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doações

A doação é um ato pelo qual se transfere, gratuitamente, a posse total ou parcial de um bem a outrem, e reveste duas modalidades: inter vivos, quando o doador aliena irrevogavelmente o património, ou in mortis causa, quando a doação apenas se processa após a morte do doador, assumindo, assim, o carácter de um legado. Apesar do carácter gratuito da cedência, a doação não é, de modo geral, totalmente desinteressada, na medida em que pressupõe um objetivo que é importante para o doador, ainda que isso não lhe retire o estatuto de instrumento estruturante tanto na história do reino de Portugal como na do arquipélago da Madeira. A prática de se doarem parcelas de território a senhores nobres ou eclesiásticos surge cedo na Península Ibérica, muito como resultado do empreendimento da reconquista cristã, e destinava-se quer a recompensar serviços prestados ao Rei, quer a promover o repovoamento das áreas retomadas, quer a representar um simples ato da generosidade do Monarca. O próprio nascimento de Portugal radica numa doação feita por Afonso VI de Leão e Castela a seu genro, o conde D. Henrique, e, após a elevação do condado à categoria de reino, a prática continuou a ser seguida pelos Reis de Portugal, que abundantemente distribuíram terras a entidades civis e religiosas, de entre as quais avultam as concessões a ordens religiosas e a instituições conventuais. Esta estratégia visava, sobretudo, contribuir para a defesa, promover a fixação de povoadores, e assegurar a produtividade das terras entregues a mosteiros. Quando, cerca de 1419, se (re)descobre a Madeira, e se começa a pensar o seu povoamento, desenrolado a partir 1425, principia também a definir-se um modelo para a administração do território, o qual assentará, do mesmo modo, em sucessivos processos de doação. Com efeito, enquanto entre 1420 e 1425, a responsabilidade sobre o arquipélago permanecia inteiramente nas mãos do Rei, D. João I, a partir de 1425, ela é transferida para as do infante D. Henrique, sem que, no entanto, a posse das ilhas deixe de ser propriedade régia, pois enquanto foi vivo D. João sempre se considerou como “Rei e Senhor” delas. A morte do Soberano, ocorrida em 1433 vai alterar esta situação, na medida em que o novo monarca, D. Duarte, por carta de doação datada de 26 de setembro do mesmo ano, concederá ao infante D. Henrique o estatuto de “Senhor das Ilhas”, tornando-o, assim, e de facto, donatário do arquipélago. Na mesma data, D. Duarte atribuiu também à Ordem de Cristo “para todo o sempre o espiritual das Ilhas da Madeira, do Porto Santo e da Ilha Deserta” (FERREIRA, 1960, 35-36). Entre 1440 e 1450, o infante donatário, doará, por sua vez a Tristão Teixeira (8 de maio de 1440), a capitania de Machico, a Bartolomeu Perestrelo (1 novembro de 1446), a do Porto Santo e a João Gonçalves Zarco (1 de novembro de 1450), a do Funchal. Fica assim claramente estabelecido o papel que o mecanismo de doação ocupa na génese da administração do território insular. No próprio desenrolar do povoamento, as doações continuaram a desempenhar um papel importante no que concerne à cedência de propriedades em regime de sesmarias, como forma de garantir o arroteamento dos terrenos, seguindo-se aqui um procedimento muito equivalente ao que se passara no reino. Os beneficiados com a concessão de terrenos não foram, porém, apenas os senhores que receberam os terrenos para arrotear, mas também a própria Igreja, cuja implantação no arquipélago igualmente gozou do acesso a propriedades oferecidas para que nelas se pudessem edificar os necessários edifícios de culto. Com efeito, a construção dos templos requeria espaços, que foram disponibilizados quer a partir de contributos de particulares, que nas suas fazendas povoadas rapidamente erigiam capelas destinadas à celebração dos ofícios divinos, quer originados nas instituições que tutelavam o espiritual das ilhas: a Ordem de Cristo, primeiro, e, depois, a Coroa. As ordens monásticas foram igualmente beneficiadas por este sistema de doações, o que se verifica a partir da fixação definitiva dos Franciscanos no arquipélago. Tendo cabido à Ordem Seráfica a responsabilidade do pastoreio das almas dos primeiros povoadores, logo por volta de 1479 assiste-se à entrega de um terreno vinculado à capela de Clara Esteves, falecida, o qual, por ordem de D. Beatriz, à data administradora da Ordem de Cristo, foi entregue aos frades de Assis para edificação da sua casa conventual. O mesmo aconteceu com a construção do convento de N.ª Sr.ª da Piedade, em Santa Cruz, erigido em terrenos de Urbano Lomelino e com o convento de S. Bernardino, em Câmara de Lobos, para o qual contribuiu a doação do sítio operada por João Afonso, escudeiro do infante D. Henrique e senhor do lugar. A ereção dos conventos de Clarissas na Diocese do Funchal operou-se de acordo com os mesmos critérios. Assim, para o primeiro deles, S.ta Clara, fundado em finais do séc. XV, foi determinante o papel de João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do Funchal, que o mandou edificar em terrenos anexos à igreja de N.ª Sr.ª da Conceição de Cima, já fundada por seu pai, João Gonçalves Zarco. Aos Câmaras ficou, ainda, adstrito o padroado da instituição, a qual requeria, para ingresso, um dote avultado que reforçava o carácter elitista das suas freiras, decidido, de resto, por D. Manuel, quando a destinara a servir as “filhas e parentes dos principais da terra” (FONTOURA, 2000, 55). Com os conventos de N.ª Sr.ª da Encarnação e de N.ª Sr.ª das Mercês, o procedimento foi idêntico. Assim, o primeiro começou a erguer-se, a partir de 1645, graças ao empenho e financiamento do Cón. Henrique Calaça, e o segundo foi fundado em 1663, por iniciativa de Gaspar de Berenguer e sua mulher Isabel de França, que o dotaram de terreno e verbas destinadas ao seu funcionamento. No processo de construção da Sé do Funchal assiste-se igualmente à doação, por parte de D. Manuel, então ainda na qualidade de administrador da Ordem de Cristo, a cujo padroado pertencia a administração religiosa do arquipélago, de um canavial, conhecido como “campo do duque”, sobre o qual se haveria de erguer o templo (FERREIRA, 1963, 41). Para tornar mais expedito o procedimento, o duque doou ainda os rendimentos de penas criminais que lhe pertenciam, bem como a imposição sobre vinhos atavernados, ou seja, aplicou ao fim da construção da igreja impostos que normalmente seriam por ele recebidos. O desenrolar do processo de cobertura da Ilha por estruturas religiosas leva à criação de um conjunto de paróquias fora do Funchal – Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol, Calheta, Machico, Santa Cruz, e.g., cujas igrejas se tiveram de ir edificando, correndo as despesas com a capela-mor por conta da Ordem de Cristo, numa fase inicial, e da Coroa, numa fase posterior, ficando o restante corpo do templo por conta dos fregueses, que assim, e desde o início, se associam também à dinâmica de dotação da Igreja dos contributos indispensáveis à sua implantação em território insular. Este modus operandi que divide responsabilidades na construção e manutenção dos espaços sagrados vai manter-se ao longo do tempo, sendo frequente ver chamadas de atenção dos bispos, em sede de provimentos de visitação, nas quais se apelava aos paroquianos para que não descurassem as suas obrigações naquela matéria. Assim acontece, e.g., na Tabua, quando, em 1589, se assinala que o forro da igreja está danificado pela chuva, pelo que se solicita aos fregueses que, “por todo o mês de setembro” o mandem consertar (ACDF, Tabua, cx. 2, fl. 10). Nessa mesma freguesia, e por estar a igreja velha arruinada, provia o visitador, em 1590, que os fregueses edificassem um novo templo, de acordo com especificações deixadas, e, se assim não o cumprissem, ver-se-iam condenados. O visitador acrescentava, porém, que sendo “a capela e a sacristia da obrigação de Sua Majestade a quem se pagam os dízimos […] mandamos lhe requeiram provisão para as mandar fazer segundo o corpo da igreja e poder correr toda a obra juntamente” (Ibid., fl. 13v.). À medida que a determinação tridentina, que obrigava à residência paroquial, vai sendo implementada, também se pode acompanhar aquilo que as visitações iam provendo sobre o assunto, o qual implicava, igualmente, a contribuição direta dos paroquianos. Continuando na Tabua e em 1590, o prelado que pessoalmente visitava a freguesia pedia aos fregueses que “hajam assento e chão acomodado para casa do vigário perto da igreja e que lha ajudem a fazer e ponham da sua parte para isso toda a diligência e favor por ser importante a residência dele em a freguesia e igreja” (Ibid., fl. 15). O mesmo acontecia na Fajã da Ovelha, onde, também em 1590, o povo era solicitado a arranjar “chão” e ajudar o pároco na construção da casa (ACDF, Fajã da Ovelha, Provimentos de Visitações, 1591-1730, fl. 9), enquanto no Seixal, em 1591, os pedidos iam no sentido do fornecimento de “madeira, pedra e colmo”, bem como colaboração com mão de obra para a residência do clérigo (ACDF, Seixal, Livro de Provimentos, 1591-1756, fl. 3v.). Outra forma muito utilizada para induzir a doação de bens à Igreja era a do recurso aos peditórios que se faziam a propósito dos mais variados motivos: para se instituir uma confraria, por ocasião da festa do orago – neste caso normalmente organizados pela confraria da mesma invocação –, para ajudar as ordens mendicantes, e ainda para financiar os conventos cuja regra os impedia de possuírem bens próprios, como acontecia, e.g., com o de N.ª Sr.ª das Mercês. A exemplificar a primeira das situações (a que diz respeito à fundação de uma confraria), veja-se o que ficou exarado em 1590 na Ponta Delgada, em que o bispo, D. Luís Figueiredo de Lemos, interessado na fundação de uma Confraria das Almas ordena aos fregueses que “dentro em dois meses instituam a dita confraria das almas e para que mais comodamente o possam fazer lhes dou licença pera que tirem esmolas pelas eiras e lagares da freguesia.” (ARM, Ponta Delgada, Livro de Provimentos, 1589-1694, fl. 8). O exagero que, porém, por vezes se verificava nestas iniciativas levava os prelados a intervir procurando disciplinar aquela prática, para o que deixavam avisos tendentes à moderação, como se vê no que está vertido nos provimentos de S. Martinho exarados em 1587 e que dizem estar o antístite informado “que algumas pessoas vêm a esta freguesia pedir esmolas pera confrarias & os santos de outros lugares & freguesias havendo aqui os mesmo santos & confrarias o que é causa de se dividirem as esmolas & estarem tão pobres as próprias no que querendo nos prover mandamos que nenhum petitório geral ou particular de santo de fora se consinta na freguesia em que houver outro semelhante posto que para isso haja licença nossa porque não é nossa intenção concedê-la” (ARM, Registos Paroquiais, S. Martinho, liv. 9122, fl. 4-4v.). A instituição de confrarias veio a revelar-se um profícuo mecanismo de captação de bens para a Igreja, pois não só os irmãos contribuíam com verba anualmente paga para a sua manutenção, como a administração dos bens legados por particulares fazia confluir para os seus cofres um não despiciendo fluxo financeiro, que deveria ser gerido tendo em vista o fim que presidira à constituição do movimento confraternal: a celebração de ofícios divinos, a ajuda ao próximo e a salvação das almas. A responsabilidade da gestão destes fundos variava de acordo com o compromisso das diversas confrarias, e era objeto de inspeção nas visitas paroquiais, deixando os bispos, ou os visitadores, nos seus provimentos, muitas vezes críticas e recomendações sobre os procedimentos a seguir na apresentação dos resultados da contabilidade confraternal. Outro recurso que muito contribuiu para a sustentação económica da Igreja surge sob a forma de doações in mortis causa, ou seja, aquelas que eram feitas em testamentos e se destinavam a assegurar a prestação continuada de cuidados à alma do falecido que, para tal, doava