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laboratório de genética humana

O Laboratório de Genética Humana (LGH) é uma unidade de investigação, na área da genética humana, da Universidade da Madeira. Foi fundado em 2001, com o objetivo de dotar a Região de um laboratório no qual fosse possível a realização de testes genéticos para apoio à população madeirense. Desde a sua criação, o laboratório foi dirigido pelo seu fundador, o Prof. Doutor António Brehm, investigador e docente na Universidade da Madeira. A partir desta data, passou a ser possível realizar na Madeira muitos testes genéticos que eram realizados apenas em território continental. É o caso dos testes de paternidade, dos testes para a deteção de anomalias genéticas e de testes de patologias diversas. O LGH tem duas linhas de atuação: investigação e prestação de serviços. Assim, como resultado de um protocolo estabelecido com o Instituto Nacional de Medicina Legal, o LGH presta serviços na área de genética forense e, em articulação com o serviço de saúde da Região Autónoma da Madeira, nomeadamente com o Hospital Central do Funchal (Hospitais) realiza testes genéticos para diagnóstico precoce de malformações congénitas em fetos humanos com apenas 10 semanas de gestação.   Ana Londral (atualizado a 11.02.2017)

Biologia Terrestre Educação

junta de planeamento 1975

A transição da Madeira para o processo democrático foi de certa forma calma, se comparada com a agitação vivida no continente ou nas antigas colónias portuguesas de África. As forças militares e militarizadas não colocaram especiais problemas ao Movimento das Forças Armadas (MFA), e a primeira agitação, aliás vaga, decorreu na manifestação do 1.º de Maio, quando apareceu um cartaz a colocar em causa a presença no Funchal dos ex-governantes Américo Thomaz (1894-1987) e Marcello Caetano (1906-1980), com os dizeres “A Madeira não é caixote de lixo”. A notícia chegou a António de Spínola (1910-1996), que presidia à Junta de Salvação Nacional e se comprometera com Marcello Caetano, no quartel do Carmo, a fornecer-lhe proteção pessoal, pelo que poucos dias depois se encontrava na Madeira um delegado do Movimento, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo Pinto Melo e Leme (1930-) (Azeredo, Carlos de). A função do delegado do Movimento era a segurança das altas figuras do final do Estado Novo, mas, embarcadas as mesmas para o Brasil, a 20 de maio, teve de aguardar a nomeação do governador civil do Funchal (Governo civil), Fernando Rebelo (1919-2002) (Rebelo, Fernando Pereira), somente exarada a 7 de agosto. O novo governador tomou posse em S. Lourenço a 8 de agosto e, nesse mesmo dia, Carlos de Azeredo regressou ao continente, fixando-se no Porto. A 13 de setembro de 1974, o novo governador civil do Funchal – em consequência do pedido de exoneração de Rui Vieira (1926-2012), pedido que nunca fora aceite por Carlos de Azeredo – nomeava nova presidência para a Junta Geral. A 10 de outubro, a Junta Geral é dissolvido e é nomeada uma comissão administrativa, que também não resistiu muito tempo. As nomeações que se seguiram, essencialmente de elementos sem impacto político e social nas restantes estruturas locais, que não haviam sofrido especiais alterações, tornariam a situação geral insustentável a curto prazo. A instabilidade que se viria a desenvolver depois na Ilha levou a que, por solicitação dos elementos do Movimento na Madeira, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo, então graduado em brigadeiro, regressasse no final desse ano de 1974 ao Funchal. A 11 março de 1975, em Lisboa, entretanto, registava-se novo pronunciamento militar. O grupo mais moderado de forças políticas e militares ligadas ao Gen. António de Spínola, que não tinha aceitado o seu afastamento, a 30 de setembro, na sequência do falhanço da manifestação da “maioria silenciosa” de dois dias antes, nem, essencialmente, o acelerado processo de descolonização e de politização progressiva da sociedade portuguesa, movimentou-se. Os grupos mais politizados e a Comissão Coordenadora estavam, no entanto, atentos à movimentação, pelo que a mesma se saldou por um novo fracasso, sendo o Gen. Spínola definitivamente afastado, e tendo tido, inclusivamente, de abandonar o país. As notícias chegadas ao Funchal levaram à realização de manifestações de rua em apoio ao MFA. O processo foi acompanhado pelos comandos militares madeirenses, não tomando o Brig. Carlos de Azeredo qualquer posição, dependente, até certo ponto, que estava ainda do governador civil, Fernando Rebelo. Carlos de Azeredo encontrava-se nessa manhã numa cerimónia de distribuição de diplomas e condecorações na sede da Polícia de Segurança Pública do Funchal, à R. dos Netos, e, tendo sido informado pelo Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015) do que se passava em Lisboa, não interrompeu a distribuição. Escreveria mais tarde que continuou “calmamente na cerimónia” (AZEREDO, 2004, 205), mas, regressado ao palácio de S. Lourenço, acompanhou a situação, como os vários oficiais do seu gabinete, com a máxima apreensão. Com o pronunciamento de 11 de março, as forças mais à esquerda desenvolveram o que ficou conhecido por Processo Revolucionário em Curso e popularizado como PREC. No dia seguinte, a Junta de Salvação Nacional e o Conselho de Estado eram extintos e substituídos pelo Conselho da Revolução, a que se seguiria um plano de nacionalização da Banca, dos Seguros, dos Transportes, etc. Este período constituiu a fase mais marcante da tentativa de revolução portuguesa, durante o qual as tensões políticas e sociais atingiram uma virulência nunca experimentada. Principalmente o verão desse ano de 1975, o chamado “verão quente”, prestou-se a todo o tipo de violências numa sociedade considerada até então de brandos costumes e que nesse período parecia ter querido deixar de o ser. As forças madeirenses ligadas ao velho Movimento Democrático mostraram-se completamente incapazes de fazer face à situação e, a 20 março, Fernando Rebelo deixava o cargo de governador civil. Nesse mesmo dia, em Lisboa, onde fora chamado, desconhecendo o motivo e tendo tido então as mais sérias reservas e apreensões, Carlos de Azeredo tomava posse desse cargo, por despacho do ministro da Administração Interna. A nomeação de um elemento dado como próximo do Gen. António de Spínola não foi bem aceite nos sectores militares e civis continentais ligados ao PREC, que preferiam a nomeação do Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015), mas representou uma vitória para os sectores mais moderados e marcaria, na Madeira, o início da progressiva demarcação em relação ao processo continental. O Brig. Carlos de Azeredo, como governador civil – mas sempre fardado –, quase de imediato, a 25 de março, dava posse no Funchal à Junta de Planeamento para a Madeira, criada pelo dec.-lei n.º 139/75, promulgado no polémico dia 11 de março, pelo Presidente da República, Gen. Francisco da Costa Gomes (1914-2001), e publicado a 18 seguinte. O dec.-lei já considerava este órgão com um cariz transitório, mas com forte poder de decisão, sendo composto pelo governador civil, que presidia, com voto de qualidade, e por três vogais. Este órgão vinha um pouco na sequência do grupo criado alguns anos antes no âmbito da Junta Geral, a comissão regional de planeamento, mas já com funções deliberativas mais amplas, superintendendo, inclusivamente, sobre a mesma Junta Geral que, embora dissolvida, continuava em exercício. Foram então empossados como vogais João Abel de Freitas (n. 1942), Virgílio Higino Pereira (n. 1941) e José Manuel Paquete de Oliveira (1936-2016), que dirigia o Diário de Notícias. A presença de João Abel de Freitas, ligado à comissão do salário mínimo, e mesmo dos restantes elementos, pois que a sua nomeação fora acordada em Lisboa, não reunia o consenso alargado que alguns sectores locais requeriam, pelo que a Junta de Planeamento foi alvo de críticas no Jornal da Madeira, o que levou Carlos de Azeredo a convocar a S. Lourenço Alberto João Jardim (1943-), recentemente colocado à frente daquele jornal pelo bispo do Funchal, D. Francisco Antunes Santana (1924-1982), embora tal não tenha refreado os ataques daquele periódico à nova estrutura governativa regional. As críticas ainda aumentaram com o dec.-lei de 2 de julho de 1975, que alargava os poderes da Junta de Planeamento para proceder ao saneamento dos serviços do Estado e dos corpos administrativos, podendo suspender por 90 dias os funcionários desses organismos e nomear comissões para efetuarem reclassificações dos mesmos. Foi por esse diploma que se acrescentou um quarto elemento à Junta de Planeamento, dado como representante do comando militar, Faria Leal, que desde o início participava já em todas as reuniões. A Junta de Planeamento sofreria uma contínua contestação, não só local, dado que, como o governador Carlos de Azeredo anunciara na sua formação, tinha sido escolhida de cúpula, por decisão autocrática, logo sem a consulta das forças políticas já sumariamente colocadas no terreno, como igualmente dos círculos mais à esquerda do MFA nacional, que a consideravam não revolucionária. Poucos dias depois, comemorando-se o segundo 1.º de Maio em liberdade, deslocar-se-iam à Madeira dois conselheiros da revolução, o Com. Carlos de Almada Contreiras e o Maj. José Manuel Costa Neves, que participariam na manifestação, mas que quase não contactaram os elementos das forças armadas de S. Lourenço, limitando-se o Brig. Carlos de Azeredo a depois os acompanhar ao aeroporto. Ao contrário do ano anterior, também nenhum dos elementos militares da Madeira participou na mesma manifestação que, inclusivamente, levou a alguns incidentes na baixa da cidade, o que não acontecera no ano precedente. A Junta de Planeamento começou a conhecer dificuldades de articulação interna a partir das eleições de 25 de abril de 1975 (Eleições Autonomia), que elegeram a Assembleia Constituinte (sendo a organização dessas eleições a mais importante missão de que a referida Junta estava incumbida). Assim, se até então a sua nomeação de cúpula, como havia sido referido por Carlos de Azeredo na sua apresentação pública, era defensável por não ter havido eleições na Região, a partir daquela data, tal já não era sustentável. Acrescia a isto o desgaste do “verão quente” de 1975, que começara a 11 de março, e logo a 4 de abril registara uma tentativa de assalto ao palácio de S. Lourenço por uma manifestação de produtores de cana-de-açúcar – situação geral à qual Carlos de Azeredo deu uma resposta que não foi entendida como correta, nem pela esquerda, nem pela direita, tentando limitar a sua atuação a uma gestão negociada de crise, que nunca fora bem aceite por alguns elementos da Junta de Planeamento. A cisão foi iniciada pelo pedido de demissão de João Abel de Freitas, a 5 de agosto de 1975, pois que o mesmo não poderia ter sido feito pelo Maj. Faria Leal, dada a sua condição militar, pretendendo ambos a detenção de alguns empresários madeirenses por sabotagem económica. A demissão de João Abel Freitas foi imediatamente aceite pelo Brig. Carlos de Azeredo, e seguiu-se-lhe a demissão dos restantes membros. Estava assim aberto o caminho para a constituição de um novo órgão de gestão governativa da futura Região Autónoma da Madeira, que, embora ainda não democrático nem verdadeiramente representativo das forças políticas com representação no terreno, caminhava já nesse sentido: a Junta Governativa e de Desenvolvimento de 1976. Levaria, no entanto, mais de seis meses para ser negociada e tomar posse.     Rui Carita (atualizado a 09.06.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

