se servia para custear as suas despesas correntes. Esta imposição era da sua inteira responsabilidade e esta não admitia intromissões de outras autoridades nesta questão, o que a levou a reclamar, em 1784, contra a intromissão que a Junta da Fazenda Real pretendia exercer. A renda era estabelecida a partir de um rol de vinho disponível nas tabernas, feito pelo escrivão da Câmara no início do ano. Essa vitória marcava, igualmente, o momento a partir do qual os(as) vendeiros(as) podiam iniciar a venda do vinho novo. Esta imposição fora criada, em 1485, para que as suas receitas fossem usadas na beneficiação e defesa da vila do Funchal, razão pela qual, em 1610, uma parte da mesma continuava a ser utilizada para defesa da dita cidade. A renda da imposição do vinho foi empregue na construção da sé do Funchal, tendo o mesmo sucedido em 1502 com as rendas de Ponta de Sol e Calheta. Todavia, em 1508, concluída a construção do novo templo, a Câmara do Funchal solicitava o retorno das mesmas para as obras de enobrecimento da cidade, o que foi autorizado por carta régia de 13 de setembro de 1508. Desta renda, el-rei D. Sebastião autorizou que se retirasse 20 réis para a ajuda das festas de S. Roque. Em 1713, o relojoeiro municipal era pago pelos sobejos dos dízimos, uma vez que o rendimento da imposição do vinho estava aplicado ao sustento dos lázaros e dos expostos. Em 1599, a despesa de construção de uma galé e fragata, para “comboiarem” os mares da Ilha, foi feita através desta renda. No continente, o vinho pagava 7 reais do real de água. Com o novo regimento de 1628, a imposição foi aumentada para duas canadas, enquanto a pena dos infratores passou para 2.000 reais. O vereador mais velho da Câmara era o juiz da Imposição, tendo alçada sobre o feitor e o escrivão da Câmara. A aplicação das penas aos infratores foi alvo de atropelos, acontecendo muitas vezes o juiz julgar indevidamente os taberneiros. Um foi incriminado, em 1780, porque “na sua taverna estava medindo e vendendo vinhos sem insígnia de juiz” (Id., Ibid., 306). A Câmara discordou da pena e da multa, ilibando o réu e obrigando o juiz a indemnizá-lo pelos danos causados. Ao mesmo tempo, retirou-lhe a licença de ofício e proibiu-o de exercer todo e qualquer cargo público. Não estamos perante um episódio único, uma vez que foram constantes as provisões e cartas a recomendar o cuidado a ter na arrecadação, de modo a evitar-se ocultações e desvios. Em 1715, foi proibida a venda a retalho pelos mercadores nos armazéns “contra a forma do regimento, porque sem ramo nem licença o vendiam como lhes parecia” (Id., Ibid., 307), punindo-se os infratores com penas pesadas. Em carta de 1782, D. Maria I ordenou às câmaras da cidade do Funchal e da vila da Calheta a aplicação do regimento que regulamentava a arrecadação da imposição, proibindo a venda de vinhos a retalho fora das tabernas com ramo à porta, dando recomendações sobre a forma de evitar o dolo. Na que dirigiu ao Funchal, refere que os “desvios, e ocultações acometidos na arrecadação da imposição do vinho, sem que tenham sido bastantes os regimentos, posturas e Alvarás, que tem coibido se não venda vinho por quaisquer medidas legais ou arbitrárias, sem se pagar a imposição, procedendo manifestos aos rendeiros ou administradores, cometendo os vendedores o dolo conhecido”. Daí a aplicação das leis reais que proibissem semelhantes descaminhos, não consentindo que pessoa de qualquer qualidade vendesse vinho sem o manifesto e o pagamento da imposição. Na segunda carta, a rainha alude ao “pouco cuidado, com que na Câmara deixa imprevenidas estas distrações em ofensa não só das posturas dela e da Câmara desta cidade, nos Alvarás”(Id., Ibid., 307). Ao mesmo tempo, ordenava-se que o vereador mais velho deveria proceder à devassa contra os infratores, o