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terra, miguel ventura

Desde meados de Oitocentos que a cidade do Funchal se afirmou como importante local de turismo, procurado sobretudo para fins terapêuticos. Com efeito, o clima ameno da Madeira cedo atraiu muitos visitantes. A Ilha era então uma referência para as viagens de lazer e uma estância especialmente acreditada e recomendada para a cura das moléstias do foro pulmonar. Por esse e outros motivos, ao longo daquela centúria, passaram pelo Funchal importantes membros da realeza europeia, como a arquiduquesa da Áustria, D. Leopoldina, que viria a tornar-se imperatriz do Brasil, a rainha Adelaide, de Inglaterra, ou o príncipe Maximiliano, duque de Leuchetenberg. A Imperatriz D. Maria Amélia de Beauharnais, viúva de D. Pedro IV, também para aí se dirigiu, em 1852, trazendo por companhia a sua filha, a jovem, mas debilitada, princesa D. Maria Amélia, que, não obstante algumas melhorias iniciais, ali veio a sucumbir em fevereiro de 1853. Também pela Madeira passou, no inverno de 1860 e em finais do séc. XIX, a imperatriz Elizabeth, mais conhecida por Sissi da Aústria. Hospedados em antigas quintas madeirenses, como a Quinta Vigia e a Quinta das Angústias, outros visitantes menos ilustres beneficiaram da estadia em infraestruturas de apoio ao turismo na periferia da cidade, como a família Waxel e Faria e Castro, que por aí passaram no séc. XIX.   As transformações que paulatinamente ocorriam no Funchal ofereciam melhores condições a uma cidade já muito visitada por estrangeiros. O Conselheiro Dr. José Silvestre Ribeiro (1807-1891), enquanto governador civil, e face à animação turística da baixa do Funchal, implementou a iluminação pública na cidade. Em finais daquela centúria surgiu a construção do elevador do Monte, que permitia o transporte de visitantes e gentes locais, desde a Estação do Pombal à pitoresca freguesia de Nossa Senhora do Monte. Por outro lado, a edificação do Teatro Municipal, concluído em 1887 e na época batizado de D. Maria Pia, e a construção do Hospício Princesa D. Maria Amélia eram exemplos pontuais de modernização da paisagem urbana funchalense. Com a implementação da República, os novos poderes locais contactaram um dos mais prestigiados arquitetos portugueses da época, Miguel Ventura Terra (1866-1919), para elaborar um projeto de urbanização que dotasse a cidade com as melhores condições para que pudesse responder aos desafios do novo século. Com efeito, a total reformulação da cidade do Funchal fazia parte das intenções dos recém-eleitos deputados pela Madeira, o Dr. Manuel de Arriaga (1840-1917), o Dr. Francisco Correia Herédia (1852-1918), ex-visconde da Ribeira Brava, pois abdicara do título em 1910, sendo mais conhecido entre os deputados como senhor Ribeira Brava, o Dr. Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969) e o Dr. Carlos Olavo Correia de Azevedo (1881-1958). Em agosto de 1911, Manuel de Arriaga foi eleito primeiro presidente da República e certamente terá mantido estreita relação com os deputados madeirenses e com o Arq. Ventura Terra. Este último fora eleito em 1908 para a primeira vereação totalmente republicana da Câmara de Lisboa, cargo que manteve até 1913. Podemos constatar essa convivialidade política numa tela de 1913, do pintor e amigo do Arq. José Maria Veloso Salgado, intitulada O Sufrágio, onde nos surge, num primeiro plano, Manuel de Arriaga a colocar o seu voto à boca da urna e, num plano mais recuado, o arquiteto usando um chapéu de palha. Por outro lado, sabemos que o ex-visconde da Ribeira Brava, Francisco Correia Herédia, viveu largo tempo em Paris, onde possivelmente terá desenvolvido laços de amizade com o então estudante de arquitetura Miguel Ventura Terra. A amizade e os contactos terão certamente ficado fortalecidos agora que ambos frequentavam e se cruzavam em Lisboa. Assim, a nova comissão administrativa da Câmara Municipal do Funchal, na sua sessão de 19 de setembro de 1912, encarregou o deputado madeirense, senhor Ribeira Brava, de contactar aquele arquiteto, que à época apelidavam de “engenheiro” Ventura Terra, perguntando-lhe se aceitaria a missão de vir ao Funchal elaborar um Plano Geral de embelezamento da cidade. Para custear a sua vinda, a Câmara contou com um subsídio concedido pela Junta Agrícola, organismo criado em 1911 para incremento das obras públicas, sendo então presidido pelo ex-visconde da Ribeira Brava, Dr. Francisco Correia Herédia. Acedendo ao convite das entidades funchalenses, o arquiteto desembarcou no Funchal a 10 de fevereiro de 1913. Viera pelo vapor inglês Ambroze sendo acompanhado pelo seu irmão, António Joaquim Terra, como veio a noticiar o Heraldo da Madeira. Sabe-se que no dia seguinte visitou o Terreiro da Luta, tendo-se “demorado longamente na varanda do Restaurante Esplanada, extasiado ante o espetáculo do pôr do sol” (“Architeto Ventura Terra”, Heraldo da Madeira, 13 fev. 1913, 1). A comissão municipal encarregou o seu vice-presidente, o ex-visconde da Ribeira Brava, também deputado na Assembleia da República e velho amigo dos tempos de estudo em Paris, de ultimar com Ventura Terra a execução do Plano Geral de Melhoramentos para a cidade. Ventura Terra nasceu em Seixas, no Minho, a 14 de julho de 1866, no seio de uma família bastante humilde e numerosa. Terra foi o décimo terceiro e último filho de João Bento Terra e de Maria Victória Affonso Lindo. Os seus pais possuíam uma casa no Lugar do Sobral, em Caminha, onde iniciou os estudos primários. Ingressou, mais tarde, na Academia Portuense de Belas Artes, onde frequentou o curso de Arquitetura, entre 1881 e 1886. Completou os seus estudos na École Nationale et Speciale des Beaux-Arts, em Paris, como bolseiro do governo português, tendo frequentado o atelier dos Arqs. Jules André e Victor Laloux. Alcançou o estatuto de arquiteto de primeira classe diplomado pelo Governo francês, em 1894, tendo regressado definitivamente a Portugal em 1896, após conquistar o concurso internacional para a reconversão do edifício das Cortes na Câmara dos Deputados em Lisboa, atual Palácio de São Bento, sede da Assembleia da República, inaugurado em 1903. Neste mesmo ano, o arquiteto formou a Sociedade dos Arquitetos Portugueses, sendo o seu primeiro presidente. Em entrevista ao Heraldo