terras ou rendimentos a serem aplicados em missas para resgate da sua alma. Sendo esta uma prática transversal a todos os grupos sociais, os montantes legados variam, contudo, e como seria de esperar, em função da capacidade económica dos doadores, constatando-se situações em que se fundam capelas de missas, com obrigação de celebração diária enquanto “o mundo for mundo”, a par de outras que apenas solicitam os ofícios divinos que os herdeiros acharem possíveis. O facto de os rendimentos afetos às capelas se tornarem insuficientes mercê do decurso do tempo, da desvalorização, ou de outros fatores, vai estar na origem de múltiplos conflitos que irão opondo bispos a testamenteiros e a juízes dos resíduos e capelas, sendo fonte de inesgotáveis processo em tribunais e de preocupações no tocante ao incumprimento das últimas vontades dos instituidores. A emergência deste fenómeno, que impossibilitava a cabal satisfação dos legados, é muito antiga na Madeira, estando já contemplada nas Constituições Sinodais de 1615, onde se referia ter o bispo sido informado de que “muitas capelas se não cumprem por as propriedades e bens sobre que foram instituídas renderem hoje tão pouco que não basta para se dizerem as missas […] que os instituidores mandam dizer”, “pelo que se autorizava aos administradores em incumprimento que pudessem satisfazer apenas dois terços do inicialmente previsto” (COSTA, 1987, 19). As dificuldades na satisfação de encargos pios, o devir histórico e, até, as alterações da conjuntura política motivadas pelo liberalismo, com a consequente diminuição do peso institucional da Igreja, foram, aos poucos, diminuindo a prática dos legados testamentários, sem que, no entanto, se possa falar de uma completa extinção do procedimento. No começo do terceiro milénio, as doações na Igreja Católica estão sujeitas às normas do Código de Direito Canónico (liv. V) e das normas particulares das dioceses.   Cristina Trindade (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social História Política e Institucional

capitanias

A instituição do regime de capitanias-donatarias (Donatário), ensaiado no povoamento da Madeira e depois exportado para os Açores, Cabo Verde, São Tomé e Brasil, marcou profundamente a gesta dos Descobrimentos portugueses. No entanto, em meados do séc. XVI, este modelo parece ter atingido o limite do seu período de duração. Assim, as tentativas da sua reimplantação, nomeadamente por D. Sebastião (1554-1578), com a criação da capitania de Angola, em 1571, e por Filipe III (1578-1621), com a criação da capitania da Serra Leoa, em 1606, mostraram que este modelo estava já fora da sua época. O processo de centralização do Estado empreendido ao longo do séc. XVII, embora se compadecesse com a sua existência, dificilmente tolerava a sua proliferação.   Com a integração das donatarias na Coroa, os capitães donatários ficaram responsáveis perante a mesma pela manutenção das capitanias “em justiça e em direito”, como referem as respetivas cartas de doação (BNP, cód. 8391, fls. 1v.-2v.ss., 119v.-120v.ss., 403-405ss.), sendo os aspetos de justiça, em princípio, os mais importantes (Ouvidorias). Saliente-se que os capitães donatários não eram verdadeiramente proprietários das terras das mesmas, que pertenciam à Coroa, embora aí pudessem ter, pontualmente, propriedades. Com o tempo, as iniciais funções militares tornaram-se meramente honoríficas, restringindo-se à apresentação dos alcaides pequenos, com função de policiamento (Polícia de segurança pública), o mesmo acontecendo em relação aos assuntos da Fazenda régia, pois, embora os capitães donatários em Lisboa usassem o título de vedor-mor da Fazenda, essa função há muito que passara a estar cometida a um provedor. As cartas de doação dos sécs. XVI e XVII eram, geralmente, omissas relativamente à atribuição dos ofícios, mas essa mercê foi algumas vezes atribuída e confirmada, em documentos próprios, como recompensa por certos serviços ou pelo mérito e linhagem dos capitães donatários. Essa prorrogativa de “data dos ofícios”, como se designava, era geralmente concedida em uma ou duas vidas, ou seja, na vigência do donatário e do seu sucessor, embora fosse posteriormente confirmada nos sucessores. Era este o caso da apresentação de ofícios, essencialmente na área da justiça, como de alcaides, carcereiros, escrivães vários, tabeliães, meirinhos, inquiridores, contadores e distribuidores. A condessa da Calheta, D. Maria de Vasconcelos, por exemplo, conseguiu obter para o filho e para o neto, a 18 de agosto de 1624, a data dos ofícios concedidos ao seu marido, 5.º capitão e 3.º conde da Calheta, Simão Gonçalves da Câmara (c. 1565-c. 1620), somente em uma vida. Tratava-se, assim, da apresentação dos ofícios de escrivão dos órfãos do Funchal, da almotaçaria, alcaidaria e imposição da cidade, de meirinho da serra, de tabeliães do público e do judicial dos lugares da sua jurisdição, de meirinho da cidade, de inquiridores, contadores e distribuidores da vila da Calheta e lugares da capitania, assim como de juízes e oficiais da vila da Calheta. Na Madeira, as capitanias sofreram um rude golpe nos finais do séc. XVI com a nomeação de um superintendente das coisas da guerra ou encarregado dos negócios da guerra, que tinha a função de capitão-general das capitanias do Funchal e de Machico. O Rei Filipe II (1527-1598) teve um especialíssimo cuidado nessas nomeações, começando por escolher um descendente de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), a quem tinha já feito mercê da capitania de Machico: Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da). Saliente-se ainda que, logo na altura da nomeação, escreveu à jovem capitoa viúva do Funchal, mostrando a urgência do preenchimento do lugar e informando que não esqueceria os direitos do jovem capitão donatário, seu filho. Face à incapacidade dos descendentes dos primeiros capitães, muito especialmente do 4.º capitão, Diogo Teixeira (c. 1500-1540), dado como incapaz em 1538, a capitania de Machico foi entretanto entregue a João Simão de Sousa, vagando depois para a Coroa na sequência da morte do 4.º capitão, em 1540, dado que não tinha descendência legal. Em 1541, D. João III fez mercê da mesma a António da Silveira, que tinha sido capitão de Diu. No entanto, este vendeu-a num curto espaço de tempo, em 1549, com licença e faculdade de D. João III, a Francisco de Gusmão, mordomo da infanta D. Maria, para dote da sua filha, D. Luísa de Gusmão. Esta veio a casar com D. Afonso de Portugal (1519-1579), 2.º conde de Vimioso, que incorporou na Casa dos Vimioso a capitania de Machico. O 2.º conde viria a falecer em Alcácer Quibir, passando então a usar o título o seu filho mais velho, D. Francisco de Portugal (1550-1582), que viria a aderir à causa de D. António e a falecer em combate ao largo de Vila Franca do Campo, nos Açores. Ficando a capitania de Machico uma vez mais nas mãos da Coroa, esta foi entregue por Filipe II a Tristão Vaz da Veiga. O irmão mais novo dos Vimioso, D. Nuno Álvares de Portugal (c. 1555-c. 1625), move, ainda em vida de Filipe II, um processo à Coroa, alegando que o pai teria ficado vivo em Alcácer Quibir, pelo que o irmão assumira ilegalmente o título e a capitania de Machico. Assim, tendo falecido o assumido 3.º conde, D. Francisco de Portugal, em 1582, o irmão considera que a capitania não deveria ter vagado para a Coroa, pois o pai ainda poderia estar vivo algures em Marrocos. Falecido Filipe II, este longo e algo bizarro processo teve seguimento, conseguindo a Casa dos Vimioso (Condes de Vimioso), falecido Tristão Vaz da Veiga, em 1604, reaver a capitania. Ao longo do séc. XVII, as capitanias da Madeira encontravam-se, assim, na posse dos seus anteriores donatários. Dada a estadia na corte dos capitães do Funchal e de Machico – os condes de Castelo Melhor (Castelo Melhor, marqueses de) e os de Vimioso, e, depois, os marqueses de Valença (Valença, marqueses de) –, as funções de comando de tropas propriamente ditas continuaram no governador e no capitão-general, mas a capitania ficou como título, mantendo as rendas, uma certa intervenção camarária e as funções judiciais. O donatário passou a fazer-se representar na sede da capitania por um ouvidor (Ouvidorias) e lugar-tenente, que, em Machico, podia estar ligado, de alguma forma, a um certo ascendente militar, daí se justificando um certo alheamento, ou afastamento, do governador da Madeira em relação a Machico. Registam-se presenças várias dos governadores da primeira metade do séc. XVIII nas vilas da capitania do Funchal, mas não nos ocorre nenhuma nas vilas de Machico e Santa Cruz. Os ouvidores das capitanias regiam-se pelas Ordenações de Filipe II, especialmente pelo título LX, “Corregedores das Comarcas e Ouvidores dos Mestrados e de Senhores de Terras”. A situação das capitanias do Funchal e de Machico, com os capitães a residirem na corte e as mesmas a serem regidas por ouvidores, nunca foi extensível à capitania do Porto Santo, dada a presença física, no arquipélago, do respetivo capitão donatário. As coisas alteraram-se algumas vezes nos sécs. XVII e XVIII, nas ocasiões em que o donatário, por motivos vários, abandonou o arquipélago. Nesses casos, o próprio capitão do Porto Santo nomeou um governador durante a sua ausência e, quando tal se deu compulsivamente, a nomeação foi efetuada pelo governador e capitão-general da Madeira, antes da extinção das capitanias. A capitania do Funchal A evolução desta instituição não foi de forma alguma linear, até pela diferença nos seus rendimentos, provindos das rendas territoriais, de terras e foros, da redizima e do selo, bem como de moinhos, serras de água, sabão e sal. Para uma comparação, veja-se que, em 1653, por exemplo, o conde-capitão do Funchal pagou a importância de 100$000 réis respeitantes ao donativo (Donativo) para as despesas de guerra. Em 1662, as décimas dos dois primeiros quartéis foram orçadas em 130$000 réis para a condessa da Calheta e capitoa do Funchal, enquanto para o conde de Vimioso, donatário de Machico, foram orçados em 20$000 réis. A situação económica da capitania do Porto Santo era pior. Em 1693, por exemplo, a redízima, no valor de 76$800 réis, somente conseguia pagar o ordenado do capitão-mor Jorge Moniz de Meneses, nomeado a 31 de outubro de 1653, e o mesmo já havia acontecido com o anterior governador, Martim Mendes de Vasconcelos, nomeado em 1564. A sucessão por varonia da capitania do Funchal foi interrompida em meados do séc. XVII. O 8.º capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara (c. 1600-1656), faleceu sem descendência, pelo que assumiu a capitania a sua irmã, D. Mariana de Alencastre Vasconcelos e Câmara (c. 1605-1689), condessa de Castelo Melhor pelo seu casamento com o conde João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658). Já viúva, D. Mariana passou a utilizar também o título de condessa da Calheta e, ocupando o cargo de camareira-mor da Rainha D. Francisca Isabel de Saboia (1646-1683), o de marquesa de Castelo Melhor (Câmara, D. Mariana de Alencastre Vasconcelos e), título que só viria a entrar nos seus descendentes muito mais tarde, em 1766. A futura condessa da Calheta defrontou em tribunal os seus parentes mais próximos, pois, tendo a capitania a natureza de bem da Coroa, havia cabimento na sucessão para a aplicação da Lei Mental (que permitia a reversão de tal bem para a Coroa). Por alvará de 2 de outubro de 1539, o Rei D. João III concedera dispensa dessa lei, para efeitos de sucessão, ao 5.º capitão da capitania do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1512-1580), por duas vidas: uma por morte do dito capitão, sem filho nem outro descendente varão legítimo, e, outra, quando um qualquer donatário morresse sem filho nem descendente varão lídimo. O processo movido por D. Mariana conheceu, assim, sentença a seu favor em 1660 e, ainda, sobressentença em 1677, confirmando a entrada da capitania na Casa de Castelo Melhor. Com a extensão à Madeira do regimento dos corregedores das ilhas dos Açores, deu-se o primeiro passo para a reforma da organização da justiça, à qual, no entanto, se opõe, na corte de Lisboa, a Casa de Castelo Melhor. Em 1747, foi nomeado um novo juiz de fora de origem açoriana, Miguel de Arriaga Brum da Silveira (c. 1690-1755). Incumbido do lugar de juiz de 1.