impostos e revoltas
A nossa história regista várias convulsões geradas por decisões em torno dos impostos. Entre elas, assinalamos as lutas da Patuleia, em parte, envolvendo o tema da atualização das matrizes; a Janeirinha, contra o imposto de consumo; e a Saldanhada, que compreendeu questões concernentes ao sistema fiscal. Estes tumultos refletiram-se na história do arquipélago da Madeira, onde se referenciaram algumas insurreições contra o lançamento ou a existência dos impostos em causa.
Palavras-chave: impostos; tributação; revoltas; guerra; política.
Os impostos nunca mereceram a aceitação da população, daí o seu nome. A nossa história regista diversas convulsões geradas por medidas concernentes a impostos e tributos. Entre elas, no séc. XVII, a Revolta do Manuelinho, que alastrou de Évora a Lisboa e Beja. Mais tarde, aconteceram as lutas da Patuleia, em parte, envolvendo o tema da atualização das matrizes; a Janeirinha, contra o imposto de consumo; e a Saldanhada, que compreendeu questões respeitantes ao sistema fiscal. Estes tumultos refletiram-se na história do arquipélago da Madeira, onde se referenciaram algumas insurreições contra o lançamento ou a existência destes impostos.
“Maria da Fonte” ou “Revolução do Minho” é o nome por que ficou conhecida a revolta popular que irrompeu em maio de 1846 contra o governo do partido cartista chefiado por António Bernardo da Costa Cabral. A situação de tensão política do país, associada ao descontentamento popular, em consequência de algumas medidas governamentais, como as leis de recrutamento militar, as alterações fiscais e, acima de tudo, a proibição de realizar enterros dentro de igrejas conduziram a esta revolta popular. À sublevação inicial, sucedeu, a partir de 6 de outubro, uma situação de guerra civil que ficou conhecida como “Patuleia”, situação acima referida, e que perdurou até 30 de junho de 1847, altura em que foi assinada a Convenção de Gramido. Um dos principais motivos desta convulsão social foi a lei de 19 de abril de 1845 que dividiu a décima em outros três impostos: a contribuição predial, industrial e de juros. A queda do governo inviabilizou esta alteração tributária que foi revogada pelo dec. de 22 de maio de 1846, adiando a sua aplicação e obrigando-a a ser feita de forma faseada, mais tarde.
Durante o último quartel do séc. XIX, estes foram um dos principais rastilhos das diversas convulsões populares que aconteceram por toda a Ilha, em 1880, 1897, 1899. À voz dos deputados, juntou-se, em 1887, a dos populares que se revoltaram, por toda a Madeira, contra a medida de implantação das juntas de paróquia criadas em 1836 e que foram adiadas por força do código administrativo de 1886 A oposição popular surgiu quando se divulgou a ideia de que, das mesmas juntas, resultariam novos impostos. Esta revolta representou a expressão do descontentamento popular perante o abandono a que a Ilha fora votada, o que se tornava evidente em momentos de aflição. Mas as juntas de paróquia não funcionaram em muitos dos casos e, apenas com a promulgação do código administrativo de 1886 se pretendeu implantar a referida estrutura na Ilha. O temor de que fossem portadoras de novos impostos conduziu a motins populares aquando das eleições para as mesmas, ficando estes conhecidos como “Parreca”.
Os desacatos aconteceram por toda a Ilha, entre 1887 e 1888, com especial incidência no Faial, Caniço, Ponta de Sol e santana, obrigando ao envio de batalhões militares dos Açores e de Lisboa. Em São Vicente, estes desacatos resultaram na queima de toda a documentação do arquivo municipal, perdendo-se, irremediavelmente, o que estava aí depositado. Em Ponta Delgada e Boaventura, resultaram na não concretização do ato eleitoral para as juntas de paróquia. Em qualquer uma destas convulsões, os agitadores políticos serviram-se dos argumentos que mais faziam alimentar o descontentamento popular.
