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secretário regional

O Secretário Regional é o membro do governo de uma Região Autónoma que, nomeado sob proposta do Presidente do Governo Regional, está encarregado de dirigir um departamento regional, em termos políticos e administrativos, tendo assento permanente no Conselho de Governo Regional. O Secretário Regional mostra-se, ao invés do que sucede com os Subsecretários Regionais, uma categoria essencial da formação e composição do Governo Regional: sem Secretários Regionais não há Governo Regional, uma vez que o Presidente do Governo Regional não pode acumular o exercício das pastas referentes a todos os departamentos regionais, nem o pode fazer com a ajuda ou coadjuvação apenas dos Subsecretários Regionais. Sendo certo que sem Presidente do Governo Regional também não se pode falar em Governo Regional ou, pelo menos, em governo em plenitude de funções, deve concluir-se que o conceito constitucional e estatutário de Governo Regional se baseia na conjugação simultânea ou coexistência de duas categorias de membros: um Presidente e vários Secretários Regionais. Num outro sentido, o Secretário Regional assume uma particular posição jurídica intragovernamental: os Secretários Regionais são os principais colaboradores do Presidente do Governo Regional, participando com ele na definição da orientação geral da política regional em Conselho do Governo Regional, contando também, por sua vez, com a colaboração e coadjuvação, num plano estatutário de exercício apenas de poderes delegados, dos Subsecretários Regionais. Numa derradeira nota de recorte conceitual, pode dizer-se que os Secretários Regionais, ao contrário dos Subsecretários Regionais, são os únicos membros do Governo Regional que podem exercer funções substitutivas do Presidente do Governo Regional. Os Secretários Regionais são nomeados pelo Representante da República, sob proposta do Presidente do Governo Regional, num exemplo perfeito de poderes entrecruzados ou partilhados: nem o Presidente do Governo Regional consegue incluir no seu elenco governativo pessoas que sejam vetadas pelo Representante da República como membros do Governo Regional, nem o Representante da República pode nomear membros do Governo Regional que não lhe tenham sido propostos pelo Presidente do Governo Regional. Uma vez que a Constituição e o Estatuto Político-Administrativo exigem que a nomeação de cada Secretário Regional assente num acordo entre quem propõe o nome (o Presidente do Governo Regional) e quem aceita proceder à sua nomeação (o Representante da República), pode bem dizer-se que os Secretários Regionais gozam de uma dupla legitimidade política: beneficiam da legitimidade de quem faz a proposta e de quem aceita essa proposta. É essa dupla legitimidade política, sem tomar em consideração a possibilidade de também a pessoa em causa ter sido eleito deputado regional, que cada Secretário Regional deverá expressar junto do Conselho do Governo Regional e difundir no interior do respetivo departamento regional. O início das funções de cada Secretário Regional começa no momento da respetiva posse, cessando o seu exercício de funções verificando-se uma das seguintes situações: Ocorrendo exoneração do Presidente do Governo Regional ou, em caso de morte deste, a posse do novo Presidente do Governo Regional e do inerente Governo; Demissão voluntária junto do Presidente do Governo Regional ou de proposta nesse sentido deste último junto do Representante da República, tendo ocorrido a respetiva exoneração e consequente posse de um novo Secretário Regional que substitua o demitido; Verificando-se a morte ou impedimento permanente do Secretário Regional; Demissão forçada pela condenação definitiva do Secretário Regional por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções (Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, artigo 31.º). No caso de demissão do Secretário Regional por efeito de condenação penal, deve entender-se, à semelhança do que sucede com o Presidente do Governo Regional, que existe um impedimento imediato que obsta à continuação do exercício de funções, devendo o Secretário Regional ser imediatamente substituído por um novo Secretário Regional ou, não sendo isso possível, proceder-se à substituição temporária. Em termos idênticos aos aplicáveis ao Presidente do Governo Regional, se for movido um procedimento criminal contra um Secretário Regional (ou um Subsecretário Regional), sendo ele acusado definitivamente, deve aplicar-se o regime de suspensão do exercício de funções traçado a propósito de idêntico cenário com o Presidente do Governo Regional (Ibid., Presidente do Governo Regional, n.º 4.3.). Configurados juridicamente os Secretários Regionais como órgãos que exercem funções de natureza política e administrativa, desenvolvendo por via individual ou colegial os poderes atribuídos ao Governo Regional, sempre sujeitos à coordenação e orientação do Presidente do Governo Regional, verifica-se que possuem cinco tipos distintos de competência: Competência de execução: aos Secretários Regionais pertence implementar a política definida para os respetivos departamentos regionais, significando isto, antes de tudo, que não possuem autonomia de definição da política da sua própria Secretaria Regional, funcionando como órgãos de execução da política definida pelo Conselho do Governo Regional e dirigida pelo Presidente do Governo Regional; Competência de coordenação e orientação: assim como os Secretários Regionais se encontram sujeitos a tais poderes de garantia da unidade de ação intragovernamental por parte do Presidente do Governo Regional, igualmente gozam de idênticas faculdades de coordenar e orientar a ação dos respetivos Subsecretários Regionais (e funcionários da Secretaria Regional); Competência de participação: os Secretários Regionais integram o Conselho do Governo Regional, competindo-lhes, nessa qualidade, participar na formação da vontade colegial do Governo Regional que, sob o impulso e a condução do Presidente do Governo Regional, define as linhas gerais da política governamental; Competência de representação: os Secretários Regionais asseguram, no âmbito dos seus departamentos regionais, as relações de carácter geral entre o Governo Regional e as restantes estruturas integrantes da Administração da Região Autónoma, integrando-se neste contexto as suas tarefas de participação nos trabalhos da Assembleia Legislativa; Competência de substituição: nas ausências ou impedimentos do Presidente do Governo Regional, os Secretários Regionais encontram-se investidos da faculdade de substituir o Presidente do Governo Regional, salvo existindo um vice-presidente ou tratando-se de um caso vacatura em que as funções são exercidas pelo Presidente da Assembleia Legislativa. Os Secretários Regionais encontram-se sujeitos a uma dupla responsabilidade política formal ou institucional: São individualmente responsáveis perante o Presidente do Governo Regional, devendo prestar contas de toda a atividade desenvolvida no âmbito dos diferentes tipos de competência, podendo ser, a qualquer momento, demitidos pelo Presidente do Governo Regional, apresentando junto do Representante da República a proposta da respetiva exoneração e imediata substituição por um novo Secretário Regional; São ainda responsáveis politicamente perante a Assembleia Legislativa, no contexto da responsabilidade coletiva do Governo Regional decorrente do princípio da solidariedade, tendo o direito e o dever de comparecer no parlamento regional, apesar de este não poder votar moções de censura a Secretários Regionais individualmente considerados, sem embargo de a gravidade da conduta de um único deles poder fundamentar uma moção de censura a todo o Governo. Note-se, porém, que, em sistemas de governo de base parlamentar, a responsabilidade política concentrada dos membros de um governo maioritário obedece a um verdadeiro paradoxo: perante governos alicerçados numa maioria absoluta parlamentar, o resultado de todas as votações efetivadoras da responsabilidade política parlamentar encontra-se antecipadamente determinado, tornando inúteis ou débeis os mecanismos parlamentares de controlo, isto quando, precisamente, mais importantes e necessários seriam para limitar os riscos de abuso do poder. Não se pode ignorar que, por efeito de um modelo de sociedade política aberta e participativa, os Secretários Regionais (e os restantes membros do Governo) se encontram sempre sujeitos a mecanismos de responsabilidade política difusa junto da opinião pública, exercendo aqui particular importância os meios de comunicação social e as redes sociais no controlo e na denúncia de situações de ilegalidade, inconveniência ou inoportunidade do agir governamental.   Paulo Otero (atualizado a 30.12.2017)