ª instância “com predicado de correição por 3 anos”, acumulou, sucessivamente, os lugares de mamposteiro-mor dos cativos e de provedor da Fazenda dos defuntos e ausentes (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 9, fls. 95v.-99). No entanto, quase imediatamente, voltam a registar-se as doações do conde de Castelo Melhor, “confirmadas por carta assinada pela Real Mão” (Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 9, fls. 116-131v.), e as anteriores questões entre o corregedor e o ouvidor, então levantadas pela Casa do conde. Abria-se, assim, caminho para a centralização da justiça e para a posterior extinção das capitanias e das ouvidorias. A capitania de Machico As primeiras especificidades que se destacam relativamente à capitania de Machico são o incumprimento da determinação de obrigatoriedade da nomeação de um letrado para este lugar, como existia no Funchal, e, ao mesmo tempo, a nomeação quase preferencial de um militar, acrescida da indicação diferenciada dos cargos de ouvidor e de locotenente. Este aspeto é de tal forma ressalvado que a nomeação é quase sempre primeiramente relativa a ouvidor e só depois, em alvará separado, a locotenente, diferenciando-se assim perfeitamente as duas. Pode, pois, depreender-se a sobrevivência, em Machico, das obrigações político-militares do capitão donatário. Este aspeto parece igualmente explicar, até certo ponto, o quase não provimento, na primeira metade do séc. XVII, do posto de sargento-mor das ordenanças desta capitania. Parece ter havido algumas dificuldades na Casa dos condes de Vimioso na apresentação dos seus ouvidores, locotenentes e outros oficiais nos inícios do séc. XVIII, como o juiz dos órfãos da capitania de Machico, associado ainda às rivalidades entre as Câmaras de Santa Cruz e de Machico. Houve também uma franca descoordenação entre as nomeações do marquês de Valença (título de que os Vimioso passaram a usufruir) e as apresentações dos ouvidores nestas décadas, acabando o governador da Madeira por ter de interferir nas ouvidorias, nomeando ouvidores interinos. Teria sido, provavelmente, o problema das ouvidorias que levou a mais uma alçada, desta feita de Manuel Vieira Pedrosa da Veiga, “corregedor com alçada por Sua Majestade, que Deus guarde, com especial ordem do dito Senhor em toda a ilha da Madeira”, que, no final de 1735, se apresentava em Machico como juiz de fora. Conforme se registou, não se faziam correições na Madeira desde 1684, pelo que o corregedor assumiu também as funções de ouvidor de Machico, dada a “ordem de correição às ouvidorias” que possuía, com “uma carta de D. João V sobre os excessos que se cometiam em várias vilas da Madeira”, vindo igualmente com ordem para investigar as “arrecadações dos bens dos concelhos” (ARM, Câmara Municipal de Machico, liv. 81, fls. 472v.-480), o que também ocorreu no Funchal. A Casa dos Vimioso e Valença deparou-se, entretanto, com algumas dificuldades económicas logo no início do século, abdicando do pleito sobre a capitania de Pernambuco para poder manter o título de marquês. A situação económica não se teria equilibrado e, tal como o marquês de Valença não conseguiu fazer valer os seus direitos à capitania de Machico na chancelaria régia ao longo do séc. XVIII, ainda que fosse presidente da mesa da consciência e ordens, também a vereação camarária mostrou francas reservas em aceitar a nomeação de ouvidores e locotenentes para a capitania, mesmo antes da sua extinção pelo gabinete pombalino. Assim, a 1 de janeiro de 1765, quando o ouvidor se apresentou em Machico para assistir à distribuição dos pelouros para o triénio seguinte, a Câmara recusou a sua presença, o que levou à intervenção do juiz de fora do Funchal no mês seguinte. O Rei D. José I despacharia favoravelmente o processo, comunicando à Câmara de Machico: “Tenho por bem dizer-vos, que tendes obrado bem em não consentirdes, que o suplicante servisse de ouvidor findo o seu tempo”. Na sequência destes acontecimentos, em setembro do mesmo ano, era admoestado o Gov. José Correia de Sá (Sá, José Correia de) devido à “falta de seriedade e reverência com que tratara o caso do ouvidor de Machico”, admoestação que seria transmitida à Câmara (Ibid., liv. 86, fls. 69v.-70). Não mais voltou a haver ouvidor em Machico, apesar dos pedidos do governador. A capitania do Porto Santo A situação desta capitania foi ainda mais nebulosa, não só pela pobreza das suas condições e habitantes, situação que piorou consideravelmente ao longo do séc. XVIII, como pelo consequente abandono a que, até certo ponto, foi votada pelos seus capitães donatários. Em face disso, desde o séc. XVII que o governador da Madeira nomeava governadores para o Porto Santo sempre que se verificava vazio de poder na ilha, visto que a mesma tinha governo próprio, na pessoa do seu capitão donatário. Assim, toda a documentação oficial produzida em Lisboa em relação ao Governo da Madeira foi sempre omissa em relação à ilha do Porto Santo, embora alguns governadores tenham proposto a Lisboa o alargamento das suas competências àquela capitania. Casa Colombo (exterior) Porto Santo. Arquivo Rui Carita.   Casa Colombo, Porto Santo. Arquivo Rui Carita.     Armas dos Perestrello. Arquivo Rui Carita Nos inícios do séc. XVII, o Porto Santo foi alvo de duas alçadas dos corregedores – primeiro de António Ferreira, em 1606, e, depois, de Simão Cardoso Cabral, em 1610 –, que visavam averiguar as queixas dos moradores contra o comportamento de Diogo Perestrelo Bisforte (c. 1560-1616), donatário da ilha. Na primeira vez, o governador foi afastado da ilha e teve ordem para se apresentar em Lisboa, regressando, no entanto, em 1610, altura em que a situação piora. Assim, nesse mesmo ano, teve nova ordem para se apresentar em Lisboa, onde ficaria seis anos, sendo perdoado a 15 de outubro de 1616. Desta feita, não terá regressado ao Porto Santo, pois faleceu no Funchal a 20 de dezembro desse ano. Afastado o Cap. Diogo Perestrelo Bisforte do Porto Santo, somente em abril de 1654 tomaria conta da capitania o herdeiro Diogo de Bettencourt Perestrelo (c. 1684), até porque, logo em 1617, a ilha foi devastada por piratas argelinos, quase não tendo ficado habitantes no seu território. Em 1606, após o primeiro afastamento do capitão, foi nomeado João de Ornelas Rolim como locotenente, com ordenado pago pelo donatário. Aquando do segundo afastamento do Cap. Diogo Perestrelo Bisforte, o governador da Madeira nomeou, em 1619, Martim Mendes de Vasconcelos como governador e capitão-mor do Porto Santo, a que se seguiram Roque Ferreira de Vasconcelos e Jorge Moniz de Meneses. Nos inícios do séc. XVIII, a capitania era governada pelo 9.º donatário, o Cap. Estêvão de Bettencourt Perestrelo, que presidiu, por exemplo, às eleições para a Câmara no dia 1 de janeiro de 1705 e às sessões seguintes para eleição dos vários agentes camarários, como o alcaide e os almotacés. O 9.º capitão surge em funções em 1674, embora o seu pai, Diogo Perestrelo, ainda fosse vivo em 1684, data em que mandou lavrar testamento. Após 12 anos de suspensão, por ter deixado “entrar na dita Ilha duas embarcações francesas” (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 16), este capitão foi restituído à sua capitania em fevereiro de 1703. Em 1707, ainda se encontra no Porto Santo, tendo sido “nas suas mãos” que o novo Sarg.-mor Duarte Pestana de Velosa prestou menagem (ABM, Câmara Municipal do Porto Santo, liv. 165, fl. 31). No entanto, perante novo desastre do assalto corsário de 1709, no qual, mais uma vez, a população não mostrou qualquer sinal de resistência, D. João V mandou-o apresentar-se, sob pena de prisão, em Lisboa, não voltando à sua capitania. O incidente encontra-se registado como ocorrido a 27 de junho de 1709, tendo desembarcado na ilha várias pessoas que, transitando numa barca proveniente da freguesia de São Vicente e com destino ao Porto Santo, haviam sido aprisionadas por um navio corsário francês. Mais uma vez, a população não reagiu, tendo o corsário francês feito o seu desembarque normalmente (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 30). A capitania ainda foi revalidada no 10.º donatário, Vitoriano Bettencourt Perestrelo, a 5 de setembro de 1722, mas não há qualquer informação sobre a sua presença no arquipélago. No entanto, como este donatário não vem referido no Índice da Antiga Junta e Provedoria, partimos do princípio que não se apresentou como donatário do Porto Santo no arquipélago, pois que, para efeitos de abono, a sua apresentação constaria dos registos da Fazenda. A capitania ainda voltou a ser revalidada, em 1747, em Estêvão de Bettencourt Perestrelo, filho de Vitoriano de Bettencourt e Vasconcelos, anterior “proprietário e senhor donatário da ilha do Porto Santo e governador dela” (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 972, fl. 217v.), então falecido, e confirmada em 1749. A mercê do novo capitão donatário era citada como “do senhorio e governo” da ilha do Porto Santo, “em que sucedeu a seu pai, por ser de juro e herdade” (Ibid., Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 972, fl. 230v.). Cita-se, no alvará, que era até então governador da ilha Jorge Correia de Miranda, efetivando-se, ao mesmo tempo, a colocação do tio do novo capitão donatário, Nicolau Bettencourt Perestrelo de Noronha, como sargento-mor do Porto Santo. O governador e capitão donatário não se deslocou de imediato para a ilha, mas conseguiu logo ter acesso às redízimas. Estêvão de Bettencourt Perestrelo tomou ainda menagem das mãos de D. José I, a 11 de março de 1755, e posse no Funchal, a 4 de junho de 1757, perante o governador da Madeira, o que foi até certo ponto uma originalidade, pois marcou a subordinação do lugar de capitão donatário do Porto Santo ao governador da Madeira. Aliás, a distância entre as datas da carta da donatária (1747), da menagem (1755) e da posse no Funchal (1757) revela bem as dificuldades experimentadas pelo capitão donatário para alcançar, na altura, os “seus direitos” (Ibid., Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 974, fl. 1). É muito provável que não tenha sequer fixado residência no Porto Santo, pois, no ano seguinte, a 15 de junho de 1756, em carta enviada do Funchal, apresenta uma representação ao secretário de Estado Diogo Corte Real sobre a difícil situação da ilha do Porto Santo, marcada pela esterilidade dos últimos anos, pedindo milho e farinha para acudir à fome dos habitantes. Na sequência do relatório elaborado pelo Eng.