imprensa católica

A Igreja Católica vê na imprensa e na sua influência sobre a formação da opinião pública um instrumento central da expressão da cultura e do pensamento, pelo que está ligada a vários títulos e movimentos editoriais. A imprensa católica acompanhou o crescimento e a especialização do sector, muito unida, no seu início, a membros da hierarquia e leigos católicos comprometidos neste campo. A atenção a este fenómeno parte dos próprios papas e já Leão XIII, em 1882, escreve a carta Cognita Nobis sobre a imprensa católica, favorecendo o aparecimento de publicistas e jornalistas católicos, nomeadamente entre os eclesiásticos. Em 1895, a Santa Sé realizou um inquérito em vários países sobre a situação do jornalismo católico em cada um deles. O mesmo aconteceu em Portugal, num estudo do militante católico Manuel Frutuoso da Fonseca que concluiu que, entre 1840 e 1895, foram publicados 66 jornais católicos, embora algumas destas publicações tenham tido um número pouco significativo de exemplares (FONTES, 2002). Nos finais do séc. XIX desenvolveu-se o chamado apostolado da “boa imprensa", com destaque para o Congresso dos Escritores e Oradores Católicos (Porto, 1871-1872) e o Congresso dos Jornalistas Católicos Portugueses (Lisboa, 1905), realizado por proposta de Abúndio da Silva, iniciativa que estaria na origem da criação de comissões diocesanas da Liga da Boa Imprensa. A primeira exposição da imprensa católica, realizada em dezembro de 1943, revelava a existência de mais de uma centena de títulos, incluindo entre os quotidianos O Jornal do Funchal. A tipologia da altura dividia as publicações em imprensa católica “oficial”, “oficiosa” e “independente”. O decreto do Concílio Vaticano II sobre os meios de comunicação social, Inter Mirifica, publicado em 1966 pelo papa Paulo VI, retomava as preocupações com a promoção da “boa imprensa”, com a intenção de formar e promover uma opinião pública em consonância com a doutrina e os princípios católicos, para conseguir um “critério cristão” sobre todos os acontecimentos. A imprensa na Madeira e o seu contexto político O surgimento da imprensa na Madeira está intimamente associado à revolução liberal de 1820, que veio colocar em causa o primado ideológico e político do catolicismo, situação que se viria a agravar com a expropriação e expulsão das ordens religiosas, e com uma crescente intromissão reguladora do poder político na esfera religiosa. O processo de secularização laicizante das sociedades liberais gerou novos protagonismos e novas autonomias, o que levou a Igreja Católica a servir-se da imprensa para a sua afirmação e expressão doutrinal. O advento do liberalismo representou na Madeira, como em todo o reino português, um momento particularmente delicado para a Igreja Católica, a qual procurou manter-se alerta, reagindo à dinâmica efetiva da maçonaria, que começou a tornar-se ativa e congregadora de muitas personalidades notáveis. Além disso, o ideário católico foi também colocado em causa pelo proselitismo protestante, num choque que acabaria num raro episódio persecutório. Esta dinâmica é retratada na imprensa católica e acabaria por servir de rampa de lançamento para o séc. XX, que levou ao arquipélago movimentos com novas estratégias para envolver mais os leigos e aproximar a Igreja Católica das populações. Face à grande taxa de analfabetismo, a imprensa periódica chegava inicialmente a um grupo muito reduzido da sociedade madeirense, sobretudo no Funchal (além desta cidade, apenas se conhece a imprensa na Ponta de Sol e Santa Cruz), mas nem por isso deixou de ser um meio de divulgação cultural e de combate político. Neste contexto, a 2 de julho de 1821, Nicolau Caetano de Bettencourt Pita iniciava a publicação de O Patriota Funchalense, o primeiro periódico que apareceu na Madeira, com edição bissemanal. No total foram publicados 214 números. Esta publicação empenhou-se na defesa do evento revolucionário de 1820 e permite fazer uma leitura do papel assumido por alguns membros do clero da Diocese do Funchal face à mudança política. O jornal mostra, de forma geral, opiniões favoráveis à aceitação da revolução liberal, elogiando a abertura e a colaboração ativa de vários clérigos (alguns dos quais ali escreviam) na promoção das vantagens da nova ordem nacional. O redator de O Patriota Funchalense elenca os párocos de Santana, Estreito de Camara de Lobos, Campanário, Monte, São Jorge, Ponta Delgada, Machico e Gaula, sublinhando as virtudes e ideias liberais destes e outros membros do clero. Noutro número, tecem-se louvores ao vigário da Ribeira Brava, P.e Januário Vicente Camacho, que promoveu na sua paróquia a aclamação da Constituição. Outra figura particularmente referida é a do P.e João Manuel de Freitas Branco, vigário de São Jorge que foi eleito deputado pela Madeira às Cortes de 1822. No mesmo concelho, o Cón. Jerónimo Álvares da Silva Pinheiro, vigário de Santana, abraçou com entusiasmo o movimento liberal, tornando-se um grande “propagandista revolucionário”. No seu Elucidário Madeirense, Fernando Augusto da Silva associa esta atividade à maçonaria, acusando o Cón. Silva Pinheiro de ter pertencido às sociedades secretas a quem atribui a revolução liberal, posição que justifica com os artigos que o sacerdote escrevia no Patriota Funchalense, sob o pseudónimo de “Estrela do Norte”. A figura do “cura constitucional” era apresentada no jornal O Patriota… como a do verdadeiro homem da Igreja ao serviço da causa da nação, por oposição aos que se “atrevem” a não aceitar a nova ordem política. Em 1823, a 17 de fevereiro, o P.e João Crisóstomo Spínola de Macedo, suplente nas eleições para as Cortes Constituintes, lança o segundo jornal publicado no Funchal, que tinha o título de O Pregador Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei, e que foi publicado durante 34 números. O primeiro exemplar publica uma mensagem relativa às circunstâncias “terribilíssimas” que derivavam do que o sacerdote classificava como “desastrosos” acontecimentos políticos, numa crítica que se prolonga pelas quatro páginas do periódico (O Pregador Imparcial, Funchal, 17 fev. 1823, 1). A lei de censura, estabelecida por decreto de 12 de junho de 1823, acabaria por silenciar a voz dos jornais que então se publicavam: O Patriota Funchalense, O Pregador Imparcial da Verdade, A Atalaia da Liberdade e O Regedor. A partir daqui, verificou-se um período de interregno na imprensa, que só retornou em 1827, com O Funchalense. Joaquim Azevedo e José Ramos publicaram em 1991 um inventário da imprensa católica publicada entre 1820 e 1910. Em relação ao Funchal, além do referido jornal do P.e João Crisóstomo Spínola de Macedo, encontramos em 1858 o Almanach Ecclesiasticum, dirigido pelo P.e António Ribeiro de Vasconcelos. Esta publicação era impressa em Coimbra, mas destinava-se à Diocese do Funchal. No mesmo ano, era publicado A Verdade, órgão da Associação Católica. Em 1875 seria publicado um jornal católico com o mesmo título, dirigido por João Batista de Freitas Leal. Entre 1866 e 1867 são publicados 13 números do Comércio do Funchal, sob a direção do Cón. Abel Martins Ferreira. Este jornal reaparece em 15 de maio de 1910 e é suspenso em 15 de agosto do mesmo ano. O Cón. Alberto César de Oliveira dirige, entre 1872 e 1874, A Lâmpada, publicação de comentário à atualidade política e diocesana que viu serem publicados 51 números. Inocêncio Camacho dirigiu durante 44 números, entre 1879 e 1880, o Religião e Progresso, que se apresentava na sua capa como jornal “religioso, literário, político e científico”, no qual se publicaram, por exemplo, explicações catequéticas sobre figuras bíblicas. Em 1885 era publicado no Funchal O Domingo Catholico, periódico mensal da Obra de Santificação Do Domingo, instituição católica presente em Portugal e no Brasil. O Cón. António Vicente Varela dirigiu durante 191 números (1889-1891) a publicação O Látego, folha política, noticiosa e literária. A Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira, órgão da Liga Dominical e da Obra Salesiana dirigido por João Macedo, é publicada a partir de 1900. Em 1911 passa a ser também o órgão da Juventude Católica da Madeira. O órgão oficial da Diocese, Quinzena Religiosa (1901-1912, 254 números), tem como diretor o Cón. António Manuel Ribeiro, que viria a estar na origem do Jornal da Madeira (JM). Foi suspenso em 15 de Setembro de 1910, reiniciando-se a sua publicação em Fevereiro de 1911. Entre 1901 e 1902 foram publicados no Funchal 25 números de A Cruz. Os seminaristas da Diocese editaram, entre 1907 e 1908, a revista de formação católica e social A Esperança. A Ponta do Sol viu nascer, em 1909, o Brado d' Oeste, uma publicação com direção e propriedade de Clemente de Freitas da Silva que se prolongou durante 858 números, até 1918. A partir de 1917 teve como diretor o P.e João Vieira Caetano.   Origem do Diário de Notícias e do Jornal da Madeira Em 1876 o Cón. Alberto César de Oliveira surge com o primeiro jornal diário da Madeira, o Diário de Notícias (DN); 30 anos depois aparece o Jornal, fundado em 1906 pelo Cón. António Manuel Pereira Ribeiro, que desde 1932 passou a chamar-se Jornal da Madeira. As duas publicações viriam a tornar-se as principais referências da imprensa escrita na RAM nas décadas seguintes. A primeira edição do DN do Funchal surgiu a 11 de outubro de 1876, dando origem ao jornal diário mais antigo da Madeira. Na redação e direção do DN, o Cón. Alfredo de Oliveira foi coadjuvado pelo escritor madeirense João de Nóbrega Soares No dia 8 de fevereiro de 1882, seis anos após a primeira edição, Alexandre Fernandes Camacho Júnior, que era proprietário do Diário da Manhã, suspendeu o mesmo e adquiriu o DN, que voltou a mudar de proprietário dois anos depois, ao passar para as mãos de Tristão Câmara. Nos finais do ano 1896, o DN teve a sua sede no centro do Funchal concentrando lá a sua redação, administração e tipografia. Por ocasião da implantação da República, em outubro de 1910, o matutino madeirense pertencia a João Martins, proprietário e editor. Em 1911, o jornal passa a incluir um novo secretário da redação e editor, Francisco da Conceição Rodrigues, um defensor dos valores democráticos, que veio a ocupar a direção do DN,. Em março de 1926, a comissão executiva da Câmara Municipal do Funchal homenageou o DN dando esse mesmo nome a uma das ruas mais movimentadas do Funchal, denominação que se manteve até 1935. Em 1927, foi a vez de Feliciano Soares assumir a direção do DN, seguindo-se o jovem advogado Alberto de Araújo, que se manteve no cargo até maio de 1974. Entretanto, o jornal tinha sido adquirido pela família Blandy, de origem britânica e ligada ao comércio do vinho na Ilha. Armindo Abreu sucedeu a Alberto de Araújo na direção, mas ali permaneceu apenas um mês, tendo sido substituído pelo sociólogo José Manuel Paquete de Oliveira, que tinha sido chefe de redação do JM nos finais da década de 50 (antes de ser ordenado padre), sob a direção do Cón. Agostinho Gonçalves Gomes, então deputado na Assembleia Nacional. Na génese deste periódico encontra-se o Jornal, com o subtítulo “Diário da Tarde”, que veio a público a 27 de março de 1906 pela mão do Cón. António Manuel Pereira Ribeiro; em 22 de novembro de 1923, passou a ser publicado com o título Jornal da Madeira, mas a 1 de janeiro de 1927 foi novamente publicado o n.º 1 de O Jornal, que a 6 de maio de 1931 passou a ter o subtítulo “Diário Regionalista”. No dia 1 de maio de 1932 – data que é assinalada como a de fundação do periódico – foi adquirido pela Diocese do Funchal e continuou a publicar-se com o título O Jornal e o subtítulo “Diário da Manhã”, iniciando-se a sua Série II. A 1 de maio de 1952 voltou a ser publicado com o título Jornal da Madeira, mantendo-se a mesma numeração. O JM apresenta-se como um órgão de comunicação social de inspiração cristã, na tradição do Jornal.   República e Igreja Como aconteceu na revolução liberal de 1820, a nova situação política provocada pela implantação da República, a 5 de outubro de 1910, encontrou forte repercussão na imprensa católica. A reação partiu do próprio episcopado, com uma pastoral assinada por todos os bispos residenciais do continente e pelo coadjutor de Viseu, com data de 24 de dezembro de 1910. A Igreja mostrava a preocupação de proteger a imprensa católica e pedia aos jornalistas que deixassem de lado quaisquer polémicas “irritantes”. Na Madeira, em 1912 começa a ser publicado o Boletim Eclesiástico da Madeira, dirigido pelo Cón. António Manuel Pereira Ribeiro, que viria a ser bispo do Funchal entre 1915 e 1957, depois de ter sido vigário capitular durante três anos. Numa circular de 23 de abril de 1917, D. António Manuel Pereira Ribeiro critica as notícias e informações tendenciosas de quem acusa de promover o “vírus do erro, da desgraça, da irreligião, da licenciosidade e do impudor” (Boletim Eclesiástico da Madeira, Funchal, maio de 1917, 45). Neste ponto, a Madeira seguia o panorama nacional, com novas lideranças eclesiásticas: em diversas dioceses, sobretudo a partir de 1914, assistiu-se ao surgimento de boletins diocesanos que espelhavam de forma orgânica a ação mais autónoma dos bispos face ao regime. O advento da República, com o seu anticlericalismo radical inicial e o regime de separação Igreja/Estado, veio a formar uma elite de militantes católicos no Funchal, com destaque para Juvenal Henriques de Araújo, Antonino Pestana e Manuel Pestana Reis. Surgiram associações caritativas e de ensino, como a Associação Protetora da Mocidade, com a Escola de Artes e Ofícios, fundada em 1921 pelo P.e Laurindo Pestana, e entregue, em 1925, aos Padres Salesianos, e a Liga de Ação Social Cristã (1922), a que se somou a chegada de novas congregações religiosas, como os Irmãos de S. João de Deus (1922) e as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração (1925). O aumento da formação e militância, com os Círculos Católicos e a Juventude Católica, ajuda a um ressurgimento da imprensa católica, com destaque para a revista Esperança (1919-1938) e o jornal Correio da Madeira (1922-1932), onde foi redator, entre outros, o P.e Eduardo Clemente Nunes Pereira. A tentativa falhada de ressuscitar o combate anticlerical inicial, materializada nos jornais A Luz (1919-1922), O Vigilante (1918-1920) e A Razão (1920-1921), não conseguiu impedir a instalação de congregações religiosas, sinal de um bom entendimento entre as autoridades civis e religiosas. A hierarquia católica acabou por acatar o novo regime e colaborar com as instituições políticas vigentes. A 22 de janeiro de 1917, uma pastoral dos bispos apelava à organização dos católicos e à apresentação de candidatos próprios nas eleições para deputados, atitude que pode ser vista como um novo paradigma de atuação da Igreja, que levou ao reforço da sua presença na sociedade portuguesa de então. Ideologicamente, é possível encontrar nalguma imprensa católica da época o legado filosófico e político do tradicionalismo legitimista de um grupo de homens, reunidos à volta da Nação Portuguesa (1914-1926) e do diário A Monarquia (1917-1925), que via na República um mal anunciado desde o liberalismo. Nascia, então, o Integralismo Lusitano, movimento de doutrina e de ação política, inspirado em França, com uma aproximação doutrinária e ideológica entre legitimistas e integralistas, apesar da dificuldade de entendimento no campo monárquico em geral em relação à questão dinástica. A posição da Igreja e dos monárquicos viu-se reforçada pela chegada à Madeira, nos finais de 1921, do ex-imperador Carlos de Áustria, exilado com a esposa, Zita de Bragança Bourbon Parma, neta do rei D. Miguel, e os sete filhos de ambos. O ex-imperador era profundamente católico, tendo escolhido como capelão pessoal o Cón. Homem de Gouveia, visitando as igrejas da cidade e passeando sozinho com a mulher na baixa, tendo recolhido enorme simpatia durante a sua permanência na Ilha. A Igreja na Madeira, no entanto, procurava distanciar-se das questões dos monárquicos e as posições mais radicais dos integralistas eram rejeitadas pela maioria dos elementos do Centro Católico, que se apresentavam, através do Correio da Madeira, a defender independência na política ativa, como propunham as pastorais dos bispos portugueses. A polémica teve como um dos seus protagonistas Alfredo de Freitas Branco, o visconde do Porto da Cruz, o qual surge em vários periódicos a atacar os católicos que se aliavam à República contra as forças monárquicas. O discurso republicano nestes anos passou, essencialmente, pelo DN do Funchal, cujo chefe de redação era Domingos Reis Costa, presidente da comissão executiva da Junta Geral e que seria deputado em 1925. Ao contrário do que aconteceia no JM, as notícias são, essencialmente, vinculadas a partir de jornais de Portugal continental. Em 1921 começou a ser publicado o boletim da Diocese do Funchal, Vida Diocesana, com direção do P.e Manuel Gomes Jardim.   Autonomia O discurso ligado ao integralismo lusitano, por sua vez, foi veiculado no arquipélago, essencialmente, pelo JM, propriedade da Gráfica Madeirense Lda., que tinha como principal acionista o diretor do jornal, Luís Vieira de Castro, assumidamente monárquico, que chegou a líder regional desta causa. No editorial do primeiro número de 1923, abordava-se o tema da descentralização, criticando-se o liberalismo que eliminara as atribuições conferidas pelos velhos forais. O JM procura assumir nesta época um estilo mais claramente de imprensa específica regional, pretendendo libertar-se do noticiário nacional. A esta atenção pela atualidade local somou-se a promoção de uma nova orientação política, nomeadamente a luta regionalista. O periódico tem assim uma orientação ideológica e formativa, que o leva a dedicar mais espaço e atenção aos problemas regionais. O movimento regionalista não se centrou apenas no combate pela autonomia, contando com personalidades que se evidenciaram no estudo e na promoção da história e da cultura madeirenses. Neste contexto, destacam-se as comemorações do V Centenário do Descobrimento da Madeira, que decorreram nos anos de 1922 e 1923, e o projeto de publicação do Elucidário Madeirense, de Fernando Augusto da Silva (em colaboração com Carlos Azevedo de Meneses), uma das personalidades ligadas à chamada tertúlia “O Cenáculo”, que retomava alguns textos publicados em vários jornais do Funchal como o Heraldo da Madeira, o Diário da Madeira e o DN. Fernando Augusto da Silva também coordenou a publicação comemorativa do centenário da Comissão de Propaganda e Publicidade (1922). Durante a República existiram condições para a proliferação dos periódicos, que assumiram um destacado papel no debate público e na promoção da cultura madeirense, como veículo de propaganda política e cultural. O regime de ditadura imposto pelos militares em 1926 introduziu a censura, conduzindo a uma perda de influência da imprensa, em particular a que estava ligada a sectores da oposição, como o trimensário humorístico Re-nhau-nhau, que se publicou de 1929 a 1977, e, a partir da década de 1960, o semanário Comércio do Funchal. Um decreto do bispo D. David Sousa, de 24 de novembro 1960 e que entrou em vigor a 1 de janeiro de 1961, aumentou significativamente o número de paróquias da Diocese do Funchal, criando 50 que foram desmembradas das 52 já existentes e ficando a Diocese com 102 paróquias. Esta decisão repercutiu-se no número de boletins locais. D. João Saraiva, seu sucessor, teria de enfrentar queixas e ações da Censura por causa da orientação do JM. No pós-25 de Abril, ganha relevo a relação entre o futuro presidente regional, Alberto João Jardim, designado como diretor do JM por D. Francisco Santana (1924-1982), bispo do Funchal entre 1974 e 1982, e este prelado, que centralizou a resistência ao gonçalvismo na Madeira. As mudanças políticas que se seguiram ao final do Estado Novo começaram a ser mais visíveis a partir das comemorações do 1.º de Maio, uma manifestação preparada pelo chamado Grupo do Comércio do Funchal e pelo grupo dos “padres do Pombal”, sacerdotes considerados progressistas, com ligações ao movimento de operários católicos, que divulgavam as suas opiniões em vários artigos. O JM, que passou a ser propriedade do Governo Regional, não deixou de divulgar os valores cristãos e contou, desde então, com uma tradição de textos de opinião e documentos oficiais assinados pelos vários bispos diocesanos, com uma atividade assinalável de D. Teodoro de Faria, e a direção, entre 1978 e 2003, do Cón. Tomé Velosa, que faleceu em 2010. Ao referido bispo deve-se a aposta num serviço diocesano próprio para as Comunicações Sociais e a criação de umde pastoral, que viu a luz do dia a 26 de março de 1989. Enviado gratuitamente para todas as paróquias, casas religiosas e movimentos apostólicos, o Boletim assumia-se como um órgão de informação sobre a vida da Diocese. Em nota pastoral de 1996, o prelado diocesano sublinhava que a evangelização não dispensa os meios modernos de comunicação social. João Paulo II, o primeiro papa a visitar o arquipélago, a 12 de maio de 1991, recordou o 35.º Dia Mundial das Comunicações Sociais, que se assinalava nessa data, apelando a um sentido de responsabilidade moral por parte dos profissionais do sector. D. António Carrilho, 32.º bispo do Funchal, sublinharia que a ação evangelizadora da Igreja se tornava mais visível com os meios de comunicação social, tendo promovido a criação de um Gabinete de Informação, uma preocupação que se estendeu ao renovado site da Diocese: www.diocesedofunchal.pt (acedido a 28 out. 2015).   Meios católicos A análise dos dois últimos séculos revela a importância que a imprensa católica veio a ocupar na relação da Igreja com o todo da sociedade e na definição do seu papel no debate público; esta intervenção manifestou-se ao longo das sucessivas revoluções e transformações políticas que agitaram o universo católico, o seu sentido de crença e o exercício da cidadania, numa dinâmica que acompanhou o alargamento da rede de títulos a nível da informação geral, da propaganda religiosa e da doutrinação social, num inédito horizonte de laicidade e pluralismo. A este novo relacionamento dos católicos com a sociedade madeirense correspondeu a utilização de meios modernos, da imprensa às tecnologias da comunicação digital. A necessidade de promover a “boa imprensa” levou a um empenhamento direto de várias figuras eclesiásticas, a começar pelo próprio episcopado, nesta tarefa, com a criação de órgãos de comunicação próprios de dimensão regional, e de uma rede de boletins paroquiais que fortaleceu a dinâmica de reaproximação dos fiéis. Na passagem para o séc. XXI, a presença da Igreja Católica na comunicação social fez-se cada vez menos através de meios próprios. O anuário católico da Conferência Episcopal Portuguesa registava em 2014 a existência de 513 meios de comunicação ligados à Igreja (jornais, revistas, boletins, rádios, editoras, tipografias, livrarias), dos quais três na Diocese do Funchal: - O Posto Emissor do Funchal, oficialmente inaugurado a 28 de maio de 1948. É uma sociedade por quotas, pertencendo a maioria do capital social à Diocese do Funchal, que assume no seu estatuto editorial o quadro de valores e princípios da doutrina cristã. - A Rádio Jornal da Madeira. Nascida em 1989, em complementaridade com a atividade do próprio JM, apresenta-se como um órgão de comunicação social de perspetiva cristã. - A Paulinas Livraria do Funchal. Com o carisma de evangelizar através dos meios de comunicação mais modernos, na linha do seu fundador, o Beato Tiago Alberione, as Irmãs Paulinas instalam-se no Funchal em 1972, criando no ano seguinte a Livraria Paulinas. Este estabelecimento nasceu e desenvolveu-se como um polo de difusão da edição religiosa (livros e produtos multimédia) na Madeira. As Paulinas marcaram também presença na rádio, criando programas semanais de natureza religiosa: “A verdade vos libertará”, começado a emitir em 1974 na Rádio Madeira; “Ama e Viverás” inaugurado no Posto Emissor do Funchal em 1978; e “Amanhã é Festa” iniciado em 1981 na Antena 1 Madeira. - O suplemento Pedras Vivas (JM), com 12 páginas, publicado ao domingo, que é o principal espaço dedicado à Igreja Católica na imprensa madeirense, num jornal detido na quase totalidade (99,98 %), pelo Governo Regional da Madeira. A 27 de agosto de 2015, a Diocese do Funchal anunciava, em comunicado divulgado através da sua página na Internet, o final da sua participação na empresa Jornal da Madeira, Lda., em ordem à sua privatização, reservando para si o título original de Jornal da Madeira e do suplemento semanal Pedras Vivas. A 1 de setembro de 2015 era publicado o primeiro número do novo matutino regional JM, já sem a participação da Diocese do Funchal. O periódico apresentou-se como “herdeiro de um legado histórico e civilizacional de tradição judaico-cristã que moldou o povo madeirense” (“Estatuto editorial”, JM, Funchal, 01 set. 2015, 1).   Imprensa regional Alexandre Manuel, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, apresentou em 2013 um trabalho sobre a imprensa regional da Igreja Católica em Portugal, revelando que os seus cerca de 800 títulos são lidos por cerca de metade da população portuguesa com mais de 15 anos. O estudo confirma que o caminho da imprensa católica em Portugal no séc. XXI foi cada vez mais de aposta na proximidade e na regionalização, face ao fracasso de projetos nacionais, em particular de um jornal de referência – a última experiência aconteceu, por iniciativa do Patriarcado de Lisboa, com o semanário Nova Terra, em 1975. O percurso da imprensa católica na Madeira mostra, a este respeito, que a questão da presença da Igreja no debate público não se limita ao facto de dispor de “púlpitos” próprios para transmitir a sua mensagem, mas se reflete na aposta por estar representada nos locais onde se faz opinião. O panorama geral da imprensa na Região foi traçado pela ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social –, a qual contabilizava, a 7 de dezembro de 2009, um total de 728 jornais locais e regionais, dos quais apenas 11 (1,5 % do total) na Madeira.   Imprensa missionária Em 2014, a Associação de Imprensa de Inspiração Cristã tinha como único associado registado da Diocese do Funchal a revista trimestral O Reino do Coração de Jesus, fundada pelos religiosos dehonianos em 1958. Aos católicos madeirenses, no entanto, chegam várias publicações das ordens e congregações religiosas no país, como a Boa Nova, a revista missionária mais antiga em Portugal, mensalmente publicada desde 1924 pela Sociedade Portuguesa das Missões Católicas Ultramarinas; Missões Franciscanas, mensário da Ordem Franciscana publicado desde 1937; Acção Missionária, jornal lançado em 1940 pela Congregação do Espírito Santo; Fátima Missionária, revista publicada desde 1955 pelo Instituto Missionário da Consolata; Além-Mar, revista publicada desde 1956 pelos Missionários Combonianos que, desde 1966, editam também uma revista para o público juvenil, Audácia. Além destas publicações missionárias, cerca de centena e meia de congregações e institutos de vida consagrada masculinos e femininos, bem como as ordens terceiras, possuem, por norma, publicações informativas ou de carácter espiritual e formativo, com títulos de grande circulação como a revista mensal Família Cristã, publicada em Portugal desde 1954 pelos Paulistas.   Octávio Carmo