da Madeira, aquando da sua passagem pelo Funchal, em fevereiro de 1913, explicou que a sua viagem se destinava a contactar com a Madeira, quer com a sua beleza, quer com os seus problemas. Quanto à cidade, comentou ser bastante confusa, com ruas horrivelmente calcetadas, muito irregulares e acidentadas, pelo que a considerava completamente “destituída dos requisitos que faziam a formusura e a comodidade dos sistemas de viação das cidades modernas”(“Melhoramentos Locais...”, Heraldo da Madeira, 21 maio 1913, 1). Lamentou, ainda, que, sendo a Madeira uma das “mais belas regiões do mundo”, a sua cidade não aproveitasse os esplêndidos pontos de observação de que poderia tirar partido. Durante esta visita à Madeira, Ventura Terra terá obtido conhecimento dos trabalhos desenvolvidos para a zona marítima da cidade realizados pelo Eng. Adriano Augusto Trigo (1862-1926), através do seu irmão, Eng. Aníbal Augusto Trigo (1865-1944), que era o diretor da Repartição Técnica da Câmara Municipal do Funchal. Com efeito, o Anteprojeto de Março de 1905, para o Prolongamento da Estrada da Pontinha à Alfândega e Construção de uma Avenida Marginal entre o Cais e o Forte de S. Tiago, da autoria do Eng.º Adriano Augusto Trigo, propõe algumas soluções que foram retomadas por Ventura Terra, nomeadamente a solução de avançar com a marginal sobre o mar. No entanto, o arquiteto vai mais além, propondo uma avenida que teria uma largura de 50 m e abrangeria toda a frente mar em contacto com a baixa da cidade, ou seja, desde as imediações do sítio das Angústias até ao Forte de S. Tiago, normalizando a irregularidade da costa. O Plano Geral de Melhoramentos Para o Funchal, de 1915, elaborado por Ventura Terra, surgiu da necessidade de reformular a cidade com modernos equipamentos urbanos e novas infraestruturas para o desenvolvimento da recente base económica do arquipélago da Madeira, o turismo internacional. Em linhas gerais, o projeto concretizou-se ao longo do séc. XX. O documento, constituído por duas enormes plantas de cinco por dois metros, é fundamental para um melhor entendimento das alterações urbanísticas que se operaram no Funchal ao longo daquela centúria, com maior incidência ao tempo do dinâmico autarca Fernão Ornelas Gonçalves (1908-1978) à frente da Câmara do Funchal. O Arqt. Ventura Terra, consciente das dificuldades de execução do seu “luxuoso” Plano Geral de Melhoramentos para a Cidade do Funchal, faseou a sua implementação a longo prazo tendo afirmado, em entrevista ao Heraldo, que o dividiria em três estudos. Ao primeiro traçado, Ventura faria corresponder aquilo que a atualidade de então permitia, privilegiando, para o segundo estudo, a construção de novas e largas avenidas de modo a arejar a cidade, como referiu na Memória Descritiva. À edilidade funchalense terão sido enviados planos parcelares, pois, em sessão camarária de 25 de setembro de 1913, o presidente da comissão administrativa daquele órgão de poder local afirmou ter recebido o projeto final de alargamento da R. da Carreira e a planta da Av. de Oeste, tendo em vista o desenvolvimento das obras em conformidade com o Plano de Melhoramentos. O segundo traçado contaria já com avenidas e ruas largas representando uma transição entre a condição inicial e a cidade que se pretendia obter. Por último, o terceiro traçado avançaria com propostas para um Funchal “definitivo, como o poderia ser daqui a uns cinquenta ou cem anos” (“Melhoramentos Locais...”, Heraldo da Madeira, 1). Atuando deste modo, o arquiteto afirmava entregar à Câmara do Funchal um Plano que a habilitaria a proceder metodicamente no seu crescimento urbanístico, o que colocaria o Funchal à frente de Lisboa. Em março de 1914, em vésperas da Primeira Grande Guerra, Ventura Terra oficiou à Câmara do Funchal a conclusão da sua obra, pedindo a esta entidade o pagamento dos seus honorários. O Projeto pretendia, principalmente, dotar a cidade do Funchal “dos requisitos que faziam a formusura e a comodidade dos sistemas de viação das cidades modernas mais adiantadas da época” (DRAC, 1915, 1), propondo uma nova forma de organizar a cidade com base na definição de largos eixos viários que confluíam em amplas praças ou rotundas para uma melhor redistribuição do tráfego. A nova estrutura viária equacionada por Ventura Terra propunha a abertura de uma ampla Av. Marginal que garantia o atravessamento da cidade no seu sentido longitudinal. A mesma estendia-se desde o Forte de S. Tiago até a Ribeira de S. João, prolongava-se depois por uma rua litoral, até ao Lg. António Nobre, naquilo que é, em parte, a Av. do Mar e das Comunidades Madeirenses. Em toda a sua largura estariam inscritas três faixas de rodagem, separadas por placas centrais arborizadas e com amplos passeios laterais. Paralelamente a esta avenida, Ventura Terra desenhou a Av. de Oeste. Esta resultava do prolongamento para oeste da Av. Arriaga e subia as Angústias até a Est. Monumental, naquilo a que mais tarde se designou por Av. Infante. No seu percurso para leste ia até ao Lazareto, percorrendo com a sua ampla largura o coração da cidade. Atravessava ainda uma ampla praça sobre a Ribeira de Santa Luzia e passava próximo do Campo da Barca. Do seu traçado destacou-se, na época, apenas a construção da parte compreendida entre a Sé e o Jardim Pequeno, troço que corresponde em parte à posterior Av. Arriaga, até a R. de S. Francisco, que, sendo iniciada na primavera de 1914, se concluiu em maio de 1916. Mantendo um traçado sensivelmente paralelo à linha da costa, Ventura Terra indicou no seu Plano outra via a resultar do alargamento da R. da Carreira e da R. do Bom Jesus, estabelecendo a conexão entre as duas através do alargamento da Praça do Município, o qual contribuiria para a valorização do edifício onde se encontrava instalada a Câmara do Funchal. Um conjunto de outras avenidas, sensivelmente perpendiculares à linha da costa, são indicadas para fazer a ligação da frente mar com o interior da cidade. A grande Av. de Santa Luzia, com 30 metros de largo, resultaria da cobertura da Ribeira de Santa Luzia por meio de uma abóbada de berço contínuo em betão armado, apresentada como a solução para o problema higiénico e estético que este curso de água constituía. As ruas que ladeavam esta ribeira, ruas da Princesa e do