º Francisco de Alincourt (1733-1816) (Descrições militares), de abril de 1769, e do edital do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), citando “o ócio e a indigência dos moradores do Porto Santo” (AHU, Madeira, docs. 355, 356, 360-363), a situação catastrófica do Porto Santo teve de ser encarada de outra forma. As reformas pombalinas Com a criação, a 2 de agosto de 1766, de um governo centralizado para os Açores cometido a um governador e capitão-general e a consequente extinção das capitanias-donatarias naquelas ilhas, o gabinete do marquês de Pombal nomeou dois juristas práticos nestes assuntos, os desembargadores José Francisco Alagoa e Bartolomeu Geraldes de Andrade, para reverem toda a situação dos donatários insulares e “dos títulos dos sobreditos [...] que tiverem direito para serem conservados” (BNP, cód. 341, fls. 339-341). Logo a 4 de setembro do mesmo ano, foi elaborado, no palácio da Ajuda, um contrato de compensação ao conde de Castelo Melhor, que o conde registou, a 9 de setembro, no tabelião António da Silva Freire. Do processo completo, seria solicitada, mais tarde, em 1785 e 1788, confirmação a D. Maria I e enviada documentação à Câmara do Funchal para respetivo registo, em 1790 e 1792. Desta forma, a 4 de setembro de 1766, eram incorporadas na Coroa as capitanias da Casa de Castelo Melhor – a de Santa Maria, nos Açores, e a do Funchal, na ilha da Madeira –, alegando o Rei D. José a existência de “motivos justíssimos” e o “benefício da utilidade pública e do bem público e comum” dos seus vassalos. Revertiam, assim, para a Coroa as antigas “datas das sesmarias” e as jurisdições e nomeações dos ouvidores, dos oficiais de justiça, da Câmara, dos órfãos, das almotaçarias e dos tabeliães. Para além disso, as capitanias ficavam reduzidas às alcaidarias-mores, sendo também reduzidos os privilégios exclusivos “dos fornos de pão de poia, moendas e serrarias aos termos em que menos ofenderem ao direito divino, natural e das gentes, e fizessem calar aos atendíveis clamores dos habitantes das referidas duas ilhas” de Santa Maria e da Madeira (Ibid.). O antigo capitão do Funchal ficava, essencialmente, com o título da alcaidaria-mor e a redízima de todos os rendimentos reais da antiga capitania, praticamente sem encargos, o que significava que o que perdia em prerrogativas sociais ganhava em dinheiro. Ficavam francamente reduzidos os antigos privilégios de venda de sal, que não podiam exceder o preço taxado pelas antigas doações, já citadas, assim como o monopólio dos fornos de “pão de poia”, podendo os habitantes ter fornos particulares para o seu consumo doméstico e para “padejarem”. Viam-se igualmente reduzidos os antigos monopólios das moendas de água e das serrarias. Em contrapartida, o antigo capitão ficava com o título de marquês de juro e herdade, duas dispensas da Lei Mental e o título de conde da Calheta para o primogénito. Ficavam, igualmente, para a Coroa as fábricas de sabão branco de Lisboa e de Almada, mas eram cedidos ao futuro marquês a Qt. da Labruja, na Golegã, e parte dos terrenos da cerca de São Roque, em Lisboa, na base dos quais se veio a levantar o magnífico e célebre palácio no qual viveu o conde da Foz, que lhe deu nome, e onde estiveram outras entidades e instituições, como o Secretariado Nacional de Informação. Ainda no que respeita a bens patrimoniais, o marquês ficava com 10.000 cruzados anuais de juro, para constituir um vínculo. Nesta sequência se compreende a ordem do Conselho da Fazenda, de 20 de outubro do seguinte ano, 1767, dada ao provedor do Funchal para tomar posse “da capitania das vilas de Machico e Santa Cruz”. O ofício da Fazenda especifica que a capitania se achava vaga “desde o óbito do 5.º conde de Vimioso, D. Luís de Portugal (1656), sem sucessão, em que depois sem título se introduziu seu irmão, o 6.º conde de Vimioso, D. Miguel de Portugal (falecido em 1680), e depois muito menos, o filho natural deste, o marquês de Valença, Dom Francisco de Portugal (1679-1749), e o atual seu neto, Dom José Miguel de Portugal (e Castro) (1709-1775), os quais todos, não tirarão cartas, nem mercê têm para a poderem requerer”. Este ofício aproveitava ainda para solicitar que fossem revistos os demais bens da Coroa, não fossem encontrar-se em idênticas situações. Pedia-se que fossem enviadas ao Conselho as listagens desses bens com a indicação da respetiva situação, para se refazer o arquivo “que se incendiou pelo terramoto do primeiro de novembro de mil setecentos cinquenta, e cinco” (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 975, fls. 184-184v.). Em 1772, regista-se na Alfândega toda a documentação respeitante à capitania de Machico, parecendo o assunto ficar encerrado. Tentando acompanhar o que fizera o marquês de Castelo Melhor, os antigos capitães de Machico iniciam também a reivindicação das antigas rendas. Em 1783, conseguiu D. Afonso Miguel de Portugal e Castro (1748-1802), marquês de Valença, como tutor do seu filho, conde de Vimioso (1780-1840), receber 1443$330 réis da sua antiga capitania. Saliente-se que, entre 17 de junho de 1779 e 28 de outubro de 1782, a redízima tinha rendido 11.990$522. D. Afonso Miguel, sendo nomeado governador-geral do Estado da Baía em 1775, conseguiu, antes de partir, que D. Maria I o nomeasse marquês de Valença e o confirmasse donatário da “extinta capitania de Machico”, com o título de conde para o herdeiro e direito aos “bens, rendimentos e direitos da extinta capitania de Machico no mesmo Estado”, como especifica a Rainha (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 977, fls. 97-99). O novo marquês vice-rei ficou, assim, com mais um título e, tal como o marquês de Castelo Melhor em relação ao Funchal, com os rendimentos da alcaidaria da antiga capitania de Machico, que, em 1825, viriam a ser penhorados pelos seus descendentes.   Marquês de Valença. Brasil. Arquivo Rui Carita.     Armas do Marquês de Castelo Melhor. Arquivo Rui Carita Muito diferente foi a situação da capitania do Porto Santo, que, nestes meados do séc. XVIII, conheceu um dos piores momentos da sua existência, ao ponto de se tentar transferir toda a sua população para a Madeira. Desde os inícios do séc. XVIII que se vivia na ilha uma situação catastrófica marcada por inúmeros períodos de fome, o que tinha levado a população a um completo imobilismo. Quase todos os governadores alertaram Lisboa para esta situação, mas só se vieram a tomar medidas efetivas com Manuel de Saldanha de Albuquerque (1712-1771) e, sobretudo, com João António de Sá Pereira. A capitania foi extinta por diploma de 13 de outubro de 1770 após a morte do donatário em Lisboa, não se coibindo o próprio Rei D. José I de apelidar os portossantenses de vadios, referindo que “os sobreditos moradores cuidam em alegar genealogias para fugirem ao trabalho” (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 16). Com a extinção da capitania em 1770, foram liquidados de imediato os rendimentos em atraso dos donatários, e, em maio do ano seguinte, o próprio governador da Madeira, António de Sá Pereira, deslocou-se à ilha, acompanhado do corregedor Francisco Moreira de Matos e do oficial Eng.º Francisco Salustiano da Costa (c. 1745-c. 1820) (Costa, Francisco Salustiano da), do seu médico, o Dr. João Joaquim Curado Calhau, e de 25 soldados. A provedoria recebeu ordens para fretar o iate de Francisco Teodoro e Manuel da Silva Carvalho, assim como para preparar provisões de biscoito e uma lista de remédios fornecida pelo médico do governador. João António de Sá Pereira procedeu a nomeações várias no Porto Santo, a primeira das quais foi a do Cap. Pedro Teles de Meneses como inspetor da agricultura, recebendo as primeiras instruções em 1770. A nomeação foi depois comunicada à Câmara do Porto Santo e ao marquês de Pombal, que a levou ao “Real Arbítrio”, recebendo a aprovação de D. José I (AHTC, Erário Régio, liv. 395, fls. 306-309). Na ilha, o governador Sá Pereira procedeu ao emparcelamento dos terrenos e à reorganização geral da população, assunto entregue ao corregedor. Como alguns ofícios tinham desaparecido por completo, nos finais do ano de 1770 já vários rapazes tinham sido transferidos para o Funchal e entregues a vários oficiais, que ficaram encarregados de os ensinarem. O Governo acabou por tomar a seu cargo a sua manutenção – alimentação, vestuário, alojamento e instrução –, nomeando, inclusivamente, um médico-cirurgião para os acompanhar, ao qual também foi entregue um dos rapazes. Entre os ofícios que estes jovens aprenderam, estavam os de sapateiro, alfaiate, oleiro, carpinteiro, pedreiro, ferreiro, cirurgião e sangrador. A nomeação e o trabalho do novo inspetor da agricultura não foram, como já era habitual neste domínio, pacíficos, pois, interferindo com muitos interesses, principalmente os dos proprietários madeirenses, o inspetor foi acusado de inúmeras irregularidades. Assim, ainda que a ilha do Porto Santo tenha sido de imediato dotada de regimento da agricultura, datado de 13 de junho de 1771, os resultados não foram muito animadores. Em finais de 1774, deslocava-se ao Porto Santo o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781) (Martins, Domingos Rodrigues), para inspecionar as fortificações, transformando-se, por sua decisão, o pequeno reduto de São José no forte que viríamos a conhecer (Fortes do Porto Santo). Entretanto, devem ter sido executadas obras na Câmara Municipal – também elas, certamente, orientadas e dirigidas pelo mestre Domingos Rodrigues Martins –, a ajuizar pelas armas que passou a ostentar, talvez ligeiramente anteriores às do forte de São José. Também por essa altura se devem ter iniciado outras obras, como as da Casa nobre que posteriormente seria ocupada pelo tribunal, ostentando tal edifício, no lintel da entrada, a data de 1788. O cargo de governador da ilha continuou a ser desempenhado pelo sargento-mor Nicolau Bettencourt de Noronha, tio do antigo Cap. Nicolau Bettencourt Perestrelo, entretanto falecido a 9 de abril de 1768. Nessa altura, o governador escreveu para Lisboa a alvitrar a nomeação do ajudante do sargento-mor de Machico, Matias Moniz de Bettencourt, que servia igualmente na sala do Governo do Funchal. Explica, então, que, encontrando-se o donatário “há anos nessa corte” (ARM, Governo Civil, liv. 530, fls. 17-18v.), com a morte do sargento-mor e governador, ficava a ilha a ser governada pela Câmara e pelo capitão mais antigo. Ora, como a ilha ainda tinha 300 homens de ordenanças, deveria ter um sargento-mor e governador para o controlo geral dessa gente. No entanto, só após a morte do donatário e a extinção da capitania tal pedido teve despacho de Lisboa. A proposta da nomeação do filho do falecido sargento-mor, Manuel da Câmara Perestrelo de Noronha, foi de 15 de maio de 1782, sendo confirmada apenas a 23 de setembro de 1785. Este ramo da família foi sendo todo nobilitado, devendo ter movido influências para não perder tal lugar. Este lugar passou, entretanto, a ser subordinado ao governador da ilha da Madeira, como consta das nomeações de Manuel Ferreira Nobre Figueira, sargento-mor do regimento de milícias de Vila Real, nomeado em 1797. Efetivamente, este sargento prestou menagem de tal lugar em São Lourenço, nas mãos do governador da Madeira, a 27 de setembro desse ano, e o mesmo viria a acontecer com João Baptista Rofle, capitão-tenente da Armada, nomeado em 1800.         Rui Carita (atualizado a 20.12.2016)

História Política e Institucional

branco, josé de sousa de castelo

Nasceu em Leiria a 2 de novembro de 1654, sendo filho de Heitor Vaz de Castelo Branco, “senhor do Lagar do Rei e comendador de Santa Marinha”, e de sua mulher, D. Luísa Maria da Silva Arnault, senhora de morgado (NORONHA, 1996, 126). Tal como o seu antecedente, D. Fr. José de Santa Maria, este prelado foi recrutado nas fileiras da pequena nobreza de província. Enquanto jovem, foi para Coimbra estudar, e aí se formou em teologia, tendo, de seguida, ocupado um canonicato na sé de Leiria. Encetou, depois, uma carreira na Inquisição, instituição que serviu como deputado em Évora, como promotor em Lisboa, como inquisidor, de novo em Évora, e, finalmente, como presidente do tribunal de Coimbra. Nessa posição se encontrava quando, em 1697, foi designado por D. Pedro II para bispo do Funchal. A sagração aconteceu em Lisboa, no oratório de S. Filipe de Nery, a 28 de junho de 1698, ano em que se deslocou para a diocese, fazendo, na viagem, um desvio por Mazagão, onde se deteve “a ensinar os moradores” e a crismar 1400 pessoas (Id., Ibid., 127). Ainda durante a viagem, começou, de acordo com um manuscrito intitulado Memorias sobre a Creacção e Augmento do Estado Eccleziastico na Ilha da Madeira, a dar indícios de um comportamento singular, pois, segundo reza o texto, “foi este Bispo o Prelado mais amante da nobreza que tem vindo a esta Ilha”. A fundamentação desta apreciação encontra-se, logo de seguida, na descrição de um episódio com Gaspar Mendes de Vasconcelos, cujo pai, o Ten.