que na realidade sucedeu, como dá conta ao administrador da imposição do vinho da Calheta, em carta de 12 de abril de 1783. A medida seria suspensa a 7 de maio desse ano. Perante tantas recomendações e ordens repressivas, seria de esperar o cumprimento daquilo que estava estabelecido. A realidade era outra, pois, a 27 de fevereiro de 1806, a Câmara do Funchal ordenava à da Calheta a obediência às ordens régias, enviando-as para que se desfizessem algumas dúvidas surgidas. A mesma ordem foi dada, em 1818, ao juiz ordinário da Câmara da Ponta do Sol, em resposta a pedido de esclarecimento, aludindo-se a que “todo o vinho que se vende atabernado paga imposição e que todo aquele que entra para a venda paga, ainda que seja dado, trocado ou bebido pelo taverneiro” (Id., Ibid., 308). As determinações, por parte do reino, da Junta ou da Câmara, continuaram em cartas, provisões e alvarás, o que comprova que eram insuficientes para evitar o dolo, a infração, os desvios e o suborno. A Junta, em portaria de 1834, dava conta da introdução de vinhos nas tabernas fora da alçada do arrieiro-mor e da venda a retalho nos armazéns. Perante os factos consumados, restava-lhe fazer apelo, por edital, ao juiz do povo, juízes ordinários da Calheta e de Santa Cruz, administrador da renda e público para que fosse posta em prática a lei de 23 de dezembro de 1715. A ação da justiça perante os infratores não condizia com o carácter repressivo das ordens e admoestações das autoridades municipais, sendo a maioria dos casos absolvida, como sucedeu em 1780, 1783 e 1838. Para que a imposição fosse arrecadada na melhor forma, evitando as infrações ou o dolo, tornou-se necessário criar uma estrutura administrativa capaz, em que os agentes, encarregados da arrecadação do imposto, manifestassem interesse e empenho. A solução encontrada foi a arrematação, em lanços bienais, a particulares. O administrador da renda procedia à arrematação dos contratos e recebia os quartéis, na altura determinada. A arrematação do imposto nos diversos municípios passou a contar, desde o séc. XVII, com a presença de um representante do governador. O rendeiro ou arrematador detinha o contrato, de acordo com o estabelecido em praça, e obrigava-se a recolher a renda por meio de agentes. Roque Rodrigues era, em 1792, o arrematador da Câmara do Funchal. Nas freguesias, havia igualmente o arrematador, que procedia à arrecadação, como sucedeu, em 1819, em São Jorge, na alçada do concelho de Machico. Caso não existisse, as funções eram da competência da Câmara. A arrematação deste direito da Câmara do Funchal de 1792 foi feita por uma sociedade composta por Francisco Martins de Gouveia, José Gonçalves Braveza e António Cipriano. O processo não foi fácil para a empresa, pelos desentendimentos havidos, como se pode deduzir de alguns documentos. O rendeiro tinha alçada sobre o arrieiro-mor ou condutor dos vinhos vendidos, nas tavernas, “da livre escolha como as mais pessoas aí ocupadas”. Disso nos dá conta o governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, em 1784: “De todo tempo teve o rendeiro da imposição do vinho o privilégio de eleger e nomear os seus cobradores e vigiar, entre os quais há um capataz a que chamam condutor” (Id., Ibid., 309). Segundo o Gov. Florêncio Correia de Melo, em 1818, a Câmara interveio na nomeação: “Houve um tempo em que a Câmara nomeava sujeito para aquele lugar, mas como a nomeação nem sempre era de vontade dos rendeiros, deixou-se a estes a liberdade de escolher para condutor dos vinhos algum homem de confiança” (Id., Ibid., 307). A Junta não podia, nem devia, interferir na nomeação, como refere a Câmara, em 1784, não se justificando os requerimentos de António Pinho e António João da Silva, pois, por alvará de 14 de abril de 1796, estava impedida de o fazer. O provimento