Direito e Política

rocha, vitúrio lopes

Vitúrio Lopes Rocha nasceu no Funchal a 5 de setembro de 1752, doutorou-se em matemática no dia 24 de dezembro de 1777 e foi lente de geometria na Universidade de Coimbra. Lecionou as cadeiras de álgebra, em 1779, enquanto substituto extraordinário, e de cálculo, entre os anos de 1780 e 1783, na função de substituto, tornando-se, posteriormente, lente de geometria, função que exerceu entre 1783 e 1795, ano da sua jubilação (a 27 de março). Ocupou o cargo de vereador do Corpo da Universidade (a 27 de março de 1792), o de comissário delegado e visitador das escolas menores da ilha da Madeira (em 1800) e o de comissário da Junta da Diretoria-Geral dos Estudos e Escolas Menores do Reino. Entre os seus escritos, contam-se a sua tese e o manuscrito Sobre os Serviços Prestados pela Astronomia. Obras de Vitúrio Lopes Rocha: Theses ex mathesi universi quas confecto quinquennali studiorum curriculo publice intra diei spatium ad Doctoris Lauream in Conimbricensi Gymnasio obtinendam praeside Josepho Monteiro da Rocha ... proponit Victurius Lopes Rocha (1777); Sobre os Serviços Prestados pela Astronomia (1777).   Rui Gonçalo Maia Rego (atualizado a 17.12.2017)