-Gen. Inácio Bettencourt de Vasconcelos, o mandara para o reino assentar praça; segundo se conta, o bispo logo o trouxera para bordo, atribuindo-lhe no caminho uma conezia, tendo mandado, assim que chegou a terra, o mordomo avisar o general que “ali lhe mandava o filho cónego” esperando que ele lhe perdoasse “o vir contra as suas determinações” (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 273, fl. 93v.). O mesmo documento insiste nesta tónica quando acrescenta que não “houve casa que não beneficiasse, criando-lhe alguns dos seus filhos em cónegos da catedral”, e, de facto, é possível constatar que da família dos Correias e da dos Ornelas saíram três capitulares, da dos Freitas dois e da dos Berengueres um, registando-se, ainda, a atribuição de benefícios que favoreceram outros agregados nobres da Ilha. Com efeito, as Memorias acrescentam que “continuamente lhe estava fazendo a eles presentes de trastes e ainda cortes de vestido” e que ia “passar dias de verão nas Quintas dos Cavaleiros da terra e com todos fez uma boa harmonia (Ibid., fl. 97). Se esta era uma estratégia de minimização de conflitos, não resultou em pleno, porque o episcopado de D. José não foi isento de confrontos que opuseram o bispo a mais do que uma entidade na Ilha. Um dos cenários dessa conflitualidade ocorreu com dois dos três governadores com quem se cruzou no exercício de funções, sendo que, logo com o primeiro, João da Costa Ataíde, se registaram atritos que também envolveram o provedor da fazenda, Manuel Mexia Galvão. Este último, acusado de mancebia pelo vigário-geral, virou-se contra aquele eclesiástico “mais por vingança e por ódio que por defensa […] com ânimo vingativo de injuriar a pessoa de um prelado […] a quem devia tratar com respeito de Pai”, o que determinou a apresentação de queixas mútuas para o reino. Do reino veio, assim, um desembargador, Diogo Salter de Macedo, incumbido de averiguar o que na realidade se passara. Em virtude da sua ação, o provedor foi chamado à câmara a fim de lhe ser aplicada pública e áspera repreensão, e o mesmo teria acontecido ao governador, não fosse ter falecido entretanto. Quanto aos autos do processo, determinou o desembargador que se queimassem para “que de tão estranho modo de recusa não haja em tempo algum memoria nem lembrança”. Em contrapartida, as referências contidas na provisão trazida por Diogo Salter de Macedo dizem que ao bispo se deveria dar notícia da anterior resolução, a fim de que “reconheça a consideração que a minha Real justiça [tem] a quem com menos decoro fala em autos públicos das pessoas dos prelados que justamente se queixam das ofensas que lhes fazem”, o que é o bastante para se perceber que o bispo saiu com grande vantagem desta contenda (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 270, fl. 7). Com o governante seguinte, Duarte Sodré Pereira, gozou o prelado da melhor das relações, chegando, inclusivamente, a ser padrinho de um dos seus filhos e estabelecendo-se, portanto, entre os dois, uma relação de compadrio. Já com o seu sucessor, Pedro Alves da Cunha, voltaram as coisas a correr mal, designadamente por terem surgido diferendos quanto ao lugar que o governador pretendia ocupar na sé. Terminada a comissão de Pedro Alves da Cunha, foi o prelado cumprimentar o novo governador, João Saldanha da Gama, mas, da conversa que tiveram, ficou o bispo com a impressão de que o novo titular do cargo seria “do mesmo caráter” do anterior, e essa constatação terá apressado a decisão de D. José de Castelo Branco abandonar a diocese. Com efeito, e embora publicamente evocasse razões de saúde como motivo da ida para Lisboa, a verdade é que ficaram registos de que a bordo da nau “ia aquele por cuja causa ele largava o bispado”, ou seja, Pedro Alves da Cunha, o que motiva alguma dúvida sobre as reais motivações do abandono episcopal. A confirmar esta asserção, acrescentam as Memorias que, a bordo, o ex-governador fez ao bispo “muitos obséquios, de sorte que ele se arrependeu de ter partido”, mas, apesar deste sentimento, e de se ter mantido como titular da diocese por mais sete anos, nunca mais regressou à Madeira. Embora tivesse renunciado à mitra do Funchal em finais de 1721, por, segundo afirma Noronha, os médicos considerarem que o clima da Ilha não era favorável à sua doença, a verdade é que D. José só veio a falecer bastantes anos mais tarde, em 1740, facto que contribui para infirmar a tese da doença como real motivo para a saída do arquipélago (NORONHA, 1996, 128). Para além dos dois governadores, outra das entidades com quem D. José registou desentendimentos graves foi com a comunidade franciscana, a qual, em consequência disso, se viu quase completamente destituída de confessores. O desaguisado começou com a determinação exarada pelo bispo de que todos os clérigos, regulares e seculares, do bispado teriam de se fazer examinar para confessores, do que discordou o custódio de S. Francisco, padre frei Jacinto da Esperança, que recorreu ao rei por causa da “perseguição” que considerava estar a ser-lhe movida pelo prelado. Queixava-se, então, o custódio, em seu nome e no dos religiosos da Ordem, “da notória força e violência com que os oprime o reverendo bispo da dita Ilha”, consubstanciada na privação da autorização para confessar sem se submeterem a novo exame, o que se repercutia negativamente não só na reputação da Ordem, como nos proventos arrecadados (PAIVA, 2009, 37). Além disso, acrescentava, estas ordens do prelado tinham levado à suspensão de todos os frades da Calheta, e não se poderia aceitar a ideia de que fossem “todos criminosos” (DGARQ, Cabido da Sé..., mç. 12, doc. 34, fl. n.n.). A estes argumentos contrapunha D. José o de que “como os confessores tratam de matéria mais arriscada não só pelo foro da consciência e utilidade, ou prejuízo das Almas, mas também porque doutrinam em segredo, é mais perigosa e mais arriscada esta matéria que a dos pregadores”, pelo que não podia ser “tão liberal” neste tema quanto era na concessão de licenças para pregar. A isto acrescia o bispo que poderia acontecer que desta sua “severidade” resultasse estímulo para aplicação ao estudo de que “até aqui pouco se cuidava”, e, usando de uma ironia fina, ainda fazia notar que, sendo os franciscanos pobres, “pelos pregadores haveriam os proventos temporais que das confissões não podem tirar; e da suspensão destes [confessores] lhes resultará viverem com mais descanso que sempre é apetecido da natureza” (Ibid.). Os antecedentes deste conflito derivariam, possivelmente, de uma pastoral publicada a 20 de dezembro de 1699, na qual o prelado derrogava todas as facilidades anteriormente concedidas a pregadores e confessores, condicionando-as, agora, à realização de novo exame. Esta atitude decorria do facto de ter o prelado sido informado de que alguns clérigos, “esquecidos de suas obrigações”, se não aplicavam no estudo da Moral, “não usando do sacerdócio mais que só na missa, pelo interesse temporal que dela tiram”, situação que lhe parecia intolerável, e à qual procurava, então, obviar (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx, 45, doc. 8). Porém, se as relações com os franciscanos foram tensas, o mesmo não se passou com os jesuítas, cujo reitor, o padre Miguel Vitus, era, nas palavras endereçadas pelo prelado à inquisição de Lisboa, “coisa muito singular em tudo, na capacidade, letras, virtude e ardente zelo na conversão dos hereges, e no cuidado que tem nos reduzidos”, pelo que seria homem a quem se poderia fiar tudo e “só a ele se devem cometer os negócios de maior importância e risco” (FARINHA, 1993, 887). Vinha este elogio a propósito daquela que, no entender do prelado, seria a melhor opção para se tratar dos assuntos respeitantes ao Santo Ofício na Ilha, pois, apesar de na Madeira haver dois comissários, os desentendimentos entre eles poderiam comprometer a objetividade necessária nos julgamentos. Durante este episcopado, e por razões que se poderão atribuir, por um lado, ao facto de o bispo ter sido recrutado das fileiras da Inquisição, e, por outro, à recente reativação do funcionamento do tribunal, assiste-se a um certo aumento das denúncias apresentadas, cujo número, para o período de 1690 a 1719, se cifra em 59 casos. Apesar de o bispo ter referido a meritória ação do reitor do colégio no combate aos hereges, ou talvez por isso, as ocorrências de heresia são escassas, pois só aparecem dois suspeitos, enquanto a grande incidência das faltas se dá nos domínios das curas supersticiosas e das blasfémias, com 13 acusados em cada área. O saldo final destas denúncias cifra-se em apenas 3 processos, 1 de judaísmo e 2 de bigamia, mas a correspondência trocada entre o bispo e a Inquisição, em Lisboa, permite saber-se que a boa opinião que o prelado tinha da nobreza insular não se estendia ao resto da população da Ilha. Assim, em carta escrita a 11 de novembro de 1707, D. José lamentava-se, dizendo que “a assistência de dez anos e o trabalho de sofrer esta gente me tem dado conhecimento do seu orgulho, e dos seus atrevimentos. Saiba Vossa Senhoria que não estou entre gente, senão em um bosque de feras sem nenhum conhecimento, sem obediência da razão, levados tão-somente de suas paixões como brutos sem temor de Deus, nem honra nem previsão de futuros” (Ibid., 887), o que, por sua vez, se harmoniza com a impressão que colhe dos seus fregueses, os quais, em visita a Ponta Delgada, considera “muito rudes” na doutrina, não só os meninos, como também os pais que, se falhassem no envio dos filhos à estação da missa, deveriam ser publicamente inquiridos sobre os ensinamentos religiosos (ARM, Paroquiais, Livro 116-B, fl. 5). Num outro sítio e num outro contexto, expandia ainda o prelado a má opinião que tinha dos ilhéus, que considerava, pela sua ambição “fáce[i]s de levantar testemunhos uns aos outros para melhorarem as suas pretensões” (ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Eusébio, mç. 1, doc. 21). Para tentar obviar às falhas de caráter e às omissões de doutrina, envidou D. José alguns esforços, traduzidos na realização de um plano de visitação com a periodicidade devida, complementado por missões de interior, para as quais recorria aos meios ao seu dispor. Assim, em 31 de janeiro de 1700, enviava para as paróquias rurais, “armados de todos os poderes da sua jurisdição”, dois jesuítas, os padres mestres Inácio de Bulhões e Domingos de Melo, a fim de que, por ser o tempo de “grande calamidade de doenças e mortes”, ajudassem os vigários nas confissões. A esses missionários cometia, ainda, a responsabilidade de “aprovar e reprovar confessores na forma que lhes parecer”, voltando a demonstrar a preocupação que a correta prática do sacramento da penitência lhe despertava. Como nota curiosa, pode ainda acrescentar-se o facto de, para além da saúde moral das populações, o prelado zelar, ainda, pela cura dos males do corpo, pelo que, a acompanhar os jesuítas, ia também um cirurgião “aprovado para que visite os enfermos e lhes aplique os remédios necessários” (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx. 45, doc. 9). No mesmo ano, mas em agosto, realizava-se nova missão, desta vez resultante da oferta dos serviços de um frade, frei João de Santo Ambrósio, que “movido do fervor do seu zelo e caridade determina fazer missão em todas as freguesias deste nosso bispado” (Ibid., doc. 10). Os cuidados que o bispo dispensava à qualificação dos ministros autorizados a confessar voltam a evidenciar-se em edital publicado em 1710, onde se determinava que se não lançassem no rol dos habilitados a apresentar-se a exame os indivíduos que não mostrassem certidão de matrícula, ou aprovação, na aula de moral do colégio da Companhia “por serem muito poucos os sacerdotes capazes de servir a Igreja no exercício do confessionário” (Ibid., cx. 32, doc. 39). Para além disso, destaca-se uma lista dos clérigos do bispado feita em 27 de agosto de 1715, onde constam para a freguesia da sé, por exemplo, 131 eclesiásticos, dos quais apenas 24 estão habilitados a confessar, o que vem, mais uma vez, demonstrar que os critérios para acesso àquele ministério eram severos (Ibid., Livro 2.º da Câmara Eclesiástica, fls. 17-17v.). Para além dos cuidados já expressos com alguns aspetos do exercício do múnus episcopal no tocante à formação dos clérigos, D. José ainda dedicou uma atenção particular ao seminário, o qual fez transferir das antigas instalações no paço onde residia para um novo espaço, situado na rua que passou a chamar-se “do Seminário”, e onde se situavam uns aposentos inicialmente destinados a um mosteiro, o “Mosteiro Novo”, que nunca chegou a funcionar para o fim a que se destinara. O bispo dotou, ainda, o seminário de novos estatutos. Outra das tarefas com as quais se comprometeu o antístite foi a de provedor da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, a cujos destinos presidiu nos anos de 1704 e 1709. Depois de 15 anos em que esteve presencialmente à frente da diocese do Funchal, retirou-se, então, o prelado para Lisboa, conforme já se viu, mantendo-se em funções por mais sete anos, findos os quais renunciou, ficando o bispado à guarda de um governador, Pedro Álvares Uzel, que dele se ocupou até à chegada do novo titular da mitra, D. frei Manuel Coutinho.     Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 22.12.2016)

