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japão

Antes do séc. XX, as relações entre a Madeira e o Japão terão sido efémeras. A ligação entre os dois territórios reforçou-se, num primeiro momento, com o interesse nipónico pelo vinho da Madeira e, depois, por múltiplos aspetos mediáticos, aos quais não é alheia a figura do futebolista madeirense Cristiano Ronaldo. As diversas séries e os documentários alusivos à Madeira, produzidos pela cadeia de televisão NHK, consolidaram esse interesse da sociedade japonesa, atraindo múltiplos turistas desse território. Por outro lado, as informações que temos sobre as relações e influências em ambos os sentidos são escassas e não sabemos se muitas destas aconteceram de forma direta ou por via indireta. Ainda assim, apresentar-se-á o conjunto de informações consideradas de maior interesse, que expressa esse relacionamento através de diversas influências na botânica, no quotidiano e na atividade económica. Uma das mais evidentes presenças da cultura nipónica encontra-se no Jardim Tropical Monte Palace de José Berardo, aberto ao público desde 1991. A visita a este jardim revela o interesse e a paixão do seu proprietário pela cultura material oriental, nomeadamente do Japão e da China. De entre os vários aspetos, temos a considerar o painel A Aventura dos Portugueses no Japão, uma estrutura de ferro onde, em 166 placas de cerâmica, se conta a história das relações entre Portugal e o Japão. A outro nível, destaque-se a existência, desde 1998, no Museu da Qt. das Cruzes, de um escritório namban, do Japão do final do séc. XVI. São peças isoladas, que remetem para uma possível relação com este território do extremo Oriente. No plano da história da Igreja Católica, são percetíveis as ligações a estas ilhas orientais desde o séc. XVI. Nos princípios deste século, com a criação, a 12 de junho de 1514, da Diocese do Funchal, a Igreja Católica abrangia todas as terras conhecidas até ao Oriente, ficando o Japão, obviamente, na sua alçada. Este estado de coisas manteve-se até 1533, altura em que D. João III solicitou ao Papa Clemente VII a criação de novas dioceses (em Angra, São Tiago, São Tomé e Santa Catarina [Goa]), bem como a elevação da Catedral do Funchal à categoria de metropolitana e primaz. A partir de 31 de janeiro de 1533, é criado o arcebispado do Funchal, que se manteve até 1551; entre 1514 e 1551, há pois um laço institucional que liga as ilhas daquelas dioceses à Madeira. Ainda no campo da Igreja, podemos assinalar outros vínculos. Assim, o Jesuíta madeirense Sebastião de Morais (1534-1588) foi o primeiro bispo do Japão, com o título da cidade de Funai, confirmado pelo Papa Xisto V a 19 de fevereiro de 1587, tendo a sua morte prematura a 18 de agosto de 1588, ao largo de Moçambique, impedido o Jesuíta de tomar posse do lugar. Entretanto, os missionários que tinham chegado a estas ilhas em 1549 foram expulsos. Neste intervalo de presença portuguesa, ocorreram influências que se tornaram mais notadas no vocabulário. É a partir daqui que podemos estabelecer uma ligação à Madeira, pois há referências ao fabrico de alfenim (aruheitou em japonês) – a primeira de 1569, com várias notícias do seu consumo nos séculos seguintes – e outros doces, como os confeitos (komfeiton). O arheitou era e continuaria a ser um doce nanban oferecido em momentos especiais. Ficou célebre o alfenim madeirense que Vasco da Gama ofereceu ao Samorim de Moçambique. Foi também pela rota da Índia que terá chegado ao Japão a arte da confeitaria madeirense, que perdurou sob a designação de “alfeito”. Os estudos de M. Arao reforçam a ideia desta influência portuguesa, estabelecendo uma ponte com a Madeira. O mercado do Japão foi um dos conquistados tardiamente para o vinho Madeira – afirmou-se desde a déc. de 60 do séc. XX –, mas em 1989 suplantou o então tradicional mercado americano, uma vez que os Japoneses preferem vinhos secos e meio secos. A Casa de Vinhos Barbeito, fundada em 1946, foi pioneira naquela rota, mas o mercado viria a interessar a todos os produtores. Esta ligação do Japão à Casa de Vinhos Barbeito fez-se através da Kinoshita International Company. Em 1967, iniciou-se uma ligação entre as duas empresas que levou a que, em 1991, ficasse fortalecida esta parceria, através da aquisição pela Kinoshita International de metade da empresa madeirense. Note-se que, no séc. XXI, o vinho da Madeira ganhou nome no mercado de vinhos licorosos do Japão e assumiu o papel principal no brinde que sucede à cerimónia de casamento. Por múltiplas influências e intervenções, a Madeira foi um viveiro de plantas de todo o mundo, plantas que depois se expandiram para outras regiões. Os jardins públicos e privados são um repositório deste legado, que começou a ganhar importância na segunda metade do séc. XVII, por mão dos Ingleses. Em 1844, E. Wateley destacava esse trabalho e a presença de espécies da China, da Austrália e do Japão, nomeadamente no Jardim da Serra. Uma destas influências está relacionada com a flora das quintas e dos jardins, públicos e privados, da cidade do Funchal e arredores, onde se podem encontrar várias espécies de flora originárias desta região: Acer palmatum (ácer), Angiopteria evecta (feto craca), Ardisia crenata (ardísia), Aucuba japonica (aucuba), Elaeagnus macrophylla (oliveira do paraíso), Camelia japonica (camélia), Chamaecypares obtusa (camacípares), Cinnamomum camphora (canforeira), Cryptomeria japonica (criptoméria), Cyca revoluta (cica), Elaeagnus pungens (eleagnos), Eriobotrya japonica (nespereira), Euonymus japonica (Euonimus), Eurya japonica (euria), Fatsia japonica (arália), Ficus radicans (pastinha), Hibiscus chizoptalus (cardeal bailarina), Hibiscus rosa-sinensis (cardeal), Hovenia dulcis (passas do Japão), Ligustrum japonicum (ligustro), Ligustrum ovalifolium (ligustro), Magnolia obovata (magnólia), Magnolia stellata (magnólia), Pittosporum tobira (incenseiro), Raphiolepsis ovata (espinheiro da Índia), Sophora japonica (acácia do Japão), Trachelospermum jasminoides (jasmins de estrela), Trachycarpus fortunei (palmeira moinho de vento), Ulmus parvifolia (ulmeiro).   Alberto Vieira (atualizado a 03.02.2017)

Madeira Global

invejidade

O termo é considerado no “vocabulário madeirense”, sinónimo de “inveja”, mas não será bem assim. A melhor definição que encontramos é dada por Alberto Arthur Sarmento quando fala sobre os problemas em torno da construção e do funcionamento da estufa de John Light Banger, no Funchal, em 1768: “É termo bem característico madeirense – a invejidade, significando a inveja mal reprimida, encapotada, que mói e ginga, repisa e muito gira, a lançar mão de todos os meios para se alastrar, procurando anular a sombra que a escurece e molesta, húmida e fria, infiltrante, deprimindo o que é alheio, a roçar-se a esquina, para realização dos seus fins. É a inveja dinâmica, sem sentido, nem direção, impando uma coragem embexigada pela vacina do medo” (SARMENTO, 1944, 29). A inveja é um dos sete pecados capitais e pode ser entendida como o desejo de alguém em relação a determinados atributos, posses ou status do outro. Este sentimento materializa-se através de uma certa atitude do olhar, a que se chama “mau-olhado”, “olho gordo” ou “roxo”. Através do pensamento ou de tal atitude do olhar, atingimos os outros, provocando danos. Daí a necessidade de “limpar” ou desfazer esta energia. Para afastar os efeitos da invejidade, usam-se plantas, raízes, sementes e ervas, sob a forma de defumações e banhos que têm o efeito de purificar, proteger ou curar. Nos jardins de muitas casas madeirenses, há uma planta de alecrim, em conjunto com uma pimenteira e arruda, com o mesmo objetivo. O alecrim é mesmo conhecido como a “erva das bruxas”, sendo usado “para defesa dos domicílios e amuleto pessoal contra a inveja e mau olhado” (PEREIRA, I, 1989, 189). Para sarar esta inveja, é usual os madeirenses socorrem-se de curandeiros, que fazem umas rezas apoiados nas referidas plantas. E Sarmento refere-nos uma das muitas preces que existem na tradição popular: “Eu te curo de olhado mal invejado e empresado, em o nome que o padre te pôs na pia, com o nome de Deus e da Virge-Maria e das três pessoas da Santíssima Trindade. Se está mal invejada, no seu comer, ou no seu beber, no seu vestir, no seu calçar, no seu ter, na sua boniteza, na sua formosura [...] na sua gordura, no seu andar; quem invejou com mau mado não torne a invejar. Arrebenta-te, cão, vai-te p’ra o inferno. Alecrim verde, que nasce no campo, tirai este mal e este quebranto. Home bom, mulher irada, palhas aguadas, por onde este mal entrou por lá saia. Credo, três vezes credo, arrebenta cão nas profundas do inferno” (SARMENTO, 1912, 114-115). A diversidade destas rezas, o numeroso grupo de curandeiros que existe em quase todas as localidades da Madeira, bem como a insistente presença das plantas em questão nos jardins locais, nomeadamente na entrada das casas, indiciam que, no começo do séc. XXI, esta tradição se mantinha ativa na Madeira e que a inveja tinha aí um terreno fértil para medrar. Neste período, ao grupo de plantas que, por tradição, os madeirenses sempre usaram, juntaram-se outras, como a chamada língua de sogra ou espada de S. Jorge (Sansevieria trifasciata), o asplênio (Asplenium nidus) e as zamioculcas (Zamioculcas zamiifolia). Daqui ressalta a importância que, cada vez mais, a etnobotânica tem no quotidiano dos madeirenses: sabemos que, de forma clara, as plantas e flores deixaram de ter apenas uma função ornamental para se adequarem a outros papéis, em termos energéticos e espirituais, servindo para a “limpeza” e proteção espiritual de pessoas e casas. A invejidade é um traço comportamental que se torna mais notado em espaços pequenos, definidos pelos madeirenses como poios, mesmo na sociedade global do séc. XXI: ninguém larga o seu poio, ou seja, os seus hábitos, usos e costumes, as suas atitudes e os seus sentimentos. Não há estudos de caráter sociológico sobre os comportamentos dos madeirenses nos sécs. XX e XXI que permitam entender este particular. Também no campo da história, faltam estudos ou relatos que permitam entender a diversidade de atitudes e comportamentos que definem o madeirense. A invejidade é a cobiça refinada e destrutiva que limita o progresso e o convívio social. Não é visível em poucas palavras, manifestações e olhares. Funciona como uma mão invisível que todos negam, mas que está presente de forma diária nas atitudes, nos desejos e nas palavras da população e que se torna expressiva, por exemplo, na literatura popular madeirense, nas quadras que o povo canta. Com efeito, encontramos aí um discurso moral no sentido da sua erradicação: “Inveja é pranta ruim / Que lavra por toda terra. / Se traz raízes no mar / Já bota as folhas na serra” (PORTO DA CRUZ, 1954, 14). Na imprensa, como na literatura, é frequente o tema da invejosidade ou da inveja, atitude que aparece como um dos males que assola a Ilha. Assim, em 1874, alguém que assinou sob o pseudónimo de J. Fausto afirmava: “Das mesquinhas intrigas de inveja, de que está desgraçadamente infecionado o solo madeirense” (Estrella Litteraria, 1874, 4). Depois, em 1912, o já citado Alberto Arthur Sarmento, num conto sobre “A camada de olhado”, refere que a invejidade “em matéria de malefícios era d’arromba” (SARMENTO, 1912, 150). Ainda o mesmo autor, na questão sobre a estufa para beneficiação do trigo construída junto ao Pilar de Banger, dedica um capítulo ao que chama “a invejidade” para ilustrar os problemas decorrentes da construção dessa obra (Id., 1944, 30). Para além disso, temos alguns ditados populares que são expressivos, quanto à generalização da inveja. Em 1952, pode ler-se no periódico Re-nhau-nhau o seguinte adágio popular: “Se a inveja fosse tinha toda a gente andava tinhosa” (Re-nhau-nhau, 10 abr. 1952, 2). Depois, em 1996, afirmou-se no mesmo que “ambições, invejas, caprichos, interesses, egoísmos andam com os homens por onde eles vão para todos os rumos, não há direção que não sigam essas fraquezas da raça humana” (Id., 14 jan. 1996, 4). Vale a pena recordar que, em 1882, no Diário da Tarde, ao comentar-se os problemas e as reclamações em torno da ação do visconde de Canavial, foi afirmado: “ Ai! Se a inveja fosse tinha...” (Diário da Tarde, 21 dez. 1882, 2). É certo que estamos perante uma atitude universal, mas que ganha significado e evidência em espaços pequenos e a pequenez do “poio” pode ser um meio facilitador da sua propagação. Talvez por essa razão, Ferreira de Castro acentuou a questão, escrevendo “todos [...] os seus ódios, as suas invejas” (CASTRO, 1977, 159) e a escritora Agustina Bessa Luís, ao escrever sobre a Madeira, refere “a inveja e o ódio de muitos séculos” (LUÍS, 1996, 16).     Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social