Príncipe, posteriormente designadas de R. 5 de Outubro e R. 31 de Janeiro, funcionariam como amplos passeios laterais que se estenderiam desde a Av. Marginal até uma praça ou rotunda a instalar próximo da estação do caminho-de-ferro do Monte, mais conhecida por Estação do Pombal. Deste modo, Ventura Terra orientava os viajantes para os pontos turísticos de maior interesse no Funchal. São indicadas outras avenidas que se apresentam perpendiculares à linha da costa e paralelas entre si: a que passa em frente à Sé do Funchal e desemboca no Lg. do Colégio, a que se estende desde a Calç. do Palácio de São Lourenço até à R. da Carreira e ainda a que se inicia no cais e sobe até à Av. Arriaga. Em todos os arruamentos o arquiteto propõe uma configuração abaulada dos perfis de modo a obter uma inclinação suave destinada à drenagem das águas pluviais. No encontro dos grandes eixos de circulação viária seriam edificadas praças que, a par com as largas ruas e avenidas, contribuiriam para um maior arejamento da cidade, funcionando também como excelentes pontos de vista e ótimos locais para colocação de monumentos, um aspeto primordial no embelezamento urbano. Para o coração da cidade, o arquiteto contemplou um grande quarteirão para a instalação do Palácio das Repartições Públicas. Este ocuparia o edifício onde então se localizava o Hospital da Misericórdia do Funchal e implantar-se-ia na área definida pelas ruas de S. Francisco, parte da R. da Carreira, R. de João Tavira e Av. Arriaga, dando seguimento a indicações anteriores que remetiam para a zona do Monte as instituições de saúde, nomeadamente a construção de sanatórios para tratamento da tuberculose. Nos inícios de Novecentos, uma comitiva da Companhia dos Sanatórios da Madeira passou pelo Funchal a fim de proceder ao levantamento dos locais mais adequados à construção dos Sanatórios da Madeira, tendo sido a zona do Monte indicada como um dos lugares apropriados para a construção de sanatórios para tuberculosos. Iniciou-se, em 1905, a construção do edifício dos Marmeleiros destinado a sanatório para pobres. No entanto, vários contratempos impediam o seu funcionamento, situação que se mantinha à altura da passagem de Ventura Terra pelo Funchal. Em meados dos anos vinte daquela centúria, será leiloado todo o mobiliário, ficando aquele estabelecimento hospitalar completamente desocupado apenas em 1926, sendo posteriormente cedido à Irmandade da Misericórdia do Funchal, tendo para aí sido transferido, em 1930, o Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Este Plano previa também a construção de dois bairros na periferia da cidade. O Bairro Oriental estava destinado essencialmente às construções económicas das classes populares e operárias, disponibilizando-lhes bons terrenos e boas condições de habitabilidade, sem descurar a pronta acessibilidade aos locais de trabalho. O Bairro Ocidental estava “destinado às edificações luxuosas e artísticas das classes ricas e abastadas” (DRAC, 1915, 5). Esta previsão concretizar-se-á, passadas duas décadas, com a edificação, nas margens da Av. Infante, de habitações luxuosas próprias de uma cidade cosmopolita, embora de pequena dimensão, com risco de grandes nomes da arquitetura portuguesa, como Raul Lino (1879-1974), Carlos Ramos (1897-1969) e Edmundo Tavares (1892-1983). Nos anos 30 do séc. XX, o arquiteto modernista Carlos Chambers Ramos, a convite da Câmara e da Junta Geral do Funchal, desenvolveu o Plano de Urbanização para o Funchal de 1931-33, onde retomou algumas das propostas de Ventura Terra, com quem trabalhara. Na sequência do mesmo, a edilidade funchalense deliberou que, para a Av. Infante, apenas permitiria a construção de chalets e habitações dentro das normas que a vereação então estabelecia. Demonstrando preocupações de caráter paisagístico e ambiental, Ventura Terra projetou, ainda, junto de cada um dos novos bairros, parques ajardinados e arborizados de onde se poderia vislumbrar os bonitos panoramas da Ilha. Destinavam-se a desempenhar um papel importante e notável na vida da cidade, sob o ponto de vista da salubridade, recreio da população, conforto e receção de turistas. No Plano de Ventura Terra, o desenho destes espaços verdes urbanos aparecem apenas delineados de forma geométrica com a indicação dos percursos e das diferentes áreas. Para o cais de entrada da cidade do Funchal, o arquiteto propôs uma praça para a receção dos turistas. Sobre o cais seria edificado um espaço de entretenimento, o Casino Municipal. A construir num plano mais elevado, estaria especialmente destinado à multidão de visitantes que chegavam à Ilha pela navegação transatlântica. O cais seria desviado para nascente de modo a localizar-se em frente à Alfândega. Ventura Terra chamou a atenção da Câmara do Funchal para que contratasse profissionais devidamente qualificados para implementar o seu Plano. Apelou mesmo à formação de uma corporação especial, composta por entidades competentes e detentora de poderes para aprovar ou rejeitar os projetos públicos ou privados, à qual caberia ditar e fiscalizar a aplicação das leis ou normas a que deveriam obedecer as novas construções. Deste modo o arquiteto manifestava a sua preocupação com o controlo urbanístico que, até aí, apenas existira pontualmente na espontaneidade urbanística da cidade do Funchal. Algumas das propostas de Miguel Ventura Terra, falecido em Lisboa a 30 de abril de 1919, colidiram com as forças vivas da cidade do Funchal. A implementação integral do seu Projeto implicava a demolição de imóveis com forte valor histórico e patrimonial, como os baluartes da Fortaleza de São Lourenço ou a torre e o transepto da Sé. Ventura Terra considerava o património como herança a preservar, mas não como elemento limitativo do desenvolvimento urbano. Foi, sobretudo, a instabilidade política da época, com sucessivas quedas de governo, e a entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra que fizeram agravar as dificuldades já sentidas no arquipélago madeirense. Desta forma, este Plano revelou-se demasiado "luxuoso" para a época, mas serviu de modelo à atual morfologia urbana do Funchal, sendo por isso merecedor de destaque, tanto mais porque se completou, em maio de 2015, o primeiro centenário do seu risco.   Teresa Vasconcelos (atualizado a 31.12.2016)