História Política e Institucional Religiões

braga, teófilo

Filho de aristocratas liberais açorianos, Joaquim Manuel Fernandes Braga e Maria José Albuquerque, nasceu em Ponta Delgada, ilha de São Miguel, Açores, a 24 de fevereiro de 1843. Começou a atividade literária ainda muito jovem, na tipografia A Ilha, colaborando nos periódicos açorianos O Meteoro e O Santelmo. Cessados os estudos em Ponta Delgada, matricula-se em Direito na Universidade de Coimbra, vindo a doutorar-se em 1868. Toma parte na célebre polémica Questão Coimbrã com o texto Teocracias Literárias, colocando-se ao lado de Antero de Quental e opondo-se, assim, a António Feliciano Castilho. Em 1872, foi admitido como lente na cátedra de Literatura Modernas no Curso Superior de Letras, cargo disputado por Manuel Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro. Teófilo de Braga torna-se uma das figuras mais respeitadas nos círculos intelectuais da segunda metade do séc. XIX e inícios do XX em Portugal. Trabalhador incansável, escritor prolífero, deixou uma vasta obra multidisciplinar, tanto a nível literário como científico, reveladora do seu génio brilhante e determinado. Como escritor, destacou-se na poesia, no conto fantástico e no romance histórico, realizando também algumas traduções. Enquanto académico, dedicou-se aos Estudos Literários, História da Literatura, Filosofia e Etnografia, sendo um precursor dos estudos sociológicos em Portugal. O seu pensamento científico estava imbuído da doutrina positivista de Auguste Comte, da qual Teófilo de Braga foi arauto em Portugal, dirigindo, em parceria com Júlio de Matos, a revista O Positivismo (1878-1882), órgão de divulgação da filosofia positivista. Dedicou-se à política, em particular à causa republicana, mais intensamente entre 1870 e 1890, atingindo a sua carreira política dois pontos altos, o primeiro momento em 5 de outubro de 1910, na ressaca do sucesso da revolução republicana, sendo nomeado para a presidência do Governo Provisório da República, e o segundo em 14 de maio de 1915, quando substitui na presidência da república Manuel de Arriaga, após um levantamento militar, tornando-se o segundo presidente da República Portuguesa. Relativamente à Madeira, Teófilo de Braga consagra o segundo capítulo do livro Os Poetas Palacianos aos poetas madeirenses presentes no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Este capítulo aparece transcrito por Álvaro Rodrigues de Azevedo nas suas anotações no livro Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso (1873). Teófilo de Braga refere, assim, autores como Manoel de Noronha, Tristão Teixeira das Damas, João Gonçalves e Pero Correia, observando que estes constituem uma escola poética madeirense que germinou no tempo do rei D. Duarte. O insigne académico intitula tal escola “Ciclo Poético da Ilha da Madeira”, defendendo que esta foi influenciada pela poesia aragonesa, com impressões da tradição lendária inglesa denunciadas pela lenda de Machim e Ana de Arfet, e que constituiu um ramo diferente dos poetas palacianos do continente do reino presentes no Cancioneiro Geral. Contudo, o anotador de Saudades da Terra, Álvaro Rodrigues de Azevedo, faz alguns reparos às ideias de Teófilo de Braga, escrevendo que “o grupo dos poetas madeirenses deste período não constitui ciclo distinto, é apenas ramo do ciclo continental, porque não tem tipo próprio” (FRUTUOSO, 1873, 173). Não obstante, Teófilo de Braga tem o mérito de lançar as bases de uma historiografia literária madeirense. Apesar de tal desacordo, Teófilo de Braga manterá com Álvaro Rodrigues de Azevedo correspondência e amizade. No seu livro Quarenta Anos de Vida Literária (1860-1900) (1902), podemos ler um total de 12 cartas, com datas compreendidas entre 1861 e 1880, enviadas por Álvaro Rodrigues de Azevedo. Do conteúdo das cartas, destaca-se a influência e inspiração que Teófilo de Braga exerceu em Álvaro Rodrigues de Azevedo, nomeadamente na sua recolha etnográfica e folclórica dos contos e cantigas populares da ilha da Madeira, que originou o livro Romanceiro do Arquipélago da Madeira (1880). Ao mesmo tempo, pela leitura das missivas, acompanhamos o processo de elaboração do livro por Álvaro Rodrigues de Azevedo, as reflexões, dúvidas e constantes pedidos de orientação a Teófilo de Braga. Teófilo de Braga morre em Lisboa a 28 de janeiro de 1924.     Carlos Barradas (atualizado a 12.10.2016)

História Política e Institucional

arguim

A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha ficaria dependente da Diocese do Funchal, que para ali nomeava capelão e ouvidor, sendo depois sucessivamente ocupada por Holandeses, Ingleses, prussianos e Franceses, até ser por fim abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios das antigas fortificações, com uma pequena povoação de pescadores-recoletores, sendo objeto de diversas lendas e narrativas. Palavras-chave: comércio; Descobrimentos; escravatura; feitorias fortificadas; tradição oral. Arguim é uma ilha na baía do mesmo nome, situada na extremidade norte da República Islâmica da Mauritânia, na costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprimento por 2 km de largura. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes. A ilha faz parte do Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona protegida, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas. Vista aérea do Banco de Arguim. Arquivo Rui Carita. A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa da costa ocidental de África (África Marrocos). Na sequência da passagem do cabo Bojador, em 1434, as embarcações portuguesas ao serviço do infante D. Henrique (1394-1460) prosseguiram para o Sul, passando ao largo da costa saariana e atingindo a costa da Mauritânia. Estas navegações, que de início se revelaram lucrativas, em virtude de atos de corso e de razias, chegaram ao golfo de Arguim na déc. de 1440; e.g., a caravela de Nuno Tristão (c. 1410-1446) tê-lo-á alcançado em 1441, embora outros navegadores ali tenham passado por esses anos, como Gonçalo de Sintra (c. 1400-1444) e Diniz Dias (há divergências entre os vários cronistas quanto à sua ordem de chegada). Em 1443, voltava àquela área Nuno Tristão, então já acompanhado de um mouro, dado como Sanhaja Berber, que servia de intérprete; aí, adquiriu 28 escravos, que levou para Lagos, no Algarve. É desse ano o pedido oficial de carta de corso do infante D. Henrique ao seu irmão D. Duarte (1391-1438), passando aquele a usufruir de 1/5 das capturas efetuadas – que, em princípio, pertenciam ao Rei –, pedido também posteriormente feito pelo infante D. Pedro (1392-1449). Banco de Arguim. Em 1444, a expedição de Lançarote de Lagos a Arguim, na qual participaram forças da Madeira e, provavelmente, o sobrinho de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), Álvaro Fernandes, conseguiria recolher 240 escravos. As relações da Madeira com estas navegações vão manter-se nos anos seguintes, tendo Álvaro Fernandes e Lançarote de Lagos, em 1446, a explorado a embocadura do rio Senegal e a área de Cabo Verde. Este navegador, que já comandara uma caravela de Zarco em 1444, dirigiu a expedição que em 1447 ultrapassou Cabo Verde e que se supõe ter atingido a ilha de Goreia. As relações da ilha da Madeira com este tipo de comércio e com esta área – Arguim, depois Cabo Verde, Guiné, Angola, etc. – vão manter-se nos anos seguintes. Na Furna de Arguim, como era por vezes chamada esta baía de recifes, ficava a ilha dos Coiros, principal centro de comércio de peles de toda a costa e, para o Sul, localizavam-se as ilhas das Garças, de Naar e de Tider. Serviram as mesmas, com mar bonançoso, para abrigo e repouso das naus. Por ali passaram madeirenses, como os da caravela enviada por Zarco até ao cabo dos Matos, com seu sobrinho Álvaro Fernandes, depois o genro do capitão do Funchal, Garcia Homem de Sousa, e Diogo Afonso, Denis Eanes da Grã, João do Porto e outros. Deve datar de cerca de 1445 a substituição da pirataria, com uma função simultaneamente económica e bélica, pelo comércio pacífico – ou, pelo menos, mais pacífico, dado não ser nessa altura possível fazê-lo sem armas na mão. Em 1444, já se procurava estabelecer o tráfico com os nómadas cameleiros do rio do Ouro, tendo cabido a João Fernandes, um colaborador próximo do infante D. Henrique, beneficiando das informações de Ahude Meimão sobre a localização das principais povoações e o interesse comercial da região, concretizar esses planos. Em 1445, aquele navegador foi responsável pela realização das primeiras operações comerciais com as populações muçulmanas daquela região, promovendo a aquisição de ouro, de goma-arábica e de escravos, em troca de tecidos e de trigo. Em 1447, iniciaram-se as relações com o Suz, em Marrocos – grande mercado de escravos, de ouro e de açúcar –, tentando o infante D. Pedro, ainda nesse ano, estabelecer a paz e manter relações comerciais com o Bori-Mali e com os jalofos, na área da Guiné. Poucos anos depois, por volta de 1454-1455, o italiano Luís de Cadamosto (1432-1488) (Cadamosto, Luís de) explica, nas suas memórias, a propósito do contrato da feitoria de Arguim, que, quando esteve ao serviço do infante D. Henrique, as caravelas costumavam ir armadas de Portugal ao golfo de Arguim, umas vezes quatro, outras mais, “e de noite desembarcavam” e saíam sobre as aldeias costeiras de pescadores, “e faziam correria pela terra”, de modo que prendiam esses “árabes, tanto machos como fêmeas e os traziam a vender em Portugal” (GODINHO, 1956, III, 125-126). Pontão. Antigo embarcadouro. A ilha de Arguim veio a configurar-se como um local privilegiado para o estabelecimento de um posto comercial fixo, dado situar-se numa região esparsamente povoada, mas próxima dos circuitos comerciais percorridos pelas caravanas mercantis que atravessavam o Saara, as quais frequentemente se aproximavam da costa, devido à abundância de sal na região. Sendo um território dotado de um bom porto e de água potável, era facilmente defensável pela vantagem que a sua situação insular oferecia face à previsível hostilidade das populações autóctones, sendo por isso escolhido para centralizar o comércio da costa africana. Entre 1454 e 1455, já se tinha efetuado um contrato por 10 anos, explicando Cadamosto que ninguém podia entrar no golfo para traficar com os locais, “salvo aqueles que entrassem no contrato” celebrado com a Coroa para esse comércio, no qual se incluía a “feitoria na dita ilha, e feitores, que compram e vendem àqueles árabes, que vêm à marinha, dando-lhes diversas mercadorias, como são panos tecidos, prata e alquicéis, que são uma espécie de túnicas, tapetes e sobretudo trigo, do qual estão sempre famintos, e recebem em troca negros, que os ditos alarves trazem da Negraria, e ouro Tiber” (Id., Ibid.). Acrescenta o navegador italiano que o infante fazia então levantar “uma fortaleza na dita ilha, para conservar este comércio para sempre; e por esta razão todos os anos vão e vêm caravelas de Portugal à ilha de Arguim” (Id., Ibid.). O castelo só seria terminado após o falecimento do infante, em 1461, sendo a