confrarias

As confrarias ou irmandades são organizações religiosas muito antigas, que se instituíram desde a Idade Média e se estabeleceram na Madeira com os primeiros povoadores. As confrarias eram então especialmente instituídas para os que desejavam as vantagens de ação prática que ofereciam as organizações religiosas, no sentido de uma certa proteção religiosa, social e até económica, na vida e na morte, mas que não sentiam vocação para entrar para as verdadeiras ordens religiosas. Dentro deste quadro, os madeirenses, desde os meados do séc. XV, resguardaram-se em confrarias, devendo as mais antigas da Ilha ser as dos marítimos e pescadores, sob a proteção do “Corpo Santo”, denominação popular de S. Pedro Gonçalves Telmo (1190-1246), arrogando-se a do Funchal de ser a mais antiga de todas as confraria da Madeira. As primeiras informações que temos do funcionamento de confrarias não apontam, no entanto, para a do Corpo Santo, mas sim para a da igreja de Santa Maria de Cima, onde depois se viria a levantar o convento de Santa Clara. Na vereação da câmara do Funchal, de 7 de fevereiro de 1489, foi perguntado a Gonçalo Eannes, cerieiro, “pela cera que tinha da confraria de Santa Maria de Cima e do círio”, ao que o mesmo respondeu que iria ver no “seu livro e o que achasse, diria por juramento” (COSTA, 1995, 238). Não se volta a mencionar o assunto e, na vereação de 17 de setembro de 1491, acordaram os vereadores a esse respeito que Pero Correia, que então tinha a “cera da confraria de Santa Maria de Cima”, “a emprestasse por peso” a quem o quisesse, devendo a mesma ser pesada perante o secretário da câmara (Ibid., 293). Não é fácil interpretar corretamente o que seria esta confraria à época e tal não invalida que, no cabo do calhau de Santa Maria, não estivesse já a funcionar a Confraria do Corpo Santo, cuja capela é mencionada nesses anos como já levantada. Quase todas as organizações profissionais do Antigo Regime tiveram, de acordo com o espírito do tempo, carácter religioso, e esse aspecto da sua atividade tinha, no sentir dos membros, tanta importância como a sua finalidade secular. Em muitos casos, os oficiais que formavam uma corporação organizavam-se independentemente desta numa confraria religiosa para em comum praticarem os atos de devoção, dentro dos princípios da caridade, fé e piedade. Existe assim um certo paralelismo entre corporação e confraria, quando não mesmo uma certa confusão e sobreposição. Às primeiras deviam corresponder os aspectos técnicos e profissionais, devendo organizar-se no âmbito camarário e dos ofícios e mesteres reunidos na Casa dos 24, e às segundas os encargos pios e de assistência, com especial relevância para o acompanhamento dos enterros, organizando-se no âmbito geral da paróquia ou freguesia onde estivessem instituídas. As primeiras confrarias teriam assim tido por base vínculos profissionais, num quadro, ainda herdado da Idade Média, no qual as atividades profissionais passavam de pais para filhos, servindo também as confrarias para a manutenção desses vínculos. Os oficiais mecânicos do Funchal, e.g., como os ferreiros, os serralheiros, os caldeireiros, os cutileiros, os ferradores, os picheleiros e afins, que trabalhavam com o ferro e o fogo, associavam-se sob a bandeira de S. Jorge, proclamando que a Confraria da Sé do Funchal tinha sido fundada em 1515, embora depois refiram 1562 e só se conheça documentação a partir de 1667. Num curto espaço de tempo, esta passou a associar também os barbeiros, os douradores e outros, aparecendo inclusivamente, na segunda metade do séc. XVII, mulheres e escravos e datando, assim, dos meados desse século o esbatimento progressivo dos iniciais vínculos profissionais nestas organizações. As confrarias organizavam-se sob a proteção de um orago e de acordo com um compromisso, sendo administradas por um juiz, um reitor ou um presidente, um escrivão, um tesoureiro e um número definido de mordomos, de acordo com os seus estatutos, sendo o de confrades mais ou menos ilimitado. A base económica eram as esmolas de entrada dos confrades, a que se seguiam as cotizações e os legados pios, sempre carregados com missas pela alma do doador, de forma a ser encurtada por esses sufrágios a sua permanência no Purgatório, como em muitos testamentos se refere. Uma das primeiras preocupações e obrigações da confraria era assim a aquisição de uma arca para guardar os seus bens e documentos, que só podia ser aberta na presença dos elementos diretivos. Sendo associações detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, mas também os apoiavam noutras situações – não só a eles como às suas famílias na eventual falta dos mesmos –, podendo conceder pensões, constituir pequenos hospitais e recolhimentos, etc. No quadro geral da sua constituição, encontram-se as Misericórdias, essencialmente assistenciais, com base nas quais vão surguir os primeiros hospitais e a assistência aos pobres de uma forma geral, à infância, presos e condenados, assim como ao enterramentos dos mortos (Cemitérios). Ao longo do séc. XVI, a constituição de confrarias na Madeira terá sido exponencial, embora mais em intenção que em efetivação. Ainda assim, com a crise religiosa vigente na Europa nos meados desse século e com a resposta católica que se consubstanciou na reativação dos tribunais da Inquisição, na implantação do Santo Ofício e, depois, na divulgação das normas emanadas pelo Concílio de Trento, a sua multiplicação é um facto. A Igreja assume então aspectos algo repressivos e, ao mesmo tempo, sigilosos, pelo que a proteção dada pelas confrarias passa a ser quase essencial à comum vida social e até profissional de qualquer cidadão. A sua multiplicação e capacidade de angariação de fundos levarão, entretanto, também a uma crescente necessidade de um maior controlo por parte das autoridades religiosas. As primeiras normas centralizadoras em relação às confrarias aparecem nas Constituições Sinodais de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), promulgadas em 1578 embora só editadas alguns anos depois, especificando que no “sagrado Concílio Tridentino é ordenado que os administradores assim eclesiásticos como seculares da fábrica de qualquer igreja, ainda que seja catedral, hospital, confraria, ou outros quaisquer lugares pios sejam obrigados em cada um ano a dar conta aos ordinários da sua administração e cargo”. Acrescenta-se ainda: “e não vindo os mordomos dar a tal conta, os confrangerá a isso com penas pecuniárias que aplicará para a dita confraria e meirinho, e com censuras, se necessário for” (BARRETO, 1578, 138-139). As normas de 1578 tinham carácter geral e visavam, essencialmente, as fábricas e os legados pios, tal como as receitas e despesas, quer das igrejas quer das confrarias, insistindo: “e o que se ficar devendo fará logo com efeito entregar e meter na arca da fábrica, que em cada igreja deve haver com duas chaves, uma das quais terá o recebedor e outra o escrivão do cargo”, determinação depois ampliada para três chaves, no caso das arcas de confraria, sendo a terceira para o vigário ou para o reitor da confraria, muitas vezes a mesma pessoa. A fiscalização das contas deveria ser feita “pelo S. João” ou até “oito dias depois da festa de que é a confraria” (Id., Ibid.), embora este assunto só se cumprisse verdadeiramente nas visitações. Nas seguintes Constituições, chamadas Extravagantes – porque fora do que já havia sido promulgado e por as anteriores “serem breves e não compreenderem tudo”, tendo havido ainda “casos que tinham necessidade de outras novas”, como mandou escrever D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) na abertura das editadas em 1601 (LEMOS, 1601, fl. 2) –, logo se determina que as eleições das confrarias da Sé tinham obrigatoriamente de ter a assistência do deão, ou seu representante, salvo a do Santíssimo (Id., Ibid., fl. 29). Associada às eleições estava a apresentação das contas, a serem entregues oito dias depois ao vigário geral, e, caso tal não acontecesse, seriam multadas em 1$000 réis “para a chancelaria e meirinho” (Id., Ibid., fl. 30), o que anteriormente não ficara estipulado. Para além disso, deixava-se cair o dia de S. João para só se mencionar a festa do orago. Canonicamente as confrarias passaram a reger-se, a partir de 1604, pela Constituição de Clemente VIII e, a partir de 1610, pela de Paulo V. Voltava-se a insistir que para a sua fundação se requeria o consentimento do prelado, que examinava os seus estatutos, geralmente sob a forma de “compromisso” depois alargado a “estatuto”, a quem competia dar-lhes ou negar-lhes a aprovação. Podiam fundar-se em todas as igrejas, embora a Congregação do Concílio de Trento, em 1595, proibisse as de homens nos conventos de religiosas. Clemente XIII também proibiu duas confrarias do mesmo santo ou evocação na mesma povoação, excetuando as “sacramentais” e as de doutrina cristã, que deveriam funcionar em todas as paróquias. As confrarias, para além do aspecto religioso, constituíam também um espaço de afirmação social, ostentando os irmãos eleitos para a mesa as suas varas nas festas, muitas vezes em prata, que lhes conferiam o estatuto e os restantes as suas capas, diferenciando-se assim dos demais. Por outro lado, as suas mesas de reunião, geralmente anexas aos respetivos altares, eram um local de encontro privilegiado, ali se trocando informações e, inclusivamente, fazendo negócios. O visitador da sé do Funchal regista, e.g., em 1601, ter visto nas mesas das confrarias, durante as missas, ajuntamentos de algumas pessoas que “se encostam a praticar com os estão nelas sentados, no que dão torvação e se ocasionaram já desordens”. Para evitar esses encontros, que perturbavam os atos religiosos, determinou, sob pena de excomunhão, “que mais se não juntem nem encostem a praticar nas ditas mesas” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 33, fls. 30-30v.). As questões de prestígio social de uma confraria incluíam igualmente a aproximação às autoridades eclesiásticas, como era o caso dos elementos do cabido que, como membros de um órgão coadjuvante do prelado, especialmente numa diocese com longos períodos de sé vacante, motivavam as confrarias a solicitarem constantemente a sua presença, palavra e proteção. Na sequência das Constituições de D. Jerónimo Barreto e da implantação da organização tridentina, o cabido deliberou inclusivamente, em 1584, “não irem daqui por diante a uma solenidade de confraria, fora das da Sé, sem que pelo caminho se dessem dois mil réis, fora a esmola da missa e dos ministros que se vestem para ela, que será o que somente costumam dar” (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, 151v.-152). Nos primeiros anos de fundação da sé do Funchal, não devem ter funcionado ali confrarias, pois as primeiras teriam sido instituídas na velha igreja de N.ª Sr.ª do Calhau e lá continuaram a funcionar, salvo a do Santíssimo Sacramento, obrigatória em todas as igrejas matrizes, que em 1566 já tinha altar próprio na sé, dado então como do Santo Sacramento (Sé do Funchal). Esta confraria só oficializou o seu compromisso no séc. XVII, mas no século seguinte arvorava-se na mais antiga da sé, com início logo da primeira metade do XVI, anterior ainda a 1515, data que depois várias delas citam como a da sua fundação, o que se referia, com certeza, à vaga intenção de se reunirem como tal, longe de toda a oficialização a que foram posteriormente obrigadas. Nesse quadro, talvez se tenha igualmente instalado, pela mesma altura, a confraria de S. Miguel Arcanjo, anjo protetor de Portugal, cujos confrades alegavam a sua fundação também em 1515. O arcanjo S. Miguel era então devoção muito especial da casa real portuguesa e de D. Manuel em particular, pelo que logo após a instituição da sé do Funchal seria lógica a fundação de uma confraria dessa evocação na catedral, o que, a ter-se verificado, não foi, no entanto, no quadro institucional que determinou depois o Concílio de Trento. Nesse quadro, somente bastante mais tarde, em 1572, a mesma veio a ser instituída e associada aos santos irmãos padroeiros dos sapateiros, provavelmente para, juntando as duas devoções, ganhar um outro peso económico. Mas tal também alegaram depois as confrarias de S. Jorge e de S. Roque. Em 1602, requeriam os “mordomos da confraria do Bem-aventurado S. Roque sita na sé da cidade do Funchal da ilha da Madeira, que no ano de 1521, por causa do grande mal da peste, que o povo da dita cidade padecia”, se juntaram as autoridade da cidade e, lançando sortes, saíra por padroeiro Santiago Menor (Voto da cidade do Funchal), “ao qual logo dedicaram casa e votaram por si e por seus sucessores fazer-lhe a festa cada ano”, o que, como já escrevemos, só veio a ocorrer depois. Acrescentam ainda os mordomos que “logo tomaram juntamente por seus protetores os Bem-aventurados S. Sebastião e S. Roque” e que a câmara ficara de apoiar economicamente as suas festas. Acontecia que a câmara apoiava as festas de S. Sebastião “cada ano, por ordinária, na renda da imposição dos vinhos”, com vinte mil réis, pelo que requeriam ao rei que o mesmo se passasse com a sua confraria, ao que o rei acedeu a 25 de abril de 1603 (Ibid., avulsos, mç. 22, doc. 24). No entanto, uma coisa seria a Confraria de S. Sebastião, instalada numa capela da câmara do Funchal, e outra seria a Confraria de S. Roque, instalada na Sé, mas o Rei aceitou as razões evocadas. Em carta do bispo D. Fr. Fernando de Távora (c. 1510-1577), datada de 15 de junho de 1572 e escrita em Lisboa, pois que nunca foi à sua diocese, mandava o prelado que se levantassem mais dois altares no transepto, dado que os existentes eram poucos para o serviço da Sé, prevendo-se a instalação de mais duas confrarias, cujos estatutos enviou depois. Não foram, no entanto, enviados diretamente ao cabido, como seria lógico, mas para os confrades das Confrarias de S. Miguel e, posteriormente, da Ascensão do Senhor, que os apresentaram, depois, para aprovação ao mesmo cabido. A Confraria de S. Miguel e dos santos irmãos Crispim e Crispiniano, aos quais tinham os sapateiros do Funchal obrigação de mandar “cantar missa no dia” 24 de outubro, dia que lhes era dedicado, foi instituída oficialmente por aprovação do prelado de 26 de agosto de 1572, ordenando-se-lhe que para ela fizessem um “retábulo muito bom” (Ibid., avulsos, liv. 2, fls. 114-115). O assunto foi apresentado depois ao cabido, em reunião na sacristia, a 29 de setembro, pedindo os membros da confraria para se servirem do altar de S.to António, no qual “pudessem fazer sua confraria, com sua mesa e oficiais”, obrigando-se os suplicantes ao encargo do “ornato” e da festa anual do seu santo protetor. Prometiam os confrades de S. Miguel, S. Crispim e S. Crispiano também recompensar o cabido com “a esmola acostumada que dão por missa, que é de mil réis de pensão, além da esmola que se costuma dar ao sacerdote e ministros que os visitem”, entre outros compromissos. O auto foi assinado no transepto da sé, sobre o altar da Ascensão (Ibid., liv. 2, fls. 117-118). A situação indica desde logo um aspecto importante: que os altares eram do cabido da sé, que sobre os mesmos exercia absoluto controlo, assim como uma coisa era a institucionalização da confraria, da responsabilidade do prelado, e outra era o seu funcionamento, da responsabilidade do cabido. Talvez daí o pormenor do auto ter sido assinado no braço oposto do transepto, onde estava então o inicial altar da Ascensão. A confraria veio a funcionar talvez de início e como pediram, no altar de Santo António, mas depois em altar montado na parede nascente da mesma capela, na sequência do altar de S. Roque, que já existia em 1566 (FRUTUOSO, 1968, 347) (Saque dos corsários ao Funchal). Em 29 de outubro de 1572, instituiu-se a Confraria da Ascensão do Senhor, de “irmãos nobres”, cujo pedido a D. Fr. Fernando de Távora partiu de “um nobre da casa d’el-rei” e da qual foi primeiro reitor Gaspar Mendes de Vasconcelos, por certo o interlocutor em causa, chegando a instituição da confraria ao cabido na mesma forma da de S. Miguel. A confraria pretendia celebrar e instalar-se na capela de Santana, referindo o bispo, em Lisboa, que tinham a obrigação de fazer retábulo e obras “conforme suas possibilidades” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, fl. 115), o que não entendemos bem, dado já existir um altar da evocação da Ascensão. As contrapartidas em relação ao cabido eram também nos mesmos termos das anteriores. Os confrades da nova Confraria da Ascensão do Senhor, pouco tempo depois, entre 1573 e 1590, fazendo jus à condição de “irmãos nobres”, encomendariam ao célebre pintor Fernão Gomes (1548-1612) o retábulo para o altar, das melhores tábuas e com as maiores dimensões existentes não só na sé como em toda a ilha, dado possuir mais de três metros de altura. Em 1603, em princípio, temos informação também da existência de uma Confraria de S.to António na Sé. O assunto parece ter sido despoletado por um milagre ocorrido na aluvião do primeiro de dezembro de 1601, conforme escreve Henriques de Noronha. Segundo este autor, nesse dia a Ribeira de João Gomes transbordou e começou a inundar a igreja do Calhau, chegando a “quatro palmos de água, quando os sacerdotes e seculares mais zelosos se arrojaram a salvar o Santíssimo Sacramento e as imagens”. Com a de Santo António se abraçara “Diogo Barbosa, ourives de oiro e a depositou em sua casa”, reparando então “que tinha a cor do rosto desnudada, os olhos elevados ao céu, vermelhos e chorosos, com algumas lágrimas que tinham corrido sobre o Menino Jesus”. A imagem foi depois levada para a igreja de Santiago, posterior matriz de Santa Maria Maior, e “repetiu o Santo outra vez as lágrimas e [foi] justificado o sucesso, primeiro pelo vigário-geral, António Moniz da Câmara, e logo pelo prelado, o venerável bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos”, pelo que, ouvido depois “um conselho de teólogos”, foi lavrada sentença sobre o milagre e a mesma publicada a 12 de janeiro de 1602 (NORONHA, 1996, 338-339). A 23 de maio de 1603, a pedido da Confraria de S.to António da Sé e da congénere de N.ª Sr.