História da Educação Matemática

reis, manuel pestana dos

Nasceu no sítio de São Tiago, freguesia dos Canhas, concelho da Ponta do Sol, no dia 1 de abril de 1893, filho de José Pestana dos Reis e de Maria da Silva Gaspar. Iniciou a instrução primária em Canhas, com o médico e professor Augusto Camacho, que então lecionava numa dependência da sua casa, concluindo aqui o 1.º grau, ou seja, a 3.ª classe; o 2.º grau, ou 4.ª classe, foi terminado no Funchal, na R. das Pretas, com um professor particular de nome Joaquim Augusto Polónia. Frequentou, de seguida, o Seminário Diocesano do Funchal até ao 4.º ano, concluindo o ensino secundário no Liceu do Funchal, em 1913. Neste mesmo ano, matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, integrando-se na elite católica conservadora e convivendo com o P.e Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), futuro cardeal patriarca de Lisboa (1929-1971), e com o António de Oliveira Salazar (1889-1970), empenhando-se activamente na luta anti-republicana e em defesa dos direitos da Igreja Católica, chegando mesmo a dirigir o semanário O Imparcial (22/02/1912-12/05/1919), do Centro Académico da Democracia Cristã, de 17/06/1915 a 22/02/1917. Foi entretanto, em janeiro de 1917, mobilizado para a Primeira Guerra Mundial, integrando o 3.º grupo de metralhadoras pesadas do Corpo Expedicionário Português, como alferes miliciano. A 19 de abril de 1918, foi um dos feridos na Batalha de La Lys. Desmobilizado da guerra, regressou à Madeira, tendo desempenhado as funções de administrador do concelho do Funchal até o fim da ditadura de Sidónio Pais, assassinado a 14/12/1918. Voltou depois à Universidade de Coimbra, para concluir o curso, mas acabou fazendo os exames finais na Universidade de Lisboa. Em maio de 1922, estreou-se como advogado, com escritório no Lg. do Município, no Funchal. A 2 de janeiro de 1923, toma posse do cargo de vereador da comissão executiva da Câmara Municipal do Funchal e algum tempo depois, de procurador à Junta Geral. A 27 de fevereiro de 1925, tomou parte no Congresso Municipalista do Porto, em representação destes dois organismos administrativos da Madeira. Entretanto, o seu empenhamento como católico militante ganha um novo vigor, através da palavra e da escrita. Profere conferências nas associações católicas, nomeadamente na Juventude Católica do Funchal, na Juventude Católica de Santa Maria Maior e no Círculo Católico de Santa Maria Maior, e colabora na revista católica A Esperança (1919-1938). No número de 1 de junho de 1926, publicou, nesta revista, um artigo intitulado “Os Judeus”, onde revela a matriz nacionalista do seu pensamento político, conjugando-o com o empenhamento na causa católica: alerta para o perigo do domínio judaico do mundo que, segundo afirmava, estava já presente nas casas comerciais, na banca, nas editoras, nas grandes companhias, nos teatros, na maçonaria e na Sociedade das Nações, e associando maçonaria, bolchevismo e judaísmo como sucursais da mesma empresa apostada em derrubar a unidade e a tradição católica das nações. Considerando a expulsão dos judeus de Portugal, no final do séc. XV, como um “facto político de defesa e saneamento social” (REIS, 1926, 122), face ao “mercantilismo sem escrúpulos de usura e de baixa venalidade” (REIS, 1926, 123), justifica a desconfiança e animosidade dos povos, ao longo dos séculos, relativamente aos judeus, devido à persistência do seu ideal messiânico, e da sua coesão rácica e religiosa, bem como à sua vontade de supremacia religiosa e política. O seu combate mais visível e empenhado em prol da causa católica foi porém desenvolvido no diário Correio da Madeira, surgido em março de 1922. Um dos cavalos de batalha de Pestana Reis será a defesa do modelo tradicional de família cristã, condenando o divórcio, a emancipação da mulher e o feminismo; no campo político, condena o sufrágio universal e a democracia, propondo, em alternativa, o corporativismo. Em 1925, é um dos vogais da comissão diocesana do Centro Católico. Em 1928, quando, após a queda da Primeira República, foi revitalizada a Santa Casa da Misericórdia do Funchal, pertenceu à administração da mesma, de que era então provedor o Cón. Manuel Francisco Camacho. Uma outra luta em que Manuel Pestana Reis se envolveu empenhadamente durante a Primeira República foi em prol da autonomia da Madeira. Um momento alto desta reivindicação foi o final do ano de 1922 e princípio de 1923. A 9 de outubro de 1922, o Presidente da República, António José de Almeida, de passagem pela Madeira, no regresso duma viagem ao Brasil, teve uma receção entusiástica na Junta Geral, onde o então presidente da comissão executiva deste órgão autonómico, Fernando Tolentino da Costa (1874-1957), no discurso de boas-vindas, aproveitou para reivindicar mais autonomia para o arquipélago. No dia 16 de novembro teve lugar, no salão nobre da Junta Geral, uma assembleia com representantes das correntes políticas, da imprensa e das forças vivas do Funchal, dela saindo a deliberação de se constituir uma comissão de estudo a quem caberia apresentar um projecto ao Congresso da República, a partir duma proposta genérica redigida pelo Manuel Pestana Reis. O texto, sem negar a ligação a Portugal, justificava a reivindicação de maior autonomia para a Madeira nos pressupostos da existência duma fisionomia própria, com interesses coletivos específicos, e da dificuldade de desenvolvimento face à descontinuidade geográfica, à instabilidade governativa no continente e ao esquecimento por parte do Governo central. A proposta de Manuel Pestana Reis apontava para a criação de um conselho legislativo, eleito pelas Câmaras Municipais e pelas associações de classe, que concentraria todas as atribuições dos diferentes órgãos de poder até aí constantes no estatuto autonómico e a quem competiria elaborar leis no âmbito de interesses locais, e de um conselho executivo, eleito por aquele. Com o advento da Ditadura Militar, a 28 de maio de 1926, a adesão de Manuel Pestana Reis ao novo regime foi um ato natural e lógico, decorrente da sua formação política já anteriormente revelada e assumida e, ao mesmo tempo, um ato de confiança em Salazar, comum a muitos católicos do seu tempo. Em 1930, faz parte da 1.ª comissão distrital da União Nacional. A 11 de julho de 1931, casa-se com Ana de Lurdes Novita Teixeira, filha de António Marques Teixeira, proprietário duma fábrica de massas na Vila da Ponta do Sol. O casamento realizou-se na capela de N.ª Sr.ª da Conceição, na Tabua, propriedade do sogro. Neste mesmo ano, passou a residir em Lisboa, lecionando no Liceu Camões. De 1 de abril de 1936 a 22 de março 1943, desempenhou o cargo de diretor do Diário da Manhã (1931-1971), jornal oficial da União Nacional. Como membro da comissão de propaganda da União Nacional, proferiu vários discursos e conferências e colaborou na Emissora Nacional, redigindo durante vários anos as “Notas do dia” (curtas referências a acontecimentos que a direção da rádio considerava relevantes, e a pretexto dos quais aproveitava para emitir doutrina política). Foi deputado na Primeira e Segunda Legislaturas, em 1935-1938 e 1938-1942. Neste último ano, foi chamado a assumir os cargos de diretor do colégio principal da Casa Pia, em Belém, e Pina Manique, e ainda o de provedor adjunto da Casa Pia, desempenhando estas funções até outubro de 1953, quando, por motivos de saúde, se aposentou. A partir de 1953, passou a residir na Madeira, ora no Funchal ora na Ponta do Sol, dedicando-se a gerir negócios da família. Faleceu a 4 de julho de 1966, no Funchal.   Obras de Manuel Pestana Reis: “Em Louvor do Povo e da Terra” (1922); “Palavras que o vento leva” (1922); “Regionalismo / A Autonomia da Madeira / Falou Já o Sentimento; Fale Agora a Razão” (1922); “Os Judeus” (1926).     Gabriel Pita