Arquitetura Personalidades

vasconcelos, joaquim ricardo da trindade e

Filho de João José Sedrinho, de Machico, e de Joana de Jesus Álvares da Costa, de Santa Cruz, Vasconcelos nasceu na freguesia de Machico em 1825. Casou-se na freguesia de São Pedro, Funchal, a 23 de janeiro de 1864, com Maria do Monte Moniz de Vasconcelos, com quem teve dois filhos: Joaquim e Maria. Tornou-se bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra e foi, por largos anos, advogado na Comarca do Funchal. Foi também vice-presidente da Câmara Municipal do Funchal. Escreveu e publicou, em 1867, um folheto de 40 páginas intitulado Projecto de Lei Regulamentar do Contrato de Colonia ou Parceria Agrícola na Ilha da Madeira (Gazeta da Madeira, n.º 99), trabalho que teve a colaboração de José António de Almada e que foi oferecido à apreciação do júri nomeado pela Junta Geral. Também escreveu Resposta aos Fundamentos do Recurso Interposto Perante o Conselho de Estado por Sua Majestade a Imperatriz D. Amélia..., publicado pela Revista Judicial, n.º 14, em 1867. Ainda podemos acrescentar aos seus trabalhos publicados o Regulamento do Theatro Municipal D. Maria Pia da Cidade do Funchal, de 1894. Segundo Clode (1983), para além dos cargos políticos, Vasconcelos foi respeitado, no seu meio, como um dos advogados de mais nomeada do seu tempo, tanto no foro civil como no criminal. Chegou a ser considerado um dos mais importantes proprietários de Machico, mas teve a infelicidade de perder grande parte dos seus bens na fábrica denominada Companhia Fabril de Assúcar Madeirense, de que foi iniciador o Conde de Canavial. Contudo, nunca desanimou nem deixou de lutar nas fases mais críticas da sua vida. Como militante no partido progressista, desempenhou, por muito tempo, a função de presidente da Assembleia Geral. Para além de vice-presidente da CMF, foi também auditor junto do Tribunal Administrativo do distrito. Morreu no Funchal, em 1906. Obras de Joaquim Ricardo da Trindade e Vasconcelos: Projecto de Lei Regulamentar do Contrato de Colonia ou Parceria Agrícola na Ilha da Madeira (1867); Resposta aos Fundamentos do Recurso Interposto Perante o Conselho de Estado por Sua Majestade a Imperatriz D. Amélia e outros do Despacho pelo qual o Governador Civil Concedeo Licença para a Fundação duma Fabrica de Assucar e de Distiliação d`aguardente na Cidade do Funchal (1867); Regulamento do Theatro Municipal D. Maria Pia da Cidade do Funchal (1894).   Lucinda Maria da Silva Moreira (atualizado a 31.12.2016)

Personalidades

vasconcelos, manuel de santana e

Nascido em 1798 e falecido a 23 de fevereiro de 1851, no Funchal, foi administrador do concelho e autor de várias obras acerca da realidade regional e do proselitismo protestante em vigor na ilha da Madeira à época. Escreveu, nomeadamente, Clamor aos Madeirenses e a notória Revista Historica do Proselytismo Anti-Catholico Exercido na Ilha da Madeira pelo Dr. Robert Reid Kalley. Esta última obra apresenta-se como uma crítica mordaz do autor ao médico escocês Robert Kalley, que se estabeleceu na Ilha e aí fundou uma pequena comunidade cristã protestante, sendo alvo de diversas perseguições religiosas que culminaram com a saída do médico da ilha da Madeira e com a imigração dos crentes para as Caraíbas ou para os Estados Unidos da América. Obras de Manuel de Santana e Vasconcelos: Clamor aos Madeirenses (1835); Revista Historica do Proselytismo Anti-Catholico Exercido na Ilha da Madeira pelo Dr. Robert Reid Kalley (1845).   Amanda Coelho (atualizada a 31.12.2016)