ª do Calhau, D. Luís Figueiredo de Lemos, ordenava que fosse “festa de guarda o dia de Santo António” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, doc. 18). A confraria deveria estar em instalação e, com o falecimento do prelado, não se deve ter passado à sua oficialização com estatutos, pois não se volta a referir a Confraria de S.to António da Sé até aos finais do século, quando os mordomos pediram ao Rei a reforma do altar e, na desmontagem do antigo, na tarde de 20 de fevereiro de 1697, o pedreiro Teodósio Pestana caiu de cima do mesmo. O pedreiro salvou-se por ter conseguido agarrar-se à corta do lampadário, tendo o sucedido sido considerado um milagre e lavrando-se auto em 1702 (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 4, doc. 20). Estas organizações eram detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, especialmente no Funchal. Administravam prédios arrendados e foros, que tinham herdado com determinadas obrigações pias, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, e não só, constituindo os juros uma das suas principais fontes de rendimento. Não admira assim que a principal preocupação das autoridades religiosas fosse o controlo das contas e dos elementos colocados à frente das confrarias. Cite-se, e.g., o “instrumento de obrigação de juro a retro”, assinado na casa do cabido da sé a 5 de setembro de 1697, entre o Cón. Pedro Bettencourt Henriques, em nome da Confraria do Amparo, e o P.e Daniel Gonçalves Jardim, por si e em representação da sua mãe e irmãos. A confraria emprestava 100$000 réis com um juro anual de 6$250 réis, “em dinheiro de contado”, “que é por razão do estilo da praça, de 6 e 4 por cento”, isto é 6,25 %. Como garantia, os devedores hipotecavam diversas propriedades na freguesia da Ponta do Pargo, cultivadas de vinhas, árvores de fruto e inhame (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 21, doc. 5). As confrarias estendiam-se, entretanto, por toda a cidade, com sede nas igrejas matrizes, mas também pelos conventos da cidade e da ilha, tal como pelas freguesias rurais e respetivas matrizes, estando também, no entanto, pontualmente sedeadas em determinadas capelas isoladas, as ermidas. Porém, o movimento de doações e de encargos, face à concentração populacional na área do Funchal, quase não tem comparação com o que se passa no resto da ilha. O P.e Francisco Vaz da Corte, vigário de S. Pedro do Funchal, e.g., a 3 de dezembro de 1608, deixou à Confraria do Santíssimo da sua igreja uma naveta de prata para o incenso, “no valor máximo” de 20 cruzados; mas também 15 cruzados à congénere Confraria da Sé e 2$000 réis à da Candelária de S. Pedro, para a ajuda do retábulo; e 2 cruzados por ano à do Bom Jesus da sé, impostos numa fazenda que tinha na Carne Azeda (VERÍSSIMO, 2000, 390). No séc. XVIII, algumas confrarias do Convento de S. Francisco do Funchal funcionavam quase como se se tratassem de casas de penhores, o que aliás acontecia com quase todas as restantes da ilha, mas aqui de forma institucional e oficial, registando o empréstimo, inclusivamente na secretaria do governo em S. Lourenço. A 23 de março de 1757, e.g., o P.e Manuel Franco Herédia, de Machico, solicitou um empréstimo a esta confraria de 20$000 réis, com um juro anual de 1$000, apresentando como penhores um cordão de ouro e um par de sevilhanas, avaliados em 38$950 réis (Id., Ibid.). O Convento de S. Francisco do Funchal detinha uma excecional importância na vida social insular e era tradição, e.g., entre os finais do séc. XVIII e os meados do séc. XIX, os governadores, entrarem para membros da Confraria de N.ª Sr.ª da Soledade como “Irmão Protetor e Presidente da Confraria”, após tomarem posse. O último foi o prefeito e Cor. Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, com a mulher, “a Ilustríssima e Excelentíssima Senhora D. Anna Mascarenhas de Athaide”, que assina o termo a 14 de março de 1835, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da Mesma Confraria” (ABM, Governo Civil, liv. 246, fl. 71). O Convento de S. Francisco do Funchal, entretanto, foi extinto e desocupado por forças militares, a 9 de agosto do mesmo ano de 1834, às ordens do mesmo prefeito, que pouco depois mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Entre os finais do séc. XVI e os inícios do séc. XVII instituíram-se assim confrarias um pouco por toda a ilha, sendo comum, inclusivamente, as pessoas pertencerem a várias confrarias instituídas em várias igrejas, entretanto também abertas a mulheres. Nos meados do séc. XVI, e.g., já se detetam nove confrarias na freguesia de Santa Cruz, sendo ainda criadas no século seguinte as de S. Benedito, dos Santos Passos e da Ordem Terceira de S. Francisco. O testamento de Filipa de Sousa, de 1680, benfeitora da Misericórdia daquela vila, declara que era irmã das Confrarias de N.ª Sr.ª do Rosário, dos Santos Passos, N.ª Sr.ª da Piedade, de S.to António e de S. Benedito. Outra benfeitora, Catarina de Ornelas, tinha declarado, em 1658, que era irmã de N.ª Sr.ª do Rosário, S.to António, Nome de Deus e S. Bento do Convento, que, cremos, era no Convento da Piedade de S.ta Cruz, tal como também aí seria sedeada a dos Irmãos Terceiros (Convento da Piedade de Santa Cruz). A instalação das confrarias no norte da ilha foi mais tardia e difícil, dada a escassez de recursos e o isolamento geral dos pequenos núcleos populacionais. A exceção vai para a freguesia de S. Jorge, com uma certa liderança naquela costa, que logo nos inícios do séc. XVI, a 4 de dezembro de 1515, era dotada com um importante conjunto de alfaias enviadas de Lisboa. Pelos provimentos das visitas da primeira metade do séc. XVII, publicados pelo P.e Silvério Aníbal de Matos, antigo pároco de S. Jorge, temos muitas informações sobre a vivência das confrarias, então montadas sem estatutos superiormente aprovados. Tal terá sido o caso da Confraria do Santíssimo Sacramento, que teria resultado de um privilégio dos reis de Portugal a essa freguesia para celebrar a Festa do Corpo de Deus no seu dia próprio e à qual deveriam concorrer os eclesiásticos das restantes paróquias do Norte. Nos provimentos da visita de 20 de julho de 1647, refere-se um pedido feito pelos irmãos dessa confraria, que dado se terem “comprometido a dar um arrátel de cera cada um, em cada ano para a dita Confraria e os gastos que se fazem com os padres na Semana Santa”, pretendiam colmatar parte dessa despesa com a posterior venda da cera “para pagamento dos ditos padres” (MATOS, 2000, 16), solicitação não atendida pelo visitador. As festas da Semana Santa, a que deveriam acorrer os demais vigários da costa norte, os quais, nesta época, se limitavam praticamente só ao de Santana e a alguns outros que, entretanto, se encontrassem na área, levantaram sempre inúmeros problemas. Na visita de 1636, refere-se que “alguns fregueses se queixam da opressão que tinham em darem de comer aos padres que vinham fazer a festa e que antes lhes queriam dar dinheiro seco” a cada um deles, “pelos três comeres da véspera, do dia e do seguinte”. Nessa altura o visitador estabeleceu então a verba de $450 réis, “os quais lhes darão os mordomos de seus bolsos, não lhe dando de comer”, entendendo que tal dinheiro deveria sair “das esmolas das confrarias”. Entretanto, também o vigário de S. Jorge entendia que deveria ser pago pelo trabalho acrescido desses dias, tal como acontecia aos outros padres, acabando o visitador doutor Lucas Gonçalves Correia, a 18 de agosto de 1650, por entender que deveria ser igualado “na benesse com os vigários das outras paróquias”, até por “saber cantar” e “pelo trabalho dos tais dias, porque conforme sua obrigação, não está obrigado a tanto quanto a devoção cristã se tem aumentado nas procissões, paixões e mais cerimónias da dita semana” (Id., Ibid., 17). A festa do Corpo de Deus, no entanto, envolvia grandes custos e, na visita de 23 de julho de 1681, o cónego Dr. Marcos da Fonseca Cerveira, “informado que os mordomos do orago desta igreja, sendo seis, tinham muitos gastos para assistirem nela à festa do Senhor S. Jorge, mas também em dia de Corpo de Deus”, determinava uma nova articulação dos encargos. Assim, deveriam eleger-se dez mordomos, “a saber, seis para a festa de S. Jorge e quatro para assistirem com o sustento aos padres que vierem para a procissão do Corpo de Deus”, repartindo os encargos por um número superior de fregueses, “para que lhes seja aliviado o gasto” (Id., Ibid., 18). Teria sido na sequência do aumento dos encargos sobre os fregueses, que vinha de uma anterior visitação, que, logo em 1643, “algumas pessoas devotas e zelosas do serviço de Deus” se queixavam ao visitador, o licenciado Francisco Rebelo, vigário da Ponta do Sol, “que se extinguiram nesta igreja de alguns anos a esta parte, algumas confrarias e devoções que nela havia”, pelo que se não faziam as festas a alguns santos, entendendo-se que era “falta muito notável em um povo tão cristão”. O visitador insistia então perante “todos que de novo tornem a ressuscitar as suas antigas devoções, e se ofereçam a servir e festejar os santos, que seus pais e avós com tanta devoção festejavam”, acrescentando: “E obriguem os mesmos Santos a intercederem por eles a Deus Nosso Senhor na Sua Glória” (Id., Ibid., 17). A inicial igreja do calhau de São Jorge tinha altar-mor e dois altares colaterais ou laterais – um dos quais, provavelmente, servindo de altar do Santíssimo –, devotados ao Bom Jesus e a Nossa Senhora da Encarnação. Embora não encontremos referências concretas à articulação interna da matriz, a referência a três altares e as determinações de instituição de confrarias com as devoções do Bom Jesus e de Nossa Senhora da Encarnação levam a pensar já se encontrarem levantados, claro que sem a qualidade dos que viríamos a conhecer na matriz da Achada. As visitações referem ainda a necessidade de constituição de uma confraria do orago da freguesia, o que era obrigatório na sequência das determinações do Concílio de Trento, que funcionaria depois no altar-mor com essa evocação. Nesse quadro, nos provimentos da visita de 1631, o licenciado Francisco de Aguiar determinava “ordenar a Irmandade do Bom Jesus” de modo a que tivesse os seus compromissos devidamente assinados, tal como os da irmandade de Nossa Senhora da Encarnação, para serem assinados e terem “licença do Ordinário”. Os compromissos teriam sido mais ou menos elaborados, pois, 10 anos depois, na visitação de 11 de julho de 1641, o mesmo licenciado Francisco de Aguiar atendia a uma súplica dos irmãos da Confraria de Jesus, que pediam que se “lhes baixasse a pensão de cento e cinquenta réis que todos os anos pagam à confraria, em razão do compromisso da irmandade” para um tostão, ou seja, $100 réis, pelo que o visitador assentou que nessa “parte revogo o dito compromisso e mando que daqui em diante paguem somente um tostão” (Id., Ibid., 16). Mais tarde, nos provimentos de 20 de julho de 1647 do licenciado Simão Gonçalves Cidrão, era de novo determinada a organização da confraria do orago da freguesia: “Mando ao Reverendo Vigário que ordene com os fregueses que haja Irmandade da Confraria de S. Jorge” (Id., Ibid.). Os confrades, em princípio, não elaboravam de forma detalhada os estatutos das suas confrarias, facto de que se queixou, nos meados do século seguinte, o bispo D. frei João do Nascimento (1741-1753) em visitação pessoal a esta e às outras freguesias, mandando então que esses fossem elaborados por toda a ilha, daí resultando a grande parte dos estatutos que conhecemos. Na visita de 1647, também foram registadas outras prescrições referentes à organização económica das confrarias, já determinadas nas Constituições Sinodais de alguns anos antes: “E para melhor governo das confrarias e para que cessem as queixas de se dizer que se salvam os mordomos ou outras pessoas dos sobejos delas, ordeno que se faça uma caixinha de três chaves, dentro da qual se lançará todo o dinheiro e um livro em que se irá assentando o que à confraria pertence”. As indicações do visitador contrariavam em princípio as vigentes depois nas confrarias da Madeira, que determinavam que as chaves ficassem na posse do vigário, do procurador da igreja e a outra de “quem o reverendo vigário e procurador parecer” (Id., Ibid.). Na maioria das confrarias que conhecemos, a maior parte com estatutos dos meados do séc. XVIII, as chaves ficavam com o juiz da confraria, o tesoureiro e o escrivão, embora as duas últimas funções fossem muitas vezes e alternadamente ocupadas pelo vigário da freguesia. O visitador determinava ainda que a “caixinha” deveria estar “em outra, dentro da igreja ou na parte que aos três parecer mais segura, a qual se fará dentro de um mês” (Id., Ibid., 17). Desconhecemos se chegou a ser feita nessa altura a “caixinha” em causa, só havendo depois referência a uma arca das três chaves, mas para todo o serviço da freguesia. A especial devoção da freguesia de São Jorge, no entanto, deveria ser a de Nossa Senhora da Encarnação, devoção que aliás se manterá depois na igreja da Achada. Assim, o cónego Cidrão, na visitação de 1647, faz um provimento curioso, mandando abrir “uma fresta de quatro dedos em largo, e um palmo pouco mais ou menos em comprimento” na porta principal da igreja, “para que os devotos vejam a Senhora e santos e se encomendem mais a eles com mais fervor e devoção”. Uma das referências mais interessantes nos provimentos é a prática penitencial para expiação dos pecados, especialmente nas sextas-feiras da Quaresma e, muito especialmente, na Quinta-feira Santa. Nos provimentos de 1641, estabelece o visitador, sem referir quais as penitências, “que os que se disciplinarem em Quinta-feira das Endoenças ou Sexta-feira da Quaresma, o não façam por entre as mulheres, da porta travessa para cima” (MATOS, 2000, 16-17), donde se deduz ficarem as mulheres dessa porta para a frente e os homens para trás. Tomando como exemplo as confrarias do Porto do Moniz, as mesmas só se teriam instalado verdadeiramente nos finais do séc. XVII, facto de que se queixavam amargamente os visitadores. A Confraria do Santíssimo de N.ª Sr.ª da Conceição, e.g., ainda não estava instalada em 1666, determinando o visitador a sua montagem com a escrituração de um livro onde constassem as entradas de irmãos, bem como a receita e despesa da irmandade. A confraria estava montada nos finais do século, tendo aderido à mesma os principais proprietários locais, mas não era acessível aos restantes fregueses, dado o pagamento de uma cota de $600 réis anuais. Vieram assim a surgir as Confrarias de S. Sebastião, dos Fiéis de Deus, que utilizavam uma bandeira de Misericórdia, mas que pertenciam ao Santíssimo, tendo de ser alugadas, e cujas cotas eram de $060 réis anuais, e ainda uma Confraria das Almas. A Confraria das Almas seria acusada pelo visitador de 1685 de não cumprir as suas obrigações, quer no acompanhamento dos defuntos quer na satisfação das esmolas, que nesta Confraria era de $200 réis. O visitador advertia, inclusivamente nos seus provimentos, que quem não cumprisse o pagamento das “esmolas” deveria ser expulso, excetuando os que, devido à sua pobreza, não pudessem pagar. A situação não melhorou nos anos seguintes e o visitador de 1689 mencionava que as Confrarias das Almas eram das principais em qualquer igreja, ainda que, no Porto do Moniz, parecesse “não haver almas nem quem se lembrasse delas” (RIBEIRO, 1996, 230). Os provimentos parecem não ter tido especial efeito, pois, em 1691, voltava-se a registar em novo provimento que deveria haver um livro de contas e das entradas dos irmãos. Os problemas económicos, quase mais que os religiosos e de costumes, parecem atravessar grande parte dos provimentos das visitações. Assim aconteceu na igreja de S. João Batista da Fajã da Ovelha, em 1678, quando o cónego Marcos Cerveira condenou os empréstimos a juros praticados pelas confrarias e ordenou ao vigário que cobrasse todas as importâncias em dívida, “assim por escritos, como sem eles”, porque eram necessárias à “obra do retábulo” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal, Provimentos e Visitações..., mf. 144-145, fl. 113-113v). Situação diversa era a vivida na cidade do Funchal, onde, embora sempre ocorressem queixas de falta de verbas, as confrarias proliferaram e, com as mesmas, os luxos das suas festas e dos seus altares. Temos assim ainda na Sé as Confrarias do Senhor Jesus, por reforma da de Santa Ana, de N.ª Sr.ª do Rosário e de N.ª Sr.ª do Amparo, devoções comuns aos finais do séc. XVI e inícios do séc. XVII, da Conceição, dos meados do séc. XVII, de S. José e, ainda, a das Almas, com compromisso aprovado pelo bispo, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), a 6 de maio de 1713, e a do Senhor dos Passos, dos meados do séc. XVIII. A Confraria de S. José, incorporando os oficiais carpinteiros e pedreiros, mas também entalhadores e outros, deve ter seguido o exemplo dos sapateiros, instituídos em confraria em 1562, e a dos ferreiros, instituídos em 1572, mas só lhe conhecemos documentação da segunda metade do século seguinte. Um alvará de 23 de dezembro de 1688, assinado pelo arcediago do Funchal, doutor António Valente de Sampaio, por ordem do então vigário geral e provisor do bispado, José Mendes de Vasconcelos, autoriza oficialmente os irmãos da Confraria de S. José a “levarem Cruz em Procissão”, acrescentando que a mesma deveria ser acompanhada de “pelo menos, seis irmãos” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., Regimento Geral das Capelas…, liv. 19, fl. 33). Por essa época, os mordomos da Confraria de S. José da Sé exploravam uma pedreira no Cabo Girão. O problema da pedra regeu-se, durante o Antigo Regime, pelo alvará manuelino de 9 de fevereiro de 1502, que liberalizava o seu corte e utilização enquanto “bem comum”. A primeira dificuldade teria ocorrido nos finais do séc. XVII, sendo objeto de uma sentença do juiz de fora da Ilha, Manuel de Sousa Teixeira, datada de 28 de março de 1696, a favor da Confraria de S. José da Sé do Funchal e contra o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos. O padre entendia possuir direitos contra a provisão citada, “alegando o direito de posse sobre as terras da pedreira de Cabo Girão” e “exigindo um tributo de 600$000 réis, por cada barco de pedra caída e 400$000 réis, de cada barco que se tirasse da mesma pedreira”. O despacho do juiz de fora foi confirmado pelo ouvidor Teotónio Martins de França, a 24 de maio seguinte, e, mais tarde, pelo ouvidor Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723), a 18 de abril de 1698. Subiu ainda à Relação de Lisboa, onde voltou a ter o mesmo despacho, a 15 de dezembro de 1699, assim como o do juiz da Coroa, a 13 de fevereiro de 1700, ficando tudo registado na Alfândega do Funchal (BNP, reservados, cod. 8391, fls. 29-33) e na Câmara do Funchal (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 247v.), devendo o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos pertencer à família dos instituidores da capela de S.to António visto conseguir fazer todos estes recursos. A relevância desta confraria no séc. XVIII é notória pelo recurso à eleição como juízes dos representantes da família dos Bettencourt de Vasconcelos e Sá, onde se sucedem, em 1760, João José de Vasconcelos Bettencourt (1715-1766), reeleito nos anos seguintes, e, em 1768, a irmã, a “Ilustríssima e Excelentíssima Senhora Dona Guiomar Madalena de Sá e Vilhena” (1705-1789), como vem escrito, que assina a partir daí as atas, sendo esta situação, a de uma mulher aparecer como juiz de uma confraria de homens, neste caso dos pedreiros e carpinteiros do Funchal, única na Ilha, com muito pouco paralelo em Portugal (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 25-27, 29 e 32). D. Guiomar assinaria os termos de eleição até 1779, inclusivamente o termo de 17 de maio de 1771, onde se levantou na mesa o problema do empréstimo das cortinas da confraria e onde se deliberou “que nenhum escrivão nem tesoureiro emprestassem as cortinas”, sob pena de pagar “a condenação imposta pela visita”, repor às suas custas as mesmas e “ser lançado fora do serviço” da confraria. Excetuavam-se, no entanto, os empréstimos “a S. Francisco, ao Corpo Santo, ao Rosário, a Santa Clara e ao Carmo” (Ibid., fl. 34). A morgada faleceu em 1789, pelo que na eleição desse ano, a 19 de março, era eleito para juiz o sobrinho, o “Ilustríssimo Senhor” João de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt de Sá Machado (1733-1790), que assina a folha já com uma letra algo trémula (Ibid., fl. 54), falecendo pouco depois. A 15 de novembro de 1790, fez-se eleição para novo juiz e, “na falta de seu pai”, como filho mais velho, foi eleito o coronel Luís Vicente de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt Sá Machado (c. 1752-1798), que assina com uma letra de excecional segurança para a sua época (Ibid., fl. 56). O coronel faleceria em 1798, mas só em 1800 a confraria deve