de Tomé da Silva e de Silvestre Jesus Seabra para o cargo de condutor dos vinhos, em 1784, deu lugar a acesa polémica. O facto repetiu-se em 1797 e 1816, respetivamente, com António Silva e João Gonçalves. Na maioria dos municípios rurais, a situação não se justificava, mas nas vilas mais importantes, como Santa Cruz e Machico, poderiam ser necessários, sendo providos pela respetiva câmara, como sucedeu, em 1819, em Santa Cruz, com o soldo de 35 réis por barril, pagos pelo taberneiro. José de Freitas e José da Costa Mateus eram os arrieiros que, em 1834, tinham o encargo de conduzir os vinhos das freguesias do norte para as tabernas. A situação justificava-se pela necessidade de evitar a baldeação com os do sul, uma vez que se alude à medida proibitiva do governador J. A. Sá Pereira. A abertura do preço do vinho, por três homens “probos debaixo juramento” (Id., Ibid., 310), antecedia o ato de arrematação da renda. De acordo com o preço corrente do barril de vinho, estabelecia-se a quantia do imposto, procedendo-se à arrematação, em lanços. O conhecimento público era feito por meio de edital. O arrieiro-mor e o varejador, sob as ordens do rendeiro, percorriam as tabernas da cidade dando conta do vinho, que, depois, registavam em livro próprio. Feita a inspeção, procedia-se ao lançamento da imposição, avançando-se com a arrecadação, em género ou dinheiro. A coleta era feita em género, como se pode deduzir dos avisos da Junta a Paulo Vicente de Ornelas, administrador da renda de São Jorge, para entregar vários lotes de vinho de 200 pipas da renda arrematada a quem a havia adquirido por arrematação. Em 1834, a Junta ordenou ao administrador da renda de Machico que o pagamento aos carreteiros do vinho deveria ser feito pelo preço do ano anterior. Os carreteiros tinham o encargo de transportar o vinho das rendas do lagar aos armazéns da Junta ou do administrador. No ato da arrematação, o rendeiro combinava o modo de entrega da receita da Junta, por norma em quartéis distribuídos pelo período do contrato. O dinheiro da arrematação tinha como base o preço corrente, estipulado a partir da produção do ano antecedente. Os preços eram estabelecidos de acordo com a qualidade da colheita ou o tipo de casta. Assim, em 1828, relativamente à freguesia de São Jorge, temos 600 barris pagos a 1350 réis ao barril, 600 a 1300 réis, e 915 a 1200 réis. Deduzido o dinheiro, procedia-se ao pagamento aos quartéis. Retiradas as despesas de arrecadação, o rendeiro entregava metade à câmara da zona do arrendamento e a outra ao administrador local da renda. Já em 1792, em aviso do juiz da Câmara da Ponta do Sol, e em 1798 e 1835, por aviso ao rendeiro da imposição do vinho de São Vicente, João António de Gouveia, é patente que metade da renda era entregue à Câmara e a outra à Junta. Em 1794, da parte da Junta deduzia-se, no Funchal, um terço para o Senado da Câmara. No Porto Santo, à falta de rendeiro, a soma era arrecadada, por inteiro, pela Câmara, que dela se servia para custear as despesas normais. Os quartéis da renda eram pagos, de forma irregular, justificando-se pelas condições adversas da produção. Para evitar perdas com o contrato, o arrematador reclamava das dificuldades, esperando poder contar com os bons ofícios das autoridades. Acontece que a disputa entre diversos grupos de arrematadores fazia elevar a renda a valores incomportáveis A solução estava no recurso a diversos subterfúgios para evitar a entrega do imposto. Foi o que sucedeu com o contrato de 1776/1778, em que a renda foi arrematada em 601.000 réis. Em 1785, ainda estavam por arrecadar 2.881.000 réis, pelo que a Junta deu parecer favorável à proposta apresentada por António Cipriano da Conceição, arrematador de 1783/1784, para ser novo rendeiro dos anos de 1785/1787 por 5.610.000 réis ao ano, com a