Religiões Sociedade e Comunicação Social

invejidade

O termo é considerado no “vocabulário madeirense”, sinónimo de “inveja”, mas não será bem assim. A melhor definição que encontramos é dada por Alberto Arthur Sarmento quando fala sobre os problemas em torno da construção e do funcionamento da estufa de John Light Banger, no Funchal, em 1768: “É termo bem característico madeirense – a invejidade, significando a inveja mal reprimida, encapotada, que mói e ginga, repisa e muito gira, a lançar mão de todos os meios para se alastrar, procurando anular a sombra que a escurece e molesta, húmida e fria, infiltrante, deprimindo o que é alheio, a roçar-se a esquina, para realização dos seus fins. É a inveja dinâmica, sem sentido, nem direção, impando uma coragem embexigada pela vacina do medo” (SARMENTO, 1944, 29). A inveja é um dos sete pecados capitais e pode ser entendida como o desejo de alguém em relação a determinados atributos, posses ou status do outro. Este sentimento materializa-se através de uma certa atitude do olhar, a que se chama “mau-olhado”, “olho gordo” ou “roxo”. Através do pensamento ou de tal atitude do olhar, atingimos os outros, provocando danos. Daí a necessidade de “limpar” ou desfazer esta energia. Para afastar os efeitos da invejidade, usam-se plantas, raízes, sementes e ervas, sob a forma de defumações e banhos que têm o efeito de purificar, proteger ou curar. Nos jardins de muitas casas madeirenses, há uma planta de alecrim, em conjunto com uma pimenteira e arruda, com o mesmo objetivo. O alecrim é mesmo conhecido como a “erva das bruxas”, sendo usado “para defesa dos domicílios e amuleto pessoal contra a inveja e mau olhado” (PEREIRA, I, 1989, 189). Para sarar esta inveja, é usual os madeirenses socorrem-se de curandeiros, que fazem umas rezas apoiados nas referidas plantas. E Sarmento refere-nos uma das muitas preces que existem na tradição popular: “Eu te curo de olhado mal invejado e empresado, em o nome que o padre te pôs na pia, com o nome de Deus e da Virge-Maria e das três pessoas da Santíssima Trindade. Se está mal invejada, no seu comer, ou no seu beber, no seu vestir, no seu calçar, no seu ter, na sua boniteza, na sua formosura [...] na sua gordura, no seu andar; quem invejou com mau mado não torne a invejar. Arrebenta-te, cão, vai-te p’ra o inferno. Alecrim verde, que nasce no campo, tirai este mal e este quebranto. Home bom, mulher irada, palhas aguadas, por onde este mal entrou por lá saia. Credo, três vezes credo, arrebenta cão nas profundas do inferno” (SARMENTO, 1912, 114-115). A diversidade destas rezas, o numeroso grupo de curandeiros que existe em quase todas as localidades da Madeira, bem como a insistente presença das plantas em questão nos jardins locais, nomeadamente na entrada das casas, indiciam que, no começo do séc. XXI, esta tradição se mantinha ativa na Madeira e que a inveja tinha aí um terreno fértil para medrar. Neste período, ao grupo de plantas que, por tradição, os madeirenses sempre usaram, juntaram-se outras, como a chamada língua de sogra ou espada de S. Jorge (Sansevieria trifasciata), o asplênio (Asplenium nidus) e as zamioculcas (Zamioculcas zamiifolia). Daqui ressalta a importância que, cada vez mais, a etnobotânica tem no quotidiano dos madeirenses: sabemos que, de forma clara, as plantas e flores deixaram de ter apenas uma função ornamental para se adequarem a outros papéis, em termos energéticos e espirituais, servindo para a “limpeza” e proteção espiritual de pessoas e casas. A invejidade é um traço comportamental que se torna mais notado em espaços pequenos, definidos pelos madeirenses como poios, mesmo na sociedade global do séc. XXI: ninguém larga o seu poio, ou seja, os seus hábitos, usos e costumes, as suas atitudes e os seus sentimentos. Não há estudos de caráter sociológico sobre os comportamentos dos madeirenses nos sécs. XX e XXI que permitam entender este particular. Também no campo da história, faltam estudos ou relatos que permitam entender a diversidade de atitudes e comportamentos que definem o madeirense. A invejidade é a cobiça refinada e destrutiva que limita o progresso e o convívio social. Não é visível em poucas palavras, manifestações e olhares. Funciona como uma mão invisível que todos negam, mas que está presente de forma diária nas atitudes, nos desejos e nas palavras da população e que se torna expressiva, por exemplo, na literatura popular madeirense, nas quadras que o povo canta. Com efeito, encontramos aí um discurso moral no sentido da sua erradicação: “Inveja é pranta ruim / Que lavra por toda terra. / Se traz raízes no mar / Já bota as folhas na serra” (PORTO DA CRUZ, 1954, 14). Na imprensa, como na literatura, é frequente o tema da invejosidade ou da inveja, atitude que aparece como um dos males que assola a Ilha. Assim, em 1874, alguém que assinou sob o pseudónimo de J. Fausto afirmava: “Das mesquinhas intrigas de inveja, de que está desgraçadamente infecionado o solo madeirense” (Estrella Litteraria, 1874, 4). Depois, em 1912, o já citado Alberto Arthur Sarmento, num conto sobre “A camada de olhado”, refere que a invejidade “em matéria de malefícios era d’arromba” (SARMENTO, 1912, 150). Ainda o mesmo autor, na questão sobre a estufa para beneficiação do trigo construída junto ao Pilar de Banger, dedica um capítulo ao que chama “a invejidade” para ilustrar os problemas decorrentes da construção dessa obra (Id., 1944, 30). Para além disso, temos alguns ditados populares que são expressivos, quanto à generalização da inveja. Em 1952, pode ler-se no periódico Re-nhau-nhau o seguinte adágio popular: “Se a inveja fosse tinha toda a gente andava tinhosa” (Re-nhau-nhau, 10 abr. 1952, 2). Depois, em 1996, afirmou-se no mesmo que “ambições, invejas, caprichos, interesses, egoísmos andam com os homens por onde eles vão para todos os rumos, não há direção que não sigam essas fraquezas da raça humana” (Id., 14 jan. 1996, 4). Vale a pena recordar que, em 1882, no Diário da Tarde, ao comentar-se os problemas e as reclamações em torno da ação do visconde de Canavial, foi afirmado: “ Ai! Se a inveja fosse tinha...” (Diário da Tarde, 21 dez. 1882, 2). É certo que estamos perante uma atitude universal, mas que ganha significado e evidência em espaços pequenos e a pequenez do “poio” pode ser um meio facilitador da sua propagação. Talvez por essa razão, Ferreira de Castro acentuou a questão, escrevendo “todos [...] os seus ódios, as suas invejas” (CASTRO, 1977, 159) e a escritora Agustina Bessa Luís, ao escrever sobre a Madeira, refere “a inveja e o ódio de muitos séculos” (LUÍS, 1996, 16).     Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social