ter conseguido que aceitasse a eleição para juiz o futuro conde de Carvalhal (1778-1837), embora não assine a folha (Ibid., fl. 66). O futuro conde de Carvalhal continuaria a ser oficialmente juiz da confraria até 1808, quando já saíra da ilha em 1802. Na eleição de 20 de março de 1809, presidida pelo cónego João Francisco Lopes Rocha, que assina o termo, já não se faz referência à eleição de qualquer juiz, o mesmo acontecendo na seguinte, a 20 de maio de 1814, presidida pelo mesmo cónego, agora também arcediago, que já nem assina a ata. Como se pode ver pelo espaçamento das datas das eleições, as velhas confrarias dos ofícios agonizavam lentamente, não havendo referência a mais eleições até aos meados do séc. XIX. As confrarias religiosas foram confrontadas ao longo do séc. XVIII com uma complexa situação de centralização do poder régio. Ao longo desse século, as relações da corte portuguesa com Roma foram um longo "braço de ferro", tentando-se transformar a igreja em Portugal numa “igreja portuguesa”, logo sob a superintendência da coroa e dentro de um processo de centralização do poder régio. Em relação à Madeira, numa primeira fase, assistimos à tentativa do recrudescimento do papel da Inquisição e, depois, à campanha rigorista da “jacobeia”. A campanha dos bispos jacobeus na Madeira assentou num especial rigorismo de interpretação dos preceitos religiosos, com enfâse na prática da confissão, na educação do clero, na moralização geral dos costumes e na centralização do poder episcopal, com o primeiro prelado jacobeu, D. frei Manuel Coutinho (1715-1741), e, após o terramoto de 1748, com o seu sucessor, D. frei João do Nascimento. Os princípios por que se orientavam os jacobeus assentavam no propósito de fazer observar escrupulosamente os preceitos religiosos do catolicismo, tanto ao nível do clero como entre os seculares. Tentavam adequar os costumes das populações à ética cristã, aprofundando uma piedade mais espiritual e interior do que ritualista, estimulando a prática quotidiana da “oração mental”, o regular exame individual da consciência, a correção fraterna dos que pecavam, a frequência dos sacramentos, com particular destaque para a confissão, a mortificação dos vícios e das paixões desordenadas, os jejuns, o desprezo do mundo, a pobreza no vestir e a frugalidade no comer. Nesta mesma linha de cuidados, surgia a necessidade de se observarem as contas das confrarias, das quais não se encontravam registos em quase lugar nenhum, o que se atribuía à incúria de um clero pouco vigilante, depois das capelas e legados pios, dos conventos e recolhimentos, etc. As reações dos clérigos ficaram traduzidas no relatório que o vigário geral apresentou ao bispo em finais de 1725. Nesse relatório foram apresentadas as queixas dos ministros eclesiásticos por serem obrigados a fazer exame, a apresentar habilitações “de genere”, a entregar a tempo os róis de confessados, a dar as contas das confrarias, etc., o que de todo estranhavam, “dizendo que o rigor era demasiado” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., doc. 270, fls. 195-202). A situação da freguesia de S. Jorge face às novas diretivas emanadas pelo bispo D. frei Manuel Coutinho está bem patente na visita de 10 de outubro de 1727 feita pelo doutor Silvestre Lopes Barreto, vigário e ouvidor eclesiástico da colegiada de N.ª Sr.ª da Conceição da vila de Machico, àquela freguesia, quando era ali vigário o P.e António Fernandes Barradas. Regista o visitador nos seus provimentos que achara não existir “livro do tombo das missas e obrigações e pensões anexas”, mas “tão-somente uma pauta muito diminuta”, ordenando que “em termo de seis meses” se fizesse o respetivo tombo, onde se haveria de registar os encargos, legados e obrigações, que se era preciso ir sempre atualizando. O mesmo se deveria passar em relação a cada uma das confrarias e às ermidas, acrescentando ainda que, em relação às missas, havia então determinações muito específicas do prelado para se não aceitarem “pensões de missas perpétuas”, salvo se com seu consentimento (MATOS, 2000, 17). Teceu em seguida o visitador uma série de considerações sobre as confrarias, com especial destaque para o que se encontrava regulado pelas Constituições Extravagantes sobre a eleição dos novos mordomos, de que se deveriam fazer os termos de eleições, as responsabilidades dos tesoureiros e do vigário, que deveria aprovar as contas do tesoureiro, etc. Explicava ainda os inconvenientes resultantes da falta de registos, como era o caso “do grande número de missas caídas, a que era obrigada a dizer a Confraria de N.a Sr.a da Encarnação desta igreja, que todas mando satisfazer para alívio e bem das almas dos testadores” (Id., Ibid.), onde se deveriam encontrar as inúmeras missas deixadas no testamento do P.e Tomé Caldeira. Silvestre Lopes Barreto refere ainda a vistoria que fizera no Livro da Arca das Três Chaves, onde achara “tudo na mesma confusão, no lançar do dinheiro na dita arca e nos termos do dito livro”, voltando a insistir na separação das entradas e das saídas, assim como nos títulos dos bens das confrarias. Sobre os fregueses de S. Jorge, refere o visitador que fora informado de que, devendo ir ouvir missa, chegavam atrasados, pelo que determinava “que dobrando o sino pela segunda vez” viessem todos para a igreja, para que à terceira vez que tocassem os sinos já estivessem todos reunidos para ouvir o vigário, sob pena de multa em $200 réis “para a fábrica da igreja”. O visitador também fora informado de outras infrações no adro da igreja, “ajustando contas e armando conversas, de que muitas vezes resulta haver pendências e gritadas”, tudo contribuindo para o descrédito dos lugares sagrados. Os infratores deveriam ser multados também em $200 réis, mas pagos no aljube (ABM, S. Jorge, Registo de Provimentos..., mf. 681, cota 58, fls. 1-3v.). A seguinte visita ocorreu a 28 de agosto do seguinte ano de 1728, então pelo bispo D. Fr. Manuel Coutinho, cujos provimentos se iniciam com uma ríspida admoestação ao P.e António Fernandes Barradas, na medida em que este não tinha elaborado o “tombo da sua igreja”, nem o que dizia respeito às “missa e obrigações”, ameaçando-o “com pena de suspensão do seu ofício” se não desse princípio àquela obra e continuasse a ter somente uma “pauta das missas”. Dava-lhe assim mais seis meses para elaborar os tombos, após o que viria a S. Jorge o juiz dos resíduos para “tomar conta das capelas nesta paróquia” (Ibid., fls. 35v.-36v.), mas o vigário, quase de imediato, era afastado. O projeto de D. frei Manuel Coutinho era o de “plantar nova cristandade” no território insular, como se registou nas memórias que mandou elaborar sobre o seu trabalho na Madeira. A delimitação da área de manobra das confrarias, a tentativa de chamar à diocese o controlo absoluto sobre os legados pios, envolvendo os bens e seus encargos, criou uma profunda crispação que, aliás, foi apanágio de todos os episcopados jacobeus, como o do seu sucessor, D. João do Nascimento, dentro de um programa de ação rigoroso e reformador, que raramente conheceu desvios. Data deste episcopado a reforma de uma parte substancial dos estatutos das confrarias madeirenses e a criação de uma nova confraria, a dos Escravos de Nossa Senhora do Monte, a 6 de abril de 1750, “dia em a Igreja Católica solenizou os Prazeres da mesma Senhora”, na sé do Funchal e em todas as mais igrejas, revelando bem o título adotado o espírito jacobeu estirado no compromisso de serem “escravos servos” (ABM, Confrarias, liv. 53, fl. 1). Numa segunda fase, temos a centralização pombalina, que levou à extinção da Companhia de Jesus, “um estado dentro do próprio Estado”, à delimitação das entradas nos conventos e ao controlo económico das confrarias. O governo da Diocese foi então entregue a D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que se pautou por um certo autoritarismo, certamente inspirado no gabinete pombalino e, provavelmente, no facto de ter iniciado o seu episcopado na Madeira, assumindo o governo de armas. Assim, em 1760, o juiz dos resíduos e provedor das capelas, Pedro Nicolau de Bettencourt Freitas, queixava-se do bispo e do vigário-geral pela prisão arbitrária e vexatória do seu filho João José Bettencourt e Freitas e do seu irmão Francisco José Bettencourt e Freitas. O problema da provedoria e do juízo das capelas, onde constavam os registos das missas das confrarias, mas não só, arrastou-se com as interferências contínuas do prelado em tudo o que dissesse respeito a esse assunto e não pararia de extremar até aos finais do século, pois era impossível cumprir os legados pios estipulados, por vezes, centenas de anos antes. Entre as principais lesadas estavam as confrarias, cuja vida assentava, principalmente, nos legados pios, assunto que em breve passava para o foro civil, sob a tutela do governador. No quadro da centralização régia, em 1766, procedera-se à incorporação na coroa das capitanias, sendo estas extintas na déc. de 90 juntamente com as ouvidorias. Procedeu-se também a reformas na organização religiosa, na tentativa de reduzir as regalias, posse de bens e a percentagem de membros pertencentes ao clero em relação à população ativa, aspectos que começaram a ser sensíveis logo em 1766 com a retirada progressiva da superintendência do bispo sobre as confrarias, passando nessa altura a aprovação dos estatutos para a coroa, assunto que levaria anos a resolver. Foram igualmente colocados em causa os beneficiados da diocese, ordenando, uma vez mais, o rei, a 27 de julho de 1768, o envio de listas completas e atualizadas de todos os beneficiados e de todas as colegiadas insulares. Acumulavam-se, entretanto, em Lisboa as queixas contra a ação do prelado e dos seus visitadores, principalmente na área dos resíduos e capelas. Uma das queixas foi emanada pela câmara da Ponta do Sol, em novembro de 1779, e assinada por todos os vereadores. A queixa era acompanhada de um relatório assinado pelo então provedor José Vicente Lopes de Macedo Correia e referia as violências e vexames praticados pelo visitador eclesiástico, bacharel Manuel Roque Ciríaco de Agrela, com os tesoureiros e administradores das confrarias e irmandades da Ilha, narrando circunstanciadamente vários casos (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 542 e 553). As queixas repetiram-se no ano seguinte, novamente pelo provedor e então também pela Câmara Municipal do Funchal, envolvendo, genericamente, os abusos e excessos de jurisdição frequentemente exercidos pelo bispo e seus visitadores, vigários e párocos sobre as confrarias. A situação não deixou de piorar nos anos seguintes e, com a chegada do novo governador João Gonçalves da Câmara Coutinho, em 1777, o ministro Martinho de Melo e Castro (1716-1797) teve mesmo de admoestar o governador e o bispo. A carta abre com um pedido de desculpas: “Vossa Senhoria desculpe a um ministro velho, com alguma experiência do mundo, a sincera liberdade do que lhe disser; na certeza de que toda ela nasce do ardente desejo que tenho de que sirva bem”. Ao longo de 16 páginas, não deixando de criticar a ação do bispo, “demasiado zeloso”, e do vigário geral, “mais pronto a atear conflitos, que os resolver”, admoesta o governador para que não se repetissem mais questões entre as duas autoridades, “para que nem Vossa Senhoria tenha o desgosto, nem eu o pesar, de que elas cheguem à Real Presença” (Ibid. doc. 71, fl. 15). A nomeação para novo bispo do Funchal recaiu em D. José da Costa Torres (1741-1813), prelado que iria enfrentar corajosamente, acrescente-se, uma das situações políticas e económicas mais complexas da história portuguesa e insular, com o rescaldo da guerra de independência das colónias inglesas da América do Norte, de 1775 a 1782, e, depois, as ideias maçónicas que iriam conduzir à Revolução Francesa, em 1789. A ação do prelado estendeu-se depois, mais uma vez, ao juízo da provedoria dos resíduos, sobre a qual exerceu algumas pressões que parecem ter-se estendido ao “conteúdo das contas”, pelo que o tribunal da mesa da consciência e ordens, em 16 de outubro de 1780, ordenou ao governador: “fareis ouvir por escrito ao reverendo bispo do Funchal” sobre esse assunto, devendo depois comunicar os resultados aos deputados daquela mesa (ABM, Governo Civil, liv. 535, fls. 13v.-14). Em causa estava a superintendência régia sobre o juízo dos resíduos e capelas, estabelecida deste a vigência do gabinete pombalino, sobre o que, logicamente, a Igreja mantinha as maiores reservas, entendendo ser assunto seu. Tentou a igreja madeirense nesses anos recuperar algum espaço de manobra perdido anteriormente através de uma nova imagem, de acordo com os gostos da época, dentro da tentativa de recuperação do antigo protagonismo regional do prelado. As obras envolveram a abertura de duas grandes janelas na fachada e a montagem de uma varanda corrida e, interiormente, o alargamento das paredes das naves laterais para que aí tivesse lugar a remontagem da maioria dos altares das confrarias, até então no transepto. O problema foi a sequente montagem dos altares, a que as confrarias, de certa forma, resistiram. Para fazer face à situação, D. José da Costa Torres tentou acabar com as antigas irmandades de ofícios, que haviam levantado parte dos altares do transepto, por provisão episcopal de 18 de abril de 1792, alegando a sua “irregular ou nula administração”, passando os seus documentos e receitas para a fábrica da sé, que se encarregou do cumprimento das respetivas obrigações pias. O assunto, no entanto, não era linear e as confrarias tinham, de certa forma, personalidade jurídica independente, pelo que, embora não afrontando o prelado, os novos altares só vieram a ser montados nos anos seguintes. Tal como no continente, também na Madeira se viveu um clima de grande agitação com a proclamação da Constituição de 1820, a reação absolutista de 1823 e a Carta Constitucional de 1826. Se, por um lado, era ideia dos liberais a completa separação entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa e a delimitação de outras áreas, como a que conduziu à extinção imediata dos conventos, por outro lado, tiveram que contemporizar com toda uma tradição ancestral, definindo a Carta Constitucional que os portugueses apenas podiam professar a religião católica romana, credo oficial do reino. A partir desta data, algumas confrarias iniciam timidamente a sua reformulação, enviando os seus novos estatutos ao governo de Lisboa, como a Confraria de S. Miguel da Sé, que os reforma em 1819 e em 1839. Com os acontecimentos políticos que se desenrolaram com a implantação do governo constitucional, e que protelaram o preenchimento das dioceses em Portugal, houve uma rutura entre o governo português e a cúria romana. Assim, o bispo D. Francisco José Rodrigues de Andrade (1761-1838) saiu da Madeira em maio de 1834 e só em junho de 1843 foi confirmado D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1810-1862) como bispo do Funchal. Chegado ao Funchal no ano seguinte, foi durante o seu episcopado que ocorreram as sedições contra os calvinistas e, com a chegada à Madeira de José Silvestre Ribeiro (1807-1891) em finais de 1846, também o bispo D. José Xavier saía, nos inícios de 1848, do Funchal, ficando a sé vacante até meados de 1859. A atuação dos seguintes governadores foi algo mais contemporizadora e a da Igreja mais tradicional. Dentro de uma nova segurança, tentou então recuperar algumas das suas estruturas, incentivando as velhas confrarias, como podemos ver no Livro da Confraria de São José. Por ata de 20 de fevereiro de 1859, tentou-se assim a reativação da confraria. Tinha então falecido o último tesoureiro, António Rodrigues Santos, pelo que os confrades rogaram a presença do cónego João Frederico Nunes, “atual Mordomo da Reverenda Fábrica” da sé, para que presidisse à sessão, “fazendo as vezes de conservador, como é costume na confraria”, pedido a que o mesmo anuiu, tomando assento na mesa (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 73). Até então, no entanto, nunca tinha sido costume nesta confraria a figura do “conservador”, embora existente noutras confrarias, como na do Senhor Bom Jesus, citado desde 1735 nos estatutos da confraria e entregue a um capitular, e na Confraria de S. Miguel, lugar entregue ao próprio deão. Compareceu então à eleição da nova mesa da Confraria de S. José o genro do falecido tesoureiro, que pediu à mesa “em seu nome, pelos mais herdeiros, suas cunhadas e sogra” que tomasse conta das alfaias, livros e mais objetos pertencentes à confraria, à guarda do seu sogro, e que os desobrigassem dessa responsabilidade, o que, depois de conferido, foi aceite. Foi então eleito o cónego para conservador, “por escrutínio secreto”, tendo este aceitado. Foi ainda solicitado ao mesmo cónego que escrevesse ao 2.º conde de Carvalhal (1831-1888) participando-lhe de que havia sido eleito para juiz da confraria, “como tem sido feito aos Maiores de Sua Ex.ª”, colocando-se em primeiro lugar o nome de D. Guiomar, depois João de Carvalhal, o filho e coronel Luís Vicente de Carvalhal “e, ultimamente, o falecido Exmo. Sr. Conde de Carvalhal”, que aliás falecera em 1837, ou seja, 22 anos antes (Ibid., fl. 74). Foi ainda decidido aceitar como novos irmãos os oficiais dos diferentes ofícios de carpinteiro e pedreiro, “que espontaneamente comparecerão e declararão que queriam entrar”, perdoando-se-lhes, “por essa ocasião somente”, “a joia do costume” ($400 réis), ficando a pagar anualmente $100 réis no dia da festa do orago. Seguidamente, foram então eleitos o tesoureiro, o escrivão e os 12 mesários e mordomos (Ibid., fls. 73v.-74v.). O livro apresenta depois algumas folhas em branco e, a folhas 77, uma interessante cartela, embora algo ingénua, encimada pelas armas do 2.º conde de Carvalhal e com o termo de eleição do conde, assinada por “O Irmão da Mesa servindo de secretário o fiz e assino”, António Joaquim Abreu Jardim. Mais à frente, aparece a lista dos “Irmãos antigos” (Ibid., fls. 79-82v.), somente 10, e a lista dos novos irmãos, que entraram naquele dia 20 de fevereiro de 1859, discriminados com o nome completo, estado e morada: 113 membros, o que não deixa de ser espantoso. A 5 de maio do mesmo ano, ainda entraram mais 17 irmãos, a 26 de fevereiro do seguinte ano de 1860, mais 5, a 28 de abril, mais 1 e, a 29, mais 2. No entanto, as folhas seguintes estão em branco, sinal de ter sido “sol de pouca dura”. As confrarias de ofícios tiveram um importante papel de coesão social no Antigo Regime, estabelecendo normas de comportamento, disciplinando e desenvolvendo hierarquias, bem como socorrendo e prestando assistência, especialmente aos doentes, pobres e defuntos. Com a centralização do poder régio, a partir do gabinete do marquês de Pombal, o seu controlo passou a ser objeto de disputa entre a Coroa e a Igreja, sendo progressivamente cerceada a sua autonomia, que se apagou discretamente ao longo do regime liberal. As velhas confrarias dos ofícios extinguiam-se, assim, progressivamente ao longo da segunda metade do séc. XIX, resistindo somente as sacramentais, ou seja, as do Santíssimo e as dos oragos de cada freguesia. Pontualmente, no entanto, subsistem outras, renascendo também algumas dentro de uma certa liturgia de celebração, no âmbito, hoje exclusivo, das paróquias. Não é, pois, de excluir futuros renascimentos de associação e devoção que nos ultrapassam, como a adesão de mais de 100 novos membros à confraria de São José da sé em 1859.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