capitania entregue a Soeiro Mendes de Évora, o vedor da construção, que viria a ter carta de 26 de julho de 1464, de D. Afonso V (1432-1481), a conferir-lhe, a si e aos seus descendentes, a capitania-mor da ilha. Saliente-se, no entanto, que o estatuto comercial de Arguim conheceu variantes. Assim, por volta de 1455, aquando da visita de Cadamosto, a feitoria era administrada por uma sociedade privada, que tinha obtido do infante D. Henrique esse monopólio por um período de 10 anos, provavelmente entre 1450 e 1460. Mais tarde, segundo o cronista João de Barros (1469-1570), Fernão Gomes da Mina (c. 1425-c. 1485), após ter assumido o mercado de exploração do comércio da Guiné, que dominou entre 1468 e 1474, conseguiu também obter o de Arguim, ao preço de uma renda anual de 100$000 réis. A área em torno de Arguim era habitada por berberes e negros islamizados, chamados “mouros” pelos Portugueses, sendo uma importante zona de pesca. Da parte portuguesa, esperava-se intercetar o tráfego do ouro que as caravanas transportavam de Tombuctu para o Norte de África; contudo, foi o comércio de escravos que mais prosperou, recebendo Portugal de Arguim, aproximadamente a partir de 1455, cerca de 800 escravos por ano, na sua maioria jovens negros, feitos prisioneiros durante razias conduzidas no interior do continente pelos líderes tribais da região costeira vizinha. No decurso do mandato de Fernão Soares como capitão e feitor, entre maio de 1499 e dezembro de 1501, obtiveram-se 668 escravos e 12.558 dobras e meia de ouro – moeda que, em 1472, valia 327 reais brancos, na razão 1$896 reais brancos por marco (cerca de 235 g de prata) –, sendo parte deste convertida em escravos, totalizando 840 indivíduos. O feitor seguinte, Gonçalo Fonseca, conseguiria somente 406 escravos em dois anos e meio, mas o que se lhe seguiu, Francisco de Almada, entre 1508 e 1511, ultrapassaria a cifra de 1500 escravos. Em segundo plano estava o importante comércio da goma-arábica, produto que a região produzia em quantidade significativa e com qualidade superior, que se adquiria em Arguim a preços muito atrativos. O território conquistado em Arguim passou então a assumir-se como um centro de comércio, estabelecendo ligações comerciais com os portos de Meça, Mogador e Safim (Safim), em Marrocos. Destes lugares provinham os tecidos, o trigo e outros produtos que, na feitoria de Arguim, eram trocados por ouro e escravos; as mercadorias eram transportadas pela rota que ia de Tombuctu até Hoden. A criação desta feitoria representou um ponto de viragem na expansão portuguesa, assinalando o início da política de construção de feitorias fortificadas, dotadas de uma guarnição militar capaz de as defender contra os ataques dos povos autóctones. Em 1487, foi fundada uma feitoria no interior do continente africano, na localidade de Ouadane (ou Wadan), e, na mesma área, foram feitas outras tentativas de fixação de feitorias, e.g., na região de Cofia e junto à foz do rio Senegal, todas goradas face à hostilidade das populações locais e à dureza do clima. Nos anos de 1505 a 1508, a guarnição do castelo de Arguim era composta de 41 indivíduos, 18 dos quais eram soldados e 5 marinheiros. O comércio da feitoria estava sob o controlo da Coroa, sendo os capitães nomeados pelo Rei, habitualmente para comissões de três anos. Tinham direito a arrecadar 25 % dos lucros do comércio realizado na feitoria, sendo assistidos por um feitor, que arrecadava 12,5 % daqueles, e por um escrivão assalariado, que recebia 20.000 réis na fase inicial dos trabalhos. Em finais de 1555, ou em princípios de 1556, a feitoria de Arguim foi atacada pelo pirata português Brás Lourenço e, em 1569, a guarnição tinha-se reduzido a 30 pessoas. A manutenção da guarnição de Arguim não era fácil, tendo de recorrer-se às vizinhas ilhas Canárias ou à Madeira, como aconteceu em 1513, quando era capitão de Arguim Fernão Pinto (que deve ter sucedido a Francisco de Almada, capitão entre 1508 e 1511, embora o seu nome não conste das listagens geralmente divulgadas, que referem apenas o Cap. Pero Vaz de Almada, em 1514-1515). O mestre do navio enviado às Canárias pelo capitão de Arguim acabou por aportar a Machico, tendo requerido ao almoxarife Antão Álvares a compra de diversos mantimentos – 30 moios de trigo, 20 quintais de biscoito e uma parte de remel (possivelmente o açúcar local) –, deixando como pagamento a João de Freitas (c. 1470-1533), executor das dívidas à Fazenda, seis escravos, marco e meio de ouro, e meia onça de ouro em pó e em pedaços, e tendo sido lavrada quitação com data de 3 de maio de 1513. Três dias depois, o mestre do navio São Miguel Fadigas entregava mais 78 dobras de ouro, em pó e em pedaços, para pagamento de novos mantimentos. Não se conhece qualquer descrição do castelo henriquino de Arguim, nem da sua reformulação na época de D. Afonso V, embora a carta de alcaidaria-mor refira ter havido então obras, nem também das remodelações da déc. de 80 do séc. XV, se bem que se saiba que, ao passar, em 1481, a monopólio régio, sob D. João II (1455-1495), o castelo foi aumentado. Arguim foi perdendo a sua importância ao longo dos anos seguintes, à medida que os interesses comerciais portugueses se transferiam para regiões localizadas a sul (e, depois, para a Índia). Desconhece-se a data em que Arguim passou a estar na dependência da Diocese do Funchal, mas julga-se ter isso ocorrido com o abandono de Safim, em 1541, de cuja Diocese deveria depender, embora não houvesse uma clara definição dos seus limites. A referência a Arguim como pertencente à Diocese do Funchal parece datar da bula do Papa Júlio III, de 1550, que separou da antiga Arquidiocese (Diocese e arquidiocese do Funchal) os territórios das novas dioceses dos Açores, de Cabo Verde, etc., que passaram à jurisdição eclesiástica de Lisboa. A referência à integração da ilha de Arguim na jurisdição do Funchal dá-se com o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), que recebeu a doação de Arguim, do seu castelo e do produto das pescas na costa de Atouguia e que, em 1601, nas Extravagantes que adicionou às anteriores Constituições Sinodais, refere que “dispondo os casos da sua jurisdição nela colocava Ouvidor Eclesiástico” (LEMOS, 1601, título 16, const. 2). Aliás, antes de ser meio-cónego da Sé, o cronista Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) foi vigário de Arguim, em 1567, na ausência do P.e António Fernandes, sinal de que a freguesia já existia e dependia do Funchal (embora pouco tempo ali estivesse, passando rapidamente a Lisboa e aí conseguindo a indigitação para uma futura eleição como meio-cónego da Sé do Funchal).   Voyages en Afrique- Asie-Indes orientales et occidentales-Jean Mocquet-1617 Arguim seria visitada por Jean Mocquet (1575-1617) (Mocquet, Jean), aventureiro francês, em 1601, na sua primeira viagem de recolha de objetos exóticos e curiosos, que lhe permitiu ocupar o boticário régio de Henrique IV (1553-1610) e organizar um gabinete de curiosidades (Colecionismo) nas Tulherias para o seu sucessor, Luís XIII (1601-1643). Jean Mocquet conta nas suas memórias que, na sua primeira viagem, em que visitou o Funchal, seguiu “o desejo que tinha há muito tempo de viajar pelo mundo: quis começar pela África”. Partira de Saint Malo a 9 de outubro de 1601, em La Syréne, que se destinava à Líbia (nome pelo qual se designava a costa marroquina à época e, assim parece, também as ilhas atlânticas e da Mauritânia), e que era um “navio carregado de sal e bem equipado de víveres e munições para a guerra” (MOCQUET, 1830, 27). A embarcação passou por diversas peripécias, chegando a ter de combater com vários corsários; passado o cabo de São Vicente, dirigiu-se ao Norte de África, e depois de dobrar o cabo Branco visitou a velha feitoria de Arguim. Conforme se usava à época (como referido), Jean Mocquet refere-se à região como “Líbia”, contando que “de toda a Líbia vão buscar água ao porto de Arguim”, que se situa sobre uma pequena ponta relevada, a seis léguas de cabo Branco. A fortaleza tinha então alguns soldados portugueses e um capitão. Mocquet menciona que os Portugueses eram amigos dos chefes da região, que não eram todos negros, havendo chefes brancos, mas que eram todos muçulmanos. Faziam comércio de plumas de avestruz e de peixe, “que aqui usam como moeda de troca” (Id., Ibid., 34). Mocquet já não refere o rendoso comércio de escravos e de ouro.     Arguim estava a entrar em franca decadência; embora periodicamente visitada pelos pescadores da Madeira e sob a jurisdição do bispo do Funchal, a sua situação militar era muito precária e a guarnição insustentável. A fortaleza de Arguim teve, em 1612, um projeto de reconstrução, a cargo do arquiteto-mor Leonardo Turriano (1559-1628), e elaborado com base nos dados que este recolhera quando estivera em idêntica função nas Canárias, entre 1588 e 1590, sendo muito provável que se tenha deslocado a Arguim. O projeto, no entanto, não passou do papel: não há registo de qualquer despesa ou movimentação de pessoal nesses anos.     A pequena fortaleza de Arguim acabaria por ser conquistada, em 1638, por forças holandesas e, alguns anos mais tarde, por forças inglesas, sendo posteriormente recuperada pelos Holandeses, até que, em setembro de 1678, foi arrasada por forças francesas, embora depois tenha sido pontualmente reconstruída pelos Franceses. Devem datar de meados do séc. XVII (de cerca de 1665) os dois desenhos flamengos de Johannes Vingboons (1616/1617-1670) que sobreviveram e que parecem representar já a remodelação de Arguim pelos Holandeses. Em 1685, estava quase abandonada, sendo então ocupada por tropas brandeburguesas, transformando-se Arguim na primeira colónia do principado de Brandeburgo. Em 1701, com a incorporação do principado no reino da Prússia, Arguim transitou para o controlo prussiano. Em 1721, perante o desinteresse da Prússia pelas suas colónias africanas, o território voltou à posse da França, momento a partir do qual se fazem muitas representações cartográficas e, inclusivamente, um levantamento planimétrico de Arguim, com Perrier de Salvert, a 8 de março de 1721.   Mapa de Arguim de Gerard van Keulen-1720   A praça seria novamente perdida para os Holandeses no ano subsequente, voltando todavia à posse dos Franceses em 1724, que ali permaneceram até 1728, ano em que abandonaram a ilha ao controlo dos líderes tribais mauritanos. Fez-se explodir a fortificação por ocasião da retirada, pouco devendo ter restado dela. A ilha regressou ao controlo francês nos princípios do séc. XX, quando foi incorporada no então protetorado da Mauritânia; em 1960, com a independência da Mauritânia, Arguim passou a fazer parte do território do novo Estado.       Teatro. A Ilha de Arguim, de Francisco Pestana Durante a sua conturbada história, a ilha foi sempre um dos centros do comércio de goma-arábica e, durante muitos anos, um importante local de caça de tartarugas marinhas e de outras atividades mais ou menos artesanais, em que estavam inclusivamente envolvidos pescadores madeirenses – isso justifica a existência de várias pequenas embarcações, quer no Funchal, quer em Câmara de Lobos, com o nome de Arguim. Embora alguns dos seus proprietários não saibam onde fica, e se tenham limitado a repetir os nomes que já os pais e avós tinham utilizado para as embarcações, subsistem lendas e narrativas populares sobre a ilha – que aparecia e desaparecia, que era o local para onde teria ido viver D. Sebastião, etc. –, que foram inclusivamente objeto de peças de teatro. Na época moderna, a dificuldade de navegação dos navios de algum calado nesta área, em razão dos bancos de areia e dos afloramentos rochosos, é patente no desastre ocorrido em julho de 1816 com a fragata francesa La Méduse, que transportava pessoal para a colónia do Senegal e que encalhou na região, sendo abandonada com grande perda de vidas. O acontecimento ficou imortalizado na obra Le Radeau de la Méduse (A Jangada da Medusa), do pintor francês Théodore Géricault (1781-1824), de 1818-1819. Arguim encontra-se ainda na base da fundação do Convento franciscano da cidade da Baía, no Brasil, como resultado da influência da lenda de S.to António de Arguim: nos inícios do séc. XVII, terá aparecido na costa brasileira, roubada por corsários franceses, uma imagem de S.to António, proveniente da antiga praça africana, pelo que o santo foi eleito padroeiro da cidade (padroado que perderia por proposta dos padres jesuítas, em 1686, passando para S. Francisco Xavier). Em suma: foi em Arguim que se localizou a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha foi sucessivamente ocupada por Portugueses, Holandeses, Ingleses, Prussianos e Franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios da antiga fortificação, tendo uma pequena povoação, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recoletores da etnia imraguen, sendo, para os madeirenses, provavelmente até aos inícios ou meados do séc. XX, um destino de pesca, e permanecendo no seu imaginário como uma antiga lenda. Pesacadores. Arguim. 2006   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017) Imagens: Arquivo Rui Carita