confrarias

As confrarias ou irmandades são organizações religiosas muito antigas, que se instituíram desde a Idade Média e se estabeleceram na Madeira com os primeiros povoadores. As confrarias eram então especialmente instituídas para os que desejavam as vantagens de ação prática que ofereciam as organizações religiosas, no sentido de uma certa proteção religiosa, social e até económica, na vida e na morte, mas que não sentiam vocação para entrar para as verdadeiras ordens religiosas. Dentro deste quadro, os madeirenses, desde os meados do séc. XV, resguardaram-se em confrarias, devendo as mais antigas da Ilha ser as dos marítimos e pescadores, sob a proteção do “Corpo Santo”, denominação popular de S. Pedro Gonçalves Telmo (1190-1246), arrogando-se a do Funchal de ser a mais antiga de todas as confraria da Madeira. As primeiras informações que temos do funcionamento de confrarias não apontam, no entanto, para a do Corpo Santo, mas sim para a da igreja de Santa Maria de Cima, onde depois se viria a levantar o convento de Santa Clara. Na vereação da câmara do Funchal, de 7 de fevereiro de 1489, foi perguntado a Gonçalo Eannes, cerieiro, “pela cera que tinha da confraria de Santa Maria de Cima e do círio”, ao que o mesmo respondeu que iria ver no “seu livro e o que achasse, diria por juramento” (COSTA, 1995, 238). Não se volta a mencionar o assunto e, na vereação de 17 de setembro de 1491, acordaram os vereadores a esse respeito que Pero Correia, que então tinha a “cera da confraria de Santa Maria de Cima”, “a emprestasse por peso” a quem o quisesse, devendo a mesma ser pesada perante o secretário da câmara (Ibid., 293). Não é fácil interpretar corretamente o que seria esta confraria à época e tal não invalida que, no cabo do calhau de Santa Maria, não estivesse já a funcionar a Confraria do Corpo Santo, cuja capela é mencionada nesses anos como já levantada. Quase todas as organizações profissionais do Antigo Regime tiveram, de acordo com o espírito do tempo, carácter religioso, e esse aspecto da sua atividade tinha, no sentir dos membros, tanta importância como a sua finalidade secular. Em muitos casos, os oficiais que formavam uma corporação organizavam-se independentemente desta numa confraria religiosa para em comum praticarem os atos de devoção, dentro dos princípios da caridade, fé e piedade. Existe assim um certo paralelismo entre corporação e confraria, quando não mesmo uma certa confusão e sobreposição. Às primeiras deviam corresponder os aspectos técnicos e profissionais, devendo organizar-se no âmbito camarário e dos ofícios e mesteres reunidos na Casa dos 24, e às segundas os encargos pios e de assistência, com especial relevância para o acompanhamento dos enterros, organizando-se no âmbito geral da paróquia ou freguesia onde estivessem instituídas. As primeiras confrarias teriam assim tido por base vínculos profissionais, num quadro, ainda herdado da Idade Média, no qual as atividades profissionais passavam de pais para filhos, servindo também as confrarias para a manutenção desses vínculos. Os oficiais mecânicos do Funchal, e.g., como os ferreiros, os serralheiros, os caldeireiros, os cutileiros, os ferradores, os picheleiros e afins, que trabalhavam com o ferro e o fogo, associavam-se sob a bandeira de S. Jorge, proclamando que a Confraria da Sé do Funchal tinha sido fundada em 1515, embora depois refiram 1562 e só se conheça documentação a partir de 1667. Num curto espaço de tempo, esta passou a associar também os barbeiros, os douradores e outros, aparecendo inclusivamente, na segunda metade do séc. XVII, mulheres e escravos e datando, assim, dos meados desse século o esbatimento progressivo dos iniciais vínculos profissionais nestas organizações. As confrarias organizavam-se sob a proteção de um orago e de acordo com um compromisso, sendo administradas por um juiz, um reitor ou um presidente, um escrivão, um tesoureiro e um número definido de mordomos, de acordo com os seus estatutos, sendo o de confrades mais ou menos ilimitado. A base económica eram as esmolas de entrada dos confrades, a que se seguiam as cotizações e os legados pios, sempre carregados com missas pela alma do doador, de forma a ser encurtada por esses sufrágios a sua permanência no Purgatório, como em muitos testamentos se refere. Uma das primeiras preocupações e obrigações da confraria era assim a aquisição de uma arca para guardar os seus bens e documentos, que só podia ser aberta na presença dos elementos diretivos. Sendo associações detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, mas também os apoiavam noutras situações – não só a eles como às suas famílias na eventual falta dos mesmos –, podendo conceder pensões, constituir pequenos hospitais e recolhimentos, etc. No quadro geral da sua constituição, encontram-se as Misericórdias, essencialmente assistenciais, com base nas quais vão surguir os primeiros hospitais e a assistência aos pobres de uma forma geral, à infância, presos e condenados, assim como ao enterramentos dos mortos (Cemitérios). Ao longo do séc. XVI, a constituição de confrarias na Madeira terá sido exponencial, embora mais em intenção que em efetivação. Ainda assim, com a crise religiosa vigente na Europa nos meados desse século e com a resposta católica que se consubstanciou na reativação dos tribunais da Inquisição, na implantação do Santo Ofício e, depois, na divulgação das normas emanadas pelo Concílio de Trento, a sua multiplicação é um facto. A Igreja assume então aspectos algo repressivos e, ao mesmo tempo, sigilosos, pelo que a proteção dada pelas confrarias passa a ser quase essencial à comum vida social e até profissional de qualquer cidadão. A sua multiplicação e capacidade de angariação de fundos levarão, entretanto, também a uma crescente necessidade de um maior controlo por parte das autoridades religiosas. As primeiras normas centralizadoras em relação às confrarias aparecem nas Constituições Sinodais de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), promulgadas em 1578 embora só editadas alguns anos depois, especificando que no “sagrado Concílio Tridentino é ordenado que os administradores assim eclesiásticos como seculares da fábrica de qualquer igreja, ainda que seja catedral, hospital, confraria, ou outros quaisquer lugares pios sejam obrigados em cada um ano a dar conta aos ordinários da sua administração e cargo”. Acrescenta-se ainda: “e não vindo os mordomos dar a tal conta, os confrangerá a isso com penas pecuniárias que aplicará para a dita confraria e meirinho, e com censuras, se necessário for” (BARRETO, 1578, 138-139). As normas de 1578 tinham carácter geral e visavam, essencialmente, as fábricas e os legados pios, tal como as receitas e despesas, quer das igrejas quer das confrarias, insistindo: “e o que se ficar devendo fará logo com efeito entregar e meter na arca da fábrica, que em cada igreja deve haver com duas chaves, uma das quais terá o recebedor e outra o escrivão do cargo”, determinação depois ampliada para três chaves, no caso das arcas de confraria, sendo a terceira para o vigário ou para o reitor da confraria, muitas vezes a mesma pessoa. A fiscalização das contas deveria ser feita “pelo S. João” ou até “oito dias depois da festa de que é a confraria” (Id., Ibid.), embora este assunto só se cumprisse verdadeiramente nas visitações. Nas seguintes Constituições, chamadas Extravagantes – porque fora do que já havia sido promulgado e por as anteriores “serem breves e não compreenderem tudo”, tendo havido ainda “casos que tinham necessidade de outras novas”, como mandou escrever D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) na abertura das editadas em 1601 (LEMOS, 1601, fl. 2) –, logo se determina que as eleições das confrarias da Sé tinham obrigatoriamente de ter a assistência do deão, ou seu representante, salvo a do Santíssimo (Id., Ibid., fl. 29). Associada às eleições estava a apresentação das contas, a serem entregues oito dias depois ao vigário geral, e, caso tal não acontecesse, seriam multadas em 1$000 réis “para a chancelaria e meirinho” (Id., Ibid., fl. 30), o que anteriormente não ficara estipulado. Para além disso, deixava-se cair o dia de S. João para só se mencionar a festa do orago. Canonicamente as confrarias passaram a reger-se, a partir de 1604, pela Constituição de Clemente VIII e, a partir de 1610, pela de Paulo V. Voltava-se a insistir que para a sua fundação se requeria o consentimento do prelado, que examinava os seus estatutos, geralmente sob a forma de “compromisso” depois alargado a “estatuto”, a quem competia dar-lhes ou negar-lhes a aprovação. Podiam fundar-se em todas as igrejas, embora a Congregação do Concílio de Trento, em 1595, proibisse as de homens nos conventos de religiosas. Clemente XIII também proibiu duas confrarias do mesmo santo ou evocação na mesma povoação, excetuando as “sacramentais” e as de doutrina cristã, que deveriam funcionar em todas as paróquias. As confrarias, para além do aspecto religioso, constituíam também um espaço de afirmação social, ostentando os irmãos eleitos para a mesa as suas varas nas festas, muitas vezes em prata, que lhes conferiam o estatuto e os restantes as suas capas, diferenciando-se assim dos demais. Por outro lado, as suas mesas de reunião, geralmente anexas aos respetivos altares, eram um local de encontro privilegiado, ali se trocando informações e, inclusivamente, fazendo negócios. O visitador da sé do Funchal regista, e.g., em 1601, ter visto nas mesas das confrarias, durante as missas, ajuntamentos de algumas pessoas que “se encostam a praticar com os estão nelas sentados, no que dão torvação e se ocasionaram já desordens”. Para evitar esses encontros, que perturbavam os atos religiosos, determinou, sob pena de excomunhão, “que mais se não juntem nem encostem a praticar nas ditas mesas” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 33, fls. 30-30v.). As questões de prestígio social de uma confraria incluíam igualmente a aproximação às autoridades eclesiásticas, como era o caso dos elementos do cabido que, como membros de um órgão coadjuvante do prelado, especialmente numa diocese com longos períodos de sé vacante, motivavam as confrarias a solicitarem constantemente a sua presença, palavra e proteção. Na sequência das Constituições de D. Jerónimo Barreto e da implantação da organização tridentina, o cabido deliberou inclusivamente, em 1584, “não irem daqui por diante a uma solenidade de confraria, fora das da Sé, sem que pelo caminho se dessem dois mil réis, fora a esmola da missa e dos ministros que se vestem para ela, que será o que somente costumam dar” (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, 151v.-152). Nos primeiros anos de fundação da sé do Funchal, não devem ter funcionado ali confrarias, pois as primeiras teriam sido instituídas na velha igreja de N.ª Sr.ª do Calhau e lá continuaram a funcionar, salvo a do Santíssimo Sacramento, obrigatória em todas as igrejas matrizes, que em 1566 já tinha altar próprio na sé, dado então como do Santo Sacramento (Sé do Funchal). Esta confraria só oficializou o seu compromisso no séc. XVII, mas no século seguinte arvorava-se na mais antiga da sé, com início logo da primeira metade do XVI, anterior ainda a 1515, data que depois várias delas citam como a da sua fundação, o que se referia, com certeza, à vaga intenção de se reunirem como tal, longe de toda a oficialização a que foram posteriormente obrigadas. Nesse quadro, talvez se tenha igualmente instalado, pela mesma altura, a confraria de S. Miguel Arcanjo, anjo protetor de Portugal, cujos confrades alegavam a sua fundação também em 1515. O arcanjo S. Miguel era então devoção muito especial da casa real portuguesa e de D. Manuel em particular, pelo que logo após a instituição da sé do Funchal seria lógica a fundação de uma confraria dessa evocação na catedral, o que, a ter-se verificado, não foi, no entanto, no quadro institucional que determinou depois o Concílio de Trento. Nesse quadro, somente bastante mais tarde, em 1572, a mesma veio a ser instituída e associada aos santos irmãos padroeiros dos sapateiros, provavelmente para, juntando as duas devoções, ganhar um outro peso económico. Mas tal também alegaram depois as confrarias de S. Jorge e de S. Roque. Em 1602, requeriam os “mordomos da confraria do Bem-aventurado S. Roque sita na sé da cidade do Funchal da ilha da Madeira, que no ano de 1521, por causa do grande mal da peste, que o povo da dita cidade padecia”, se juntaram as autoridade da cidade e, lançando sortes, saíra por padroeiro Santiago Menor (Voto da cidade do Funchal), “ao qual logo dedicaram casa e votaram por si e por seus sucessores fazer-lhe a festa cada ano”, o que, como já escrevemos, só veio a ocorrer depois. Acrescentam ainda os mordomos que “logo tomaram juntamente por seus protetores os Bem-aventurados S. Sebastião e S. Roque” e que a câmara ficara de apoiar economicamente as suas festas. Acontecia que a câmara apoiava as festas de S. Sebastião “cada ano, por ordinária, na renda da imposição dos vinhos”, com vinte mil réis, pelo que requeriam ao rei que o mesmo se passasse com a sua confraria, ao que o rei acedeu a 25 de abril de 1603 (Ibid., avulsos, mç. 22, doc. 24). No entanto, uma coisa seria a Confraria de S. Sebastião, instalada numa capela da câmara do Funchal, e outra seria a Confraria de S. Roque, instalada na Sé, mas o Rei aceitou as razões evocadas. Em carta do bispo D. Fr. Fernando de Távora (c. 1510-1577), datada de 15 de junho de 1572 e escrita em Lisboa, pois que nunca foi à sua diocese, mandava o prelado que se levantassem mais dois altares no transepto, dado que os existentes eram poucos para o serviço da Sé, prevendo-se a instalação de mais duas confrarias, cujos estatutos enviou depois. Não foram, no entanto, enviados diretamente ao cabido, como seria lógico, mas para os confrades das Confrarias de S. Miguel e, posteriormente, da Ascensão do Senhor, que os apresentaram, depois, para aprovação ao mesmo cabido. A Confraria de S. Miguel e dos santos irmãos Crispim e Crispiniano, aos quais tinham os sapateiros do Funchal obrigação de mandar “cantar missa no dia” 24 de outubro, dia que lhes era dedicado, foi instituída oficialmente por aprovação do prelado de 26 de agosto de 1572, ordenando-se-lhe que para ela fizessem um “retábulo muito bom” (Ibid., avulsos, liv. 2, fls. 114-115). O assunto foi apresentado depois ao cabido, em reunião na sacristia, a 29 de setembro, pedindo os membros da confraria para se servirem do altar de S.to António, no qual “pudessem fazer sua confraria, com sua mesa e oficiais”, obrigando-se os suplicantes ao encargo do “ornato” e da festa anual do seu santo protetor. Prometiam os confrades de S. Miguel, S. Crispim e S. Crispiano também recompensar o cabido com “a esmola acostumada que dão por missa, que é de mil réis de pensão, além da esmola que se costuma dar ao sacerdote e ministros que os visitem”, entre outros compromissos. O auto foi assinado no transepto da sé, sobre o altar da Ascensão (Ibid., liv. 2, fls. 117-118). A situação indica desde logo um aspecto importante: que os altares eram do cabido da sé, que sobre os mesmos exercia absoluto controlo, assim como uma coisa era a institucionalização da confraria, da responsabilidade do prelado, e outra era o seu funcionamento, da responsabilidade do cabido. Talvez daí o pormenor do auto ter sido assinado no braço oposto do transepto, onde estava então o inicial altar da Ascensão. A confraria veio a funcionar talvez de início e como pediram, no altar de Santo António, mas depois em altar montado na parede nascente da mesma capela, na sequência do altar de S. Roque, que já existia em 1566 (FRUTUOSO, 1968, 347) (Saque dos corsários ao Funchal). Em 29 de outubro de 1572, instituiu-se a Confraria da Ascensão do Senhor, de “irmãos nobres”, cujo pedido a D. Fr. Fernando de Távora partiu de “um nobre da casa d’el-rei” e da qual foi primeiro reitor Gaspar Mendes de Vasconcelos, por certo o interlocutor em causa, chegando a instituição da confraria ao cabido na mesma forma da de S. Miguel. A confraria pretendia celebrar e instalar-se na capela de Santana, referindo o bispo, em Lisboa, que tinham a obrigação de fazer retábulo e obras “conforme suas possibilidades” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, fl. 115), o que não entendemos bem, dado já existir um altar da evocação da Ascensão. As contrapartidas em relação ao cabido eram também nos mesmos termos das anteriores. Os confrades da nova Confraria da Ascensão do Senhor, pouco tempo depois, entre 1573 e 1590, fazendo jus à condição de “irmãos nobres”, encomendariam ao célebre pintor Fernão Gomes (1548-1612) o retábulo para o altar, das melhores tábuas e com as maiores dimensões existentes não só na sé como em toda a ilha, dado possuir mais de três metros de altura. Em 1603, em princípio, temos informação também da existência de uma Confraria de S.to António na Sé. O assunto parece ter sido despoletado por um milagre ocorrido na aluvião do primeiro de dezembro de 1601, conforme escreve Henriques de Noronha. Segundo este autor, nesse dia a Ribeira de João Gomes transbordou e começou a inundar a igreja do Calhau, chegando a “quatro palmos de água, quando os sacerdotes e seculares mais zelosos se arrojaram a salvar o Santíssimo Sacramento e as imagens”. Com a de Santo António se abraçara “Diogo Barbosa, ourives de oiro e a depositou em sua casa”, reparando então “que tinha a cor do rosto desnudada, os olhos elevados ao céu, vermelhos e chorosos, com algumas lágrimas que tinham corrido sobre o Menino Jesus”. A imagem foi depois levada para a igreja de Santiago, posterior matriz de Santa Maria Maior, e “repetiu o Santo outra vez as lágrimas e [foi] justificado o sucesso, primeiro pelo vigário-geral, António Moniz da Câmara, e logo pelo prelado, o venerável bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos”, pelo que, ouvido depois “um conselho de teólogos”, foi lavrada sentença sobre o milagre e a mesma publicada a 12 de janeiro de 1602 (NORONHA, 1996, 338-339). A 23 de maio de 1603, a pedido da Confraria de S.to António da Sé e da congénere de N.ª Sr.