Personalidades

região autónoma

A divisão fundamental das formas de Estado, de há muito formulada pela doutrina, dá‑se entre Estados simples ou unitários e Estados compostos ou complexos. Critérios de distinção são: unidade ou pluralidade de poderes políticos (ou de poderes soberanos na ordem interna); unidade ou pluralidade de ordenamentos jurídicos originários ou de constituições; unidade ou pluralidade dos sistemas de funções e órgãos do Estado; unidade ou pluralidade de centros de decisão política a se. Apesar das diferenças de perspetivas, coincide‑se nos resultados. O Estado unitário tanto pode ser Estado unitário centralizado como Estado unitário descentralizado ou regional. Se todos ou quase todos os Estados do mundo admitem descentralização administrativa, quer de âmbito territorial – através de municípios ou comunas e através de circunscrições mais vastas –, quer de âmbito institucional ou funcional – através de associações, fundações, institutos ou outras entidades públicas –, só alguns Estados comportam descentralização política. E não é a descentralização administrativa, mas sim a política que aqui importa. Esta descentralização política é sempre a nível territorial: são províncias ou regiões que se tornam politicamente autónomas por os seus órgãos desempenharem funções políticas e participarem, ao lado dos órgãos estatais, no exercício de alguns poderes ou competências de carácter legislativo e governativo. Daí que se fale em Estado regional. A conceção constitucional específica e a elaboração teórica do regionalismo político são relativamente recentes, sem embargo de certas notas características se encontrarem antes. Aquelas remontam à Constituição espanhola de 1931 e à Constituição italiana de 1947. A doutrina dominante parece inclinar‑se para a sua inserção dentro do Estado unitário. Mas há também quem pense tratar‑se de um tertium genus e quem entenda que, por causa dele, fica posta em causa a distinção clássica entre Estados unitários e Estados federais. Podem ser apontadas várias categorias de Estados descentralizados. No Estado regional integral, todo o território se divide em regiões autónomas. No Estado regional parcial, encontram‑se regiões politicamente autónomas e regiões ou circunscrições só com descentralização administrativa, verificando‑se, pois, diversidade de condições jurídico‑políticas de região para região. Esta é também uma diferença clara em relação ao Estado federal, sempre integral por natureza (sempre formado, inteiramente, por um maior ou menor número de Estados federados). No Estado regional homogéneo, seja integral ou parcial, a organização das regiões é, senão uniforme, idêntica (a mesma no essencial para todos). No Estado regional heterogéneo, ela pode ser diferenciada ou haver regiões de estatuto comum e regiões de estatuto especial. Em geral, as regiões são criadas pela Constituição, mas conhecem‑se casos – ainda que de necessária relevância a nível de Constituição material – de regiões instituídas por lei (caso da Gronelândia) e até pelo direito internacional (caso do Alândia). Como exemplos de Estados regionais integrais apontem‑se o Brasil (no Império, após a revisão da Constituição em 1834), a Áustria (antes de 1918), a Itália, a Espanha (na vigência da Constituição de 1978) ou a África do Sul (com a Constituição de 1996). Como exemplos de Estados regionais parciais indiquem‑se a Finlândia (por causa da Alândia), a Espanha (aquando da Constituição de 1931), a Dinamarca (quanto às ilhas Feroé e à Gronelândia), Portugal (desde 1976, em virtude das regiões autónomas dos Açores e da Madeira), a Rússia, a Ucrânia (por causa da Crimeia), a China (sobretudo por causa de Hong Kong e de Macau), o Reino Unido (com a Irlanda do Norte, a Escócia e Gales, a partir de 1998 e de 1999) a Geórgia (com a Ajária e a Ossétia do Sul), ou São Tomé e Príncipe (em relação à ilha do Príncipe). Como exemplos de Estados regionais heterogéneos refiram‑se a Itália, com regiões de estatuto especial (Sicília, Sardenha, Vale de Aosta, Trentino-Alto Ádige e Friul-Veneza Júlia) e regiões de estatuto comum (as restantes), e a Espanha atual (com comunidades autónomas de regimes diversos). O grau de descentralização varia muitíssimo; compreende regiões que pouco mais parecem que coletividades administrativas e regiões que parecem Estados‑membros de uma federação. Geralmente, os estatutos são‑lhes outorgados pelo poder central, mas há casos (as regiões italianas, as regiões autónomas portuguesas) em que elas chegam a participar na elaboração e na revisão desses estatutos. A maior semelhança possível entre Estado regional e Estado federal dá‑se quando aquele é integral e as regiões, além de faculdades legislativas, possuem faculdades de auto‑organização. Mesmo assim, porém, cabe distinguir: porque o ato final, a vontade última na elaboração ou na alteração dos estatutos regionais pertence ao poder central (ou seja, as regiões não têm poder constituinte); porque as regiões tão-pouco participam na elaboração e na revisão da constituição do Estado, como unidades políticas distintas dele (ou seja, o poder constituinte do Estado é delas independente). Juridicamente, o Estado federal dir‑se‑ia criado pelos Estados componentes. Pelo contrário, as regiões são criadas pelo poder central e as atribuições políticas que têm tanto podem vir a ser alargadas como extintas por este. Mais ainda: se o Estado federal desaparecer, em princípio os Estados federados adquirem ou readquirem plena soberania de direito internacional; não assim as regiões autónomas, as quais, como quaisquer outras coletividades descentralizadas, ou desaparecem com o Estado ou carecem de um ato específico para obterem a soberania. Os desmembramentosno final do séc. XX, da União Soviética, da Jugoslávia e da Checoslováquia, com o acesso à plena soberania dos Estados que as compunham, mostra bem que, mesmo em federações politicamente fictícias, perdura um resíduo de “estatalidade” pronto a revivescer se as condições assim o permitem. Com a descentralização política regional não se confunde a regionalização, traduzida em desconcentração regional e, sobretudo, na criação de autarquias supramunicipais. Se a dimensão e alguns dos objetivos das regiões que assim se apresentam em alguns países podem ser semelhantes aos das regiões autónomas, os meios orgânicos e funcionais oferecem‑se bem diversos. Só as regiões autónomas possuem órgãos e funções de natureza política e, portanto, apenas estas afetam a forma do Estado. A par da autonomia regional, que é efeito da descentralização política ou político‑administrativa, conhece‑se a autonomia (ou talvez melhor, uma gama algo diversificada de formas de autonomia) de que são dotadas certas comunidades territoriais dependentes de outros Estados ou em regimes especiais. Trata‑se aqui de um conceito empírico destinado a descrever algo de situado entre a não autonomia territorial e o estatuto de Estado independente ou entre a não autonomia territorial e a integração em Estado independente, em igualdade com quaisquer outras comunidades que deste façam parte. São, designadamente, quatro os tipos de estatutos de autonomia de comunidades territoriais: autonomia derivada de antigos laços feudais (a ilha de Man e as ilhas Anglo‑Normandas em relação à Coroa britânica); autonomia ligada a vínculos coloniais, semicoloniais ou pós‑coloniais (as colónias autónomas e semiautónomas britânicas, como é o caso de quase todos os países da Commonwealth of Nations antes de acederem à independência e das Bermudas, de Gibraltar