cláusula de não ser posta em praça. A Junta estava consciente da situação, insistindo nos inconvenientes do ato de arrematação. O valor elevado das dívidas, em 1790, obrigou à decisão drástica de proibir os devedores de proceder a novas arrematações. A informação sobre as rendas da imposição é muito limitada e só dispomos de dados em série, para o período que decorre, a partir de 1775. No quadro geral do valor das rendas arrecadadas, podemos assinalar, entre 1781 e 1799, uma tendência de aumento, até se atingir, em 1797/1798, quase o dobro dos anos de 1780 e 1781. No período de 1803 a 1805, atingiu-se, de novo, valores baixos, inferiores aos de 1780-1781, mas a receita voltou a subir. Entre 1818 e 1834, faltam-nos dados totais, mas dispomos de alguns parcelares que elucidam, ainda que de modo precário, acerca da imposição em momentos críticos da primeira metade do séc. XIX. A renda começou por ser administrada pelo município, contudo, com o domínio filipino, passou a contar com a intervenção da Coroa, através do erário régio, sendo a receita dividida entre o município e este. Não obstante ter sido uma renda criada para usufruto dos municípios, no sentido de suprir as despesas, a forma de aplicação foi distinta ao longo dos tempos. No Funchal, a primeira aplicação da renda foi na construção da praça que deveria servir o edifício da Alfândega e a Igreja. Em 1488, o imposto só poderia ser aplicado na aposentadoria do tabelião, mas em 1489 e 1490 insiste-se no uso para enobrecimento da vila, que, em 1493, significava a realização de obras para as casas do concelho e da cerca e muros. D. Manuel tinha perfeita consciência do objetivo da imposição e queria seguir, rigorosamente, a finalidade, reprovando a atitude da Câmara quando pretende desviá-lo para outros fins: “Em outro apontamento que pedis por mercê que vos deixe gastar a imposição no que vos bem parecer este requerimento fora razoado se me viras gastar dela em alguma coisa que não pertencera ao bem dessa terra mas vós sabeis que eu vos tenho dado segurança que nem meus sucessores não gastem nem metam mão nessa renda se não em coisas de enobrecimento e acrescentamento e honra dessa vila como até aqui é feito”(Id., Ibid., 313-314) Nos primeiros anos do séc. XVI, as rendas do Funchal, Ponta de Sol e Calheta foram usadas no financiamento das obras da Sé do Funchal. Concluída a obra, desviou-se o dinheiro para a aposentadoria, a correção das ribeiras e obras do hospital. A partir de 1568, a grande preocupação da cidade estava nas despesas militares, em que se incluíam a fortificação da cidade e as despesas do presídio. Ao longo dos tempos, foi evidente o choque de interesses entre o município e as autoridades régias sobre a forma de utilização da receita do imposto. Assim, quando, em 1611, se estabeleceu que dois terços ficariam consignados à fortificação, a Câmara considerou que seriam mais bem aproveitados na canalização das ribeiras, sendo contrariada pela intervenção decisiva do governador, que insistiu na construção da fortaleza do Pico. No decurso do séc. XVIII, parece que a receita passou a ser distribuída em três partes para diversas finalidades. Assim, para além da parte usada no apoio social aos lázaros, há dois terços dedicados à fortificação. Os princípios que regeram o lançamento da imposição do vinho perduraram até ao séc. XIX. Assim, em 1839, na prestação de contas ao administrador geral, justificou-se a despesa de 4612.275 réis da imposição do vinho, que “foi gasta em obras municipais, sustento dos expostos, sustento dos Lázaro, pagamentos dos empregados, pagamento às Câmaras municipais desta ilha da quarta parte do imposto dos cereais, que lhes pertence, e em diversas despesas miúdas”(Id., Ibid., 314).   Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

História Económica e Social