Religiões Sociedade e Comunicação Social

crenças e superstições

A comunidade madeirense, como qualquer outra, caracteriza-se por ter fé, crer em entidades superiores, adoptar modos de manifestar essa atitude de em relação àquilo em que acredita. Mas, por um lado, temos de distinguir as crenças, de acordo com uma fé considerada verdadeira ou aceitável, assente em princípios bem definidos e tidos por inabaláveis certezas, que também podem comportar conjuntos de devoções complementares de grau menos importante, e das superstições que sobrestimam aspectos de pormenor ou de fantasia que se insinuaram e se consolidaram nas convicções individuais ou colectivas, ou podem ter tido origem numa experiência de vida que tenha marcado profundamente o grau de persuasão pessoal numa direcção completamente inesperada. Ao contrário do que possamos pensar, as crenças, as crendices e as superstições foram em grande parte herdadas de patrimónios muito antigos, transmitidas ao longo de gerações, saltando fronteiras, adaptando-se às várias maneiras de aceitar e interpretar a vida e o mundo que constituem as religiões, e também os mitos e as lendas. Na Madeira, a religião comporta uma muito vasta quantidade de crenças e devoções, de “crendices” (na expressão do Visconde do Porto da Cruz) e superstições. No final, não foi esquecida a muito intensa afirmação do “sebastianismo” na Madeira, com a crença no regresso de D. Sebastião e na Ilha de Arguim. Palavras-chave: superstições; crenças; romarias; festividades religiosas; tradição popular.   Os conceitos de crenças e superstições são muitas vezes tomados como iguais ou confundem-se um com o outro. A palavra “crendices” tem uma conotação mais próxima de “superstições”, enquanto “crenças” se apresenta como mais adequada e próxima das exigências de disciplinas como a etnologia e antropologia, e diz respeito às interações dos indivíduos ou das comunidades com as muitas entidades e as várias modalidades religiosas, sobrenaturais ou consideradas mágicas, numa relação de aceitável legitimidade ou paralegitimidade quanto à doutrina e às práticas por parte de uma coletividade. É perfeitamente aceitável empregar os três termos nesta breve exposição, desde que bem explicados: crenças, crendices e superstições. Na Madeira, nos começos do terceiro milénio, as pessoas são, na sua grande maioria, crentes, i.e., dizem acreditar nos preceitos da religião, predominantemente católica, que, por tradição familiar ou sociocultural ou por opção pessoal, lhes são transmitidos ou que cada um descobre por sua própria iniciativa. Se os fundamentos doutrinais assentam em canónicas certezas e, portanto, constituem verdades tidas por irrefutáveis, a fé conduz a conceções, atitudes, sentimentos básicos e correlatos que impregnam ou ditam os comportamentos. Cada um crê e age segundo uma doutrina, seja ele católico praticante ou não, protestante ou adventista. Também haverá os agnósticos e ateus, mas em minoria. A fé é vivida por cada um, mas pode também manifestar-se coletivamente em sessões de culto, devoções, festividades. Interessa acrescentar que é certo que cada um desses indivíduos pode intimamente ser sensível a modalidades mais particulares e de pormenor que não constituem o todo principal da doutrina e que, portanto, não vão prejudicar ou diminuir a solidez da adesão à fé ou doutrina nos seus pilares ortodoxos. Podem, pelo contrário, contribuir até para uma maior robustez e afirmação dessa religião ou dessa doutrina. Neste caso, podemos falar de crenças. Todavia também pode haver desvios que consistem em sobrevalorizar aspetos de menor importância ou falsa representatividade, que levam a acreditar e atuar de modo mais discordante com uma fé esclarecida (aqui podemos falar de crendices). Também pode acontecer que o indivíduo ou mesmo a comunidade se apegue voluntária ou involuntariamente a conceitos irracionais ou mesmo a um não explicável preconceito, a um pormenor, a uma atitude ou a um aspeto da realidade, aos quais atribui exagerado significado e especial interpretação. Então, estamos a falar de superstições. De acordo com o que fica dito, adiantamos que a fé, e falamos principalmente da católica, se afirma para os madeirenses fundada nos principais instrumentos e ensinamentos transmitidos pela família, pela Igreja, pela sociedade: os mandamentos, as orações principais e, entre elas, o Credo, que quase todos vão aprender na catequese. Neste cômputo breve, saliente-se a importância da celebração do Natal como a celebração e festividade por excelência da devoção madeirense. Durante esta época do ano, que inclui desde o Advento até aos Reis e mesmo ao dia de S.to Amaro, são muitas as manifestações religiosas, mas também as da devoção que penetram as casas das famílias, sem esquecer as de natureza mais profana. No calendário litúrgico, a Madeira valoriza o Natal muito mais do que a Páscoa, o que tem sido explicado pela influência importante que a espiritualidade franciscana exerceu no início do povoamento e ao longo dos séculos. A sensibilidade à família, à natureza e à fraternidade marcou muito o sentimento religioso dos madeirenses, que valorizam mais o período natalício, conduzindo a uma atmosfera de emoção e de festejo da simplicidade, dos valores da família e da solidariedade social. As entidades de devoção são o Jesus Menino, a Sagrada Família, os pastores e os Reis Magos. A lapinha ou o presépio, com a rochinha, perfazem uma natureza acolhedora e afetiva, que motiva os afetos do encontro entre gerações, entre vizinhos e entre todas as camadas sociais. Ao mesmo tempo, ergue-se Jesus no trono na escadinha onde as laranjas, os peros, as searinhas, as cabrinhas e o alegra-campo contextualizam o ambiente festivo. Também a morte do porco com todo o seu ritual proporciona momentos de festejo e de convivência da família e dos vizinhos. Neste período, limpam-se a fundo as moradias, enfeitam-se as lojas, as pessoas e as famílias criam uma atmosfera de saudação e de prendas. O Natal, com os bolos de mel, os licores, os enfeites dos interiores das casas e varandas, as rituais visitas aos avós e outros familiares com que não se conviveu durante o resto do ano, reveste-se do significado mais comovente e mais feliz da existência do ilhéu. É, de facto, um tempo de festa, não só no campo, mas também na cidade. Na devoção, ficam como marcos a Missa do Galo, ainda nalgumas paróquias as missas do parto e, nas festividades de carácter profano, a consoada, a abertura das prendas e a continuação da atmosfera festiva pelos restantes dias do ano, sobretudo a noite de S. Silvestre, até ao dia de S.to Amaro, em que se varrem os armários. A sensibilidade dos fiéis madeirenses também se manifesta no período da Quaresma e Páscoa. As famílias passaram a preocupar-se menos com a aquisição das bulas que isentam da proibição comer carne durante o período da Quaresma. No entanto, há sempre o cuidado de, nas sextas-feiras, a culinária privilegiar o peixe e o bacalhau em nome do espírito da época. Na Semana Santa, principalmente na quinta-feira, as montras das lojas do Funchal ficam tradicionalmente decoradas com grande preocupação estética, mediante arranjos realizados com os artigos nelas vendidos e com muita quantidade de flores. Na devoção durante esse período, a população acorre às manifestações religiosas, não só aos principais atos litúrgicos, mas sobretudo à procissão do Senhor dos Passos. As procissões e as romagens também constituem de modo mais espetacular a afirmação exteriorizada e adesão forte dos crentes. Há que considerar as crenças no âmbito da religião, mas que dizem respeito a devoções, a festividades, a conceções do sobrenatural. Entre elas, salientam-se os cultos às entidades principais, com celebrações, devoções e romarias, como a devoção a Jesus Cristo (Senhor Bom Jesus, na Ponta Delgada; Senhor dos Milagres, em Machico) e, em todas as paróquias, a tão aguardada Festa do Senhor. Destacam-se ainda as festas à Virgem Maria (Nossa Senhora do Monte, no Monte, Nossa Senhora do Livramento, no Caniço) e ao Espírito Santo (com um conjunto de festividades e rituais, incluindo a visita ao domicílio dos fiéis). Também são importantes as devoções a santos, como S. João, S.to António, S. Pedro, S. Roque, e S.to Amaro, aos patronos das paróquias. A devoção das primeiras sextas-feiras, o uso do escapulário de N.a S.a do Carmo e a prática de rezar o terço têm também muitos seguidores. Outro ritual frequente é o indispensável sinal da cruz pelo qual se protege religiosamente o começo de muitas atividades ou se abençoam pessoas, animais e alguns produtos (o pão, e.g.), se assinala o respeito pelo espaço sagrado (ao entrar na igreja, ao passar em frente dela ou do sacrário, ou diante de um cemitério) e se assegura a proteção dos incautos dos assaltos do diabo, dos maus espíritos e das feiticeiras. Passando a considerar as “crendices”, está muito enraizado na população o medo do diabo (o grima, o demónio, o papão), das almas penadas, dos espíritos maléficos, das feiticeiras.“Embora a civilização tenha destruído muitas crenças populares outrora vulgares na Madeira, ainda hoje existem algumas entre nós, que nos parecem dignas de menção por estarem bastante arreigadas no ânimo do nosso povo” (SILVA e MENESES, 1998, I, 331-332), dizem os autores do Elucidário Madeirense, e passam a enumerar algumas dessas que julgam continuarem mais persistentes: “A crença nas feiticeiras, nas bruxas, no mau olhado, no ar mau e no poder que têm certos indivíduos de curar com palavras ou de adivinhar o futuro por meio de cartas, encontra-se não só nos campos, mas também na cidade, sendo de notar que há pessoas consideradas cultas, que não abandonaram ainda inteiramente certas alusões que nos transmitiu o passado” No final, têm, contudo, o cuidado de contrariar a opinião de todos quantos pensam que a Madeira “continua a ser muito atreita a crendices e a superstições, reconhecendo mesmo que na Europa, mesmo nos países mais adiantados, há maior número de superstições e de crendices do que na Madeira”. Mais adiante, prosseguem os dois estudiosos com mais pormenores sobre o que foi discriminado: “As feiticeiras no entender do povo, têm por mister fazer toda a casta de malefícios, e aparecerem algumas vezes sob a forma de uma botija a rolar nos caminhos, a qual se transforma numa mulher, que obriga a pessoa que provocou a transformação a conduzi-la às costas até casa; as bruxas têm por principal encargo chupar de noite o sangue das crianças, malefício este que pode no entanto ser evitado, colocando-se uma tesoura aberta sob o travesseiro da cama da pessoa que se quer proteger” (Id., Ibid., 332). Para afastar as feiticeiras e os espíritos maus, não há como exclamar em voz alta: “Tosca marrosca, olhos na cara e freio na boca”. A seguir, os autores do Elucidário referem que o Campo Grande, no Paul da Serra, é o local das reuniões das feiticeiras presididas pelo demónio que toma a forma de bode, sendo os fogos-fátuos interpretados como presença ou mesmo baile das feiticeiras. No Elucidário Madeirense, são ainda referidas as crendices sobre o poder de algumas pessoas adivinharem o futuro com cartas de jogar e lançando sortes. E aludem às artes de curar com palavras (ar mau, mau olhado e bucho encostado), aos cuidados a ter quando, no campo, se ouvem os cães a uivar, o que denota a presença de maus espíritos, de feiticeiras ou do diabo nas redondezas. A maneira de os fazer calar é muito simples e eficaz, afirma a população: colocar no chão um sapato ou uma bota de sola para cima. Há três épocas em que as crendices e as superstições são ainda em maior número pelo S. João, pelo S. Pedro e pelo S.to António: “É na véspera de S. João e de S. Pedro que qualquer pessoa pode conhecer uma parte do destino que lhe está reservada. O rapaz ou rapariga solteiros, que à beira das ave-marias encher a boca de água e se puser à escuta, conhecerá pelo primeiro nome de homem ou de mulher que ouvir qual o nome da pessoa a quem há-de ligar um dia os seus destinos, sendo possível chegar ao mesmo resultado por meio de sortes lançadas em água, se alguma delas se abrir durante a noite. Um ovo lançado num copo também pode dizer muito, se o deixarmos exposto ao ar na noite de S. João, e se nesta noite a água refletir a imagem de uma pessoa ao baterem as 12 horas, é porque uma pessoa tem a vida garantida até à festa do mesmo santo no ano imediato” (Id., Ibid.). O Visconde do Porto da Cruz também regista uma das sortes, na noite de S.to António, e igualmente para saber como se chama o futuro namorado: “Quando uma rapariga quer saber o nome daquele que virá a ser seu marido, salta três vezes e em três direções diferentes a tradicional fogueira de Santo António, deixando cair no braseiro uma moeda. Ao outro dia, antes de romper o sol, procurará a moeda entre as cinzas para a entregar ao primeiro pobre que encontrar e a quem perguntará o nome” (PORTO DA CRUZ, 1954, 9) E prossegue: “As sortes não se limitam às questões de amores. Deitam-se sortes para tudo! […] Colocando debaixo da cama um prato com terra, outra com água e um terceiro com ouro e indo ao acaso tatear, logo se sabe o destino: – se tocar na terra é a morte, se for na água é viagem e no ouro a fortuna. […] Colocar debaixo do travesseiro, três favas – uma inteira, outra meia descascada e a terceira descascada. Ao bater a última badalada da meia-noite apanha-se uma das favas ao acaso; se for a inteira é que a vida seguirá na opulência; se for a meia descascada é a mediania e aquela que não tem casca significa a pobreza.” (Id., Ibid., 17). As três conclusões mais habituais nas sortes nos dias de S.to António e sobretudo de S. João, depois da interpretação feita pelo entendido ou entendida no que respeita às formas que assume o ovo que se quebra e deita para dentro do copo com suficiente água (copo e água, têm de ser bem transparentes, para que tais formas/figuras surjam bem definidas) ligam-se às três principais formas possíveis que a clara assume dentro da água – uma igreja, um caixão ou um barco. As bentas também merecem referência desenvolvida no Elucidário: “As bentas são ramos de árvores e arbustos colhidos na manhã de S. João, quando, diz o povo, todas as plantas têm virtude, à exceção da malfurada. Colocados à porta ou dentro das habitações, anulam os efeitos do mau-olhado e evitam muitos sortilégios a que está sujeita a humanidade. O alecrim é de entre as plantas existentes na Madeira, a que mais usada é para combater os artifícios diabólicos” (SILVA e MENESES, 1998, I, 332). Muitas pessoas fazem-se acompanhar de uma cruz feita com dois pequenos ramos de alecrim, que põem no bolso ou dentro da carteira, para proteção. Segundo a tradição, além do alecrim, a arruda também pode ser usada para afastar os maus espíritos ou o ar mau, plantada em vaso ou no jardim. Voltando à época festiva de S.to António e de S. João, um costume da predileção dos madeirenses, como aliás doutras gentes de Portugal, é saltar à fogueira, num simpático gesto de saudação de todos, sobretudo dos jovens, ao novo período do ano, com a chegada do solstício, no ensejo do aperfeiçoamento dos indivíduos e do universo. Aliás, nesse período solsticial, os dois elementos de eleição são a água e o fogo, ambos bem significativos da purificação e renovação da natureza. Muitos madeirenses acreditam que “os espíritos voltam ao mundo quando por cá lhes ficou qualquer coisa para cumprir. Para libertar as almas de promessa por cumprir e que as faz penar diz-se – ‘se é sinal de morto venha outro’ – e no caso de vir outro sinal então logo vem ao pensamento o modo como se procederá” (PORTO DA CRUZ, 1954, 18). Grande estima é dedicada aos animais, sobretudo os de criação, que merecem os cuidados no dia a dia, mas também os que, acompanhando a população na vigilância, podem proteger, auxiliar ou simplesmente acompanhar. Nos de criação, são muitos os cuidados para tratar das aves de capoeira, das cabras e principalmente do porco, cuidar da vaca que, na Ilha, fica resguardada no palheiro, o que é claramente devido às características orográficas da paisagem, mas também devido ao receio dos olhares dos estranhos que poderão exercer má influência no gado. Todo o cuidado é pouco para os proteger do mau-olhado, principalmente no que toca ao porco que vai ser um trunfo para a economia da família ao longo do ano seguinte. E os animais são objeto de outras atenções se se verificar moléstia ou estado débil que faça o dono suspeitar de qualquer mau espírito, mau ar ou olhar pérfido, recorre-se a processos ao alcance de todos com utensílios adequados, e.g.: colocam-se chifres de boi ou de carneiro, garrafas vazias e ramos de alecrim amarrados aos paus do chiqueiro e um carvão escondido num buraco do muro ou do barranco; para quebrar as invejas dos que cobiçam um suíno, esconde-se com o carvão um prego torcido e um pedaço de alecrim. Mas os cuidados com outros animais são levados muito à risca: os ovos das galinhas não podem ser chocados de modo que os pintos nasçam na fraqueza da lua. Também os cães são muito apreciados, porque podem constituir preciosa ajuda na defesa dos humanos e dos seus pertences, mas também como exteriorizada indicação de momentos de revelação do mundo dos maus espíritos, da presença do diabo e das feiticeiras, que denunciam com o seu uivar. A convivência com animais, alguns bem pequenos, pode fornecer sinais a serem interpretados de maneira que o homem esteja mais consciente do que se passa ou vai passar-se ao seu redor e sugerir soluções para os problemas e dificuldades quotidianas. Assim, abelha que entra em casa é boa nova, uma mosca varejeira é visita, um besoiro é mau agoiro, borboleta preta é má notícia, borboleta branca anuncia felicidade, uma aranha de manhã é agoiro; ao meio-dia preocupações e à noite esperanças, uma pomba branca que entra em casa traz paz e ventura, casa onde haja baratas terá dinheiro, se um rato atravessa o caminho à nossa frente prevê mau resultado no que se vai fazer, se um morcego bate nos vidros da janela, por cada pancada é um ano de vida que resta a quem ouvir, um fio de teia de aranha que atravessa um caminho é um resto de linhas da Virgem, animal que nasce em noite de S. João traz varinha de condão. E outras, não menos insólitas: quando as abelhas ferram, curam o reumatismo, o sangue da crista de galinha preta, espalhada na pele, chama os vermes intestinais, ingerir formigas faz apurar a vista, friccionar o casco da cabeça com moscas frita em azeite de baga de louro faz nascer o cabelo, beber chá de esterco de pombos faz bem à asma, a sopa de caracóis faz bem às forças perdidas e dá abundância de leite às amas, comer o coração cru das andorinhas dá bom fôlego, matar um gato faz atrasar a boa sorte sete anos, e matar um bisbis é pecado. Interpretam-se os voos das aves, principalmente da cagarra e da coruja; o aparecimento de uma aranha preta, se é de manhã ou à noite; o cantar do grilo que pode ser benfazejo para uns, maléfico para outros; um gato preto que aparece a atravessar a estrada ou a rua é sinal de mau prenúncio. No que toca ao convívio das crianças com alguns destes animais, o poisar de uma joaninha constituirá motivo de júbilo, e motivo para tentar agarrá-la, não para lhe fazer mal, mas para a guardar quase como talismã (“poisa, poisa, Maria Loisa …”); e os piolhos preocupam pais e familiares que, para alertar os miúdos a que tenham cuidado, dizem-lhes que, se não colaborarem em catá-los, os bicharocos podem arrastá-los a eles e às criancinhas até ao mar. Para os vegetais também há usos e interpretações. Como se disse anteriormente, o alecrim é considerado a planta por excelência do uso no ritual, dotada de poderes especiais. A arruda, assim como o alho, também ocupam um lugar importante entre as plantas protetoras; e o mesmo se diga do louro, preferido nas decorações festivas e nas preparações de culinária. Nas lapinhas, privilegia-se o alegra-campo, mas não podem ser esquecidas as searinhas (de trigo ou lentilhas) e as cabrinhas (daválias), ao lado das laranjas e dos peros. A significação das flores, na Madeira como no resto do território português, constitui um conjunto de códigos, que guardam uma linguagem variada e muito específica: o amor-perfeito significa pensamento; a camélia branca, pensamentos puros; a camélia vermelha, grandeza de alma; a camélia singela, arrependimento; o cravo simples vermelho, amor vivo e puro; o cravo seco, desprezo; a dália vermelha, teus olhos abrasam-me; a hera, amizade firme; o junquilho, desejo ardente; a laranjeira, castidade; o lírio branco, inocência; o lírio roxo, fogo de amor; a madressilva, laços de amor; a magnólia, simpatia; a margarida branca, sociedade; a margarida vermelha, responde-me; a papoila vermelha, alívio; a petúnia branca, convicção; a petúnia roxa, pouca confiança; a rosa amarela, infidelidade; a rosa branca, segredo; a rosa magenta, teus olhos perderam-me; a tulipa, declaração de amor; a urze, amor eterno; a violeta branca, promessa; a violeta dobrada, amizade; a violeta roxa, modéstia. Esta lista baseia-se em convenções da tradição que foram sobejamente divulgadas por folhetos de cordel e inspira mensagens trocadas entre namorados apaixonados ou desiludidos, assim como pode servir para a composição dos ramos em casamentos, aniversários e funerais. A figa que consiste em colocar o dedo polegar da mão entre o indicador e o médio faz parte dos gestos de proteção e suposta eficácia em momentos difíceis, sobretudo de arriscada decisão, para evitar alguma ameaça ou atrair alguma coisa boa. O Visconde do Porto da Cruz anota: “Quando se encontra um corcunda e para que ele traga a felicidade nesse dia, levanta-se a mão direita ao mesmo tempo que se faz uma figa dizendo: ‘– Ai Giba, ai Giba/Que entorta prá frente/Vai, vai diligente/E deixa-m’em paz/Golfinho Gibinha/Não mais me persiga/Aí vai uma figa/Nam olhes p’ra trás/Vai em nome de Maria Pandilha/E de toda la sua famila/Que nam enguices rico nem prove/Nem ninguém que o cáu covre – Amen”. E acrescenta: “A figa feita a um ‘Giba’ só se desfaz quando aparece uma farda e também não se deve ficar querendo mal ao Giba, que é para que a figa não perca o seu valor.” (PORTO DA CRUZ, 1954, 19-20). Um gesto que no passado era muito comum na Madeira, pelo menos entre os jovens, era o beliscão: quando se encontrava uma pessoa de cor e se estava acompanhado, dava-se um beliscão ao companheiro ou companheira, e pedia-se a realização de um desejo se a pessoa de cor fosse homem, e, pelo contrário, que se afastasse um mau sucesso se fosse mulher. Em Portugal, dar um passo com o pé direito é necessário quando se comemora o aniversário ou se entra no Ano Novo, na noite de S. Silvestre. E pedir a bênção ao pai, à mãe e a outros membros da família mais velhos, incluindo os padrinhos também e o sacerdote, era quase obrigatório: consistia em chegar a criança ou o jovem e mesmo o adulto ao pé da outra pessoa-autoridade e dizer: “Pai, a sua bênção”, sendo a resposta: “Deus te abençoe!” Os sonhos também ocupam um lugar especial nas crendices e superstições dos madeirenses. As interpretações seguem as da tradição, que constam das publicações pseudopedagógicas e didáticas da literatura de cordel (almanaques e livros de sonhos); e.g., sonhar com flores prevê morte de pessoa de família ou conhecida, sonhar com excrementos, dinheiro, ter sorte. No caso da Madeira, saliente-se a sua utilização para a previsão do resultado de alguns jogos, sobretudo a lotaria ou o jogo do bicho. A terminar, registe-se ainda um aspeto paralelo, o mito de D. Sebastião, e os que se encontram relacionados com ele, como o da ilha de Arguim ou ilha da esperança, situada numa concreta ilha submersa que alguns afirmam ter avistado de alguns sítios da Ilha (do norte e mesmo do sul, e.g. Câmara de Lobos e na Ponta do Sol), e que será um cenário idílico de ordem social, harmonia entre os seus habitantes, trabalho produtivo, grande abundância, beleza, saúde e paz, essa ilha que um dia se crê vir a emergir, substituindo a Madeira, que, assim, poderá desaparecer nas águas do oceano. Estes testemunhos manifestam a permanência de uma narrativa, abrangente ou fracionada em vários episódios, todos eles bem reconhecidos como estando ligados à crença sebástica, i.e., derivados da importação do mito do sebastianismo. Registamos, seguidamente, alguns testemunhos sobre esta matéria, recolhidos por universitários madeirenses junto de informantes para o Arquivo Digital de Literatura Oral Tradicional (ADLOT). O primeiro é uma pequena narração em que se encontram, como acontece frequentemente, algumas contaminações (no princípio, “São” por “Dom” ou “Rei”, o que resulta em curiosa variação): “São Sebastião veio de África durante a guerra para a Madeira onde se instalou. Foi avisado por um anjo que ia ser atacado. Então com um só golpe de espada formou o Curral das Freiras, onde se foi esconder dos inimigos. Quando estes chegaram viram que não conseguiam atacá-lo e desistiram, pois não havia maneira de lá entrar. A quantidade de rocha tirada pela espada foi posta onde é hoje a Penha de Águia. Dom Sebastião há de voltar um dia, e no dia que este voltar o ponto da Madeira vai ser as escadas da Igreja do Monte. Tem-se de andar sempre para a frente, pois se olharmos para trás ficamos em estátuas – ah/lembrei-me – Uma das ilhas vai afundar, ou a Madeira ou o Porto Santo, para se erguer a ilha onde está o rei Dom Sebastião” (ADOLT – Madeira; informante: Maria Estela Nunes Mota, 58 anos, Santa Cruz, 1993; coletores: Jordão C. R. Freitas e João Dário). Mais duas pequenas histórias narradas por uma mesma informante. A primeira: “Umas pessoas que vinham de Câmara de Lobos encontraram dois cavaleiros que lamentavam a dureza da sua vida. Aquelas acompanharam os viajantes. Chegados à Penha os cavaleiros desceram-na. Curiosos, os chavelhos seguiram-nos e viram eles [sic] entrar pelo mar adentro”. E a outra, semelhante numa circunstância, mas importante por introduzir a ilha de Arguim no cenário, ainda por cima situada em pleno Funchal: “Na manhã de São João umas pessoas que vinham de Câmara de Lobos para o Funchal com carga para o mercado, descansaram junto da Penha de França, ali na descida para a Pontinha. Viram uma terra, a terra de Arguim. Baixaram-se para atirar um punhado de terra, mas quando se levantaram a terra já tinha desaparecido” (ADLOT – Madeira; informante: Maria do Carmo Freitas, 60 anos, Eiras, Santa Cruz, 1993; coletor: Jordão C. R. Freitas). Outras narrativas consideradas lendas poderão ascender ao estatuto de mitos: o Cavalum nas furnas de Machico (autêntico Adamastor madeirense) e o Bicho do Cidrão.   João David Pinto Correia (atualizado a 01.03.2017)