ou das ilhas Caimão, entre outros territórios; de certo modo, dos territórios ultramarinos franceses, como a Nova Caledónia ou a Polinésia; de Guame, das ilhas Marianas do Norte e da Samoa Americana, em relação aos Estados Unidos); autonomia com associação a outros Estados (as Antilhas Holandesas e Aruba em face da Holanda, Porto Rico perante os Estados Unidos, as ilhas Cook e Niue em relação à Nova Zelândia); autonomia ligada a situações internacionais especiais (Fiume entre 1919 e 1924, o Sarre entre 1919 e 1935 e entre 1945 e 1955, Danzig entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, Trieste entre 1947 e 1954, Berlim entre 1949 e 1990, Macau entre 1976 e 1999; numa fase de preparação para a autodeterminação, alguns territórios sob mandato ou sob tutela). A estrutura da autonomia das regiões autónomas e a das comunidades territoriais dependentes acabadas de enunciar dir‑se‑iam prima facie similares. Há autonomias mais extensas ou menos extensas num lado e noutro e também são variáveis os poderes de controlo e de intervenção das autoridades estatais. Mas a natureza e o sentido da autonomia são completamente diversos, consoante se trate da autonomia com integração ou sem integração. A autonomia própria das regiões autónomas é uma autonomia com integração. É a autonomia – sejam quais forem as razões em que se funde – de comunidades que compõem, com outras, um povo, ao qual corresponde um certo e determinado Estado e que, por essa via, têm pleno acesso à soberania desse mesmo Estado. Pelo contrário, a autonomia sem integração – resulte ela de laços feudais, coloniais, associativos, internacionais ou outros – implica uma separação e, ao mesmo tempo, uma subordinação. A comunidade que dela goza não se considera constitutiva do povo do Estado soberano a que se encontra vinculada e está, portanto, numa espécie de capitis deminutio perante ele; o seu território não é parte integrante do território desse Estado soberano (ou se, porventura, é declarado parte integrante, encontra‑se numa condição particular frente à metrópole); em virtude desta diferenciação, avulta a imperfeição do respetivo estatuto constitucional. É uma constante do direito constitucional português a unidade ou unicidade do poder político, com maior ou menor grau de descentralização e desconcentração (embora a locução “Estado unitário” só apareça desde a Constituição de 1911). Apenas a Constituição de 1822 esboçara algo diferente: uma união real com o Brasil – aliás, bastante imperfeita, por faltar uma assembleia própria do Brasil, e logo ultrapassada, por, ainda antes da aprovação final do texto constitucional, o Brasil se ter declarado independente. Para além disso, não houve senão a aplicação tendencial dos princípios da especialização e da descentralização legislativas aos territórios ultramarinos pelas Constituições de 1838, 1911 e 1933 e pelo Ato Adicional à Carta de 1852. O art. 6.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), em contrapartida, vem converter os Açores e a Madeira em regiões autónomas dotadas de estatutos político‑administrativos e de órgãos de governo próprio (CRP, art. 6.º, n.º 2). Esta é uma fortíssima alteração qualitativa, introduzida não somente na situação dos arquipélagos – cujos distritos, desde 1895, gozavam de maior autonomia administrativa do que os distritos continentais –, mas também na própria estrutura do Estado português – correspondente à nação portuguesa, no seu espaço europeu e atlântico –, que, pela primeira vez na história, confere assim poderes substancialmente políticos a órgãos regionais com titulares não designados pelo poder central. Não se adotou uma regionalização política integral: as regiões administrativas previstas para o continente – a existirem – constituirão meras autarquias locais (CRP, arts. 236.º, n.º 1, 255.º-262.º). Portugal não deixa, por isso, de ser um Estado unitário regional (apesar de esta designação não estar expressamente consagrada no texto constitucional). Se bem que situada no contexto de 1975‑1976 (com o país saindo do processo revolucionário, com o poder central enfraquecido e perante certos receios de separatismos), a decisão constituinte correspondeu a algo de muito profundo. Foi uma resposta adequada tanto às reivindicações de desenvolvimento e de autonomia das populações insulares como aos próprios princípios constitucionais proclamados (descentralização e participação). Três dos projetos de Constituição apresentados à Assembleia Constituinte já contemplavam um regime político‑administrativo, mas o impulso para a sua definição viria das “juntas regionais” (entretanto constituídas nos dois arquipélagos pelo Governo provisório) e, sobretudo, da 8.ª Comissão e dos debates travados no plenário da Assembleia Constituinte quase no termo dos seus trabalhos. Entrada em vigor a CRP, logo o Governo provisório publicou – em obediência ao seu art. 302.º – estatutos provisórios e leis eleitorais para as primeiras eleições regionais. Estes estatutos vigorariam até serem elaborados os estatutos definitivos (CRP, art. 302.º, n.º 3), o que aconteceria, quanto aos Açores, com a lei n.º 39/80, de 5 de agosto (depois alterada pela lei n.º 9/87, de 20 de março, pela lei n.º 61/98, de 27 de agosto, e pela lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro), e, quanto à Madeira, com a lei n.º 13/91, de 5 de junho. As revisões constitucionais – sobretudo a de 1997 e, muito mais ainda, a de 2004 – introduziram clarificações e modificações importantes, sempre no sentido de um aumento da autonomia. Em 1982, as regiões autónomas receberam poder tributário próprio, o poder de definir atos ilícitos de mera ordenação social, o poder de criar e extinguir autarquias locais e o poder de participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos (CRP, art. 229.º, posteriormente 227.º). Foram aperfeiçoadas as regras sobre a reserva de competência da Assembleia Regional e sobre o veto do ministro da República (CRP, arts. 234.º e 235.º, depois 232.º e 233.º). Desapareceu a possibilidade de suspensão dos órgãos regionais pelo Presidente da República (CRP, art. 234.º inicial). Foi extinta a comissão consultiva para os assuntos das regiões autónomas (CRP, art. 236.º inicial). Assimilou‑se o contencioso de legalidade de normas regionais ou perante os estatutos regionais ao contencioso de constitucionalidade (CRP, arts. 280.º e 281.º). Em 1989, reconheceu‑se às assembleias, posteriormente chamadas Assembleias Legislativas Regionais, o poder de desenvolver Leis de Bases. Admitiram‑se autorizações legislativas da Assembleia da República a essas Assembleias para efeito de derrogação de leis gerais da República em matérias não reservadas aos órgãos de soberania. Foram concedidos às regiões os poderes de estabelecer cooperação com entidades regionais estrangeiras e de participar em organizações que tenham por objeto fomentar o diálogo e a cooperação inter‑regionais (CRP, art. 229.º, posteriormente 227.º). Garantiram‑se direitos de informação à oposição nessas Assembleias (assim como, aliás, às oposições do poder local) (CRP, art. 117.º, depois 114.º, n.º 3). Em 1992 e em 2001, nenhum preceito sobre regiões autónomas foi modificado. A revisão constitucional de 1997 reforçou o poder legislativo das regiões, pela subordinação de respetivos decretos aos princípios fundamentais das leis gerais da República, e não simplesmente às leis gerais da República (quer dizer, aos preceitos, um a um, destas leis), e pela enunciação, a título exemplificativo, de matérias de interesse específico (CRP, arts. 