ª do Calhau, D. Luís Figueiredo de Lemos, ordenava que fosse “festa de guarda o dia de Santo António” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, doc. 18). A confraria deveria estar em instalação e, com o falecimento do prelado, não se deve ter passado à sua oficialização com estatutos, pois não se volta a referir a Confraria de S.to António da Sé até aos finais do século, quando os mordomos pediram ao Rei a reforma do altar e, na desmontagem do antigo, na tarde de 20 de fevereiro de 1697, o pedreiro Teodósio Pestana caiu de cima do mesmo. O pedreiro salvou-se por ter conseguido agarrar-se à corta do lampadário, tendo o sucedido sido considerado um milagre e lavrando-se auto em 1702 (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 4, doc. 20). Estas organizações eram detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, especialmente no Funchal. Administravam prédios arrendados e foros, que tinham herdado com determinadas obrigações pias, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, e não só, constituindo os juros uma das suas principais fontes de rendimento. Não admira assim que a principal preocupação das autoridades religiosas fosse o controlo das contas e dos elementos colocados à frente das confrarias. Cite-se, e.g., o “instrumento de obrigação de juro a retro”, assinado na casa do cabido da sé a 5 de setembro de 1697, entre o Cón. Pedro Bettencourt Henriques, em nome da Confraria do Amparo, e o P.e Daniel Gonçalves Jardim, por si e em representação da sua mãe e irmãos. A confraria emprestava 100$000 réis com um juro anual de 6$250 réis, “em dinheiro de contado”, “que é por razão do estilo da praça, de 6 e 4 por cento”, isto é 6,25 %. Como garantia, os devedores hipotecavam diversas propriedades na freguesia da Ponta do Pargo, cultivadas de vinhas, árvores de fruto e inhame (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 21, doc. 5). As confrarias estendiam-se, entretanto, por toda a cidade, com sede nas igrejas matrizes, mas também pelos conventos da cidade e da ilha, tal como pelas freguesias rurais e respetivas matrizes, estando também, no entanto, pontualmente sedeadas em determinadas capelas isoladas, as ermidas. Porém, o movimento de doações e de encargos, face à concentração populacional na área do Funchal, quase não tem comparação com o que se passa no resto da ilha. O P.e Francisco Vaz da Corte, vigário de S. Pedro do Funchal, e.g., a 3 de dezembro de 1608, deixou à Confraria do Santíssimo da sua igreja uma naveta de prata para o incenso, “no valor máximo” de 20 cruzados; mas também 15 cruzados à congénere Confraria da Sé e 2$000 réis à da Candelária de S. Pedro, para a ajuda do retábulo; e 2 cruzados por ano à do Bom Jesus da sé, impostos numa fazenda que tinha na Carne Azeda (VERÍSSIMO, 2000, 390). No séc. XVIII, algumas confrarias do Convento de S. Francisco do Funchal funcionavam quase como se se tratassem de casas de penhores, o que aliás acontecia com quase todas as restantes da ilha, mas aqui de forma institucional e oficial, registando o empréstimo, inclusivamente na secretaria do governo em S. Lourenço. A 23 de março de 1757, e.g., o P.e Manuel Franco Herédia, de Machico, solicitou um empréstimo a esta confraria de 20$000 réis, com um juro anual de 1$000, apresentando como penhores um cordão de ouro e um par de sevilhanas, avaliados em 38$950 réis (Id., Ibid.). O Convento de S. Francisco do Funchal detinha uma excecional importância na vida social insular e era tradição, e.g., entre os finais do séc. XVIII e os meados do séc. XIX, os governadores, entrarem para membros da Confraria de N.ª Sr.ª da Soledade como “Irmão Protetor e Presidente da Confraria”, após tomarem posse. O último foi o prefeito e Cor. Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, com a mulher, “a Ilustríssima e Excelentíssima Senhora D. Anna Mascarenhas de Athaide”, que assina o termo a 14 de março de 1835, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da Mesma Confraria” (ABM, Governo Civil, liv. 246, fl. 71). O Convento de S. Francisco do Funchal, entretanto, foi extinto e desocupado por forças militares, a 9 de agosto do mesmo ano de 1834, às ordens do mesmo prefeito, que pouco depois mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Entre os finais do séc. XVI e os inícios do séc. XVII instituíram-se assim confrarias um pouco por toda a ilha, sendo comum, inclusivamente, as pessoas pertencerem a várias confrarias instituídas em várias igrejas, entretanto também abertas a mulheres. Nos meados do séc. XVI, e.g., já se detetam nove confrarias na freguesia de Santa Cruz, sendo ainda criadas no século seguinte as de S. Benedito, dos Santos Passos e da Ordem Terceira de S. Francisco. O testamento de Filipa de Sousa, de 1680, benfeitora da Misericórdia daquela vila, declara que era irmã das Confrarias de N.ª Sr.ª do Rosário, dos Santos Passos, N.ª Sr.ª da Piedade, de S.to António e de S. Benedito. Outra benfeitora, Catarina de Ornelas, tinha declarado, em 1658, que era irmã de N.ª Sr.ª do Rosário, S.to António, Nome de Deus e S. Bento do Convento, que, cremos, era no Convento da Piedade de S.ta Cruz, tal como também aí seria sedeada a dos Irmãos Terceiros (Convento da Piedade de Santa Cruz). A instalação das confrarias no norte da ilha foi mais tardia e difícil, dada a escassez de recursos e o isolamento geral dos pequenos núcleos populacionais. A exceção vai para a freguesia de S. Jorge, com uma certa liderança naquela costa, que logo nos inícios do séc. XVI, a 4 de dezembro de 1515, era dotada com um importante conjunto de alfaias enviadas de Lisboa. Pelos provimentos das visitas da primeira metade do séc. XVII, publicados pelo P.e Silvério Aníbal de Matos, antigo pároco de S. Jorge, temos muitas informações sobre a vivência das confrarias, então montadas sem estatutos superiormente aprovados. Tal terá sido o caso da Confraria do Santíssimo Sacramento, que teria resultado de um privilégio dos reis de Portugal a essa freguesia para celebrar a Festa do Corpo de Deus no seu dia próprio e à qual deveriam concorrer os eclesiásticos das restantes paróquias do Norte. Nos provimentos da visita de 20 de julho de 1647, refere-se um pedido feito pelos irmãos dessa confraria, que dado se terem “comprometido a dar um arrátel de cera cada um, em cada ano para a dita Confraria e os gastos que se fazem com os padres na Semana Santa”, pretendiam colmatar parte dessa despesa com a posterior venda da cera “para pagamento dos ditos padres” (MATOS, 2000, 16), solicitação não atendida pelo visitador. As festas da Semana Santa, a que deveriam acorrer os demais vigários da costa norte, os quais, nesta época, se limitavam praticamente só ao de Santana e a alguns outros que, entretanto, se encontrassem na área, levantaram sempre inúmeros problemas. Na visita de 1636, refere-se que “alguns fregueses se queixam da opressão que tinham em darem de comer aos padres que vinham fazer a festa e que antes lhes queriam dar dinheiro seco” a cada um deles, “pelos três comeres da véspera, do dia e do seguinte”. Nessa altura o visitador estabeleceu então a verba de $450 réis, “os quais lhes darão os mordomos de seus bolsos, não lhe dando de comer”, entendendo que tal dinheiro deveria sair “das esmolas das confrarias”. Entretanto, também o vigário de S. Jorge entendia que deveria ser pago pelo trabalho acrescido desses dias, tal como acontecia aos outros padres, acabando o visitador doutor Lucas Gonçalves Correia, a 18 de agosto de 1650, por entender que deveria ser igualado “na benesse com os vigários das outras paróquias”, até por “saber cantar” e “pelo trabalho dos tais dias, porque conforme sua obrigação, não está obrigado a tanto quanto a devoção cristã se tem aumentado nas procissões, paixões e mais cerimónias da dita semana” (Id., Ibid., 17). A festa do Corpo de Deus, no entanto, envolvia grandes custos e, na visita de 23 de julho de 1681, o cónego Dr. Marcos da Fonseca Cerveira, “informado que os mordomos do orago desta igreja, sendo seis, tinham muitos gastos para assistirem nela à festa do Senhor S. Jorge, mas também em dia de Corpo de Deus”, determinava uma nova articulação dos encargos. Assim, deveriam eleger-se dez mordomos, “a saber, seis para a festa de S. Jorge e quatro para assistirem com o sustento aos padres que vierem para a procissão do Corpo de Deus”, repartindo os encargos por um número superior de fregueses, “para que lhes seja aliviado o gasto” (Id., Ibid., 18). Teria sido na sequência do aumento dos encargos sobre os fregueses, que vinha de uma anterior visitação, que, logo em 1643, “algumas pessoas devotas e zelosas do serviço de Deus” se queixavam ao visitador, o licenciado Francisco Rebelo, vigário da Ponta do Sol, “que se extinguiram nesta igreja de alguns anos a esta parte, algumas confrarias e devoções que nela havia”, pelo que se não faziam as festas a alguns santos, entendendo-se que era “falta muito notável em um povo tão cristão”. O visitador insistia então perante “todos que de novo tornem a ressuscitar as suas antigas devoções, e se ofereçam a servir e festejar os santos, que seus pais e avós com tanta devoção festejavam”, acrescentando: “E obriguem os mesmos Santos a intercederem por eles a Deus Nosso Senhor na Sua Glória” (Id., Ibid., 17). A inicial igreja do calhau de São Jorge tinha altar-mor e dois altares colaterais ou laterais – um dos quais, provavelmente, servindo de altar do Santíssimo –, devotados ao Bom Jesus e a Nossa Senhora da Encarnação. Embora não encontremos referências concretas à articulação interna da matriz, a referência a três altares e as determinações de instituição de confrarias com as devoções do Bom Jesus e de Nossa Senhora da Encarnação levam a pensar já se encontrarem levantados, claro que sem a qualidade dos que viríamos a conhecer na matriz da Achada. As visitações referem ainda a necessidade de constituição de uma confraria do orago da freguesia, o que era obrigatório na sequência das determinações do Concílio de Trento, que funcionaria depois no altar-mor com essa evocação. Nesse quadro, nos provimentos da visita de 1631, o licenciado Francisco de Aguiar determinava “ordenar a Irmandade do Bom Jesus” de modo a que tivesse os seus compromissos devidamente assinados, tal como os da irmandade de Nossa Senhora da Encarnação, para serem assinados e terem “licença do Ordinário”. Os compromissos teriam sido mais ou menos elaborados, pois, 10 anos depois, na visitação de 11 de julho de 1641, o mesmo licenciado Francisco de Aguiar atendia a uma súplica dos irmãos da Confraria de Jesus, que pediam que se “lhes baixasse a pensão de cento e cinquenta réis que todos os anos pagam à confraria, em razão do compromisso da irmandade” para um tostão, ou seja, $100 réis, pelo que o visitador assentou que nessa “parte revogo o dito compromisso e mando que daqui em diante paguem somente um tostão” (Id., Ibid., 16). Mais tarde, nos provimentos de 20 de julho de 1647 do licenciado Simão Gonçalves Cidrão, era de novo determinada a organização da confraria do orago da freguesia: “Mando ao Reverendo Vigário que ordene com os fregueses que haja Irmandade da Confraria de S. Jorge” (Id., Ibid.). Os confrades, em princípio, não elaboravam de forma detalhada os estatutos das suas confrarias, facto de que se queixou, nos meados do século seguinte, o bispo D. frei João do Nascimento (1741-1753) em visitação pessoal a esta e às outras freguesias, mandando então que esses fossem elaborados por toda a ilha, daí resultando a grande parte dos estatutos que conhecemos. Na visita de 1647, também foram registadas outras prescrições referentes à organização económica das confrarias, já determinadas nas Constituições Sinodais de alguns anos antes: “E para melhor governo das confrarias e para que cessem as queixas de se dizer que se salvam os mordomos ou outras pessoas dos sobejos delas, ordeno que se faça uma caixinha de três chaves, dentro da qual se lançará todo o dinheiro e um livro em que se irá assentando o que à confraria pertence”. As indicações do visitador contrariavam em princípio as vigentes depois nas confrarias da Madeira, que determinavam que as chaves ficassem na posse do vigário, do procurador da igreja e a outra de “quem o reverendo vigário e procurador parecer” (Id., Ibid.). Na maioria das confrarias que conhecemos, a maior parte com estatutos dos meados do séc. XVIII, as chaves ficavam com o juiz da confraria, o tesoureiro e o escrivão, embora as duas últimas funções fossem muitas vezes e alternadamente ocupadas pelo vigário da freguesia. O visitador determinava ainda que a “caixinha” deveria estar “em outra, dentro da igreja ou na parte que aos três parecer mais segura, a qual se fará dentro de um mês” (Id., Ibid., 17). Desconhecemos se chegou a ser feita nessa altura a “caixinha” em causa, só havendo depois referência a uma arca das três chaves, mas para todo o serviço da freguesia. A especial devoção da freguesia de São Jorge, no entanto, deveria ser a de Nossa Senhora da Encarnação, devoção que aliás se manterá depois na igreja da Achada. Assim, o cónego Cidrão, na visitação de 1647, faz um provimento curioso, mandando abrir “uma fresta de quatro dedos em largo, e um palmo pouco mais ou menos em comprimento” na porta principal da igreja, “para que os devotos vejam a Senhora e santos e se encomendem mais a eles com mais fervor e devoção”. Uma das referências mais interessantes nos provimentos é a prática penitencial para expiação dos pecados, especialmente nas sextas-feiras da Quaresma e, muito especialmente, na Quinta-feira Santa. Nos provimentos de 1641, estabelece o visitador, sem referir quais as penitências, “que os que se disciplinarem em Quinta-feira das Endoenças ou Sexta-feira da Quaresma, o não façam por entre as mulheres, da porta travessa para cima” (MATOS, 2000, 16-17), donde se deduz ficarem as mulheres dessa porta para a frente e os homens para trás. Tomando como exemplo as confrarias do Porto do Moniz, as mesmas só se teriam instalado verdadeiramente nos finais do séc. XVII, facto de que se queixavam amargamente os visitadores. A Confraria do Santíssimo de N.ª Sr.ª da Conceição, e.g., ainda não estava instalada em 1666, determinando o visitador a sua montagem com a escrituração de um livro onde constassem as entradas de irmãos, bem como a receita e despesa da irmandade. A confraria estava montada nos finais do século, tendo aderido à mesma os principais proprietários locais, mas não era acessível aos restantes fregueses, dado o pagamento de uma cota de $600 réis anuais. Vieram assim a surgir as Confrarias de S. Sebastião, dos Fiéis de Deus, que utilizavam uma bandeira de Misericórdia, mas que pertenciam ao Santíssimo, tendo de ser alugadas, e cujas cotas eram de $060 réis anuais, e ainda uma Confraria das Almas. A Confraria das Almas seria acusada pelo visitador de 1685 de não cumprir as suas obrigações, quer no acompanhamento dos defuntos quer na satisfação das esmolas, que nesta Confraria era de $200 réis. O visitador advertia, inclusivamente nos seus provimentos, que quem não cumprisse o pagamento das “esmolas” deveria ser expulso, excetuando os que, devido à sua pobreza, não pudessem pagar. A situação não melhorou nos anos seguintes e o visitador de 1689 mencionava que as Confrarias das Almas eram das principais em qualquer igreja, ainda que, no Porto do Moniz, parecesse “não haver almas nem quem se lembrasse delas” (RIBEIRO, 1996, 230). Os provimentos parecem não ter tido especial efeito, pois, em 1691, voltava-se a registar em novo provimento que deveria haver um livro de contas e das entradas dos irmãos. Os problemas económicos, quase mais que os religiosos e de costumes, parecem atravessar grande parte dos provimentos das visitações. Assim aconteceu na igreja de S. João Batista da Fajã da Ovelha, em 1678, quando o cónego Marcos Cerveira condenou os empréstimos a juros praticados pelas confrarias e ordenou ao vigário que cobrasse todas as importâncias em dívida, “assim por escritos, como sem eles”, porque eram necessárias à “obra do retábulo” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal, Provimentos e Visitações..., mf. 144-145, fl. 113-113v). Situação diversa era a vivida na cidade do Funchal, onde, embora sempre ocorressem queixas de falta de verbas, as confrarias proliferaram e, com as mesmas, os luxos das suas festas e dos seus altares. Temos assim ainda na Sé as Confrarias do Senhor Jesus, por reforma da de Santa Ana, de N.ª Sr.ª do Rosário e de N.ª Sr.ª do Amparo, devoções comuns aos finais do séc. XVI e inícios do séc. XVII, da Conceição, dos meados do séc. XVII, de S. José e, ainda, a das Almas, com compromisso aprovado pelo bispo, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), a 6 de maio de 1713, e a do Senhor dos Passos, dos meados do séc. XVIII. A Confraria de S. José, incorporando os oficiais carpinteiros e pedreiros, mas também entalhadores e outros, deve ter seguido o exemplo dos sapateiros, instituídos em confraria em 1562, e a dos ferreiros, instituídos em 1572, mas só lhe conhecemos documentação da segunda metade do século seguinte. Um alvará de 23 de dezembro de 1688, assinado pelo arcediago do Funchal, doutor António Valente de Sampaio, por ordem do então vigário geral e provisor do bispado, José Mendes de Vasconcelos, autoriza oficialmente os irmãos da Confraria de S. José a “levarem Cruz em Procissão”, acrescentando que a mesma deveria ser acompanhada de “pelo menos, seis irmãos” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., Regimento Geral das Capelas…, liv. 19, fl. 33). Por essa época, os mordomos da Confraria de S. José da Sé exploravam uma pedreira no Cabo Girão. O problema da pedra regeu-se, durante o Antigo Regime, pelo alvará manuelino de 9 de fevereiro de 1502, que liberalizava o seu corte e utilização enquanto “bem comum”. A primeira dificuldade teria ocorrido nos finais do séc. XVII, sendo objeto de uma sentença do juiz de fora da Ilha, Manuel de Sousa Teixeira, datada de 28 de março de 1696, a favor da Confraria de S. José da Sé do Funchal e contra o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos. O padre entendia possuir direitos contra a provisão citada, “alegando o direito de posse sobre as terras da pedreira de Cabo Girão” e “exigindo um tributo de 600$000 réis, por cada barco de pedra caída e 400$000 réis, de cada barco que se tirasse da mesma pedreira”. O despacho do juiz de fora foi confirmado pelo ouvidor Teotónio Martins de França, a 24 de maio seguinte, e, mais tarde, pelo ouvidor Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723), a 18 de abril de 1698. Subiu ainda à Relação de Lisboa, onde voltou a ter o mesmo despacho, a 15 de dezembro de 1699, assim como o do juiz da Coroa, a 13 de fevereiro de 1700, ficando tudo registado na Alfândega do Funchal (BNP, reservados, cod. 8391, fls. 29-33) e na Câmara do Funchal (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 247v.), devendo o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos pertencer à família dos instituidores da capela de S.to António visto conseguir fazer todos estes recursos. A relevância desta confraria no séc. XVIII é notória pelo recurso à eleição como juízes dos representantes da família dos Bettencourt de Vasconcelos e Sá, onde se sucedem, em 1760, João José de Vasconcelos Bettencourt (1715-1766), reeleito nos anos seguintes, e, em 1768, a irmã, a “Ilustríssima e Excelentíssima Senhora Dona Guiomar Madalena de Sá e Vilhena” (1705-1789), como vem escrito, que assina a partir daí as atas, sendo esta situação, a de uma mulher aparecer como juiz de uma confraria de homens, neste caso dos pedreiros e carpinteiros do Funchal, única na Ilha, com muito pouco paralelo em Portugal (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 25-27, 29 e 32). D. Guiomar assinaria os termos de eleição até 1779, inclusivamente o termo de 17 de maio de 1771, onde se levantou na mesa o problema do empréstimo das cortinas da confraria e onde se deliberou “que nenhum escrivão nem tesoureiro emprestassem as cortinas”, sob pena de pagar “a condenação imposta pela visita”, repor às suas custas as mesmas e “ser lançado fora do serviço” da confraria. Excetuavam-se, no entanto, os empréstimos “a S. Francisco, ao Corpo Santo, ao Rosário, a Santa Clara e ao Carmo” (Ibid., fl. 34). A morgada faleceu em 1789, pelo que na eleição desse ano, a 19 de março, era eleito para juiz o sobrinho, o “Ilustríssimo Senhor” João de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt de Sá Machado (1733-1790), que assina a folha já com uma letra algo trémula (Ibid., fl. 54), falecendo pouco depois. A 15 de novembro de 1790, fez-se eleição para novo juiz e, “na falta de seu pai”, como filho mais velho, foi eleito o coronel Luís Vicente de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt Sá Machado (c. 1752-1798), que assina com uma letra de excecional segurança para a sua época (Ibid., fl. 56). O coronel faleceria em 1798, mas só em 1800 a confraria deve