Personalidades

veiga, josé manuel da

O Comendador Dr. José Manuel da Veiga nasceu no Funchal, a 18 de outubro de 1794, e morreu de apoplexia em Lisboa, a 26 de setembro de 1859. Era filho de João Paulo da Veiga e de Jacinta Rosa Leça da Veiga. Em 1816, matriculou-se na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra e, depois de um percurso académico brilhantíssimo, foi ali professor durante alguns anos. Abandonou, porém, a cátedra de professor para estabelecer banca de advogado em Lisboa, onde granjeou fama de notável jurisconsulto. Ainda como aluno da Universidade, terá recebido ordens sacras, inclusive a de presbítero, tendo depois deixado o estado clerical com autorização da Sé Apostólica e recebido a necessária dispensa para se casar. Ao doutorar-se, defendeu uma tese em que abordava precisamente a questão do celibato eclesiástico, condenando-o: Memoria sobre o Celibato Clerical, que deve Servir de Fundamento a uma das Theses dos Actos Grandes de seu Autor (1822). Esta obra teve grande impacto na época (e mesmo posteriormente, já que seria reeditada em 1864), chegando a ser proibida e confiscada. José Manuel da Veiga publicou várias obras, a maioria das quais do âmbito jurídico. Segundo alguns autores, é também dele o opúsculo publicado sob o nome de sua filha: Elementos de Instrucção Moral para Uso da Mocidade Portugueza. Dedicados a Sua Alteza a Senhora Infanta D. Maria Anna, por Theodolinda Amelia Christina Leça da Veiga (1857). Veiga foi um personagem importante no debate acerca do celibato eclesiástico em Portugal, sobretudo durante a primeira metade do séc. XIX. Imposto definitivamente no Concílio de Trento (1545 a 1563), o celibato eclesiástico havia sido posto em causa, já nos sécs. XVII e XVIII, por personagens de primeiro plano da vida pública e cultural portuguesa, como eram os diplomatas Duarte Ribeiro de Macedo e Luís da Cunha. Estes fizeram-no, na altura, em nome da questão demográfica e à luz do chamado direito natural. Quando a questão reaparece durante o Vintismo liberal, a argumentação, embora muito semelhante, está fortemente marcada pela tradição regalista, tal como o seu desenvolvimento posterior, ao longo de todo o séc. XIX, ficará associado à reação contra o ultramontanismo. A questão do celibato eclesiástico foi um dos temas da contestação anticlerical oitocentista, e, no momento em que José Manuel da Veiga o faz, esta contestação é ainda, sobretudo, anticongregacionista. Na verdade, os primeiros liberais continuam a pensar que a Igreja e a religião católica são o fundamento moral e o instrumento de coesão da sociedade. Porém, em seu entender, é justo que o Estado (liberal) exerça pressão sobre certos pontos passíveis de reforma, como são o fim dos privilégios eclesiásticos ou a extinção das congregações religiosas, cujos votos contrariam o direito natural e impedem o exercício da plena cidadania. José Manuel da Veiga é disso um bom exemplo. A sua argumentação contra o celibato eclesiástico visa essencialmente a secularização da sociedade e da cultura, necessária à construção do Estado liberal e ao nascimento do “homem novo”: o cidadão livre. Ela gira, portanto, em torno a três elementos-chave: a defesa do direito natural, as necessidades demográficas e económicas do País e a construção de uma Igreja nacional. Na sua tese de doutoramento, em Coimbra, José Manuel da Veiga defendia que os votos do clero regular e a disciplina do celibato eclesiásticos, sendo ambos impostos ao indivíduo, eram contrários “à liberdade individual e, com ela, às demais leis naturais”, nomeadamente aquela que ordena a reprodução da espécie; como eram ainda, consequentemente, contrários ao direito positivo, uma vez que a propagação da espécie, o direito de procriar e o de fundar família são direitos inalienáveis. Por outro lado, como o celibato não era muitas vezes respeitado, dando motivo a frequentes escândalos, tornava-se imperativo abolir tal disciplina: não o fazendo o Pontífice, era do interesse da religião, da moral e do bem público que o fizesse o poder civil. A crescente secularização fazia do padre “um estrangeiro no meio dos seus concidadãos”, sujeitado a viver (pela sua natureza humana) “consumindo-se no fogo impuro do desejo” (apud GARNEL, 2000, 101ss.). O argumento demográfico é apresentado como um benefício coletivo, causa de desenvolvimento e motivo de emergência da família burguesa. Nas sociedades populosas, diz José Manuel da Veiga, a necessidade obriga os indivíduos “a serem industriosos, procurando uma subsistência difícil no apuro de agricultar as terras ingratas, no esmero das artes, e, florescente a agricultura, tendo no comércio sobeja matéria, necessariamente se há de tornar brilhante”. A supressão das ordens religiosas teria, portanto, consequências no desenvolvimento económico e na restruturação da família, da nova família nuclear burguesa, porque “são as famílias que compõem e sustentam o corpo político”, que promovem o respeito pela propriedade e a boa cidadania (Id., Ibid., 105). Por último, a abolição do celibato eclesiástico seria condição essencial para a nacionalização da Igreja. Para José Manuel da Veiga, o celibato “é prejudicial ao Estado [...] [porque] diminui a representação política», ou seja, não fornece novos cidadãos ao Estado e à sociedade; ora, o casamento dos eclesiásticos celibatários, não só criaria condições para o fomento de bons cidadãos, de amor à pátria e de zelo pela segurança e moralidades públicas, como “os desviaria da dependência em que [estão] da Santa Sé; que permitir-lhe casar era o mesmo que destruir a hierarquia e reduzir o Papa a não ser senão Bispo de Roma” (Id., Ibid., 107). Em suma, para os liberais do início do séc. XIX, os votos e a clausura religiosos não só atentavam contra a liberdade fundamental dos indivíduos (uma ideia que eles herdavam do Iluminismo), como pareciam ir contra o conceito emergente de cidadania: cidadãos livres, capazes de se comprometer e empenhar na construção social pelo seu contributo ao desenvolvimento da nação, e libertos de qualquer subserviência estrangeira. Obras de José Manuel da Veiga: Medea, Ensaio Trágico (1821); Memoria sobre o Celibato Clerical, que Deve Servir de Fundamento a uma das Theses dos Actos Grandes de seu Autor (1822); Projecto de Codigo Criminal (1836); Controversia entre os Advogados, o Dr. Antonio Marciano de Azevedo e o Dr. José Manuel da Veiga, Sobre a Intelligencia da Ordenação... (1832); Apontamentos Juridicos sobre a Celebre Questão da Successão ab Intestato dos Prasos de Nomeação, com Representação ou sem ella (1845); Elementos de Instrucção Moral para Uso da Mocidade Portugueza. Dedicados a Sua Alteza a Senhora Infanta D. Maria Anna, por Theodolinda Amelia Christina Leça da Veiga (1857; autoria não confirmada); Os Aterros da Boa-vista, e o Dominio dos Confinantes (1858).   Porfírio Pinto (atualizado a 31.12.2016)

Personalidades

velosa, josé fernandes

Nasceu na freguesia de Santa Luzia, no Funchal a 11 de abril de 1865. Casou-se em 1883 com Adelaide de Benvinda Jervis Velosa, de quem teve 12 filhos. A sua dedicação filantrópica à causa dos pobres, sem meios económicos que pudessem sustentar tal dedicação, fez da sua vida um exemplo social admirável, numa época em que tal necessidade se fazia sentir com premência pois o chamado Estado social praticamente não existia ou era confundido com assistencialismo. A sua estratégia de gestão levou-o a fundar, em 25 de dezembro de 1894, a Casa dos Pobres Desamparados. Começando com um primeiro albergue dos pobres numa loja da Rua Nova de S. Pedro, passou mais tarde para uma casa de dois pavimentos, na esquina da Rua das Aranhas com a Rua de S. Pedro, até se fixar no palacete que pertencera ao comandante Bettencourt de Miranda. Na visita régia efetuada ao Arquipélago em 1901, a rainha D. Amélia distinguiu a Casa dos Pobres Desamparados com o seu nome; a obra foi louvada por portaria real, sendo conferida ao seu fundador uma condecoração da Ordem de Nossa Senhora da Conceição, por ele recusada com a declaração de que preferia pão para os pobres. Faleceu na casa que fundou, como pretendia, em 30 de janeiro de 1934, com 69 anos.   António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 31.12.2016)