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º). Abriu caminho a um regime estável de finanças regionais, objeto de lei orgânica (CRP, arts. 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3). Consagrou a participação das regiões no processo de construção europeia (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas v) e x)). Eliminou a cláusula de vedações do art. 230.º inicial. Reduziu o conteúdo funcional do estatuto dos ministros da República, que deixaram de representar a soberania da República, de ter assento em Conselho de Ministros e de exercer funções administrativas, salvo, mediante delegação do Governo, poderes de superintendência nos serviços regionais do Estado, e cujos mandatos ficaram a coincidir com o do Presidente da República (CRP, art. 230.º). Atribuiu ao Governo regional um poder de auto‑organização (CRP, art. 231.º, n.º 5). Criou o referendo regional (CRP, art. 232.º, n.º 2). E passou a admitir a dissolução das Assembleias Legislativas apenas por prática de atos graves contrários à Constituição (CRP, art. 234.º). A revisão de 2004 iria muito mais longe, assimilando, para vários efeitos, o regime das Assembleias Legislativas das regiões autónomas (e não mais Assembleias Legislativas Regionais) ao regime da Assembleia da República (CRP, arts. 52.°, n.º 2 e 232.°, n.° 4); permitindo a delegação de competências do Governo da República aos Governos regionais, com a correspondente transferência de meios financeiros e os mecanismos de fiscalização aplicáveis (CRP, art. 229.°, n.° 4); substituindo os ministros da República para as regiões autónomas por representantes da República, nomeados e exonerados pelo Presidente da República, apenas ouvido o Governo (e não sob proposta do Governo) e sem poderem receber, por delegação do Governo, competências de superintendência nos serviços do Estado nas regiões (CRP, arts. 230.°; 134.°, alínea i) e 145.°, alínea c)); suprimindo o poder do Presidente da República de dissolver os órgãos de governo próprios das regiões por prática de atos graves contrários à Constituição (CRP, art. 234.°, n.° 1), passando a admitir-se, porém, a dissolução das Assembleias Legislativas em termos análogos aos da dissolução da Assembleia da República (CRP, arts. 234.°, n.os 1 e 3, e 133.°, alínea j)) e ficando, em caso de dissolução, os Governos regionais demitidos, mas com as funções de Governo de gestão (CRP, art. 234.°, n.° 2). Por outro lado, esta revisão constitucional: eliminou o interesse específico como critério definidor dos poderes legislativos regionais (CRP, arts. 112.°, n.° 4, e 227.°, n.° 1, alínea a)), bem como a referência a leis gerais da República (mesmos preceitos), embora estas não desapareçam, obviamente, porque continua a haver leis aplicáveis a todo o território nacional, quer no âmbito da reserva dos órgãos de soberania, quer quando falte legislação regional própria não reservada a estes órgãos (CRP, art. 228.°, n.° 2) – simplesmente, nesta segunda hipótese, novos decretos legislativos regionais prevalecem sempre no âmbito regional; remeteu para os estatutos político-administrativos as matérias não reservadas aos órgãos de soberania em que consiste a autonomia legislativa regional (CRP, art. 228.°, n.° 1), mas devendo os correspondentes preceitos estatutários ser aprovados, na Assembleia da República, por dois terços dos deputados presentes, desde que o seu número seja superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções (CRP, art. 168.º, n.º 6, alínea f)); reiterou o poder (perdido em 1997) de transposição de atos jurídicos da União Europeia que versem sobre matérias de autonomia legislativa (CRP, arts. 112.°, n.° 8, e 227.°, n.° 2, alínea x)); em vez da possibilidade de autorizações legislativas para derrogação de princípios fundamentais de leis gerais da República, previu a possibilidade de autorizações legislativas sobre a maior parte das matérias de reserva relativa da Assembleia da República, se bem que não das mais importantes no plano dos direitos fundamentais e dos órgãos de poder (CRP, art. 227.°, n.° 1, alínea b)); possibilitou o desenvolvimento por decreto legislativo regional, para o âmbito regional, dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam – de quaisquer leis, sem exceção, incluindo em matérias reservadas à Assembleia da República (CRP, art. 227.°, n.° 2, alínea d), em confronto com o anteriormente estipulado). O art. 225.º da CRP aponta os fundamentos, as finalidades e os limites da autonomia regional (parecendo, em parte, uma exposição de motivos): “1. O regime político‑administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira fundamenta‑se nas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares. – 2. A autonomia das regiões visa a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico‑social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses. – 3. A autonomia político‑administrativa regional não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce‑se no quadro da Constituição”. A despeito de ser muito denso, este artigo deve ser lido em conexão com os arts. 9.º, alínea g), 81.º, alínea d), 90.º e 229.º, n.º 1: é tarefa fundamental do Estado promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o “carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira” (CRP, art. 9.º, alínea g)); os órgãos de soberania asseguram, em cooperação com os órgãos do Governo regional, o desenvolvimento económico e social das regiões autónomas, “visando, em especial, a correção das desigualdades derivadas da insularidade” (CRP, art. 229.º, n.º 1). A par dos elementos estritamente políticos, põem‑se, assim, em foco elementos económicos e sociais. Para além da autonomia como valor em si e da maior e mais direta participação dos cidadãos na gestão dos assuntos que lhes dizem respeito, pretende‑se realizar a igualdade efetiva entre os Portugueses (CRP, art. 9.º, alínea d)). Porque a vida nas ilhas, mormente nas menores e mais afastadas, arrasta carências e obstáculos à plena fruição de direitos económicos, sociais e culturais, incumbe ao Estado e às regiões, em diálogo e obra comum, procurar remover tais carências e obstáculos através do desenvolvimento e da solidariedade. No essencial, o regime político‑administrativo da Madeira e dos Açores consiste em: atribuição de poderes atinentes ao tratamento das matérias de âmbito regional, designadamente poderes legislativos (CRP, arts. 227.º, n.º 1, alíneas a), b), c), i), l), m), p), 1.ª parte, e q), 112.º, n.º 8, e 228.º), regulamentares (CRP, art. 227.º, n.º 1, alínea d)) e executivos (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas g), h), m) e o)); atribuição também de poderes de participação em atos de órgãos do Estado que afetem especificamente as regiões (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas e), f), p), 2.ª parte, r), s), t), v) e x)); atribuição ainda de poderes adjetivos ou de garantia (CRP, arts. 281.º, n.º 2, alínea g), e 283.º, n.º 1); criação de uma assembleia representativa e de um governo perante ela responsável como órgãos de governo próprio (CRP, arts. 231.º e 232.º); reserva de iniciativa das Assembleias Legislativas Regionais quanto aos estatutos das respetivas regiões e quanto à eleição dos seus deputados (CRP, art. 226.º); articulação dos órgãos de soberania e dos órgãos de autonomia, através de vários poderes do Presidente da República (CRP, arts. 133.º, alíneas b), d), j) e l), e 234.º), dos poderes de participação das regiões, do Conselho de Estado (CRP, art. 242.º, alínea e)) e do representante da República (CRP, arts. 230.