No concelho de São Vicente, estão referenciados tumultos da população, tendo dois como origem o sistema de cobrança de impostos. O mais relevante ocorreu em 12 de abril de 1868 e levou à destruição total do arquivo camarário, tal como referimos. Os tumultos confundem-se com a convulsão política que ocorreu a 8 de março de 1868 e que ficou conhecida como “Pedrada”. As eleições acirraram os ânimos entre os defensores dos partidos popular e Fusionista e foi esta conjuntura de afrontamento que fez despoletar a revolta popular tendo como objetivo a aplicação do decreto sobre o sistema métrico decimal e a abolição do imposto indireto sobre a eira e o lagar que foi substituído pela contribuição predial. A rebelião alastrou também às diversas autoridades das freguesias. O governador civil enviou forças militares da Ponta do Sol e do Funchal, que aí se mantiveram por algum tempo, sendo suportadas pelo município.
O maior problema daqui resultante foi a perda de documentação do arquivo municipal, à qual antes aludimos, que teve implicações negativas na administração corrente dos anos imediatos. Na verdade, quase toda a documentação concelhia foi levada pela população enfurecida e devorada pelas chamas. Assim, de data anterior, apenas restaram quatro livros de registo de testamentos (1801-1834), um livro de despesas do hospital provisório de São Vicente, lavrado aquando do surto de cholera morbus (1856), quatro livros de correspondência para as diversas autoridades do concelho (1843-1867), quatro livros de correspondência expedida às autoridades superiores do distrito (1845-1866) e outros quatro de registo de testamentos (1842-1878). Tudo o mais se perdeu.
Depois disto, a população do concelho parece ter adquirido a fama de arruaceira. Sempre que eram tomadas decisões com implicações diretas na vida da população, o temor das autoridades camarárias era evidente. Em 1897, a vereação ordenou ao administrador do concelho que fizesse um auto de investigação para apurar a verdade sobre certos boatos subversivos contra a câmara, que era acusada de falsear as disposições das posturas atribuindo-lhe providencias e lançamentos de impostos revoltantes, talvez com o fim de levar o povo à sublevação.
Sabe-se que, na freguesia do Seixal, havia ocorrido, em janeiro de 1868, uma manifestação de desagravo pela revisão das matrizes, o que obrigou a comissão revisora a abandonar o serviço. Certamente, em face disto, a vereação fez sentir, em 1899, a necessidade do serviço de três guardas-civis para a repartição, que apresentava tanto valor e destacou a “importância das loucuras dos contribuintes, face a um concelho tão populoso como este, que se acha excitado não só para praticarem os mesmos desatinos que os povos de santana, como talvez perdas da Fazenda” (VIEIRA, 1997, 39). Tantas cautelas da câmara não impediram que, noutros momentos, não tivesse havido tumultos, como os que sucederam em abril de 1911, face às medidas governamentais que determinavam o encerramento das fábricas de aguardente. A 20 de março, a câmara apelara às autoridades para a necessidade de revogar esta decisão, face aos receios da ira popular, mas a resposta do governo foi o envio, em segredo, de uma força militar que não impediu que a revolta acontecesse. O resultado foi a prisão de 10 dos revoltosos: Manuel de Sousa Marinheiro, João José Serra, António Sebastião Costa, Vicente, filho de Vicente Vieira, Gregório Fernandes, Francisco Fernandes, João António Gonçalves, Manuel Pereira, Manuel Gonçalves Bacalhau e Manuel Pestana. Em 1880, a câmara decidiu lançar o imposto ad valorem, baseando-se a medida na necessidade urgente de criar receitas para satisfazer as despesas obrigatórias a que era mester atender a fim de conseguir-se o equilíbrio do orçamento da receita e despesa municipais. O imposto incidia sobre todos os produtos exportados do concelho: vimes, cana, carne, coiros, peles, cereais, vinho aguardente, aves, batata, lenha, madeira, nata e manteiga, bordados.