ter conseguido que aceitasse a eleição para juiz o futuro conde de Carvalhal (1778-1837), embora não assine a folha (Ibid., fl. 66). O futuro conde de Carvalhal continuaria a ser oficialmente juiz da confraria até 1808, quando já saíra da ilha em 1802. Na eleição de 20 de março de 1809, presidida pelo cónego João Francisco Lopes Rocha, que assina o termo, já não se faz referência à eleição de qualquer juiz, o mesmo acontecendo na seguinte, a 20 de maio de 1814, presidida pelo mesmo cónego, agora também arcediago, que já nem assina a ata. Como se pode ver pelo espaçamento das datas das eleições, as velhas confrarias dos ofícios agonizavam lentamente, não havendo referência a mais eleições até aos meados do séc. XIX. As confrarias religiosas foram confrontadas ao longo do séc. XVIII com uma complexa situação de centralização do poder régio. Ao longo desse século, as relações da corte portuguesa com Roma foram um longo "braço de ferro", tentando-se transformar a igreja em Portugal numa “igreja portuguesa”, logo sob a superintendência da coroa e dentro de um processo de centralização do poder régio. Em relação à Madeira, numa primeira fase, assistimos à tentativa do recrudescimento do papel da Inquisição e, depois, à campanha rigorista da “jacobeia”. A campanha dos bispos jacobeus na Madeira assentou num especial rigorismo de interpretação dos preceitos religiosos, com enfâse na prática da confissão, na educação do clero, na moralização geral dos costumes e na centralização do poder episcopal, com o primeiro prelado jacobeu, D. frei Manuel Coutinho (1715-1741), e, após o terramoto de 1748, com o seu sucessor, D. frei João do Nascimento. Os princípios por que se orientavam os jacobeus assentavam no propósito de fazer observar escrupulosamente os preceitos religiosos do catolicismo, tanto ao nível do clero como entre os seculares. Tentavam adequar os costumes das populações à ética cristã, aprofundando uma piedade mais espiritual e interior do que ritualista, estimulando a prática quotidiana da “oração mental”, o regular exame individual da consciência, a correção fraterna dos que pecavam, a frequência dos sacramentos, com particular destaque para a confissão, a mortificação dos vícios e das paixões desordenadas, os jejuns, o desprezo do mundo, a pobreza no vestir e a frugalidade no comer. Nesta mesma linha de cuidados, surgia a necessidade de se observarem as contas das confrarias, das quais não se encontravam registos em quase lugar nenhum, o que se atribuía à incúria de um clero pouco vigilante, depois das capelas e legados pios, dos conventos e recolhimentos, etc. As reações dos clérigos ficaram traduzidas no relatório que o vigário geral apresentou ao bispo em finais de 1725. Nesse relatório foram apresentadas as queixas dos ministros eclesiásticos por serem obrigados a fazer exame, a apresentar habilitações “de genere”, a entregar a tempo os róis de confessados, a dar as contas das confrarias, etc., o que de todo estranhavam, “dizendo que o rigor era demasiado” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., doc. 270, fls. 195-202). A situação da freguesia de S. Jorge face às novas diretivas emanadas pelo bispo D. frei Manuel Coutinho está bem patente na visita de 10 de outubro de 1727 feita pelo doutor Silvestre Lopes Barreto, vigário e ouvidor eclesiástico da colegiada de N.ª Sr.ª da Conceição da vila de Machico, àquela freguesia, quando era ali vigário o P.e António Fernandes Barradas. Regista o visitador nos seus provimentos que achara não existir “livro do tombo das missas e obrigações e pensões anexas”, mas “tão-somente uma pauta muito diminuta”, ordenando que “em termo de seis meses” se fizesse o respetivo tombo, onde se haveria de registar os encargos, legados e obrigações, que se era preciso ir sempre atualizando. O mesmo se deveria passar em relação a cada uma das confrarias e às ermidas, acrescentando ainda que, em relação às missas, havia então determinações muito específicas do prelado para se não aceitarem “pensões de missas perpétuas”, salvo se com seu consentimento (MATOS, 2000, 17). Teceu em seguida o visitador uma série de considerações sobre as confrarias, com especial destaque para o que se encontrava regulado pelas Constituições Extravagantes sobre a eleição dos novos mordomos, de que se deveriam fazer os termos de eleições, as responsabilidades dos tesoureiros e do vigário, que deveria aprovar as contas do tesoureiro, etc. Explicava ainda os inconvenientes resultantes da falta de registos, como era o caso “do grande número de missas caídas, a que era obrigada a dizer a Confraria de N.a Sr.a da Encarnação desta igreja, que todas mando satisfazer para alívio e bem das almas dos testadores” (Id., Ibid.), onde se deveriam encontrar as inúmeras missas deixadas no testamento do P.e Tomé Caldeira. Silvestre Lopes Barreto refere ainda a vistoria que fizera no Livro da Arca das Três Chaves, onde achara “tudo na mesma confusão, no lançar do dinheiro na dita arca e nos termos do dito livro”, voltando a insistir na separação das entradas e das saídas, assim como nos títulos dos bens das confrarias. Sobre os fregueses de S. Jorge, refere o visitador que fora informado de que, devendo ir ouvir missa, chegavam atrasados, pelo que determinava “que dobrando o sino pela segunda vez” viessem todos para a igreja, para que à terceira vez que tocassem os sinos já estivessem todos reunidos para ouvir o vigário, sob pena de multa em $200 réis “para a fábrica da igreja”. O visitador também fora informado de outras infrações no adro da igreja, “ajustando contas e armando conversas, de que muitas vezes resulta haver pendências e gritadas”, tudo contribuindo para o descrédito dos lugares sagrados. Os infratores deveriam ser multados também em $200 réis, mas pagos no aljube (ABM, S. Jorge, Registo de Provimentos..., mf. 681, cota 58, fls. 1-3v.). A seguinte visita ocorreu a 28 de agosto do seguinte ano de 1728, então pelo bispo D. Fr. Manuel Coutinho, cujos provimentos se iniciam com uma ríspida admoestação ao P.e António Fernandes Barradas, na medida em que este não tinha elaborado o “tombo da sua igreja”, nem o que dizia respeito às “missa e obrigações”, ameaçando-o “com pena de suspensão do seu ofício” se não desse princípio àquela obra e continuasse a ter somente uma “pauta das missas”. Dava-lhe assim mais seis meses para elaborar os tombos, após o que viria a S. Jorge o juiz dos resíduos para “tomar conta das capelas nesta paróquia” (Ibid., fls. 35v.-36v.), mas o vigário, quase de imediato, era afastado. O projeto de D. frei Manuel Coutinho era o de “plantar nova cristandade” no território insular, como se registou nas memórias que mandou elaborar sobre o seu trabalho na Madeira. A delimitação da área de manobra das confrarias, a tentativa de chamar à diocese o controlo absoluto sobre os legados pios, envolvendo os bens e seus encargos, criou uma profunda crispação que, aliás, foi apanágio de todos os episcopados jacobeus, como o do seu sucessor, D. João do Nascimento, dentro de um programa de ação rigoroso e reformador, que raramente conheceu desvios. Data deste episcopado a reforma de uma parte substancial dos estatutos das confrarias madeirenses e a criação de uma nova confraria, a dos Escravos de Nossa Senhora do Monte, a 6 de abril de 1750, “dia em a Igreja Católica solenizou os Prazeres da mesma Senhora”, na sé do Funchal e em todas as mais igrejas, revelando bem o título adotado o espírito jacobeu estirado no compromisso de serem “escravos servos” (ABM, Confrarias, liv. 53, fl. 1). Numa segunda fase, temos a centralização pombalina, que levou à extinção da Companhia de Jesus, “um estado dentro do próprio Estado”, à delimitação das entradas nos conventos e ao controlo económico das confrarias. O governo da Diocese foi então entregue a D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que se pautou por um certo autoritarismo, certamente inspirado no gabinete pombalino e, provavelmente, no facto de ter iniciado o seu episcopado na Madeira, assumindo o governo de armas. Assim, em 1760, o juiz dos resíduos e provedor das capelas, Pedro Nicolau de Bettencourt Freitas, queixava-se do bispo e do vigário-geral pela prisão arbitrária e vexatória do seu filho João José Bettencourt e Freitas e do seu irmão Francisco José Bettencourt e Freitas. O problema da provedoria e do juízo das capelas, onde constavam os registos das missas das confrarias, mas não só, arrastou-se com as interferências contínuas do prelado em tudo o que dissesse respeito a esse assunto e não pararia de extremar até aos finais do século, pois era impossível cumprir os legados pios estipulados, por vezes, centenas de anos antes. Entre as principais lesadas estavam as confrarias, cuja vida assentava, principalmente, nos legados pios, assunto que em breve passava para o foro civil, sob a tutela do governador. No quadro da centralização régia, em 1766, procedera-se à incorporação na coroa das capitanias, sendo estas extintas na déc. de 90 juntamente com as ouvidorias. Procedeu-se também a reformas na organização religiosa, na tentativa de reduzir as regalias, posse de bens e a percentagem de membros pertencentes ao clero em relação à população ativa, aspectos que começaram a ser sensíveis logo em 1766 com a retirada progressiva da superintendência do bispo sobre as confrarias, passando nessa altura a aprovação dos estatutos para a coroa, assunto que levaria anos a resolver. Foram igualmente colocados em causa os beneficiados da diocese, ordenando, uma vez mais, o rei, a 27 de julho de 1768, o envio de listas completas e atualizadas de todos os beneficiados e de todas as colegiadas insulares. Acumulavam-se, entretanto, em Lisboa as queixas contra a ação do prelado e dos seus visitadores, principalmente na área dos resíduos e capelas. Uma das queixas foi emanada pela câmara da Ponta do Sol, em novembro de 1779, e assinada por todos os vereadores. A queixa era acompanhada de um relatório assinado pelo então provedor José Vicente Lopes de Macedo Correia e referia as violências e vexames praticados pelo visitador eclesiástico, bacharel Manuel Roque Ciríaco de Agrela, com os tesoureiros e administradores das confrarias e irmandades da Ilha, narrando circunstanciadamente vários casos (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 542 e 553). As queixas repetiram-se no ano seguinte, novamente pelo provedor e então também pela Câmara Municipal do Funchal, envolvendo, genericamente, os abusos e excessos de jurisdição frequentemente exercidos pelo bispo e seus visitadores, vigários e párocos sobre as confrarias. A situação não deixou de piorar nos anos seguintes e, com a chegada do novo governador João Gonçalves da Câmara Coutinho, em 1777, o ministro Martinho de Melo e Castro (1716-1797) teve mesmo de admoestar o governador e o bispo. A carta abre com um pedido de desculpas: “Vossa Senhoria desculpe a um ministro velho, com alguma experiência do mundo, a sincera liberdade do que lhe disser; na certeza de que toda ela nasce do ardente desejo que tenho de que sirva bem”. Ao longo de 16 páginas, não deixando de criticar a ação do bispo, “demasiado zeloso”, e do vigário geral, “mais pronto a atear conflitos, que os resolver”, admoesta o governador para que não se repetissem mais questões entre as duas autoridades, “para que nem Vossa Senhoria tenha o desgosto, nem eu o pesar, de que elas cheguem à Real Presença” (Ibid. doc. 71, fl. 15). A nomeação para novo bispo do Funchal recaiu em D. José da Costa Torres (1741-1813), prelado que iria enfrentar corajosamente, acrescente-se, uma das situações políticas e económicas mais complexas da história portuguesa e insular, com o rescaldo da guerra de independência das colónias inglesas da América do Norte, de 1775 a 1782, e, depois, as ideias maçónicas que iriam conduzir à Revolução Francesa, em 1789. A ação do prelado estendeu-se depois, mais uma vez, ao juízo da provedoria dos resíduos, sobre a qual exerceu algumas pressões que parecem ter-se estendido ao “conteúdo das contas”, pelo que o tribunal da mesa da consciência e ordens, em 16 de outubro de 1780, ordenou ao governador: “fareis ouvir por escrito ao reverendo bispo do Funchal” sobre esse assunto, devendo depois comunicar os resultados aos deputados daquela mesa (ABM, Governo Civil, liv. 535, fls. 13v.-14). Em causa estava a superintendência régia sobre o juízo dos resíduos e capelas, estabelecida deste a vigência do gabinete pombalino, sobre o que, logicamente, a Igreja mantinha as maiores reservas, entendendo ser assunto seu. Tentou a igreja madeirense nesses anos recuperar algum espaço de manobra perdido anteriormente através de uma nova imagem, de acordo com os gostos da época, dentro da tentativa de recuperação do antigo protagonismo regional do prelado. As obras envolveram a abertura de duas grandes janelas na fachada e a montagem de uma varanda corrida e, interiormente, o alargamento das paredes das naves laterais para que aí tivesse lugar a remontagem da maioria dos altares das confrarias, até então no transepto. O problema foi a sequente montagem dos altares, a que as confrarias, de certa forma, resistiram. Para fazer face à situação, D. José da Costa Torres tentou acabar com as antigas irmandades de ofícios, que haviam levantado parte dos altares do transepto, por provisão episcopal de 18 de abril de 1792, alegando a sua “irregular ou nula administração”, passando os seus documentos e receitas para a fábrica da sé, que se encarregou do cumprimento das respetivas obrigações pias. O assunto, no entanto, não era linear e as confrarias tinham, de certa forma, personalidade jurídica independente, pelo que, embora não afrontando o prelado, os novos altares só vieram a ser montados nos anos seguintes. Tal como no continente, também na Madeira se viveu um clima de grande agitação com a proclamação da Constituição de 1820, a reação absolutista de 1823 e a Carta Constitucional de 1826. Se, por um lado, era ideia dos liberais a completa separação entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa e a delimitação de outras áreas, como a que conduziu à extinção imediata dos conventos, por outro lado, tiveram que contemporizar com toda uma tradição ancestral, definindo a Carta Constitucional que os portugueses apenas podiam professar a religião católica romana, credo oficial do reino. A partir desta data, algumas confrarias iniciam timidamente a sua reformulação, enviando os seus novos estatutos ao governo de Lisboa, como a Confraria de S. Miguel da Sé, que os reforma em 1819 e em 1839. Com os acontecimentos políticos que se desenrolaram com a implantação do governo constitucional, e que protelaram o preenchimento das dioceses em Portugal, houve uma rutura entre o governo português e a cúria romana. Assim, o bispo D. Francisco José Rodrigues de Andrade (1761-1838) saiu da Madeira em maio de 1834 e só em junho de 1843 foi confirmado D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1810-1862) como bispo do Funchal. Chegado ao Funchal no ano seguinte, foi durante o seu episcopado que ocorreram as sedições contra os calvinistas e, com a chegada à Madeira de José Silvestre Ribeiro (1807-1891) em finais de 1846, também o bispo D. José Xavier saía, nos inícios de 1848, do Funchal, ficando a sé vacante até meados de 1859. A atuação dos seguintes governadores foi algo mais contemporizadora e a da Igreja mais tradicional. Dentro de uma nova segurança, tentou então recuperar algumas das suas estruturas, incentivando as velhas confrarias, como podemos ver no Livro da Confraria de São José. Por ata de 20 de fevereiro de 1859, tentou-se assim a reativação da confraria. Tinha então falecido o último tesoureiro, António Rodrigues Santos, pelo que os confrades rogaram a presença do cónego João Frederico Nunes, “atual Mordomo da Reverenda Fábrica” da sé, para que presidisse à sessão, “fazendo as vezes de conservador, como é costume na confraria”, pedido a que o mesmo anuiu, tomando assento na mesa (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 73). Até então, no entanto, nunca tinha sido costume nesta confraria a figura do “conservador”, embora existente noutras confrarias, como na do Senhor Bom Jesus, citado desde 1735 nos estatutos da confraria e entregue a um capitular, e na Confraria de S. Miguel, lugar entregue ao próprio deão. Compareceu então à eleição da nova mesa da Confraria de S. José o genro do falecido tesoureiro, que pediu à mesa “em seu nome, pelos mais herdeiros, suas cunhadas e sogra” que tomasse conta das alfaias, livros e mais objetos pertencentes à confraria, à guarda do seu sogro, e que os desobrigassem dessa responsabilidade, o que, depois de conferido, foi aceite. Foi então eleito o cónego para conservador, “por escrutínio secreto”, tendo este aceitado. Foi ainda solicitado ao mesmo cónego que escrevesse ao 2.º conde de Carvalhal (1831-1888) participando-lhe de que havia sido eleito para juiz da confraria, “como tem sido feito aos Maiores de Sua Ex.ª”, colocando-se em primeiro lugar o nome de D. Guiomar, depois João de Carvalhal, o filho e coronel Luís Vicente de Carvalhal “e, ultimamente, o falecido Exmo. Sr. Conde de Carvalhal”, que aliás falecera em 1837, ou seja, 22 anos antes (Ibid., fl. 74). Foi ainda decidido aceitar como novos irmãos os oficiais dos diferentes ofícios de carpinteiro e pedreiro, “que espontaneamente comparecerão e declararão que queriam entrar”, perdoando-se-lhes, “por essa ocasião somente”, “a joia do costume” ($400 réis), ficando a pagar anualmente $100 réis no dia da festa do orago. Seguidamente, foram então eleitos o tesoureiro, o escrivão e os 12 mesários e mordomos (Ibid., fls. 73v.-74v.). O livro apresenta depois algumas folhas em branco e, a folhas 77, uma interessante cartela, embora algo ingénua, encimada pelas armas do 2.º conde de Carvalhal e com o termo de eleição do conde, assinada por “O Irmão da Mesa servindo de secretário o fiz e assino”, António Joaquim Abreu Jardim. Mais à frente, aparece a lista dos “Irmãos antigos” (Ibid., fls. 79-82v.), somente 10, e a lista dos novos irmãos, que entraram naquele dia 20 de fevereiro de 1859, discriminados com o nome completo, estado e morada: 113 membros, o que não deixa de ser espantoso. A 5 de maio do mesmo ano, ainda entraram mais 17 irmãos, a 26 de fevereiro do seguinte ano de 1860, mais 5, a 28 de abril, mais 1 e, a 29, mais 2. No entanto, as folhas seguintes estão em branco, sinal de ter sido “sol de pouca dura”. As confrarias de ofícios tiveram um importante papel de coesão social no Antigo Regime, estabelecendo normas de comportamento, disciplinando e desenvolvendo hierarquias, bem como socorrendo e prestando assistência, especialmente aos doentes, pobres e defuntos. Com a centralização do poder régio, a partir do gabinete do marquês de Pombal, o seu controlo passou a ser objeto de disputa entre a Coroa e a Igreja, sendo progressivamente cerceada a sua autonomia, que se apagou discretamente ao longo do regime liberal. As velhas confrarias dos ofícios extinguiam-se, assim, progressivamente ao longo da segunda metade do séc. XIX, resistindo somente as sacramentais, ou seja, as do Santíssimo e as dos oragos de cada freguesia. Pontualmente, no entanto, subsistem outras, renascendo também algumas dentro de uma certa liturgia de celebração, no âmbito, hoje exclusivo, das paróquias. Não é, pois, de excluir futuros renascimentos de associação e devoção que nos ultrapassam, como a adesão de mais de 100 novos membros à confraria de São José da sé em 1859.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