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correios

A designação “correios” refere-se ao serviço que distribui e recebe a correspondência, cartas ou encomendas, entre o remetente ou pessoa que envia ou remete a carta (e.g., bilhete postal, vale, encomenda) e o destinatário (pessoa a quem é dirigia a carta ou encomenda), geralmente no respetivo domicílio. Por extensão, pode referir-se aos indivíduos que levavam as mensagens, como estafetas, de forma a fazê-las chegar, o mais rapidamente possível, ao destinatário. Significa, no singular, o edifício do serviço que recebe a correspondência e onde se organiza a receção das cartas ou encomendas, e o posterior envio e entrega aos destinatários, contra o pagamento de uma taxa ou selo. No caso do arquipélago da Madeira, o correio, enquanto serviço oficial, foi provavelmente abrangido pelo efeito decorrente da iniciativa de D. Manuel I, que, em 1520, criou o cargo de correio-mor, com carta passada a Luís Homem, que já anteriormente exercia funções ligadas ao serviço de correio. No entanto, a natureza insular e a longa distância que separava o arquipélago da Madeira da corte e dos centros de decisão deixam antever que, desde os primórdios do povoamento e da organização administrativa, os navios que aportavam ao Funchal eram os meios usados para fazer chegar as notícias e os documentos oficiais, nomeadamente ao cuidado de alguém que se encarregava de os transportar e fazer chegar ao seu destino. Com efeito, desde os primeiros documentos que estabeleceram a administração e o exercício do poder régio e do poder senhorial sobre as ilhas, existem notícias do envio e da apresentação de missivas por parte das instituições locais (câmaras), ou ligadas à capitania-donataria, a fim de obter doações, esclarecimentos e regulamentos para as diversas atividades económicas, administrativas e judiciais, prática que acompanhou, por certo, o primeiro século da história do arquipélago atlântico. Assim, podemos constatar essa prática do envio de emissários com cartas que seriam apresentadas ao Rei, ao donatário das ilhas, ou a alguma instituição sediada em Lisboa, a fim de transmitir petições, resolver demandas ou obter benefícios, concessões ou perdões em diversas instâncias da administração central (cf. os exemplos de cartas trocadas entre diversas entidades que podem ser referenciadas na documentação camarária do Funchal já desde o séc. XV). O mesmo aconteceria (embora de forma menos documentada) em termos particulares, nomeadamente com os comerciantes que, estando no Funchal, ou noutra parte do arquipélago, recorriam aos navios ancorados na baía para, na volta, enviarem e receberem notícias sobre os assuntos dos seus negócios. A utilização do transporte marítimo para o envio de correspondência estava igualmente prevista no regimento, datado de 1512, sobre a guarda do mar confiada aos chamados “guardas-mores da saúde” (VERÍSSIMO, 2000, 219-220), pelo qual estes oficiais se deviam ocupar da vigilância do desembarque ou da entrada de alguém nos barcos chegados à baía, sem exceção, sobretudo quando havia notícia de alguma epidemia, mas neste último caso não haveria contacto com os tripulantes ou viajantes do barco “nem mesmo para receber cartas ou mercadorias” (Id., Ibid., 220). O referido regimento incluía não só a vigilância das mercadorias em geral, mas também sobre as cartas transportadas no barco, que “seriam abertas e ficariam expostas ao sol durante uma hora”, a fim de prevenir qualquer contágio, devendo os guardas inquirir “sobre outros portos, junto dos destinatários da correspondência recebida”, pois as informações sobre qualquer epidemia, nos locais de onde eram provenientes as mercadorias, a correspondência e as pessoas em trânsito, poderiam ser preciosas para evitar a propagação ou o contágio no Funchal, porto de destino (Id., Ibid., 220). Os contactos com o estrangeiro, através do envio e da receção de correspondência, estão também presentes em diversas situações, tanto a nível privado como a nível oficial. As missivas que acompanhavam muitas vezes as encomendas e mercadorias circulavam em correio entre variados lugares, como a Flandres, a Holanda, a França, a Espanha, a Inglaterra, Itália, só para referir exemplos mais referenciados na documentação divulgada em diversos estudos sobre o comércio entre o arquipélago da Madeira e as praças europeias. A correspondência produzida por estrangeiros atesta a circulação de missivas numa rede de correio assegurado pelos navios de vários tipos que circulavam nas rotas atlânticas, nomeadamente entre a América e a Europa, passando pelos arquipélagos atlânticos portugueses, ou na rota das Índias Ocidentais, África e Europa, como fica patente em vários testemunhos compilados e publicados por António de Aragão. Com efeito, nos sécs. XVI, XVII e XVIII, o desenvolvimento do comércio e a presença de uma comunidade estrangeira mais numerosa fizeram com que os barcos, que demandavam a Ilha em busca do açúcar e depois dos vinhos, se tornassem os veículos de transporte das encomendas e das missivas para destinatários nacionais e estrangeiros. Este não era um serviço regular, antes resultava da resposta às necessidades de contacto com o exterior, podendo recorrer-se ao capitão do navio, ou a algum particular em trânsito entre o porto do Funchal e os portos de destino dos navios, para obter o transporte e entrega da carta, da encomenda ou do documento em boas mãos, ou seja, ao seu destinatário. Podemos inferir que as condições do serviço eram difíceis e a sua eficácia estava condicionada, quer pela morosidade, quer pelas dificuldades de circulação, terrestre e marítima, sujeita a intempéries, resultando daí a perda do correio enviado. A nível interno, a circulação de cartas ou encomendas era assegurada pelos particulares e pelas instâncias oficiais, com recurso aos meios terrestres e navais. Os caminheiros, os almocreves, os adelos, os barqueiros, os carreteiros, a exemplo do que acontecia no reino, eram meios usados pelos particulares e pelos organismos oficiais – no caso da Madeira, o exemplo mais conhecido é o das câmaras (que, inclusive, despendiam algumas verbas com o envio de cartas pagas a arrais de barcos e a caminheiros, pelos serviços de transporte e entrega de cartas em lugares mais distantes ou isolados). A título de exemplo, refira-se que, em 1609, se regista uma reclamação contra os arrais ou a tripulação dos barcos que “não dava as cartas às pessoas para quem se mandavam, antes as botava ao mar” (VERÍSSIMO, 2000, 191). Em termos oficiais, o cargo de correio-mor esteve sujeito à nomeação do Rei até 1606, data em que o Rei Filipe II o vendeu por 70.000 cruzados a Luís Gomes da Mata, primeiro correio-mor das Cartas do Mar, cargo que superentendia os serviços de envio de correio por via marítima. Segundo a entrada “Correios” do Elucidário Madeirense, o correio com serviço regular na Madeira iniciou-se cerca de 1662, com a nomeação para o cargo de tenente correio-mor, o qual deveria encarregar-se da aplicação do regimento e da execução do porte de cartas, provavelmente sob ordens e jurisdição do correio-mor das Cartas do Mar do reino, a quem tinha sido concedido anteriormente o cargo e tudo o que a ele dizia respeito. Assim sendo, o correio-mor era público, o que permitia que os súbditos pudessem utilizar os serviços através do pagamento para eles definido. No final do séc. XVIII, mais concretamente em 1797, por decreto da Rainha D. Maria I, teve lugar a incorporação do serviço postal na Coroa, mas não se sabe das implicações que a decisão teve na atividade no arquipélago da Madeira. No reinado seguinte, D. João VI, em 1821, procede à criação oficial do correio marítimo para os Açores e a Madeira. Será, no entanto, na segunda metade do séc. XIX, a partir da Regeneração, que se impulsionará uma melhor organização do correio a nível do país, com a implementação, em 1852, da reforma postal, que introduzirá alterações na organização dos serviços de correio, a que se juntará, em 1853, no reinado de D. Maria II, o início da utilização do selo postal adesivo. Em 1889, foi publicado um decreto sobre o serviço de vales do correio já implementado nos arquipélagos da Madeira e dos Açores. Já no séc. XX, depois da implantação da república, concretamente em 1911, o serviço do correio passou a ter autonomia administrativa e financeira, dando origem à Administração-Geral dos Correios, Telégrafos e Telefones, conhecida desde então pela sigla CTT, apesar das alterações à denominação oficial. A 23 de fevereiro de 1915, uma portaria isentava de franquia postal a correspondência de oficiais, praças e de outros elementos que integrassem as expedições militares com destino às províncias de Angola e Moçambique. Taxas especiais foram também fixadas para o transporte por correio de livros e fascículos de obras literárias ou científicas, impressos em língua portuguesa e editados em Portugal, com destino ao continente e ilhas adjacentes. Se o desenvolvimento do comércio e o turismo, com a consequente inclusão do arquipélago da Madeira nas rotas transatlânticas, dinamizaram a troca de correspondência particular e oficial, por seu turno, a emigração da Madeira para os mais variados destinos está igualmente ligada ao desenvolvimento dos correios. O séc. XIX e o início do séc. XX foram marcados pela diáspora madeirense, pelo que a circulação regular de navios entre os portos portugueses e de destino dos emigrantes era aproveitada para o envio de cartas e encomendas, por mãos de particulares ou ao cuidado dos responsáveis do navio, primeiro para o Brasil e para a América do Norte, bem como para a Antilhas inglesas, com especial destaque para Demerara (principal destino entre 1841 e 1889), a que acresce o destino das ilhas Sandwich. Certo é que muitos dos passaportes, quer dos finais do séc. XIX, quer das primeiras quatro décadas do séc. XX, têm, no respetivo processo, incluídas cartas enviadas do destino de emigração, a comprovar que o remetente tinha condições para chamar o destinatário (muitas vezes englobando toda a família), assumindo a referida carta a função de “carta de chamada”, que servia de comprovativo de que a pessoa ou pessoas designadas na mesma tinham condições para serem recebidas e terem assegurada a subsistência no local de destino de emigração, onde já se encontrava o familiar que tinha emigrado e que já tinha obtido residência, bem como condições de subsistência requeridas para poder “chamar” a sua família. Podemos referir que, durante a vigência do regime do Estado Novo (1933-1974), e apesar das restrições criadas, foi sobretudo após a Segunda Guerra Mundial que os destinos da emigração se alargaram, e cada vez mais: desde o Curaçau à Africa do Sul, da Venezuela à Austrália, e ainda a países da Europa, como a França e a Alemanha, sem esquecer a emigração sazonal para as ilhas britânicas do canal da Mancha. Assim, os correios viram a sua função institucional e social aumentar, como veículo de transmissão de notícias, de envio e receção de encomendas entre os que partiam e os que ficavam nas ilhas. A importância dos correios, nesta dimensão social e cultural, para os destinos da diáspora madeirense e portuguesa em geral, foi evidente, sendo progressivamente ultrapassada, desde o final do séc. XX, pelos meios de comunicação eletrónicos, nas suas diversas vertentes. Voltando a uma visão mais cronológica, e focando-nos no período do Estado Novo, no final dos anos 30, a crescente necessidade do desenvolvimento das comunicações como fator de crescimento económico e de modernização fez com que o sector dos correios se tornasse prioritário e fosse integrado na política de obras públicas. No caso da Madeira é de assinalar, como marco fundamental na história dos correios, a iniciativa de dotar a capital de distrito, o Funchal, com uma estação de correios condicente com o aumento da procura e a importância dos serviços. Esta iniciativa ficou patente na assinatura, a 21 de dezembro de 1937, da escritura celebrada entre a Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, presidida por João Abel de Freitas, e os CTT, representados pelo chefe dos serviços dos Correios e Telégrafos no distrito do Funchal, que formaliza a cedência pela Junta Geral, a título gratuito, de uma “faixa de terreno” com 624 m2, que confrontava com a Av. Arriaga (confrontando com o edifício do Banco de Portugal e em zona frontal ao edifício em que funcionava a Junta Geral do Distrito, logo, numa zona nobre e institucional da cidade). A construção do novo “edifício dos Correios” tinha em vista substituir as instalações onde funcionavam, já no ano de 1913, o serviço dos CTT, na referida Av. Zarco, conforme referia o Almanach Ilustrado, publicado no Funchal nesse mesmo ano. O negócio de cedência do terreno para construção do novo edifício foi realizado ao abrigo do despacho do ministro das Obras Públicas e Comunicações, de 29 de setembro de 1937, e do dec. n.º 22.257, de 25 de fevereiro de 1933 (ABM, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, cota 2348). Fig. 1 – Fotografia do edifício dos Correios, na Av. Zarco, aquando da fase final da sua construção.Fonte: http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2012/08/o-correio-em-portugal-11.html (acedido a 20 ago. 2015) O processo de construção dos edifícios dos CTT ficou ligado ao Arqt. Adelino Nunes (1903-1948), principal responsável pelos projetos de arquitetura deste tipo de edifícios, inclusive em Portugal continental. Estes tiveram em comum características tais como a funcionalidade do edifício e a adequação às linhas gerais da arquitetura oficial dominante durante os anos do Estado Novo, procurando conciliar o modernismo (na composição geométrica da volumetria do edifício, na composição das janelas da fachada, e no espaço interior), com o regionalismo (no uso da cantaria basáltica da região na fachada, e nas escadarias de acesso). Foi nessa linha que se inseriu a construção da estação de correios da Av. Gonçalves Zarco, no Funchal, projetada e realizada entre 1942 e 1950. A estação dos correios da Av. Zarco foi uma das últimas a ser construída, de acordo com os parâmetros da primeira fase do plano geral de edificações. A segunda fase, do início da déc. de 50, já não contou com o contributo do Arqt. Adelino Nunes, falecido em 1948. A estratégia de construções é alterada, enquadrando-se no contexto económico-financeiro dos planos de fomento iniciados em 1952, passando o Estado a arrendar as instalações em edifícios privados. Foi o que aconteceu com a maior parte das estações de correios do arquipélago da Madeira que, entretanto, foram instaladas nos arredores da cidade do Funchal, bem como noutros concelhos.   [gallery order="DESC" size="large" ids="14205,14209,14212"]   Ainda no que respeita à história dos Correios durante o Estado Novo, cumpre dizer que os Correios, enquanto organismo oficial, assumiram uma função que combinava a política e o sentido social, no âmbito da Guerra Colonial (1961-1974), no que respeita à iniciativa de isentar de franquia postal a correspondência dos militares destacados nas províncias ultramarinas e das suas famílias, e ainda das correspondentes voluntárias, chamadas madrinhas de guerra, conforme o estabelecido pela port. n.º 18.545, de 23 de junho de 1961, do ministro das Comunicações e do Ultramar, para o correio expedido do continente e ilhas adjacentes. A iniciativa do Movimento Nacional Feminino para apoiar os militares e respetivas famílias deu lugar à emissão dos aerogramas militares, tornada possível com a cooperação entre os CTT, os Correios, Telégrafos e Telefones do Ultramar e o Secretariado Geral da Defesa Nacional. Entretanto, em 1969 os CTT são transformados em empresa pública, com a denominação de CTT – Correios e Telecomunicações de Portugal, E.P. Em 1974, é de assinalar que teve lugar a viagem inaugural do primeiro barco expresso postal para a Madeira e os Açores. Em 1978, é adotado o código postal de quatro dígitos (sete dígitos em 1998), relacionados com a identificação dos concelhos dos destinatários da correspondência, desenvolvendo-se, na altura, uma campanha a nível nacional (Código Postal, Meio Caminho Andado). Nos anos 80, a empresa CTT introduziu inovações tecnológicas que foram progressivamente integradas nos serviços dos Correios a nível regional, como foi o caso do serviço de cobranças postais e da mecanização no tratamento dos objetos postais, e ainda do serviço da telecópia. Na déc. de 90, será a vez das máquinas automáticas de venda de selos e do lançamento do correio azul. A nível das inovações, já no séc. XXI, ocorreu o lançamento do correio verde (2004). Os anos 90 foram marcados, logo no início da década, pela separação das telecomunicações dos Correios, concretamente em 1992, e, no mesmo ano, os CTT assumiram o estatuto de sociedade anónima detida pelo Estado (CTT – Correios de Portugal, S.A.). Em 2013, o Estado português decidiu privatizar, através de operação em bolsa, 70 % do capital dos CTT. Em 2014, é alienado o restante capital, passando os CTT a ser uma empresa com capital totalmente privado.   Fig. 5 – Fotografia da estação dos CTT, no Funchal, ilha da Madeira, 1942.ffFonte: http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2013/05/o-correio-em-portugal-15.html (acedido a 13 jan. 2017).   Reportando-nos a dados de 2011, podemos referir que a rede de atendimento dos CTT – Correios de Portugal, na Região Autónoma da Madeira (RAM), era constituída por 28 lojas postais, e a rede de distribuição dispunha de 9 centros de distribuição postal – na costa sul, Funchal, Santa Cruz, Machico, Câmara de Lobos, Ponta do Sol, na costa norte, Santana e Ponta Delgada, e na ilha de Porto Santo. Os CTT, na RAM, são servidos ainda do transporte, assegurado diariamente, por um avião cargueiro que liga Lisboa ao Funchal. Também a adaptação às novas tecnologias da comunicação é uma realidade do séc. XXI, em várias vertentes integradas nos CTT: correio nacional e internacional, serviço de encomendas nacionais e internacionais, filatelia e colecionismo, serviços financeiros, entre os mais conhecidos. Em 2011, ocorreu a remodelação do interior do edifício da estação de correios da Av. Zarco, a maior da Madeira e uma das três maiores a nível nacional, mantendo-se os traços gerais do edifício e da fachada com a traça original projetada pelo Arqt. Adelino Nunes.   Fátima Freitas Gomes (atualizado a 28.02.2017)