º, 231.º, nos 3 e 4, e 233.º); integração da produção legislativa regional no sistema legislativo nacional (CRP, arts. 112.º, 227.º, 228.º e 278.ºss.), bem como das finanças regionais no sistema financeiro nacional (CRP, arts. 106.º, n.º 3, alínea e), 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3). Em confronto com os sistemas regionais mais próximos (o italiano e o espanhol) depara‑se, como notas individualizadoras do sistema português, além do seu carácter parcial: a aprovação do estatuto de cada região por lei ordinária (CRP, art. 166.º, n.º 3) e não por lei constitucional, ainda que o seu processo ofereça significativas particularidades (CRP, art. 226.º); o valor reforçado do estatuto (CRP, arts. 280.º, n.º 2, alíneas b), c) e d), e 281.º, n.º 1, alíneas c) e d)); a explícita consagração constitucional de poderes de incidência internacional (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas s) a x)); a atribuição às regiões não só de poder tributário próprio mas também de todas as receitas tributárias nelas cobradas (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas i) e j)); o sistema de governo regional (CRP, art. 231.º), diferente do sistema de governo a nível nacional; a proibição de partidos regionais (CRP, art. 311.º, n.º 2, no texto inicial; 51.º, n.º 4, posteriormente). Até à revisão constitucional de 2004, também poderia ser referida a definição da autonomia legislativa com base em conceitos relativamente indeterminados – “interesse específico e leis gerais da República” (CRP, arts. 112.º, n.os 4 e 5, e 227.º, n.º 1, alíneas a), b) e c)). Ponto importante a dilucidar vem a ser o atinente ao sentido dos estatutos das regiões. A função de cada estatuto (note‑se, político‑administrativo) consiste em definir as atribuições regionais e os meios correspondentes (CRP, art. 227.º), bem como o sistema de órgãos de governo próprio da região, incluindo os estatutos dos respetivos titulares (CRP, art. 231.º); ou, em geral, em desenvolver, explicitar ou concretizar as normas do título vi da parte iii da Lei Fundamental, adequando‑as às especificidades e às circunstâncias mutáveis dessa região; não consiste em estabelecer os princípios de toda a vida política, económica, social e cultural que aí se desenrola, porque isso cabe à Constituição – que é a Constituição da República, e não só do continente. Há uma reserva de estatuto, com a necessária densificação (voltamos a dizer). Em contrapartida, ela define, concomitantemente, o objeto possível de cada estatuto em concreto. O estatuto não é uma constituição com amplitude potencialmente ilimitada. Cabe‑lhe definir o interesse específico, cerne da autonomia, mas não regular matérias de interesse específico. Cabe‑lhe assegurar um sistema político regional, mas não substituir‑se‑lhe ou substituir‑se aos órgãos de soberania. Por outro lado, competindo a iniciativa originária do estatuto ou das suas alterações à Assembleia Legislativa (CRP, art. 226.º), se o estatuto pudesse abarcar qualquer matéria, ficaria, por esse modo, limitado o poder de iniciativa dos deputados, dos grupos parlamentares, de grupos de cidadãos ou do Governo da República relativamente a essa matéria (CRP, art. 167.º). A Assembleia pode, certamente, apresentar propostas de lei, “no respeitante” à região, sobre qualquer objeto (CRP, art. 167.º, n.º 1, 2.ª parte), o que não justifica transformar essa matéria em matéria estatutária. Se um dos estatutos contiver normas sobre outras matérias que não as respeitantes às atribuições e aos órgãos e aos titulares dos órgãos regionais, essas normas não adquirirão a força jurídica específica das normas estatutárias. Por conseguinte, poderão ser modificadas ou revogadas, observadas as pertinentes regras gerais da Constituição; ou poderão, desde logo, ser inconstitucionais por invadirem domínios próprios de outras leis. Não custa pensar em exemplos de inconstitucionalidade de eventuais normas estatutárias por preterição da distribuição constitucional de formas e procedimentos legislativos. Seria o caso de normas sobre eleições dos titulares dos órgãos de governo próprio ou dos titulares dos órgãos do poder local na região (afetando o art. 164.º, alíneas j) e l), e o art. 166.º, n.º 2 da CRP), sobre criação, extinção ou modificação territorial de autarquias locais (infringindo o art. 164.º, alínea n) da CRP), ou sobre direitos, liberdades e garantias (contra o art. 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP), ou sobre reprivatizações (CRP, art. 296.º). Quanto às eleições, em especial, não se esqueça o tratamento homogéneo que recebem da Constituição, quer no plano dos grandes princípios substantivos (CRP, arts. 10.º, 49.º; e 113.º), quer no da regulamentação legislativa (CRP, arts. 164.º, alíneas a), j) e l), e 136.º, n.º 3, alínea c)), quer no da competência do Presidente da República (CRP, art. 133.º, alínea b)), quer ainda no plano dos limites materiais da revisão constitucional (CRP, art. 288.º, alínea h)). Esse tratamento unitário e reforçado – compreensível por causa da importância fulcral das eleições em democracia representativa (CRP, art. 10,º, n,º 1) – ficaria afetado se o regime das eleições regionais fosse repartido pelas leis eleitorais e pelos estatutos. Em escritos de há vários anos, tendíamos a reconduzir as situações a inconstitucionalidade formal por excesso de forma. Revendo a nossa posição, desdobrámo‑las agora em geral, em mera irrelevância e, em hipóteses como as acabadas de enunciar, em inconstitucionalidade – por insuficiência de forma, no caso das eleições, quando se não respeitem as regras próprias das leis orgânicas (CRP, arts. 136.º, n.º 3, 168.º, n.º 5, e 278.º, n.º 5); e, nos demais casos por desvio de forma (por se utilizar uma forma para fim diferente daquele para o qual está instituída). Por outro lado, sustentávamos que se a Assembleia da República viesse, subsequentemente, a legislar sobre matérias que não deviam constar dos estatutos, ocorreria um conflito entre constitucionalidade e legalidade: as normas estatutárias seriam inconstitucionais, as normas não estatutárias ilegais; e, solicitada a apreciação da legalidade em tribunal, poderia este suscitar ex officio a questão da constitucionalidade daquelas, visto que, para serem padrão de validade de outras normas, teriam de ser conformes com a Constituição. Mas hoje estimamos desnecessário raciocinar assim, porque só as normas sobre objeto próprio dos estatutos poderão determinar ilegalidade, não quaisquer outras, e, portanto, não se põe o problema. Contra a consideração de mera irrelevância, há quem pretenda que não seria razoável dar ao legislador comum a possibilidade de destacar as normas que entenda a seu bel‑prazer serem estatutárias e não estatutárias “por natureza”; e, contra a qualificação de certas normas estatutárias como inconstitucionais pelo próprio órgão legislativo, quem invoque o sistema de fiscalização, que não consente à Assembleia da República nenhuma decisão autónoma de constitucionalidade. Mas julgamos que as críticas não atingem o alvo, pois que não preconizamos que o legislador declare, explícita ou implicitamente, inconstitucional qualquer norma; o Parlamento agirá como tal, simplesmente legislando, por sua conta e risco – sobre eleições, como sobre qualquer outra matéria – e quem irá decidir, em última análise, da constitucionalidade e da legalidade de todas as normas será o Tribunal Constitucional.   Jorge Miranda (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Política e Institucional