Personalidades

vicentinos (padres da congregação da missão ou lazaristas, e filhas da caridade)

A presença dos filhos de S. Vicente de Paulo na Ilha da Madeira a partir da segunda metade do séc. XIX está intrinsecamente associada à fundação do Hospício da Princesa D. Maria Amélia, por iniciativa de sua mãe, a Imperatriz do Brasil, D. Amélia de Leuchtenberg, viúva de D. Pedro I, Imperador do Brasil, que foi também D. Pedro IV, Rei de Portugal. À procura de clima e ambiente propícios para cura dos males de que sofria, a jovem princesa D. Maria Amélia chegou ao Funchal a 30 de agosto de 1852, na companhia da mãe. Menos de meio ano depois, aí veio a falecer, no dia 4 de fevereiro de 1853. Em memória da filha, a Imperatriz tomou a decisão de fundar o Hospício da Princesa D. Maria Amélia. Para esse fim, foi arrendada uma casa onde o mesmo ficou instalado provisoriamente, a partir de 10 de julho desse ano de 1853, sob a direção clínica do Dr. António da Luz Pita. Para lhe assegurar condições de continuidade, foi aprovada em 19 de julho de 1853 e publicada no Diário do Governo de 5 de agosto desse ano uma lei que estabelecia as garantias necessárias. Adquirido o terreno para a construção do edifício definitivo, os trabalhos foram iniciados em 1856, sendo concluídos em 1859. Ao edifício material, juntou a Imperatriz D. Amélia as diligências necessárias para entregar o serviço dos doentes e dos pobres às Filhas da Caridade. A fundadora do Hospício determinou também que a assistência religiosa aos doentes e ao pessoal do estabelecimento fosse confiado aos sacerdotes da Congregação da Missão, fundada por S. Vicente de Paulo. Os superiores maiores acederam ao convite, que correspondia plenamente ao carisma vicentino, e, no dia 4 de fevereiro de 1862, o Hospício D. Maria Amélia recebia os primeiros doentes, conforme se lia na lápide de mármore preto que foi colocada a meio da escadaria de entrada. As Filhas da Caridade tinham entretanto chegado ao Funchal para se dedicarem ao tratamento dos doentes. Começava assim, na Madeira, a presença estável do serviço corporal e espiritual prestado a pobres e doentes por parte dos filhos e das filhas de S. Vicente de Paulo. Padres da Congregação da Missão A primeira presença de padres da Congregação da Missão no arquipélago da Madeira ocorrera em meados do séc. XVIII. Após as reiteradas solicitações de D. Gaspar Afonso Brandão (1703-1784), Bispo do Funchal, foram enviados, em agosto de 1757, dois padres da Congregação da Missão, destinados à direção do seminário diocesano. Uma vez chegados à Madeira, percebeu-se que não havia condições para instalar e pôr em marcha o estabelecimento de ensino eclesiástico e os dois missionários, João Alasia, piemontês de nascimento, e José Reis, tiveram de ficar hospedados no paço episcopal. Logo iniciaram trabalhos pastorais diversos, tais como pregação de exercícios espirituais aos ordinandos e ao clero, pregação de retiros a religiosos e religiosas de vários conventos, e missões populares nas paróquias da Madeira e Porto Santo. Ao longo de 10 anos, entregaram-se os missionários, muitas vezes na companhia do próprio bispo, a estas tarefas apostólicas próprias do carisma vicentino. Em virtude de persistir a falta de condições para se ocuparem da formação seminarística, finalidade que os levara à Madeira, regressam ao continente em dezembro de 1767, e só um século depois voltam à Ilha. No Hospício, começaram a assegurar o serviço religioso como capelães aquando da chegada das irmãs, em 1862, e depois ininterruptamente, a partir de 1871. Outras missões, além da capelania, lhes foram sendo atribuídas no contexto pastoral da Diocese do Funchal, nomeadamente funções de ensino e de direção no seminário, de pregação e de assistência espiritual, bem como a promoção e o acompanhamento de obras de natureza social e cultural. As tarefas de formação do clero madeirense por parte dos filhos de S. Vicente de Paulo começaram com a entrada de D. Manuel Agostinho Barreto na Diocese do Funchal, em 1877, e acompanharam praticamente os 34 anos do seu governo episcopal. Em 1878, partiu de Lisboa o P.e José Joaquim de Sena Freitas, incumbido da tarefa de pregar o retiro espiritual aos ordinandos e aos seminaristas. Nesse mesmo ano, foi colocado como capelão do Hospício o P.e Ernesto Schmitz que, pouco depois, começaria a colaborar no seminário como professor, embora a direção do estabelecimento só em 1881 tenha sido confiada aos Lazaristas. Aí se mantiveram até à implantação da República, como obreiros da “mais completa e radical transformação que nele [seminário] se operou em toda a sua já longa existência de quase quatro séculos” (SILVA, 1946, 117-118). Entre as duas dezenas de formadores lazaristas que trabalharam no seminário, merecem que aqui recordemos de modo muito particular os P.es Ernesto Schmitz e Léon Xavier Prévot. O primeiro distinguiu-se como prestigiado diretor, conselheiro e modelador de personalidades, a que juntava o apostolado como pregador de missões populares no período de férias escolares; notabilizou-se ainda enquanto reputado botânico e ornitólogo, a quem se ficou a dever, em 1882, a fundação do museu do seminário, onde reuniu importantes coleções no domínio da história natural. O P.e Prévot impôs-se como competente professor de filosofia tomista e, ao mesmo tempo, esteve profundamente empenhado em contribuir para a alfabetização das crianças, mobilizando vontades para abrir escolas nos meios mais pobres da cidade e noutros lugares da Ilha. Com esse objetivo fundou, em 1893, a Obra das Escolas de S. Francisco de Sales e, para torná-la mais conhecida e apoiada, criou o Boletim Mensal Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales, em 1894. Outro padre vicentino que, em condições muito difíceis, foi encarregado da formação do clero madeirense na direção do seminário foi o P.e Bráulio de Sousa Guimarães; jovem sacerdote de 26 anos, desempenhou, desde 1916 até 1919, o cargo de vice-reitor e