O imposto motivou, uma vez mais, a ira popular, sendo um primeiro indício disso as afirmações do comandante da guarda fiscal, Manuel Filipe de Andrade, que havia “afirmado que o imposto ad valorem foi lançado apenas com o intuito de com o rendimento dele os vereadores comerem jantares, ceias e galinhas, isto em São Vicente, e de haver também escutado no Funchal que a atual vereação e município era composta de malandros sabendo ainda a comissão que o dito fiscal nunca perde o ensejo de poder maldizer quer da vereação quer dos seus atos” (Id., Ibid.). A hecatombe eclodiu no dia 10 de julho e levou a vereação a revogar tal imposto. Não sem antes criticar esta atitude. Assim, “considerando que, a forma tumultuosa dos movimentos populares dos dias dez e doze do corrente mês de julho neste concelho e vila, provou que a multidão por palavras e obras se revoltara com o intuito de não pagar impostos municipais, nomeadamente o imposto ad valorem e cuvatos; considerando que tais atos de rebelião coíbem e são a variação municipal duma ação proveitosa e útil dos seus esforços em benefício do mesmo município” (Id., Ibid.). No dia 10 de julho, um grupo de moradores de Boaventura marchou sobre a vila de São Vicente, onde chegou um grupo de mais de mil pessoas, que, em pouco tempo, duplicou. O primeiro alvo da ira foi Heliodoro de Sousa, oficial da repartição do Registo Civil e presidente da comissão executiva da câmara. Os populares acusavam-no de cobrar pelas cédulas um valor superior ao estabelecido no dec. 9521, de 14 de abril de 1924. Foram cercados os edifícios públicos e as casas dos seus responsáveis, que foram obrigados a fugir. Para serenar os ânimos, o Governo enviou uma força, no mesmo dia, que sitiou a vila. Alguns populares da Vargem e de Ponta Delgada obrigaram certas personalidades locais, mais influentes, a acompanharem-nos à vila. Os tumultos alargaram-se à Ribeira Brava e a Câmara de Lobos, municípios onde também se havia lançado o referido imposto ad valorem, criado em 1920 para taxar as mercadorias de exportação para fora do concelho. O relato dos acontecimentos correu nos periódicos funchalenses e despertou a atenção das autoridades. A 11 de julho de 1920, o Diário de Notícias do Funchal questionava a legitimidade das câmaras para sobrecarregar os seus munícipes com estes pesados encargos: “Não se capacitarão as câmaras municipais de que são mandatárias do povo e que, portanto, se eles impõe o dever de fiel e lealmente interpretarem o sentimento dos seus eleitores?” (VIEIRA, 1997, 41) Entretanto, o governador, em circular de 14 de julho, recomenda às câmaras a revisão deste imposto, a exemplo do que sucedera nos Açores. Todavia, a inevitável solução foi a sua extinção, que ocorreu a 11 de julho, na Ribeira Brava e só a 22 do mesmo mês, em São Vicente.
Alberto Vieira
(atualizado a 04.02.2017)
Bibliog.: RIBEIRO, João Adriano, “Os Tumultos no Concelho de S. Vicente em 1868”, Islenha, n.º 17, 1995, pp. 113-122; Id., S. Vicente: Subsídios para a História do Concelho, São Vicente, Câmara Municipal de São Vicente, 2005; VIEIRA, Alberto, S. Vicente: Um Século de Vida Municipal (1868-1974), Funchal, CEHA, 1997; Id., Cronologia. A História das Instituições, Finanças e Impostos. Funchal, CEHA, 2012; Id., Dicionário de Impostos. Contribuições, Impostos, Rendas e Tributos, Funchal, CEHA, 2012; Id., Entender o Deve e o Haver das Finanças da Madeira, Funchal, CEHA, 2012; VIEIRA, Alberto (coord.), Livro Das Citações do Deve e Haver das Finanças da Madeira, Funchal, CEHA, 2012; Id., Debates Parlamentares: 1821-2010: As Vozes Contra e a Favor do Arquipélago da Madeira, Funchal, CEHA, 2012.