Sociedade e Comunicação Social

arquitetura do turismo terapêutico

A apologia do ameno clima madeirense, especialmente vocacionado para o tratamento de doenças pulmonares, corria pela Europa desde os finais do séc. XVIII. Escritores e poetas, assim como médicos e publicistas em geral, divulgam a Madeira como um sanatório natural e elogiam a sua temperatura, o espaço propício ao lazer e à contemplação da natureza. A instalação de doentes e das respetivas famílias ocorreu em quintas espalhadas pela encosta do Funchal e deu origem a uma primeira forma de turismo. Com o falecimento da princesa D. Maria Amélia de Bragança no Funchal, em 1853, a sua mãe decidiu instituir um hospício em homenagem à filha, que foi o primeiro sanatório levantado em Portugal e por concurso público. Palavras-chave: arquitetura; conflitos internacionais; hospitais; quintas madeirenses; sanatórios; turismo; urbanismo. A apologia do ameno clima madeirense, especialmente vocacionado para o tratamento de doenças pulmonares, corria pela Europa desde os finais do séc. XVIII. A tuberculose, doença que afetou todas as classes, levou a que, especialmente na época do inverno, a Madeira fosse procurada pelas classes mais abastadas, em vista de um melhor clima e, se possível, da almejada cura. Nem todos os médicos eram da mesma opinião, tendo, inclusivamente, havido acesa polémica entre defensores e detratores do clima da Madeira para os tuberculosos. Para estes doentes, no entanto, por vezes quase em fases terminais, qualquer hipótese era sempre uma esperança a não desperdiçar. Escritores e poetas, assim como publicistas em geral, divulgam o nome da Madeira como um sanatório natural, enaltecendo a fama e a excelência da temperatura, do espaço propício ao lazer e à contemplação da natureza, incitando a ida até à Ilha dos doentes provenientes dos rigorosos climas europeus. Alguns destes doentes, inclusivamente, também se dedicaram a registar as suas impressões em diários, devendo um dos mais interessantes ser o de Emily Shore (1819-1839), que com a família foi para a Madeira na esperança de ali recuperar a saúde, mas acabou por falecer no Funchal. A presença de doentes no Funchal é atestada em quase todos esses escritos, como nos de Isabella de França (1795-1880), entre 1853 e 1854, ou de lady Emmeline Stuart Wortley (1806-1855), na mesma altura, que refere, com alguma nostalgia e algum romantismo, reconhecer ao longe, de quando em vez e pelas ruas e jardins do Funchal (Quintas românticas madeirenses), um forasteiro de tez algo pálida e de andar arrastado – por certo, um tísico. Isabella de França, entre inúmeras descrições, quando se refere aos companheiros de viagem para a Madeira, a 23 de junho de 1853, enumera: “Além da menina Davis, formosa e rechonchuda, tínhamos por companheiros três rapazes, todos doentes. Um, de porte corretíssimo, achava-se realmente em estado desesperado, e de facto morreu na Madeira, durante o Inverno. Conforme nos informaram, era pessoa notável em Cambridge e levava consigo uma gatinha de três cores, nada feia. Outro, de estatura elevada, parecia ter-se esgotado a crescer, circunstância que aliás o não preocupava; filho de um comerciante de Londres, haviam-lhe aconselhado os médicos a viagem de ida e volta. O terceiro, nervoso, ou melhor, desequilibrado, não seria de mau aspeto se não fosse a barba crescida e o fez na cabeça. Os homens consideravam-no sensato, mas era tal a sua timidez que fugia o mais possível de mim e da pequena Davis: ou se refugiava no camarote ou escondia a cara num livro, quando vinha para a coberta” (FRANÇA, 1970, 40-41). A expressão “turismo terapêutico” tem sofrido alguma contestação, a partir do entendimento do turismo como atividade de viagem na procura do prazer e de uma cultura e vivência diferentes, de fuga à rotina e de exercício displicente de uma liberdade. O turista não pode assim ser confundido com um quase inválido, como era referido nos guias ingleses do séc. XIX; logo, o termo pode ser considerado como um perigoso equívoco. A verdade, no entanto, é que não é possível traçar uma fronteira clara entre os vários conceitos de turismo, como também não é possível, logo em relação à Idade Média, demarcar a diferenciação entre os peregrinos penitentes dos caminhos de Santiago e o turismo dito religioso que teve início, grosso moo, no séc. XX, mesclados, ambos, dos perigos da jornada, do esforço, da perseverança e da capacidade de suportar a dor para alcançar a graça de chegar a um santuário. Aliás, prazer e dor encontram-se muitas vezes mesclados e, para se não ir mais longe, basta referir os percursos das levadas da Madeira e desportos considerados radicais. Face ao exposto, alargamos o âmbito do termo “turismo” a todo um leque de atividades programadas e que implicam serviços vários de transporte, alojamento e acompanhamento. Com algumas reservas, pois as fronteiras entre esse alargado campo de atividades não são facilmente demarcáveis, podemos englobar, nos inícios dessa atividade de prototurismo, ainda os projetos educacionais ligados ao Grand Tour, tal como as viagens científicas dos naturalistas dos sécs. XVIII e XIX, e o chamado turismo terapêutico, tal como o turismo de lazer, que lhe sucede. O alojamento do turismo terapêutico A presença de elementos enfermos que procuravam o ameno clima para os seus males, especialmente para as doenças pulmonares contraídas nas poluídas cidades do Norte da Europa, somente ocorre em número significativo com as condições advindas das ocupações inglesas de 1801-1802 e 1807-1814, da ampliação do cemitério britânico e da construção da igreja anglicana. Até à déc. de 20 do séc. XIX, essa presença fora perfeitamente pontual e integrada num outro quadro de viagem, que quase não pressupunha estadia, salvo a estritamente necessária para o reabastecimento e a manutenção das embarcações. Excetuam-se aqui as chamadas viagens científicas dos meados e finais do séc. XVIII (Viagens científicas), na procura, documentação e recolha de novas espécies, que, de alguma forma, criaram também as condições para o turismo terapêutico, com a constituição de coleções botânicas que informaram decididamente as chamadas quintas madeirenses. As quintas madeirenses foram, assim, dada a sua localização periférica em relação à cidade e o facto de serem constituídas por casa de habitação com jardim e, não poucas vezes, também com parque, os locais ideais para essa instalação mais ou menos prolongada. As primeiras informações sobre as quintas madeirenses datam dos meados do séc. XVI, dadas pelo conde Giúlio Landi (c. 1510-1578), que esteve na Madeira na déc. de 30: residências temporárias de certa importância, utilizadas pelos nobres e grandes comerciantes para aí usufruírem de ares mais temperados, eram então, essencialmente, unidades agrícolas. Em 1601, no entanto, Jean Mocquet (1575-1617) já denomina estas habitações da encosta da cidade como “maisons de plaisance” (MOCQUET, 1617, 50), e idêntica referência lhes foi feita pelo Rev. John Ovington (1653-1731), que passou pelo Funchal a caminho de Suratt, em 1689. O reverendo anglicano esteve numa dessas quintas, então já habitada por comerciantes britânicos, e escreveu que ali “a Natureza apresentava-se como um cenário de felicidade e amor, e impunha-se com toda a sua pompa, com todas as delícias e belezas campestres” (OVINGTON, 1696, 14-15).   Senhora doente acompanhada por familiares 1890 Sendo os meses de verão bastante quentes no Funchal, todas as famílias de algumas posses, nessa quadra, se retiravam para a encosta, pelos vistos já nos sécs. XVI e XVII. Em meados do séc. XVIII também o governador e capitão-general fazia o mesmo, chegando o Gov. D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1726-1798) a propor para Lisboa a aquisição da quinta de Charles Murray (c. 1730-1801), no Monte, em 1788. Desde os finais do séc. XVI, aliás, também o faziam os padres da Companhia de Jesus, usando, entre outras, a Qt. do Cardo, em Santo António, e a Qt. do Pico, junto à fortaleza de S. João, onde, nos meses de verão dos finais do séc. XVIII, também habitaram os governadores generais. As quintas passaram assim a bens de aluguer, onde era muitas vezes incluído o recheio e, inclusivamente, o pessoal, embora na maior parte dos casos se optasse depois por escolher o mesmo. As quintas de aluguer mantiveram a tipologia da arquitetura vernácula madeirense, muitas vezes com o edifício a articular-se com uma capela, sobrevivência das iniciais residências vinculadas, como na Qt. das Angústias, posteriormente Quinta Vigia ou integradas na propriedade e com acesso exterior, como na Qt. das Cruzes. A propriedade era quase sempre murada, mantendo uma certa privacidade, e dotada ainda de mirante, dado o escalonamento das encostas, tal como de casinhas de prazer, essencialmente construídas com fasquiados de madeira, chamados rotulados ou muxarabis, que permitiam observar o que se passava no exterior, mas reservando a privacidade dos utentes. A segunda metade do séc. XIX beneficiou desta corrente de turismo terapêutico, pois os outros destinos concorrentes, como o Sul da França, a Itália e a Grécia, estavam nesses anos bloqueados pelas guerras liberais europeias. Os jornais da época em Londres, como The Illustred London News, de 1866, elegiam assim a Madeira como destino ideal das famílias inglesas, graças à sua muito especial natureza, ao seu clima e às comodidades que aí se podiam encontrar, colocando os seus leitores ao corrente dos sucessos alcançados por outros conterrâneos. Enquanto destino, a Madeira era mesmo recomendada por diversos hospitais de renome, e os resultados obtidos eram, na generalidade, muito satisfatórios. Em algumas famílias inglesas parece ter sido tradição, entre os que apresentavam debilidades físicas, a passagem do inverno na Madeira, como foi o caso de lady Susan Harriet Vernon Harcourt (1824-1894), filha do 2.º conde de Sheffield (1802-1876), cujo nome de solteira era Susan Harriet Holroyd, e que se casou com Edward William Vernon Harcourt (1825-1891) em agosto de 1849. No ano anterior teria já acompanhado o noivo à Madeira, com a mãe, a condessa de Sheffield, a quem depois dedica o seu álbum de litografias da Madeira. Edward já havia também estado na Madeira, de outubro de 1847 a abril de 1848; de novembro de 1848 a maio de 1849; de novembro 1848 a maio de 1849; de novembro de 1849 a maio de 1850; e de novembro de 1850 a abril de 1851. Da família Harcourt, ainda ali havia estado o pai, o Rev. William Vernon Harcourt (1789-1871), em data anterior, e, no inverno de 1847 para 1848, o outro filho, William George Granville Venables Vernon Harcourt (1827-1904), posteriormente ministro da Rainha Vitória (1819-1901) e das figuras políticas determinantes do seu tempo, tal como, depois, o seu filho homónimo, William (1827-1904). Algumas quintas remontam aos sécs. XVII e XVIII, mas, na sua grande maioria, são construções totalmente reformuladas na época de Oitocentos e algumas construídas mesmo de raiz, logicamente ao gosto romântico internacional, dentro do cariz neoclássico divulgado pelos Ingleses, mas inspirado muito especialmente na arquitetura clássica italiana. Para tal contribuiu, entre outros, o arquiteto paisagista John Claudius Loudon (1783-1843), com a sua obra An Encyclopædia of Cottage, Farm, and Villa Architecture and Furniture (1833), sucessivamente reeditada. A sua formação romântica é patente nos seus principais trabalhos, essencialmente virados para o arranjo paisagista dos cemitérios britânicos. O jardim foi assim uma das componentes da quinta de aluguer que mais marcada influência recebeu da cultura britânica. Mesmo os mais pequenos e moldados na tradição mediterrânica e insular dos socalcos sê-lo-ão à imagem da mentalidade romântica, de clareiras relvadas, fontanários e tanques decorados com pedra vulcânica, de percursos sinuosos povoados de pormenores arquitetónicos recuperados de outros edifícios, numa natureza moldada a pano de fundo da arquitetura, num dramatismo que estabelece a ligação entre os panoramas abissais, os cumes das montanhas e o horizonte longínquo do oceano. Aos jardins da Madeira coube ainda uma outra função: a terapêutica, pois era ao ar livre que os doentes pulmonares faziam o tratamento. Daí também a criação de um novo tipo de fenestração, dotado de varandas de sacada e de acesso a terraços com comandamento sobre os jardins e, inclusivamente, sobre a paisagem. Acresce que a cura de ares era também uma cura de paixões, o que justifica a relação que a casa passou a manter com o jardim, tal como com a paisagem circundante. Na quinta de aluguer oitocentista, o jardim foi assim tanto manifestação da alma romântica, quanto sistema e quadro essencial de tratamento para aquele tipo de doenças. A casa de habitação também se foi rapidamente adaptando a uma nova vivência e funcionalidade social. O piso térreo, inicialmente uma loja destinada aos produtos da lavoura, que na antiga casa rural funcionava como unidade de produção de apoio à família, desaparece progressivamente. A relação de salas e quartos com o exterior, cuidadosamente ajardinado, é então assegurada por uma ligação tão direta quanto possível, como na Qt. do Monte. As funções dos compartimentos interiores especializam-se, surgindo as salas de jantar, de estar, de jogos e a biblioteca. Diferenciam-se igualmente as áreas de serviço, reservadas aos empregados, ou ocupando o piso térreo ou passando para a parte posterior do edifício. As fachadas também se alteram, introduzindo-se novos corpos relevados e de planta semiesférica, exteriormente dotados de varanda corrida, como na reconstrução da residência da Qt. do Deão, levada a efeito por volta de 1825 pelo cônsul inglês George Stoddart (1795 – c. 1860).   No que respeita à arquitetura geral das novas quintas de aluguer, no entanto, poucas edificações seguiram de perto as villas de inspiração italiana difundidas pela bibliografia internacional. Pontualmente, no entanto, litografias como a do arquiteto galês Edward Jones (1796-1835), Athenian Villa, de 1834, podem ter circulado, mas um conjunto de circunstâncias de ordem social e económica fez com que quase todas essas novas construções ou reconstruções tivessem sido concebidas por mestres anónimos e locais: uma arquitetura sem arquitetos. A sua construção fez-se, assim, de acordo com saberes e tecnologias que mantiveram um elevado grau de imutabilidade ao longo do tempo. Nesse quadro, o modo de lavrar e assentar as cantarias, de erguer as paredes, de escolher a madeira para os sobrados, de armar os telhados e revesti-los a telha de meia cana, ou de calçar, a seixo basáltico rolado, os passeios dos jardins manteve-se (Empedrados madeirenses). É essa a razão por que a maioria das quintas de aluguer, sejam elas originárias do séc. XIX, XVIII, ou mesmo XVII, se apresenta como um conjunto de grande coerência morfológica. O aluguer de residência temporária recaía também, no entanto, sobre habitações urbanas, simples ou não, como aconteceu com inúmeros doentes, entre os quais se destacam algumas figuras importantes das letras portuguesas. Nos finais do séc. XIX, ainda passavam pela Madeira o escritor Júlio Dinis, pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871), que, na casa onde se instalou, na R. da Carreira, viria a iniciar e, depois, a concluir o seu romance Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871), e o poeta António Nobre (1867-1900), na mesma altura (ano de 1899) em que também se encontrava no Funchal o conde de Cascais, Manuel Domingos Xavier Teles da Gama (1840-1910), acompanhando os filhos Domingos e Constança Teles da Gama, igualmente afetados pela tuberculose. Entre muitos outros exemplos, em novembro de 1840, também ali esteve o poeta cego António Feliciano de Castilho (1800-1875), acompanhando o irmão, o cónego da Sé de Lisboa, Augusto Frederico de Castilho (1799-1840), em fase terminal de tuberculose; o Cón. Januário Vicente Camacho (1792-1872) colocou de imediato à disposição dos irmãos as casas da Penha de França, mas o cónego viria a falecer a 31 de dezembro desse ano, regressando o poeta a Lisboa a 9 de janeiro seguinte. O primeiro sanatório português Nos meados do ano de 1852, em agosto, foi a vez de se deslocar para a Madeira a Imperatriz-viúva do Brasil, D. Amélia de Beauharnais (1812-1873), irmã do príncipe Maximiliano de Leuchtenberg (1817-1852), que ali havia estado um ano e pouco antes. A ex-Imperatriz vinha acompanhada da sua filha, a princesa D. Maria Amélia (1831-1853), última filha do malogrado Imperador D. Pedro (1798-1834). A princesa estaria muito doente e, segundo o conselho dos seus médicos, o ameno clima da Madeira poderia ser uma das suas esperanças de recuperação. O Gov. José Silvestre Ribeiro (1807-1891) (Ribeiro, José Silvestre) preparou cuidadosamente a receção da princesa e da mãe, que ficaram instaladas na antiga Qt. das Angústias, onde havia estado o tio pouco tempo antes. As condições de saúde da princesa, contudo, pioraram nesse inverno, vindo a falecer na madrugada do dia 4 de fevereiro de 1853. Em sua memória, a ex-Imperatriz mandou levantar o Hospício Princesa D. Maria Amélia – pedindo autorização à sobrinha, a Rainha D. Maria II de Portugal (1819-1853), por carta de 13 de abril desse ano, recebida a 4 de julho seguinte –, que provisoriamente inaugurou na R. do Castanheiro, a 10 desse mesmo mês, num prédio do morgado António Caetano Moniz de Aragão, nos princípios do séc. XXI ocupado por uma unidade hoteleira. A primeira pedra das obras do futuro Hospício teve lugar três anos depois, a 4 de fevereiro de 1856, quase em frente da quinta onde falecera a princesa. A ex-Imperatriz D. Amélia e a filha tinham-se feito acompanhar de um médico pessoal, o Dr. Francisco António Barral (1801-1878), médico pela Faculdade de Medicina da Universidade de Paris, professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, que nessa época ocupava o cargo de presidente da Sociedade das Ciências Médicas. Em 1849 já tinha sido encarregado de se deslocar a França e a Inglaterra para contactar ali a montagem dos serviços médicos e, em 1851, fez parte da comissão de reforma do serviço hospitalar em Lisboa, tendo assim sido incumbido de supervisionar todo o processo de montagem do futuro Hospício. A direção clínica da instituição foi entregue ao Dr. António da Luz Pita (1802-1870) (Pita, Dr. António da Luz), formado pela Universidade de Montpellier, em França, que exercera medicina em Gibraltar, tendo passaporte britânico, porventura o mais habilitado clínico então no Funchal, e lente da Escola Médico-Cirúrgica. Foi este clínico o encarregado da aquisição do terreno, de que se tomou posse a 24 de agosto de 1855, embora a escolha tenha sido da responsabilidade do Dr. Barral. O terreno escolhido era muito próximo da antiga Qt. das Angústias, numa área considerada salubre e segura, numa zona ligeiramente elevada em relação à cidade e com muito boa exposição solar, sobre a margem poente da ribeira de S. João, mas a uma cota bem elevada, o que colocava o futuro edifício em segurança face às possíveis cheias daquela ribeira. Confinava para poente com a Casa das Angústias, onde desde 1847 funcionava o Asilo de Mendicidade. O terreno encontrava-se bem afastado das zonas residenciais da cidade e, embora confinante com o então cemitério da Santa Casa da Misericórdia do Funchal (Cemitério das Angústias), dado o futuro desenvolvimento da cidade, entendia o Dr. Barral que, num curto espaço de tempo, haveria de ser relocalizado, embora tal só viesse a acontecer em 1939-1940, quase 100 anos depois. O projeto viria a ser elaborado em Londres, mediante concurso, tendo assim sido, em princípio, a primeira edificação portuguesa a ser feita mediante concurso internacional. O concurso ocorreu em julho de 1855, em Londres, tendo sido selecionado o projeto apresentado pelo Arqt. Edward