professor, com reconhecida competência e grande apreço pelos bons serviços prestados à Diocese do Funchal. A dedicação dos Lazaristas à obra do seminário não se confinou aos seus muros. A formação contínua do clero nas componentes espiritual, moral e pastoral, assumiu, no decorrer dos tempos, diferentes formas, de que se regista a União Sacerdotal madeirense que teve como seu diretor espiritual, nomeado a 14 de janeiro de 1914, o P.e José Maria Luís Garcia, capelão do Hospício e antigo professor do seminário, que dinamizou a União Sacerdotal até 1919, ano em que faleceu. Sucedeu-lhe nessa função o P.e Henrique Janssen, que pertencia à comunidade dos padres do Hospício desde 1909. A república decretou a expulsão das ordens e congregações. O efeito dessa decisão anticongreganista foi a saída dos padres vicentinos que pertenciam à comunidade do Seminário diocesano; os capelães do Hospício puderam continuar e manter as atividades costumadas em virtude de o Hospício se encontrar sob tutela da Coroa da Suécia. Foram tempos cheios de dificuldades, mas também de novas oportunidades para desenvolver e alargar os trabalhos de assistência caritativa e de evangelização. O P.e Luís Garcia dedicou-se ao acompanhamento religioso das irmãs, dos doentes, das escolas e das obras que giravam em torno do Hospício; era o caso das Damas da Caridade e da Associação das Filhas de Maria. Mas estendeu o seu zelo muito para além dos muros da capelania, como grande pregador na Sé e em toda a Ilha, e como diretor de consciências. O P.e Manuel da Silveira, outro vicentino, também antigo professor do seminário, a quem foi confiada a capelania da Penha, tornou-a um bem organizado centro de catequese, que serviu de modelo às catequeses paroquiais. Uma das suas particularidades foi a criação de uma Biblioteca da Infância destinada a prolongar o ensino do catecismo, promovendo, através do livro e da leitura, a formação geral de crianças e jovens. Outra iniciativa do P.e Manuel da Silveira consistiu na criação, no Funchal e em meados da déc. de 1920, do Patronato de S. Pedro, um centro constituído por escola elementar para crianças, aulas diurnas e noturnas para adultos, sede de organismos para a juventude, sala de cinema e grupo de teatro. Os padres vicentinos estão igualmente ligados a duas obras de promoção da cultura católica na Madeira, pioneiras no seu tempo: a publicação da revista A Esperança e a criação da Biblioteca Utile Dulci. A Esperança começou a ser publicada a partir de março de 1919. Era uma revista que se propunha contribuir para a formação católica dos leitores. Sucedia ao Boletim Eclesiástico da Madeira, que se publicou desde 1911 até fevereiro de 1919. Embora o leigo António Alves Torres figurasse como diretor nominal da publicação, o diretor efetivo era o P.e José Maria Luís Garcia que, tendo falecido pouco depois, teve no P.e Henrique Janssen um dedicado e persistente animador da revista durante os 20 anos que durou a publicação. A redação e administração tinham a sede na residência dos capelães do Hospício. Entre os vários colaboradores que deram corpo doutrinal à revista contam-se as muitas dezenas de artigos sobre os mais diversos assuntos assinados por “Miles Christi”, isto é, o P.e Henrique Janssen. A orientação de fundo identificava-se com a conceção da democracia cristã baseada no magistério doutrinal do Papa Leão XIII. Dentro da imprensa católica da época, A Esperança chegou a ser considerada uma das melhores publicações periódicas que se publicavam em língua portuguesa. O compromisso com a promoção da cultura católica e da cultura geral no meio madeirense levou os padres do Hospício a fundar uma biblioteca a que foi dado o nome de Biblioteca Utile Dulci. Os primeiros passos são descritos nos termos seguintes por quem a viu nascer: “Aproveitando para a sua instalação, primitivamente, uma sala da escola paroquial da Sé, à rua Dr. Vieira, a biblioteca Utile Dulci foi muito modestamente iniciada a 26 de novembro de 1916 com 15 livros, aos quais não tardaram a juntar-se uns 300 volumes dos quais muitos haviam pertencido aos padres lazaristas, então ausentes no estrangeiro, P.es Pereira da Silva e Sebastião Mendes” (GUIMARÃES, 1962, V, 130). Em 1920, já a biblioteca contava 3000 volumes e o número foi sempre aumentando, bem como o número de empréstimos e o de leitores que frequentavam a sala de leitura. Em nota inserta no Diário da Madeira de 31 de janeiro de 1937, pode ler-se que a Biblioteca Municipal e a Utile Dulci são as duas únicas bibliotecas públicas do Funchal. A este contributo cultural, proporcionado através do livro que a biblioteca tornava acessível, outras iniciativas se juntaram, como o círculo de estudos e as quintas-feiras literárias que, no Instituto de Ensino Secundário e Comercial do Funchal, reuniam pessoas interessadas em enriquecer o âmbito dos seus conhecimentos. Pode dizer-se que, através dos Lazaristas que foram passando pela capelania do Hospício, a Madeira foi berço do movimento ecuménico. Foi no Funchal, no outono de 1889, que se deram os primeiros contactos entre o P.e Fernand Portal (1855-1926) e o anglicano lord Charles Wood Halifax que conduziriam mais tarde às promissoras Conferências de Malines, iniciadas a 6 de dezembro de 1921 e presididas pelo Cardeal Mercier. O P.e Portal, que durante muitos anos sofreu de doença pulmonar, chegou ao Funchal no dia 8 de outubro de 1889 e lá permaneceu até ao dia 4 de maio de 1890. Lord Halifax tinha, pela mesma altura, aportado à Madeira com a família, à procura de um clima suave e saudável. Como já tinha perdido um filho, levado pela tuberculose, e ele mesmo sofria desse mal, quis visitar o Hospício. Ao P.e Portal, um estudioso das instituições eclesiásticas para quem a teologia era apenas uma história do que Deus revelou aos homens, coube a tarefa de o receber. Começou assim uma relação de profunda estima pessoal e de infatigável colaboração na procura de caminhos para o diálogo e a unidade das igrejas. As conversações então iniciadas na Madeira tiveram o consentimento e estímulo do bispo do Funchal, D. Manuel Agostinho Barreto – que em maio de 1890 partiria para Roma, levando o P.e  Portal como seu secretário.  Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo A Companhia das Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo foi autorizada a estabelecer-se em Portugal por alvará de D. João VI, de 14 de abril de 1819. Dois anos depois, começava a organizar-se em Lisboa o primeiro núcleo de irmãs. As obras de assistência aos doentes, aos pobres e às crianças abandonadas foram-se multiplicando até que, no ano de 1834, chegou a legislação de Joaquim António de Aguiar que, extinguindo as ordens religiosas, inviabilizou a continuidade da instituição. Foi preciso esperar até ao outono de 1857 para as Filhas da Caridade, de nacionalidade francesa, voltarem a estabelecer-se em Portugal. À medida que a dedicação aos doentes, pobres e órfãos lhes iam granjeando o respeito e a gratidão das camadas populares mais humildes, nos jornais manipulados por políticos e mentores de orientação maçónica recrudesciam as campanhas contra as Filhas da Caridade. Depois de agitados debates nas mais altas instâncias políticas, esta Companhia recebeu nova ordem de expulsão do território nacional em maio de 1862, sem exceção da Madeira, onde as Filhas da Caridade tinham começado a trabalhar no Hospício D. Maria Amélia cerca de três meses antes. A opinião pública local e poderosas influências apoiaram sempre a presença das irmãs e as suas obras de bem fazer, mas elas acabaram mesmo por deixar o Funchal, em julho do mesmo ano em que tinham iniciado a obra do Hospício. Voltariam em 1871. Em agosto de 1900, as Filhas da Caridade foram convidadas a tomar conta de um pequeno Asilo de Mendicidade, onde eram acolhidos idosos e crianças abandonadas; mas tiveram de o abandonar em julho de 1902, devido a mudanças verificadas na administração. O anticongreganismo dominante deu origem a um decreto de Hintze Ribeiro, datado de 18 de abril de 1901, que obrigava a aprovação governamental as associações religiosas que se dedicassem a obras de beneficência e os respetivos estatutos. Os Estatutos da Associação Religiosa das Irmãs de S. Vicente de Paulo foram aprovados; deles faziam parte o hospital para tuberculosos no Funchal, escolas externas, asilo, ensino doméstico e, na mesma cidade, o já mencionado asilo de mendicidade. Em 1910, foi instaurada a república e com ela ganhou novo fôlego o anticongreganismo. Como todas as ordens e congregações, também as Filhas da Caridade foram intimadas a deixar o país. Acabaram, no entanto, por ficar, em virtude de, estatutariamente, o Hospício se encontrar, como já foi referido, sob a tutela da coroa sueca. Ao lado do Hospício, havia uma escola dirigida pelas irmãs e frequentada por mais de 700 crianças. As Filhas da Caridade que dela se ocupavam foram obrigadas a partir, e forçadas a abandonar a formação das crianças e as obras de assistência aos pobres. O poder republicano mais radical e hostil às congregações religiosas não deu tréguas às Filhas da Caridade nem aos capelães do Hospício. O ardil persecutório recorreu, em 1913, a um indivíduo alto, robusto e de cabelo loiro que, a falar inglês, se apresentou no Hospício como enviado do Rei da Suécia e com o intuito de verificar as contas a fim de as transmitir a Sua Majestade que, segundo dizia, estava descontente com o serviço das irmãs e se dispunha a entregar o estabelecimento a diaconisas protestantes inglesas. A pronta reação das irmãs e dos padres do Hospício consistiu em demonstrar que, segundo os estatutos da instituição, o estabelecimento podia ser fechado, mas nunca entregue a outra congregação ou associação. Tentativa semelhante, a pretexto de pagamento de impostos, seria repetida mais tarde, mas, uma vez mais, sem consequências. O Hospício sentiu os efeitos da guerra de 1914-1918, quando, a 3 de Dezembro de 1916, um submarino alemão atacou barcos ancorados na baía da cidade. Uma canhoneira francesa carregada de munições de guerra foi afundada e as respetivas munições explodiram. Dois obuses caíram no Hospício: um rebentou ao pé do jardim e o outro, sem explodir, alojou-se num edifício da escola, causando apenas danos materiais e um enorme susto. A comunidade do Hospício, ajudada por alguns colaboradores, dedicou-se, ao longo do seu primeiro século e meio de existência, a obras diversas, tais como jardim de infância, creche, escola, lar de idosos, lar para crianças carenciadas, além de obras de formação espiritual, como a Associação das Filhas de Maria Imaculada da Medalha Milagrosa, ereta no Hospício em 1880, as Damas da Caridade, e colaborações na catequese, na pastoral juvenil e no apoio às famílias. Ao findar o século XX, foram fundadas mais duas comunidades de Filhas da Caridade, as comunidades de Gaula e do Monte. Por iniciativa particular e a pedido do bispo do Funchal, as Filhas da Caridade fundaram em Gaula, para serviço dos pobres e de idosos, a Casa da Sagrada Família e Refúgio de S. Vicente de Paulo, que começou a funcionar no dia 1 de maio de 1988, dando apoio a muitas dezenas de pessoas. Em 1956, a Comunidade das Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo adquiriu no Monte, concelho do Funchal, um terreno amplo com moradia destinado a casa de formação e lugar de repouso para as irmãs. A agitação social que acompanhou a Revolução de 25 de abril de 1974 saldou-se pela ocupação do terreno e das instalações, que só foram recuperados pelas Filhas da Caridade depois de moroso processo. Em 1995, o conselho provincial criou aí a Fundação de Santa Luísa de Marillac, uma instituição particular de solidariedade social. A Comunidade do Monte-Quinta Betânia instalou um infantário e uma creche, colaborando com a paróquia na catequese e em serviços religiosos e conferências vicentinas.   Luís Machado de Abreu (atualizado a 30.12.2016)

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