Religiões Sociedade e Comunicação Social

convento de são bernardino

O primeiro convento franciscano que se fundou fora do Funchal teve por titular S. Bernardino de Sena, um dos grandes santos da mesma ordem, e foi fundado na freguesia de Câmara de Lobos, entre 1459 e 1460, em lugar ermo e solitário, a certa distância da igreja matriz, a norte do Pico da Torre, ainda restando grande parte dos seus edifícios, embora das campanhas de obras dos sécs. XVIII, XIX e XX. O convento teve uma humilde e obscura origem, mas tornou-se célebre e afamado em toda a Ilha, e até no continente, por ter ali vivido e falecido Fr. Pedro da Guarda (1435-1505), a que o povo chama “santo servo de Deus” (VERÍSSIMO, 2002, 79-91). A fundação é atribuída a Fr. Gil de Carvalho, um humilde frade franciscano que veio do continente do reino para a Madeira, quando os Franciscanos que ocupavam o hospício de S. João da Ribeira acabavam de sair da Ilha para irem estabelecer uma comunidade nas proximidades de Lisboa, em Xabregas, que fundaram em 1456, sobre as ruínas do antigo paço de Xabregas e a invocação de S.ta Maria de Jesus, mas que ficou mais conhecido por Convento de S. Francisco. Desejando Fr. Gil viver em lugar desértico como eremita, como escreveu depois o deão, António Gonçalves de Andrade (1795-1868), anotador da História Insular do P.e António Cordeiro (1641-1722) a partir da História Seráfica, levantou um pequeno cenóbio com dois cubículos “em dois pés de terra semeada entre rochas”, num dos quais habitava o fundador e no outro João Afonso e Martinho Afonso, os quais esmolavam pelo povoado para a sustentação dos três (SOLEDADE, 1705, III, 170-171). Crescendo o número de religiosos, trataram de levantar um pequeno convento em terreno que lhes foi doado por João Afonso Correia (c. 1435-1490), escudeiro do infante D. Henrique, e sua mulher, Inês Lopes, que na Ilha foram o tronco da casa Torre Bela. A nova casa religiosa erguia-se num sítio afastado da povoação, cercado de um lado pela ribeira e do outro, por uma rocha, sendo bem própria para o género de vida a que se dedicavam. Passados alguns anos reuniram-se outros religiosos, que formaram a comunidade inicial, mas uma enchente da ribeira, pelos anos de 1480, haveria de destruir a pequena ermida e os primeiros cubículos, o que desgostou irremediavelmente Fr. Gil de Carvalho, que se retirou para o continente, entregando a direção a Fr. Jorge de Sousa. Foi Fr. Jorge de Sousa que reconstruiu o convento, um pouco mais acima, ao abrigo das correntes caudalosas da ribeira, tendo sido levantada nova e mais vasta igreja, com novas celas, “que logo foram habitadas”, tendo ficado o espaço inferior do inicial ermitério para “algumas oficinas de menor importância” (SOLEDADE, Ibid., 173). Data dos finais do séc. XV aos inícios do XVI a organização canónica do convento como uma verdadeira casa monástica, depois de ter melhorado consideravelmente as condições materiais através de doações, contratos de arrendamento, etc., como era hábito, pois estes mosteiros funcionavam também como empresas agrícolas. A fama e o desenvolvimento da comunidade encontram-se decididamente ligados à presença ali de Fr. Pedro da Guarda que, nascido na Guarda, em 1435 e que, tendo professado por 1455, “querendo subtrair-se à admiração que causavam as suas virtudes” (SILVA e MENESES, 1998, II, 103), se refugiou em S. Bernardino por 1485. Falecido em 1505, logo a sua fama se espalhou pela Ilha e pelo continente, sendo referido por Fr. Marcos de Lisboa (1510-1591), depois bispo do Porto, na terceira parte das suas Crónicas de los Frayles Menores, editadas em Salamanca, em 1570, não tendo nunca cessado o culto popular que lhe tem sido devotado. A comunidade de S. Bernardino foi crescendo ao longo do séc. XVI e, por 1584, Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) refere que ali viviam permanentemente 7 a 8 religiosos, sendo o Convento “abastado de toda a fruta e vinhos” (FRUTUOSO, 1968, 122). Em 1598, no Recenseamento dos Fogos, Almas, Freguesia, e Mais Igrejas, registavam-se 10 a 12 religiosos, sinal de continuar a crescer a população residente do Convento e, por certo, pela devoção suscitada com a ocorrência, no ano anterior, da localização da sepultura de Fr. Pedro da Guarda. No início do ano anterior, a 9 de janeiro de 1597, registam as vereações do Funchal não se ter realizado sessão da parte da manhã, por falta de comparência dos oficiais do concelho, que haviam sido informados de que os franciscanos tinham descoberto os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda (ABM, Câmara Municipal do Funchal, 1313, 3 v.). A exumação oficial deve ter ocorrido depois, a 28 de janeiro desse ano, na presença, de novo do bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), do reitor do colégio do Funchal, P.e Cristóvão João “e outras pessoas qualificadas”, como regista a História Seráfica (SOLEDADE, Ibid., 173). O certificado de transladação de Fr. Ambrósio de Jesus, à época definidor-geral e comissário dos conventos franciscanos da Madeira, datado de 23 de maio de 1624, regista somente tal ter ocorrido em janeiro de 1597 e reivindica para si o ter encontrado, nos claustros, os restos do corpo de Fr. Pedro da Guarda (Girão, 1992, 8, 396-397). A capela-mor da nova igreja foi fundada por Rui Mendes de Vasconcelos (c. 1460-c. 1520), filho mais novo de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves, filha de Zarco, e a sua mulher Isabel Correia, que era filha dos doadores do terreno em que se tinha levantado o primitivo convento. Pajem da rainha D. Leonor e um dos homens-bons do concelho do Funchal, onde serviu de vereador, guarda-mor da saúde e procurador do concelho, Rui Mendes de Vasconcelos mandou redigir cédula de testamento a 15 de setembro de 1515, antes de seguir para o reino, onde determina vir a ser enterrado no meio da capela-mor, junto dos seus filhos já falecidos. A capela teria sido reconstruída por 1533 e a lápide em causa, nessas ou nas obras seguintes, transferida para o adro da igreja, onde se encontra. Mais tarde, o neto homónimo Rui Mendes de Vasconcelos deixou ainda em testamento, de 16 de abril de 1569, 160$000 réis da sua terça para sufrágios por sua alma. Com essa importância deveriam ainda ser compradas várias alfaias e paramentos, como um cálice de prata dourada, de três marcos, uma vestimenta, uma capa e um frontal de seda de damasco. O remanescente seria aplicado em bens de raiz, “em boa terra, em Câmara de Lobos, e em água” para subsistência dos frades, tudo ficando enfeudado, “enquanto o mundo durar” (VERÍSSIMO, 2002, 33), a duas missas semanais rezadas, às quartas e às sextas, pela sua alma e as dos seus filhos. O seu testamento não veio a ser aprovado, fazendo-se inventário e partilhas, de forma a assegurar o legado. Os bens destinados a esse efeito, embora ligeiramente inferiores aos inicialmente destinados, à época, cumpriam suficientemente o determinado, mas o mesmo não viria a ocorrer alguns anos depois. O neto do segundo Rui Mendes de Vasconcelos, por via materna, também padroeiro da mesma capela-mor, João de Bettencourt de Vasconcelos (1535-1615), nos finais do século, requeria ao bispo do Funchal a redução das missas em questão. O bispo D. Luís Figueiredo de Lemos já tinha exposto a situação para Roma e havia recebido uma carta da Sagrada Congregação dos Cardeais, de 4 de outubro de 1589, concedendo-lhe o poder para reduzir as capelas e missa dos administradores do seu bispado “que se sentissem carregados com grande número de missas e encargos, ao justo e razoável, conforme as propriedades e rendimentos” (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, tombo 3, 608-608 v.). O despacho do pedido do administrador da capela-mor de S. Bernardino teve a data de 19 de dezembro de 1593, reduzindo o bispo o número de missas de duas semanais para uma por mês, mas mantendo as demais obrigações dos padroeiros, que eram o pagamento de azeite, pão, peixe ou carne e vinho para a subsistência dos frades. João de Bettencourt de Vasconcelos, a quem, regista Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de) no seu Nobiliário Genealógico, chamavam “o Cavaleiro, de alcunha”, tendo passado à Índia por capitão da nau São Gregório, sucedeu, entretanto na terça dos seus avós, por morte de seu irmão Rui Mendes de Vasconcelos, homónimo dos vários avós e que falecera sem descendência. Por testamento aprovado em 12 de dezembro de 1607, como administrador dos bens do irmão, refere que a terça do mesmo ainda tinha como obrigação para o Convento de S. Bernardino uma pipa de vinho novo, quatro arrobas de azeite e 3$500 réis de missas rezadas e cantadas, pelo que deve ter havido ainda outras alterações a estes legados. No seu testamento, João de Bettencourt de Vasconcelos deixou vinculada a sua terça nas fazendas por cima de Câmara de Lobos e abaixo da quinta da Torre, deixando-a aos frades de S. Bernardino. Determinou que a administração desta capela, depois conhecida como “Terça dos Frades”, deveria passar à sua filha Helena de Vasconcelos (c. 1572-1625), instituidora da capela-mor da igreja do Colégio do Funchal, dado o filho Henrique de Bettencourt não ter descendência e falecer pouco depois, em 1620, e Guiomar de Bettencourt (c. 1571-1607), a irmã mais velha, já ter falecido. Data de cerca de 1633 a construção de três pequenas capelas na cerca, para além de outros melhoramentos nos edifícios do Convento. As capelas de homenagem a Fr. Pedro da Guarda ficavam, uma junto à sepultura do “santo”, identificada nos finais do século anterior, outra junto da cozinha, onde a tradição contava ter havido anjos a ajudá-lo nos seus trabalhos e a última, junto à pequena lapa onde costumava meditar, isolado de tudo e de todos. Por esses anos igualmente se fizeram obras nos claustros e na casa do capítulo, para o que Rui Mendes de Vasconcelos (II) deixara os materiais, como madeira de cedro e que a mandara colocar na loja do mosteiro. Saliente-se, no entanto, que nem sempre estas determinações testamentárias eram cumpridas, pois que no documento em questão se refere a importação de uma laje da Flandres, que não temos informação de alguma vez ter existido, tal como determina que se fizessem grades de ferro, de varões grossos, lavrados e dourados para a capela-mor, de modelo idêntico aos da capela do Santíssimo da sé do Funchal, a fim de substituir os de madeira que já estavam velhos, que também mais ninguém volta a referir. Alguns anos depois Henrique Henriques de Noronha descreve pormenorizadamente o Convento, a “uma légua da cidade do Funchal, para poente”, por cima do lugar de Câmara de Lobos, que com os anos fora aumentando o número de edifícios, especialmente graças à contínua romagem do “Servo de Deus”, constituindo-se numa das melhores casas franciscanas e a segunda da Custódia de S. Tiago Menor da Madeira. Tinham então boas oficinas e “excelentes cómodos” para os 18 religiosos que habitavam no Convento. Compreendia três dormitórios, que com a igreja formavam um “perfeito quadro”, com um claustro rodeado de varandas sobre pilares de “cantaria fina” e no meio uma fonte de “perene água” (NORONHA, 1996, 250-251). O cronista descreve as várias capelas, uma das quais no claustro, dedicada a Fr. Pedro da Guarda, “onde misteriosamente foram achadas as relíquias na sua sepultura, pelo bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, em oito de janeiro de 1597”, o que, se de algum modo pode ser confirmado pelas vereações camarárias do Funchal, que no dia seguinte não tiveram sessão por todos terem acorrido a Câmara de Lobos, embora esteja em desacordo com o que escreveu Fr. Fernando da Soledade, que regista o dia 28 de janeiro, e, logicamente, omite ter sido o bispo do Funchal a fazer o achado. Refere-se ainda à capela construída na antiga cozinha, também dedicada ao “santo”, onde “vinham os anjos beneficiar o comer, enquanto ele se ocupava em outra maior contemplação”, figurando aí a sua imagem de joelhos, em oração, dentro da antiga chaminé “e os anjos ocupados no ofício do Santo” (Id., Ibid.). Nos claustros havia outra capela, que servia de capítulo aos religiosos, dedicada a N.ª Sr.ª da Piedade, “cuja imagem é de maravilhosa pintura”, capela fundada por André Afonso Drumond e sua mulher Branca de Atouguia. Fora do claustro, junto à portaria e à igreja ainda havia outra capela, dedicada às almas, com uma confraria e, a “poucos passos adiante”, ainda a capela de S. Lourenço, dentro da qual, do lado da epístola, ficava uma “lapa fechada com grades de ferro” (Id., Ibid., 252), que ainda subsiste, onde era tradição que Fr. Pedro da Guarda se retirava para oração. A igreja era “proporcionada ao convento”, de uma só nave, com capela-mor e dois altares colaterais: o do lado do evangelho dedicado ao Senhor Jesus, com irmandade e, o da parte da epístola, à Conceição de N.ª Sr.ª. O retábulo-mor possuía três nichos, sendo o central ocupado pela imagem de S. Bernardino de Sena e os laterais, pelas imagens de S. Francisco e de S.to António. Na parede do lado da epístola figuravam as armas dos Vasconcelos e, no lado oposto, havia uma tribuna. Na porta lateral que saía para os claustros havia uma laje com as letras A e D, indicação de que ali havia sido enterrado Fr. António Descalço, “religioso leigo cuja virtude e largas penitências lhe adquiriram larga veneração” (Id., Ibid.), mas na lápide aí existente no começo do séc. XXI figura o nome por extenso do frade leigo, por certo bem anterior aos anos de 1722, em que foram escritas as memórias do cronista Noronha. Fr. António Descalço havia sido canavieiro de açúcar de António Correia, o Grande (1457-1572), filho dos doadores do terreno inicial do Convento, tendo entrado como donato, ou seja “consagrado ao Senhor”, em referência a alguém mais novo e que estaria a preparar-se para seguir a vida religiosa, professando depois, mas como leigo. Passou a usar o nome de Descalço, “porque jamais calçou alparcatas” e quando se “faziam gretas nos pés, do exercício, as cozia com fio de sapateiro”. Faleceu em 27 de maio de 1590, o que parece corresponder à lápide depois colocada, tendo escrito Noronha que foi contemporâneo de Fr. Pedro da Guarda, “que sem dúvida seria o modelo do seu espírito”. No entanto, tendo o “santo” falecido em 1505, não podem ter sido contemporâneos, pois embora o antigo amo, António Correia, tenha falecido com 115 anos, um canavieiro que sempre andou descalço dificilmente teria passado dos 70 anos. Escreveu também Noronha que sobre a sua sepultura “se viam algumas vezes luzes” e ouviam cânticos amenos, com “um suavíssimo cheiro, que saindo dela se fundia por toda a igreja” (Id., Ibid., 251-253). Na descrição de Noronha do então oratório de S. Sebastião da Calheta, refere-se que no Convento de S. Bernardino se havia homiziado Pedro Bettencourt de Atouguia (1622-c. 1680), o qual tinha assassinado, por problemas de coleta de impostos, o corregedor Gaspar Mouzinho de Barba, a 29 de dezembro de 1642. O corregedor viera à Madeira para investigar uma série de tumultos ocorridos no ano anterior e, tomando conta da fazenda real, passou a tratar dos vários pagamentos em atraso. Entre esses pagamentos encontravam-se os de Pedro de Bettencourt, Manuel Homem da Câmara e outros, pelo que dirigindo-se à Câmara do Funchal, então nas traseiras da sé, para prender o último, foi assassinado às portas da mesma por Pedro de Bettencourt. Conta então Noronha, que foi depois preso, em princípio, pelo seguinte corregedor Jorge de Castro Osório, por sua vez, morto por envenenamento poucos meses depois (Aclamação de D. João IV). O morgado Pedro de Bettencourt teria, entretanto “arrombado a prisão” e passou a viver homiziado, de início, no Convento de Câmara de Lobos, “mas com tal mudança de vida”, que despendia a maior parte dos rendimentos do morgado em benefício da caridade, tendo feito “à sua custa as varandas do claustro de S. Bernardino”. Aí permaneceu até 1670, data em que comprou o terreno para o oratório de S. Sebastião da Calheta, cuja construção se iniciou por essa data, professando ali como Fr. José da Encarnação, onde “andou sempre descalço” e foi depois sepultado na capela-mor daquele oratório (Id., Ibid., 257). O Convento de S. Bernardino beneficiava, entretanto do púlpito da colegiada de S. Sebastião da Câmara de Lobos, pelo menos, desde o alvará de D. Filipe II, de 20 de outubro de 1612, que atribuiu ao guardião um ordenado anual de 15$000 réis e a obrigação de pregar na colegiada no Advento e na Quaresma, o mesmo acontecendo com os restantes conventos franciscanos, em relação às colegiadas das matrizes das freguesias próximas. Mais tarde, com a dinastia dos Bragança, as porções e esmolas dos sermões auferidas pelos religiosos estariam isentas do pagamento da décima, por provisão régia de maio de 1650. Os frades de S. Bernardino, e o Convento em geral, a partir dos inícios e meados do séc. XVII, vieram a beneficiar com o recrudescimento da devoção de Fr. Pedro da Guarda, tendo sido contínuas as tentativas de beatificação e os processos enviados para Roma. O Papa Urbano VIII, a 30 de agosto de 1625 ordenou, inclusivamente ao bispo do Funchal, D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), que, com dois dignatários da Sé, fizesse nova inquirição por autoridade apostólica. O processo foi concluído em 1628, sendo enviado para Roma, mas não tendo conhecido despacho. Novas tentativas foram feitas pelo P.e Fr. Baptista de Jesus, que se deslocou a Roma para negociar a causa, ainda sendo conduzida outra tentativa pelo deão, vigário-geral e provisor do bispado em sé vacante, Pedro Moreira (c. 1600-1674), em 1652, igualmente sem resultados. O erário público, entretanto concorreu igualmente para os processos de beatificação, determinando o rei D. João IV, por alvará de 3 de setembro de 1653, que os ministros da justiça aplicassem na Ilha metade das condenações pecuniárias para ajuda das despesas. A determinação de D. João IV foi confirmada cem anos depois, pelo bisneto D. José, por novo alvará, em 27 de fevereiro de 1753, para que se mantivesse a ajuda das despesas ao processo de beatificação do “Santo Servo de Deus” (BNP, Índice Geral do Registo da Antiga Provedoria da Real Fazenda, 118 v.), assunto cumprido ao longo dos séculos seguintes, mas sem resultado, ainda se arrastando o processo por Roma. O Convento de S. Bernardino veio a ser totalmente reconstruído nos inícios e meados do séc. XVIII, quase que somente se tendo preservado a lapa e a sepultura de Fr. Pedro da Guarda, assim como algumas das lápides sepulcrais. As obras devem ter-se iniciado por 1735, como atesta a data inscrita na base da cruz do frontispício da igreja e prolongaram-se, pelo menos para além de 1747, como se inscreveu no lintel de uma das janelas próximo da torre. A igreja ficou então dotada de três portas com molduras assentes em colunas oitavadas e conjunto rematado por cornija relevada sobre a qual assenta um pequeno nicho de cantaria aparente. O conjunto das portas parece ter tido o risco de um mestre das obras reais anterior, talvez Manuel de Vasconcelos, mas toda a fachada deve ter sido reformulada nos inícios do XIX, depois da aluvião de 1803 e ainda nas obras de 1924 a 1928, não sendo fácil deduzir o que ficou das campanhas de obras mais antigas e, inclusivamente, se não se aproveitaram cantarias de outros locais do Convento. Para estas obras, em princípio, o guardião e demais frades tiveram autorização da Câmara do Funchal, por alvará de 13 de janeiro de 1742, licença para cortar vinte e cinco paus nas serras do concelho. Entre 1730 e 1740 também se encomendaram vários painéis de azulejos para os claustros a uma das boas oficinas de Lisboa, de que chegaram aos nossos dias dois muito bons e grandes arcanjos, podendo ter sido mais. De 1740 a 1750 também deve ser o lavabo da sacristia, dos mais interessantes existentes na Região e que, contra o que seria de esperar, recupera o trigrama de S. Bernardino de Sena, de que se haviam apropriado os Jesuítas para a sua emblemática oficial, o que à época teria sido uma atitude corajosa. O Convento voltou a ter obras após o terramoto de 1748, que afetou bastante toda esta área e, então quase uma nova reconstrução, após a terrível aluvião de 9 de outubro de 1803. A descrição da aluvião de João Pedro de Freitas Drumond (1760-1825), o célebre “Dr. Piolho”, dada a fraca estatura, feita a pedido da Câmara do Funchal, refere que a ribeira da Saraiva ou ribeiro dos Frades levara “a cerca, claustros, cozinha, refeitório e adega” do Convento, de que só ficara a igreja e a casa dos romeiros. Uma testemunha ocular, a 15 de outubro seguinte, refere mesmo que “o convento do Servo de Deus também foi ao mar” e “dizem que escapou parte do refeitório e um pequeno celeiro” (VERÍSSIMO, 2002, 65). No livro de Receita e Despesa dessa época registam-se “o gasto que se fez depois do dia 10 deste mês de outubro, quando amanheceu a triste cena do aluvião, que levou este nosso convento com as alfaias que nele se achavam, etc.”