quintal, luís de ornelas nóbrega e

Advogado, jornalista e poeta, Nóbrega e Quintal nasceu no Funchal a 18 de junho de 1895 e faleceu com 69 anos, em Lisboa, no dia 5 de abril de 1965. Os seus pais foram Francisco de Nóbrega Quintal e Elisa de Ornelas Pinto Coelho. Era irmão de Francisco Ornelas Nóbrega Quintal, um oficial da marinha mercante. Estudou no Liceu do Funchal e, mais tarde, licenciou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi ministro da Instrução, deputado pela Índia em 1919 e, nesse mesmo ano, foi nomeado chefe da 3.ª repartição da Direção Geral da Administração Política e Civil do Ministério das Colónias. Na altura do alto-comissariado de Norton de Matos em Angola, em 1921, tendo então apenas 27 anos, foi governador do distrito de Quanza do Sul. Foi diretor do periódico Gente Nova, que contou com um número único (fev. 1913), comemorativo do primeiro aniversário da Caixa Escolar do Liceu do Funchal. Para além de textos da sua autoria, esta publicação reuniu contributos de Eugénia Rego Pereira, Jaime Câmara, Manuel Ribeiro e João Cabral do Nascimento. Colaborou também no Almanaque de Lembranças Madeirenses, bem como noutros jornais: O Povo, A Voz do Povo, Diário de Notícias, Heraldo da Madeira, Diário da Madeira e República, jornal de Portugal continental de que foi um dos redatores. Quer como jornalista, quer como poeta, Nóbrega e Quintal assumiu uma vocação romântica, evidenciada na sua linguagem sentimental e melodiosa. Assinava os seus textos como Nóbrega-Quintal. Consta que terá deixado inéditos três livros de poesia: Alvoradas, Luar de Sonho e Novas Alvoradas. Luís Marino fixou, na sua obra Musa Insular, três sonetos que permitem aflorar o estilo poético de Nóbrega e Quintal: “Noivados”, “Contraste” e “Excerto dum Poemeto”.   António José Borges (atualizado a 16.12.2017)

Personalidades

juiz de fora

O juiz de fora esteve presente na orgânica administrativa insular entre 1645 e 1834, na qualidade de presidente da Câmara Municipal do Funchal. Era um funcionário integrado na administração periférica da Coroa; a sua ida para a Ilha ter-se-ia justificado com a necessidade de implementar uma melhor administração da justiça e de presidir ao município sediado no mais importante centro urbano do arquipélago da Madeira. O juiz de fora teria de ser, necessariamente, um indivíduo letrado, com título de bacharel em Direito romano pela Universidade de Coimbra, e era designado pelo Rei para exercer um mandato com a duração de três anos, o qual poderia ser prorrogado por vontade régia. Por norma, essa nomeação ocorria na sequência da aprovação num exame promovido pelo Desembargo do Paço, destinado a aferir as capacidades dos candidatos para o exercício de uma determinada função no âmbito da magistratura régia. Chegado ao Funchal, o juiz de fora deveria apresentar, junto da Câmara Municipal, o documento de que constava a sua nomeação, para que deste ficasse registo no tombo adequado. De seguida, comparecia perante a vereação funchalense e demais autoridades, para o protocolar ato de juramento e posse que se realizava nas instalações camarárias. O juiz de fora auferia de um ordenado, com os respetivos próis e percalços, e de uma aposentadoria, no valor de 20$000 réis, paga pelos rendimentos do município do Funchal. Tinha, de igual modo, a faculdade de cobrar 4$000 réis pela realização das eleições municipais. A jurisdição do juiz de fora compreendia, de acordo com o “Título LXV” do “Livro I” das Ordenações Filipinas: o despacho, em audiência, de casos de injúrias verbais ou de agressões entre moradores; o despacho, em audiência, de contendas relativas a bens móveis ou de raiz; a aplicação de penas aos réus; a realização de devassas sobre os crimes cometidos; a defesa da jurisdição do Rei contra eventuais abusos perpetrados por eclesiásticos ou leigos; a fiscalização da atuação dos oficiais municipais. O juiz de fora não estava sujeito à inquirição do corregedor da comarca, contrariamente ao que sucedia com os demais membros do município. Como juiz de primeira instância nas causas cíveis e crimes, cabia-lhe zelar pela aplicação do direito oficial e régio. Servia o cargo de provedor da Fazenda dos defuntos e ausentes e tinha poder para agir no âmbito do juízo dos órfãos, em caso de suspeita de atuação irregular por parte dos seus titulares. Para além deste vasto conjunto de atribuições, desempenhava o cargo de juiz conservador da Companhia Geral do Comércio do Brasil, em virtude de muitas embarcações fazerem escala no Funchal para se abastecerem de vinho, e o de auditor da gente da guerra. Na sequência da expulsão da Companhia de Jesus, em 1760, o juiz de fora ficou encarregue da administração de todos os bens e rendas, confiscados em nome do Rei pelas autoridades insulares, que aquela ordem possuía na Madeira. A atuação do juiz de fora foi visível sobretudo no contexto da presidência da Câmara do Funchal. Foi uma presença regular nas reuniões da vereação e destacou-se por ser o responsável pela realização das eleições municipais, pela elaboração da pauta eleitoral e pelo respetivo envio para o Desembargo do Paço. De igual modo, foi a entidade portadora do conhecimento sobre o direito oficial e letrado e a responsável pela sua divulgação junto da vereação funchalense. A necessidade da presença deste magistrado era sentida pelos próprios membros da Câmara do Funchal, conscientes das suas limitações no exercício adequado da justiça, em virtude das relações de parentesco e amizade existentes entre os habitantes, uma realidade suscitadora de inúmeras queixas das partes litigantes. Em 1762, nomeadamente, estando o lugar de juiz de fora sem provimento, a vereação apelou ao Monarca para que mandasse para o Funchal um magistrado versado e douto na prática forense, em razão dos muitos e intrincados pleitos que existiam naquela cidade. Auxiliar jurídico de importância reconhecida pela vereação funchalense, o juiz de fora só saiu da orgânica administrativa municipal em 1834. Com efeito, a cerimónia de juramento da Rainha D. Maria I e da Carta Constitucional, numa reunião extraordinária do município funchalense em 6 de junho de 1834, representou o último ato institucional do juiz de fora. Com a implantação definitiva do Liberalismo, o município deixou de ter qualquer competência no âmbito da administração da justiça em primeira instância, conforme tivera até então. O estabelecimento de uma nova organização judicial, programado pelo poder central logo em 1834, seria uma das importantes consequências da nova divisão territorial implementada em 1835. [table id=100 /]   Ana Madalena Trigo de Sousa (atualizado a 26.12.2015)

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