Buckton Lamb (1805-1869). O programa teria sido fornecido pelo Dr. Barral, de acordo com dados já recolhidos em Londres, e, por certo, com o apoio dos seus contactos clínicos naquela cidade, onde deveriam estar elementos do Hospital de Brompton (1849), para o qual trabalhara o Arqt. Lamb, sendo da sua autoria a capela do mesmo Hospital. Edward Lamb trabalhou por vezes em parceria com o seu colega Frederik John Francis (1818-1896), sendo de ambos a ampliação do Hospital de Brompton. Em 1850, Lamb desenharia o primeiro sanatório inglês, o Royal National Sanatorium for Diseases of The Chest, em Bournemouth, no Sul de Inglaterra. O Arqt. Edward Buckton Lamb, ao que se sabe, nunca se deslocou ao Funchal, tendo sido logo assente que a obra seria dirigida pelo Arqt. João Figueiroa de Freitas e Albuquerque (c. 1820-1867), que acompanhara o pai, o coronel de milícias João Agostinho de Brito Freitas Figueiroa de Albuquerque (1793-1862), a Londres, quando o mesmo emigrara, face à ocupação absolutista da Madeira, em 1828, e de onde não regressaria, ali falecendo. João Figueiroa de Freitas e Albuquerque terá cursado Arquitetura em Londres e foi escolhido para a direção das obras do Hospício pela Imperatriz; usufruía de um ordenado mensal de 60$000 réis. Têm escrito alguns autores madeirenses que João Figueiroa introduziu uma série de alterações ao projeto de Lamb (NÓBREGA, 1867, p. 74 e SILVA e MENESES, 1998, II, p. 129), o que parece ser muito pouco provável. A direção da obra estava em Lisboa a cargo do Dr. Barral, que era consultado sobre todas as alterações, e não constam, nesta fase, grandes alterações ao projeto que tinha vindo de Londres, e que respeitava integralmente o programa elaborado pelo abalizado médico português e pelos seus consultores ingleses. O edifício teria sido um dos primeiros sanatórios construídos na Europa, datando o seu projeto da altura em que se começaram a levantar hospitais especializados, e o primeiro levantado em Portugal. Lamb projetou um edifício revivalista, inspirado nas grandes casas de estilo georgiano do séc. XVIII a princípios do séc. XIX, numa solução com provas dadas na arquitetura hospitalar inglesa e de que o Hospital de S.to António do Porto, de 1770, do arquiteto inglês John Carr (1723-1807), é também um exemplo. Segue a filosofia classificada por sir Henry Charles Burdett (1847-1920) como “corridor type” [tipo corredor] (MATOS, 2016, 317), ou seja, uma planta retangular estruturada por um longo e largo corredor central que atravessa todo o edifício, servindo também para os doentes se exercitarem quando as condições atmosféricas exteriores são desfavoráveis. O conjunto possui cave para arrecadações e dois pisos, com o piso térreo ligeiramente acima do solo, de forma a limitar, tanto quanto possível, o contacto com o solo e a humidade. O eixo do edifício é marcado com a entrada, inscrita num bloco com ligeiro avanço, com átrio interior, e de onde parte uma escada de dois lanços que dá acesso à capela no andar superior. Os blocos laterais também possuem ligeiro avanço, mas os terraços com varanda são acrescentos dos primeiros anos do séc. XX. O Hospício foi desenhado para 24 doentes de ambos os sexos, separados em pequenas enfermarias de seis lugares, devendo as mulheres ficar nas enfermarias do braço nascente e os homens na do braço poente. O edifício possuía ainda pequenas inovações para a época, tais como elevadores para transportar a comida até ao andar superior e um outro para transporte de roupa suja. A ocupação relativamente folgada dos espaços adveio da determinação médica de respeitar um metro cúbico de ar por doente, considerada regra no tratamento dos doentes tísicos. Mais tarde, esta estrutura veio a sofrer alguma contestação; considerada demasiado compacta, optou-se pela distribuição dos doentes por pavilhões mais ou menos independentes, delimitando assim as possibilidades de contágio. O protagonismo da alta e elegante capela central, exteriormente marcada pelas armas pessoais da ex-Imperatriz, deve ter sido imposição de D. Amélia, duquesa de Bragança, dado afastar-se da filosofia arquitetónica inglesa da época. A capela dedicada a N.ª S.ra das Dores, inclusivamente, teria sido paga pelo arquiduque Maximiliano de Habsburgo (1832-1867), que estaria, desde 1852, e aquando da sua visita a Lisboa, prometido à falecida princesa. O futuro Imperador do México encomendou mesmo um projeto neobizantino para a capela ao Arqt. Eduardo Van Del Null (1812-1868) e ao pintor Karl von Blaas (1815-1894), executado em Viena, em 1857, e que figura na coleção de Agostinho de Vasconcelos, no Funchal, mas o seu casamento com a princesa Carlota da Bélgica (1840-1927), a 27 de julho desse ano de 1857, levou a que não fosse executado, tendo o retábulo ali existente sido adquirido em Munique. Na sua segunda passagem pelo Funchal, no inverno de 1859, o futuro Imperador do México visitou o Hospício e, nas suas memórias, referia ser um edifício de estilo renascentista, cuja fachada lhe lembrava um castelo de Nápoles, tal como os hospitais ali construídos. Efetivamente, trata-se de um rígido desenho de inspiração clássica, simétrico e de paredes caiadas, rematado por frontão e cornijas, assente em embasamento de pedra aparente, o que parece contrariar as obras que fizera em Inglaterra e que tinham, então, suscitado alguma polémica. O arquiteto fora acusado de procurar o pitoresco com paredes de aparelho de pedra aparente, de certa rudeza e totalmente assimétricas, enquanto, no Hospício do Funchal, é muito mais classicista. Em causa podem estar as diretivas do encomendador, a duquesa de Bragança, e dos médicos que forneceram o programa, tal como, provavelmente, a execução local pelos mestres pedreiros madeirenses. As obras do Hospício estavam quase terminadas nos meados de 1859, altura em que se teria procedido aos arranjos finais e começado o jardim. Tudo leva a crer que o projeto inicial não comportaria jardim, pois a duquesa de Bragança, em 1860, enviou um projeto de jardim assinado por A. A. Gonçalves, que é quase a única peça que subsiste do arquivo do Hospício. Trata-se de um projeto romântico, aliás presente nos jardins de muitas das quintas madeirenses, com caminhos sinuosos, lagos e tanques, tal como com recantos de estadia e descanso. Em linhas gerais foi o projeto construído, mas ter-lhe-ia depois dado continuidade, nos finais do século, o padre alemão Ernesto João Schmitz (1845-1922). Proveniente da Congregação de S. Vicente de Paulo, onde entrara em 1864, estava pontualmente na Madeira 10 anos depois, como capelão do Hospício da Princesa D. Maria Amélia. Regressava em 1878, para ocupar o mesmo lugar, e, a partir de 27 de setembro de 1881, o de vice-reitor do Seminário. Naturalizado português, em 1898 era transferido para reitor do Seminário de Theux, na Bélgica, voltando à Madeira em 1902, onde só permaneceria até 1908, sendo então transferido para Jerusalém e falecendo à frente da direção do Hospício de S. Carlos, em Haifa, em 1922. A vida no Hospício não foi fácil nesses anos, tendo a entrada dos primeiros doentes ocorrido a 4 de fevereiro de 1862 e a inauguração oficial sido em junho seguinte, e tendo os doentes sido entregues às irmãs francesas da Congregação de S. Vicente de Paulo. Dada a polémica em torno do regresso das Ordens a Portugal, em breve teriam de sair do continente e, na sequência disso, a superiora em Paris mandaria regressar as freiras da Madeira, que se encontravam à frente do Hospício Princesa D. Maria Amélia. Regressariam, entretanto, em novembro de 1871, altura da reabertura do edifício com as Irmãs Vicentinas. D. Amélia veio a falecer em 1873, no palácio das Janelas Verdes, legando a administração do Hospício à sua irmã Josefina (1807-1876), Rainha da Suécia e da Noruega, alegando que administrações daquele tipo não deveriam ter maioria de elementos portugueses ou brasileiros. Desde então, passaram os reis da Suécia a ser os administradores daquela instituição. Volvidos 150 anos, a Rainha Sílvia Sommerlath (n. 1943) da Suécia, administradora titular, continua a ser de origem brasileira, tendo, a 3 de outubro de 1986, visitado pela primeira vez o Hospício. O Hospício Princesa D. Maria Amélia tornou-se, entretanto, emblemático dessa época, sendo visita obrigatória dos viajantes internacionais, e especialmente dos médicos. Em 1883, e.g., o explorador e médico de origem alemã Carl Passavant (1854-1887) aventurou-se numa viagem até Angola para recolher material para o seu doutoramento na Universidade de Basileia, na Suíça. Passando pelo Funchal com outros médicos, não deixou de visitar o Hospício e de levar uma fotografia do mesmo para publicar num trabalho que teria depois o título “Entre Bâle et Angola. Les voyages de Carl Passavant en Afrique de l’Ouest et Centrale en 1883-1885”. Com a sua morte prematura, o seu espólio foi legado ao Museu de Basileia, e os seus trabalhos só foram publicados em 2005, com a fotografia do Hospício. O projeto dos Sanatórios Alemães A estadia prolongada de famílias alemãs e russas, por vezes inteiras, na Madeira dos meados do séc. XIX, veio contribuir para a constituição de um clima cultural muito especial, que as famílias inglesas tinham sido incapazes de desenvolver. Em 1861, e.g., chegava à Madeira Sophie Pirch, princesa de Waxel e baronesa Pirch, acompanhada dos filhos Platão (1844-1914) e Nadechda, ambos doentes de tuberculose, trazendo ainda outra filha, Sophie Pirch, sua homónima. A família instalou-se na Qt. Sarmento e, para fazer face às suas despesas, a princesa deu lições de piano, e o filho lições de canto. Nadechda Waxel viria a falecer na Madeira, mas o irmão Platão recuperaria e a irmã Sophie também, e se casaria na Ilha com o ex-sacerdote José Carlos de Faria e Castro. Entretanto, também passaria pela Madeira o príncipe alemão Maximiliano de Leuchtenberg (1817-1852), irmão da ex-Imperatriz do Brasil, que se casara com uma das arquiduquesas da Rússia, com uma comitiva que teria incluído o pintor russo Karl Briullov (1799-1852) (Briullov, Karl), e, mais para os finais do século, fixar-se-ia na Madeira um dos mais importantes médicos e cientistas do seu tempo, o Dr. Paul Langerhans (1847-1888), autor da descoberta das células que têm o seu nome, tudo contribuindo para a divulgação da Madeira como destino terapêutico. A construção de estabelecimentos para o tratamento de doentes afetados pela tuberculose pulmonar assumia-se como uma necessidade desde os meados do séc. XIX e encontrava-se já então em curso na Madeira, através da fundação do Hospício Princesa D. Maria Amélia. Mas o projeto, no entanto, era perfeitamente pontual para a procura que a Ilha estava a ter como estância de saúde para classes abastadas. Impunha-se assim um projeto muito mais global, em que, a par de unidades hospitalares modernas, especializadas no atendimento de tuberculosos, se construíssem unidades hoteleiras para os acompanhantes dos mesmos doentes e, na mesma sequência, também locais de diversão. A questão da construção dos sanatórios em locais mais ou menos isolados e a certa altitude era assim indissociável da construção de hotéis de luxo e de casinos perto do mar, como era o caso do projeto da Madeira. Foi no seguimento da visita, à Madeira, de D. Carlos e D. Amélia (Visita Régia 1901) que se devem ter constituído as condições para que o príncipe alemão Frederick Charles de Hohenlohe Oehringen (1855-1910), em 1903, se propusesse levar a efeito, na Madeira, um vasto projeto de sanatórios marítimos e de altitude, alguns exclusivamente destinados a doentes ricos, logo, dotados dos anexos indispensáveis de jardins e parques, assim como de outros, destinados à população de menos recursos e que funcionavam como contrapartida da futura sociedade. O projeto foi aprovado pelo Governo português, mediante parecer da comissão executiva da Assistência Nacional aos Tuberculosos, e teria tido apoio da Rainha D. Amélia, amiga pessoal do príncipe alemão. A 22 de setembro de 1903, chegava ao Funchal o príncipe Hohenlohe, com uma vasta comitiva alemã e oficial portuguesa, sendo aí recebido, entre outros, pelo comendador Manuel Gonçalves (1867-1919) e o financeiro João Rodrigues Leitão, visconde de Cacongo (1843-1925) (Cacongo, visconde de), e saindo da Madeira a 3 de outubro seguinte. Em breve, a Sociedade dos Sanatórios da Madeira (Sociedade dos Sanatórios da Madeira) estava em marcha e, a 17 de março de 1904, chegava à Madeira nova delegação alemã, entre outros, com importantes financeiros de Berlim, e que, dentro de um igualmente curto espaço de tempo, liderava um importante projeto de turismo terapêutico, com a construção de várias unidades hospitalares, como foram o Hospital dos Marmeleiros, o sanatório popular, e o Sanatório de Santana, no Monte, já para classes mais abastadas, ambos servidos pelo elevador do Monte (Caminho de ferro do Monte), construído já, em parte, com capitais alemães. Para construção estavam planeados ainda os grandes hotéis marítimos, dependentes de futuras aquisições, a serem levantados nas áreas das quintas Lambert, Vigia, Pavão e Bianchi, praticamente as mesmas que deram lugar ao Casino Park Hotel, duas das quais logo adquiridas. Em breve o projeto avançava para outras vertentes, como eram as facilidades de navegação para o Funchal, prevendo a instalação de um depósito de carvão de pedra não só para os navios que iam servir os hotéis e sanatórios, mas também para a restante navegação. Previa-se, assim, retirar aos Ingleses esses monopólios, passando o Funchal a funcionar como nó de comunicações no Atlântico Norte, e.g., entre a América do Norte e a África do Sul, onde os Alemães já possuíam largos interesses. Estavam assim em causa os interesses ingleses na Madeira e, por acréscimo, mesmo no quadro geral do Atlântico Norte. De imediato os periódicos locais atacaram o projeto, incentivados pelas firmas Blandy e Cory, concessionárias da distribuição do carvão, assim como pelos irmãos Reid, proprietários do Reid’s Palace Hotel (Arquitetura do Turismo de Lazer). Foi protagonista deste ataque o Diário de Notícias do Funchal, já propriedade da Casa Blandy, levando a que a Companhia dos Sanatórios da Madeira tivesse mesmo de apoiar a fundação de um periódico diário, o Heraldo da Madeira, cuja redação foi entregue a Fernando Augusto da Silva (1863-1949) para a defesa dos interesses alemães. A guerra nos anos seguintes seria terrível, envolvendo as chancelarias de Londres e de Lisboa, mas também as de Berlim, e acabaria o Estado português por, mais uma vez, sair a perder, tendo de pagar uma pesada indemnização aos concessionários alemães. Nos anos seguintes, a tensão não deixou de aumentar, pois, logo nos inícios de 1905, se adaptava a antiga Qt. de Santana a hotel e sanatório de luxo, e se iniciava a construção de raiz do pequeno, mas luxuoso, Kurhotel Amélia, por certo em homenagem à Rainha de Portugal, que apoiara a Sociedade; e, a 24 de junho desse ano, procedia-se ao lançamento da primeira pedra do sanatório dos pobres, o Hospital dos Marmeleiros, no Monte, e começavam-se as negociações para a construção do projeto do grande Kurhotel sobre a baía do Funchal, a levantar no espaço das quintas Vigia e Bianchi. Os Alemães já haviam adquirido essas quintas, mas necessitavam ainda de adquirir a Qt. Pavão, ao lado, conseguindo, no entanto, os Ingleses a sua aquisição, por direito de opção de um dos anteriores locatários. Os Alemães exigem do Governo português a expropriação por utilidade pública, colocando Lisboa no meio de um grave incidente diplomático entre os interesses britânicos e alemães, tendo-se, inclusivamente, o príncipe Hohenlohe deslocado a Lisboa nos primeiros dias de novembro de 1905. Nunca a Madeira tinha sido tão falada na imprensa continental e internacional, alvitrando-se mesmo uma arbitragem internacional, através do recurso ao Tribunal de Haia, e falando-se abertamente numa indemnização.   [gallery order="DESC" columns="2" size="full" ids="14339,14342"] O luxuoso complexo do sanatório marítimo, que nunca se chegaria a construir, envolvia conjuntos de parques e jardins para exercícios ao ar livre, acesso a praia de banhos, vilas destinadas às famílias que quisessem viver separadamente, etc. O conjunto central apresentava planta em H, tendo quatro pisos de quartos e suites, todos eles dotados de instalações sanitárias privadas, dispostos de ambos os lados de um corredor central. No rés do chão e na semicave situavam-se as áreas sociais e de serviços, sendo o salão central verdadeiramente monumental. Tratava-se de uma verdadeira revolução nos padrões de conforto oferecido pela hotelaria da Ilha, com que nem os mais importantes hotéis então construídos poderiam competir. O sanatório de montanha destinado aos doentes pobres, que, por pressão da Rainha D. Amélia, havia sido a primeira construção a ser levantada, não se afastava muito das linhas gerais programáticas do Hospício, construído 50 anos antes, com a mesma filosofia de um corredor central servindo as enfermarias e os quartos. Ultrapassava-o, no entanto, na volumetria geral, apresentando quatro pisos compactos, sendo o inferior uma semicave, ocupado com os serviços, e estando os dois superiores dotados, a todo o comprimento, de uma arcaria que formava uma extensa varanda coberta e outra aberta. Não tinha a qualidade de construção aparente do Hospício, e estava marcado por uma característica austeridade alemã. Com a extinção da Sociedade e a indemnização paga, o enorme edifício veio a ser entregue ao Estado e acabou por receber o antigo Hospital de S.ta Isabel, da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, libertando aquele edifício para instalação da Junta Geral. Em 1905, também estava pronta a adaptação da antiga Q.ta de Santana, do outro lado do Monte, para receber um pequeno mas luxuoso sanatório, o Kurhaus Sant’Ana, enquanto não estava pronto o luxuoso Sanatório Palácio-Hotel, que a Companhia dos Sanatórios tencionava levantar nas imediações. A residência da antiga quinta deve ter sido então dotada de alpendres, dos quais só ficaram fotografias. Desocupada, nos meados do século veio a sofrer várias alterações para receber a Escola Superior de Enfermagem de S. José de Cluny. O luxuoso Kurhotel Amélia, que chegou a ser construído, total e luxuosamente equipado, ocupou o espaço logo acima da antiga Qt. de Santana, e acusava, na sua arquitetura, a influência da secessão vienense, que à época também se fazia sentir na Alemanha. Com o seu encerramento, veio a perder todo o recheio, que porventura nunca chegou a ser utilizado, podendo ter restado um serviço de cristofle, de grande dimensão, existente no palácio de S. Lourenço, para além de algumas fotografias, raras. O que restava do antigo edifício foi demolido, em 1941, para dar lugar ao Preventório de S.ta Isabel e Sanatório Dr. João de Almada (1874-1942) projetado pelo Arqt. Carlos Ramos (1897-1969), que, entre 1953 e 1958, seria ampliado, então por iniciativa do Dr. Almada e do genro, o Dr. Agostinho Cardoso (1908-1979). A arquitetura do turismo terapêutico representou, através da construção do Hospício Princesa D. Amélia, uma profunda revolução na área do tratamento da tuberculose, tendo sido aquele o primeiro sanatório construído em Portugal e, ao que saibamos, o primeiro edifício a ser levantado mediante concurso internacional. O megaprojeto da Sociedade dos Sanatórios da Madeira gorou-se, mas deixou na Madeira o edifício que permitiu, algumas décadas depois, transferir o velho Hospital de S.ta Isabel, da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, do centro da cidade, e os pequenos sanatórios da freguesia do Monte serviram de base para a Escola Superior de Enfermagem e para o Sanatório Dr. João de Almada, uma peça notável da arquitetura do Estado Novo.   Rui Carita (atualizado a 22.02.2017)

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