. Os frades tiveram assim que adquirir quatro panelas, um tacho, uma frigideira, duas peneiras, seis copos, um cutelo, dois quartos, balança e pesos, tendo tudo custado 16$350 réis. Tiveram também de contratar um carpinteiro, por dois dias, “para consertos”, como regista o escrivão Fr. João de Santa Rosa (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, fl. 87). No pedido depois feito pelo guardião Fr. Matias de São Boaventura para se fazer uma vistoria, refere-se que os frades tiveram de trepar pela rocha vizinha do lado nascente, pois a água havia tomado a saída do Convento, demolido a portaria e entrado na igreja. Os frades tiveram que se recolher nas instalações dos Terceiros e na casa dos romeiros, pois haviam ficado sem os dormitórios e mais instalações, solicitando poder utilizar o rendimento da capela instituída por João de Bettencourt de Vasconcelos para a reedificação do Convento. A vistoria determinada pelo provedor dos resíduos e capelas só veio a ocorrer a oito de julho de 1805, levada a cabo pelo então mestre das obras reais e antigo mestre entalhador Estêvão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), assessorado pelo mestre António José Barreto, que lhe haveria de suceder. Os prejuízos tinham sido muito grandes, perdendo-se na totalidade o muro da cerca, as latrinas, o dormitório que estava ao lado do ribeiro, a cozinha e loja anexa, a casa de profundis, o refeitório, a adega, metade do claustro, a capela da cozinha do servo de Deus, a da cova do “santo”, a sacristia e a varanda que lhe ficava em cima, tal como as celas junto da mesma varanda. Na igreja, encontrava-se perdido o teto sextavado, o altar teria de ser refeito, e os azulejos, porque em mau estado, teriam de ser retirados. A ribeira dos Frades alterara o seu leito, passando então junto à porta travessa da igreja, que ia para a capela-mor, tudo necessitando de ser assim corrigido. As obras tiveram autorização do provedor-proprietário das capelas, Pedro Nicolau Bettencourt de Freitas e Meneses, devendo ser colocados em praça “os frutos” do morgadio instituído por João de Bettencourt de Vasconcelos, para se liquidarem pela melhor oferta. Satisfeitos os legados pios, deveria aplicar-se o remanescente na reconstrução do Convento e da capela-mor, de acordo com as diretivas deixadas no auto de vistoria. Ao longo dos anos seguintes as obras arrastaram-se, ainda havendo pagamentos em julho de 1822 e, em 1827, o síndico do Convento queixava-se que a vistoria às obras se achava por completar, em relação à capela-mor, oficinas do Convento e outras instalações. Estes anos foram muito complexos em Portugal com a implantação do primeiro liberalismo e com a contrarrevolução do infante D. Miguel, seguindo-se a guerra civil que, não tendo afetado fisicamente a Madeira, levou à emigração dos principais quadros eclesiásticos insulares, como grande parte dos cónegos da sé e dos vigários das freguesias. As obras do Convento nunca teriam sido completadas. A vida quotidiana da comunidade de S. Bernardino entre os finais do séc. XVIII e os inícios do XIX pode ser analisada pelos quatro livros de receita e despesa que sobreviveram. A documentação do Convento parece ter-se perdido parcialmente com a aluvião de 1803, tendo ficado alguns livros de despesas de obras no conjunto proveniente da provedoria do Funchal; os quatro livros de receita e despesa foram depositados na Torre do Tombo, indo integrar o núcleo dos conventos, tendo a documentação avulsa ficado no núcleo do Ministério das Finanças do mesmo arquivo. O estado de conservação dos cadernos iniciais do Livro de Contas de setembro de 1792 a 1798, quando era guardião o P.e Fr. António do Amor Divino, é testemunho da dificuldade por que deve ter passado toda a documentação do Convento. As receitas do Convento provinham essencialmente de foros e de missas, inclusive nos altares das confrarias, capelas e oratório do síndico, sermões na Quaresma e no Advento na colegiada de Câmara de Lobos, tal como da venda de túnicas, hábitos de saial e de burel para mortalhas, aspeto que era igualmente praticado nos restantes conventos franciscanos masculinos da Ilha. Um hábito de burel e o acompanhamento de um funeral registados, e.g., na primeira semana de setembro de 1792, custaram 2$500 réis, embora um outro enviado para o campanário na mesma semana tivesse custado somente $8000 réis. Os hábitos para mortalha eram feitos no Convento, comprando-se periodicamente uma vara de burel, como nos inícios de fevereiro do ano seguinte, que custou 6$000 réis. As túnicas também ali deviam ser feitas, vindo o linho sedado ou em rama, da Ponta do Pargo e da Fajã da Ovelha, em princípio, como esmola. Na última semana de maio de 1798, e.g., entre os inúmeros envios de hábitos de burel e de saial, registam-se verbas de 4$000 réis, para o do burel enviado para o funeral de Manuel de Sousa, das Eiras, acompanhado por dois religiosos “a 500 réis cada um” e 9$000 réis, para o hábito de saial enviado para Rita dos Santos, da Várzea, cujo funeral foi acompanhado por seis religiosos. Nessa semana também se receberam 3$000 réis pelo “caminho e assistência” ao ofício das exéquias do governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, falecido no Funchal, a 30 de março desse ano, determinadas pelo Cap.-mor Filipe Esmeraldo e nas quais participaram cinco religiosos “a 600 rs.” (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, f. 1v.). As verbas auferidas pelas missas eram também variáveis, registando-se, e.g., na primeira semana de fevereiro de 1793, 35 missas, que renderam 2$800 réis; na segunda semana, 25 missas, 2$000; na terceira, 33 missas, 2$050; e na quarta, 35 missas, 1$800, dependendo assim de onde eram celebradas e dos acordos anteriormente estabelecidos. Havia uma série de missas que eram obrigação do Convento, outras de outras obrigações, tal como as das capelas e das confrarias, nem todas pagas. Na última semana de abril de 1798, no livro de contas de quando era guardião o P.e pregador Fr. Manuel da Piedade, especifica-se que se “disseram” 23 missas, 7 do Convento, 3 de obrigações, 3 das confrarias e 4 de “ofícios de frades”, somente tendo sido pagas quatro, a 200$000 réis, pelo que houve de receita 800$000 réis (Ibid., liv. 2, fl. s/n.ºv.). Nas semanas seguintes variam os quantitativos, havendo missas pagas a $200, a $300 e, inclusivamente, a 1$550 réis, como ocorreu na terceira semana de maio desse ano de 1798 e que parece corresponder à missa que antecedeu ou finalizou o “Noturno da confraria de Jesus” (Ibid., liv. 2, fl. 1) As festas dos padroeiros das confrarias sedeadas no Convento eram igualmente fontes de receita, principalmente se tivessem sermão, podendo chegar aos 3$000 réis. Os foros representavam ainda maiores fontes de receita, como os provenientes da antiga Terça dos Frades, que a célebre morgada Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789) chegou a colocar em tribunal, em 1771, face à aplicação da lei pombalina de 4 de julho de 1768 e do alvará de 12 de maio do ano seguinte sobre os bens vinculados, mas que veio a ter despacho da Relação de 14 de dezembro de 1776, favorável ao Convento e condenando a morgada ao pagamento das custas do processo. Os seus sucessores acabaram por continuar a pagar a célebre “terça”, como o seu sobrinho-neto João de Carvalhal (1778-1837), futuro conde de Carvalhal, que em janeiro de 1811 pagou pela “sua capela”, 16$440 réis, para além de ter rendido ao Convento, “do merecido da Capela da Terça”, mais 49$400 réis (Ibid., liv. 3, fl. 3). Outra fonte de rendimento eram os peditórios, que extravasavam, em princípio as áreas estabelecidas, pois concorriam com o pequeno Convento de S. Sebastião da Calheta e mesmo com o oratório da Porciúncula da Ribeira Brava. Os peditórios decorriam em determinados períodos, consoante as festas em causa e os produtos a recolher, como era o caso do vinho, do trigo e do pão, para o que o Convento adquiria o vasilhame para a recolha e pagava a determinados “moços” ou donatos para fazerem o peditório, tal como depois pagava pontualmente os transportes, quando excediam as quantidades transportáveis pelo homem. Uma vez recolhidos no Convento, uma parte dos mesmos era vendido. As despesas do Convento eram essencialmente na alimentação, feita à base de peixe de aquisição local, ao contrário dos conventos do Funchal onde a aquisição de peixe era mais difícil, mas também de bacalhau, de salmão fumado, de carne e legumes. Na última semana de março de 1793, e.g., uma das principais despesas foi a do peixe fresco, quase 7$000 réis, mas sendo ultrapassada pela do bacalhau, em que se gastou 7$200 réis. Compraram-se ainda feijão “fradinho”, legumes vários e fruta, vários tipos de azeite, inclusivamente “de peixe”, e lenha para cozinhar, uma despesa sempre corrente; nessa semana, foram 23 feixes, 15 a $150 réis e 8 a $100, num total de 3$050 réis (Ibid., liv. 1, f. 11v.). Os frades cultivavam ainda terrenos na sua cerca e em outras propriedades, inclusivamente, contratando pessoal em épocas de maior trabalho. Tinham vinhas e produziam vinho em adega própria e aguardente, tal como criavam animais. Pontualmente compravam um porco “para o chiqueiro”, que depois deviam matar pelo Natal, tal como também compravam galinhas e tinham ovos, pois, pontualmente, aparece o envio de ovos para o Convento de S.ta Clara, de onde depois recebiam doces. No dia de Jesus, ou seja 1 de janeiro, havia cavacas, tal como também nesse mês, a abertura da arca do servo de Deus era assinalada com um jantar de galinha. Pelo Entrudo consumiam carne de vaca e sonhos, antes do jejum e abstinência da Quaresma. Na Quinta-feira Santa não faltava o arroz-doce e em toda a Semana Santa tinham biscoitos, havendo cavacas do dia de S. João Batista, tal como carneiro e cerejas, aparecendo para outras datas festivas aquisições de especiarias, presunto, queijos e outros doces. As despesas gerais incluíam ainda nesses dias festivos o pagamento de músicos, tal como o do transporte de determinadas entidades que visitavam o Convento, vindas, geralmente, do Funchal, que incluíam, não só o barco como o de rede até S. Bernardino. Uma das contínuas despesas era ainda o tabaco, por certo para consumo do Convento, mas também para pagamento de “mimos” a visitantes, funcionários e simples trabalhadores. Contínua era também a despesa com os irmãos doentes, que obrigava à alteração da alimentação, que passava, essencialmente, a dieta de frango e canja, tal como exigia o pagamento dos medicamentos. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido pelo “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A execução do decreto na Madeira foi determinada pelo prefeito da província da Madeira, Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846), que a 27 de agosto desse ano enviava ao provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851) instruções precisas a esse respeito, embora somente cumpridas quase um ano depois. As primeiras diligências ocorreram assim a 7 de abril de 1835, na presença do provedor do concelho, do tabelião Domingos João de Gouveia e do fiscal da fazenda Manuel Joaquim Lopes. Elaborado o inventário do Convento, registaram-se como objetos sagrados, uma custódia, uma âmbula, quatro cálices e um relicário de prata dourada, assim como nas capelas se inventariaram quatro lampadários de prata, um turíbulo, um naveta e três castiçais. Os objetos sagrados foram entregues ao P.e Alexandrino Salgado, vigário capitular da Diocese, e os não sagrados recolheram à provedoria da Fazenda, tendo seguido, a 28 de maio de 1836, no brigue de guerra Tejo, para a Casa da Moeda de Lisboa, de que o prefeito da Madeira havia sido provedor. Todo o conjunto de paramentos e vestiária foi entregue à Diocese e inventariou-se ainda os adornos de prata das diversas imagens. Foram ainda inventariados os livros de coro: um saltério, um antifonário, um livro de missas e um livro de calendário, conjunto entregue à Diocese. No entanto, o conjunto dos 35 livros da biblioteca, os manuscritos de contas do Convento, e um maço de 78 papéis avulsos de escrituras, títulos, provisões e outros documentos, recolheram ao governo civil, sendo depois entregues na provedoria da fazenda. Inventariou-se também todo o mobiliário do Convento, como mesas, cadeiras e, inclusivamente, vidros, loiças, cobres e demais objetos de cozinha, posteriormente vendidos em hasta pública. No mesmo dia do inventário os funcionários da provedoria da fazenda tomaram posse oficial do conjunto dos imóveis, tal como dos bens do Convento, que depois de inventariados e avaliados, previa-se também colocar em hasta pública. Tal aconteceu pouco depois com as diversas propriedades, mas o mesmo não veio a acontecer de imediato com o imóvel. Uma parte do recheio do Convento, a cargo da colegiada da matriz de S. Sebastião de Câmara de Lobos e do vigário-geral da Diocese, foi sendo distribuído pelas matrizes limítrofes, como já havia acontecido com o património dos Jesuítas e aconteceu então com os conventos franciscanos. Na altura do inventário, tal como a paramentaria foi entregue à Diocese, alguns móveis, como os cinco confessionários, duas cadeiras e duas escadas para armações, foram de imediato transferidos para a matriz de Câmara de Lobos. Em abril de 1835, o vigário da freguesia do Estreito de Câmara de Lobos recebeu o sino maior do Convento e o menor foi entregue à matriz da Santíssima Trindade da Tabua. Refere o P.e Pita Ferreira que a imagem de N.ª Sr.ª da Conceição seguiu para a matriz, o sacrário foi oferecido à igreja da Piedade do Curral das Freiras, em 1850, e a imagem do Senhor Jesus foi oferecida à capela da Vera Cruz, na Quinta Grande, em 1866. Com a implantação do Governo liberal foi nomeado para o Funchal um novo vigário capitular e governador do bispado, o Cón. António Alfredo de Santa Catarina Braga (c. 1795-c.1845), que se havia refugiado em Cabo Verde e depois no Brasil, em razão das suas ideias liberais. Tendo já publicado no Porto um folheto contra o culto do “santo”, uma vez na Madeira, a 2 de junho de 1835, fez uma visita extraordinária à capela e lapa de Fr. Pedro da Guarda no extinto convento de Câmara de Lobos. Tendo examinado o monumento onde se guardavam os restos mortais do Franciscano, junto do altar-mor da igreja, mandou-os destruir, o mesmo mandando fazer à pintura existente na capela do “santo” e demais imagens que encontrou, tudo sendo queimado em novo “auto de fé” ao sabor do antigo regime. Entendia assim cumprir o seu “rigoroso dever, para desagravar a verdadeira e sã doutrina do cristianismo”, pois que nunca havia sido canonicamente autorizado o culto de Fr. Pedro da Guarda (A Flor do Oceano, 21 jun. 1835, 30). Se esfriaram e diminuíram momentaneamente estes preitos de devoção e piedade, mas não se extinguiram de todo, tendo-se transformado na sede da paróquia de S.ta Cecília, um número considerável de indivíduos procura a sepultura, onde foram depostos os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda. As imagens só se retiraram da igreja de S. Bernardino a 18 de junho de 1837, umas para a igreja paroquial e outras para a posse de algumas famílias que as conservaram, passando a incorporá-las na procissão anual das Cinzas. Entre estas, encontra-se o busto relicário de Fr. Pedro da Guarda, aparentemente datável dos meados ou finais do séc. XVII, que pertenceu à família de Jorge Sabino de Castro, que em outubro de 2002 a doou ao antigo Convento de S. Bernardino. O edifício do Convento foi vendido em hasta pública, a 12 de março de 1872, por 811$000 réis, a Manuel Joaquim Lopes, sendo registado como Convento Velho, e não integrando a capela dos Terceiros e a casa dos romeiros, então registadas como Convento Novo. A venda já se enquadrava num outro contexto político e religioso, pois desde 1857 já funcionava no antigo convento uma escola feminina e, pelo menos desde 1867, se pretendia reedificar o convento e retomar o processo de beatificação do santo, editando-se folhetos sobre a vida do mesmo e reativando-se a devoção através da Ordem Terceira e dos Salesianos, que ali instalaram uma escola. Fig. 1 – Luís Bernes, Desenho do Convento de São Bernardino em Câmara de Lobos, Luís Bernes. Fonte: Semana Ilustrada, 9 out. 1898, 217. O edifício do velho convento, entretanto, arruinava-se decididamente, como comprova o desenho editado pelo pintor Luís António Bernes (1864-1936) na Semana Ilustrada de 9 de outubro de 1898, assim como algumas fotografias da época, mas que ao mesmo tempo demonstram o interesse que passara a haver pelo imóvel. Efetivamente, a 6 de julho desse ano de 1898, os proprietários tinham vendido o convento velho por 60$000 réis ao prelado diocesano D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), mas que era mais uma doação do que uma venda, pois foi vendido muito abaixo do preço pelo qual o haviam adquirido. As ruinas do velho convento vieram a ser pontualmente recuperadas por iniciativa da M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). O projeto de recuperação do edifício teve início por volta de 1911, mas só foi concretizado em meados de 1916 para funcionamento do curso preparatório para o seminário diocesano. Foi neste edifício que a M.e Mary veio a falecer, em 18 de outubro desse ano, não tendo assistido à chegada dos alunos. O edifício voltaria a ter obras de reabilitação, por iniciativa do pároco de Câmara de Lobos, P.e João Joaquim de Carvalho (1865-1942), entre janeiro de 1924 e meados de 1928. A igreja sofreria uma total remodelação, eliminou-se grande parte das preexistências, como a antiga tribuna e as armas dos Vasconcelos nas paredes norte e sul da capela-mor, removeram-se igualmente as lápides sepulcrais e encomendou-se em Braga um retábulo-mor com amplo camarim, executado naquela cidade pela antiga oficina do entalhador Leandro de Sousa Braga (1837-1897), que ainda usava o seu nome. O retábulo custou 12$000 réis e chegou ao Funchal a 24 de setembro de 1926, procedendo à montagem um dos mestres entalhadores da mesma oficina. No ano seguinte ainda haveriam de chegar os altares colaterais, em abril de 1927. A igreja seria de novo benzida pelo bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957), a 24 de outubro de 1926, durante as festas de S. Francisco, nesse ano ligeiramente adaptadas para coincidirem com as celebrações do 7.º centenário da morte do patriarca dos Franciscanos. Até 1933, continuou ali a funcionar o curso preparatório do Seminário Diocesano, que nessa data foi integrado no Seminário da Encarnação. O conjunto voltaria a sofrer reabilitação em 1960, para a instalação da paróquia de S.ta Cecília, tendo decorrido, em 2014 e 2016, novas obras de reabilitação geral do conjunto, a cargo da mesma paróquia e com o apoio da Ordem de S. Francisco, segundo projeto de 2006 do ateliê dos arquitetos Victor Mestre e Sofia Aleixo.     Rui Carita (atualizado a 20.02.2017)

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