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As áreas marinhas protegidas (AMP) correspondem, numa aproximação jurídica de carácter genérico, à aplicação de um regime jurídico específico e reforçado de proteção ambiental a um espaço marítimo delimitado. Quando o âmbito de aplicação espacial é o oceano circundante ao território terrestre da RAM (nos termos do art. 3.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira – EPARAM: o “arquipélago da Madeira é composto pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas, Selvagens e seus ilhéus”), uma adequada compreensão do seu regime jurídico implica que se tenha simultaneamente em consideração uma multiplicidade de fontes de direito, dado que o enquadramento jurídico-internacional aplicável aos oceanos condiciona a regulamentação proveniente de fontes internas. Assim sendo, no que respeita às AMP existentes na RAM, a sua regulamentação é o resultado da conjugação das fontes aplicáveis de direito regional, de direito interno português, de direito da União Europeia e de direito internacional, com destaque para o direito internacional aplicável aos espaços marítimos. Com efeito, as AMP, ao determinarem quais são os usos permitidos e proibidos num espaço marítimo delimitado e ao pretenderem simultaneamente conformar os comportamentos de todos os potenciais utilizadores do mar, sejam estes nacionais ou estrangeiros, devem respeitar o direito internacional relevante, na medida em que este é o fundamento último de legitimação da atuação do Estado costeiro e das suas divisões ao nível da organização política e administrativa. A qualificação de uma determinada zona de oceano como AMP é recente na prática dos Estados, coincidindo com a progressiva relevância dada às questões ambientais a partir da déc. de 70 do século passado. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), comummente designada como a Constituição dos Oceanos, não fornece um conceito jurídico-internacional para este instituto jurídico, nem contém identicamente um regime jurídico-internacional dedicado especificamente às AMP, não obstante a sua parte XII ser dedicada à “[p]roteção e preservação do meio marinho” e o art. 192.º proclamar expressamente que os “Estados têm obrigação de proteger e preservar o meio marinho”. O n.º 5 do art. 194.º, com a epígrafe “medidas para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho”, estabelece que os Estados devem tomar as medidas “necessárias para proteger e preservar os ecossistemas raros e frágeis, bem como o habitat de espécies e outras formas de vida marinha em vias de extinção, ameaçadas ou em perigo”, o que tem sido utilizado como o fundamento jurídico para a evolução que se deu neste domínio no final do séc. XX e no princípio do séc. XXI. Importa salientar que, ao nível do direito internacional geral, as AMP não constituem um espaço marítimo específico, em paralelo aos restantes espaços marítimos reconhecidos pelo direito internacional do mar (tal como o mar territorial, a zona contígua, as águas arquipelágicas, a zona económica exclusiva, a plataforma continental, o alto mar e a Área [veja-se a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, art. 1.º d, n.º 1, 1)]), mas antes a sujeição de áreas do mar com uma qualificação jurídica-internacional específica a um regime jurídico particular distinto daquele que é normalmente aplicável ao espaço marítimo em questão, nomeadamente ao nível do reforço da proteção ambiental. Nestes termos, a criação de uma AMP pela RAM num espaço sujeito à soberania ou à jurisdição do Estado português, como na zona económica exclusiva, deve ter simultaneamente em consideração os direitos e os deveres do Estado costeiro e os direitos e os deveres que são reconhecidos aos terceiros Estados, nomeadamente pela parte V da CNUDM e pelo direito internacional costumeiro. Embora o direito internacional geral não forneça um conceito de AMP, podem ser encontradas definições em outros documentos de direito internacional, nomeadamente naqueles que têm vindo a ser produzidos no âmbito da Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992), no âmbito da Convenção para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste, também denominada Convenção OSPAR (1992), e nos trabalhos que foram sendo desenvolvidos sobre a matéria no seio da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Sendo os “parques naturais” uma matéria de interesse específico da RAM, nos termos da alínea jj) do art. 40.º do EPARAM, a regulamentação aplicável às AMP é, na sua base, de natureza regional. Em 2016, existiam cinco AMP na RAM, sendo duas de carácter exclusivamente marinho e três com áreas mistas, marinhas e terrestres. As AMP cujo âmbito de proteção é exclusivamente marinho são a Reserva Natural Parcial do Garajau e a Reserva Natural do Sitio da Rocha do Navio. As AMP cujo âmbito de proteção é simultaneamente marinho e terrestre são a Reserva Natural das Ilhas Selvagens, a Reserva Natural das Ilhas Desertas e a Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo. A Reserva Natural Parcial do Garajau, que foi a primeira área exclusivamente marinha a ser criada em Portugal, é regulada pelo dec. leg. regional n.º 23/86/M, de 4 de outubro, com modificações introduzidas pelo dec. leg. regional n.º 38/2006/M, de 4 de agosto. Em conformidade com o n.º 1 do seu art. 2.º, a “área da Reserva Natural Parcial do Garajau tem como limites: a) A oeste, o plano perpendicular à linha de costa na Ponta do Lazareto até à intersecção do plano definido pela linha batimétrica dos 50 m; b) A leste, o plano perpendicular à linha de costa na Ponta de Oliveira até à intersecção do plano definido pela linha batimétrica dos 50 m; c) A norte, a linha definida pela máxima preia-mar de marés vivas; e d) A sul, o plano definido pela vertical da linha batimétrica dos 50 m e, em caso de dúvida, uma linha a uma distância nunca inferior a 600 m do limite norte”. O corpo do n.º 4 do art. 1.º do Regulamento do Plano Especial do Ordenamento e Gestão da Reserva Natural Parcial do Garajau, aprovado pela resolução n.º 882/2010, de 5 de agosto, esclarece que a “área de intervenção (…) é o leito do mar, com uma dimensão total de 376 hectares, e uma linha de costa de aproximadamente sete quilómetros”. O n.º 1 do art. 3.º antes citado estipula que na área do Reserva Natural Parcial do Garajau é proibido: “a) Exercer quaisquer atividades de pesca, comercial ou desportiva, incluindo a caça submarina; b) Colher exemplares animais e vegetais, exceto para fins científicos, quando devidamente justificados e autorizados; c) Extrair areias e outros materiais de origem geológica; d) Vazar quaisquer tipos de sólidos ou líquidos, quer sejam provenientes de terra ou de embarcações; e) Instalar condutas de efluentes provenientes de instalações industriais e domésticas; e f) Navegar dentro dos limites da reserva, com exceção da abicagem de pequenas embarcações às praias, aplicando-se, neste caso, a legislação em vigor”. Concretizando a alínea a) do n.º 3 do art. 3.º, o dec. reg. regional n.º 1/97/M, de 14 de janeiro, regula o exercício do mergulho amador na área da Reserva Natural Parcial do Garajau, entendido como a atividade prosseguida por “um amador, quando se desloca, submerso ou à superfície, equipado com um aparelho respiratório de mergulho”. A Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio foi criada pelo dec. leg. regional n.º 11/97/M, de 30 de julho, e abrange uma área de 1822 ha, sendo 1820 ha de área marítima e 2 ha correspondentes ao Ilhéu da Viúva (de acordo com a informação disponibilizada pelo Programa de Medidas de Gestão e Conservação do Sítio da Rede Natura 2000 do Ilhéu da Viúva). Em conformidade com o seu art. 2.º, a Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio está “definida e delimitada […] no sítio da Rocha do Navio, entre a ponta do Clérigo a leste e a ponta de São Jorge a oeste e entre a linha definida pela preia-mar máxima e a batimétrica dos 100 m, incluindo os seus ilhéus e respetivas áreas marítimas” (sendo a batimétrica uma linha que une pontos da mesma profundidade no mar). O art. 4.º estabelece que na área da Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio é expressamente proibido: “a) O uso de redes de emalhar ou outras, exceto as empregues na captura de isco vivo e o peneiro, empregue na captura da castanheta; b) A colheita, captura, detenção e ou abate de quaisquer espécies de aves ou plantas; c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos; d) A extração de quaisquer inertes, quer de origem marinha, quer terrestre; e) A apanha de lapa e caramujo de mergulho; e f) A caça submarina”. Através da resolução n.º 751/2009, de 2 de julho, o Conselho do Governo regional determinou a classificação do Ilhéu da Viúva como Zona Especial de Conservação (ZEC), ao abrigo da legislação da União Europeia sobre a conservação das aves selvagens e a preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens. A Reserva Natural das Ilhas Selvagens foi inicialmente estabelecida pelo dec. n.º 458/71, de 29 de outubro, como reserva, ao abrigo da lei n.º 9/70, de 19 de junho, e representou o primeiro exemplo de AMP em Portugal. Nos termos do seu art. 1.º, passou a “constituir uma reserva toda a área das Ilhas Selvagens e também a orla marítima que as rodeia até à batimétrica dos 200 m”. Posteriormente, foi classificada como reserva natural pelo dec. regional n.º 14/78/M, de 10 de março. Ao abrigo do n.º 2 do seu art. 1.º, a “reserva natural é definida pelo território das ilhas e pelos fundos marinhos até à batimétrica dos 1000 m.” O limite exterior da reserva natural foi reduzido à linha dos 200 m de profundidade, pelo dec. regional n.º 11/81/M, de 15 de maio, tendo uma área total de 9455 ha, em conformidade com a resolução n.º 1408/2000, de 19 de setembro. Relativamente aos usos do espaço marítimo, o art. 4.º estabelecia que na área da Reserva Natural das Ilhas Selvagens eram proibidos: “g) A colheita de material geológico ou arqueológico ou a sua exploração sem autorização do Governo Regional; h) A caça submarina; i) A pesca de arrasto e outras artes que colidam com o fundo até à batimétrica fixada pela reserva, ressalvando-se as artes de anzol e rede”. Em conformidade com o art. n.º 11, com a epígrafe “atividades condicionadas” do Regulamento do Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Selvagens, aprovado pela resolução n.º 1292/2009, de 25 de setembro, ficaram “sujeitas a autorização da Entidade Gestora, os seguintes atos e atividades: b) A recolha de amostras biológicas, geológicas ou arqueológicas quer de origem marinha quer terrestre; k) A pesca recreativa; e l) A caça submarina”. Pelo edital n.º 15/2011, de 29 de novembro, da Capitania do Porto do Funchal, está “interdita toda a atividade de pesca na faixa litoral das Ilhas Selvagens até à batimétrica dos 200 (duzentos) metros, por período indeterminado”, em razão da “suspeita da eventual presença de uma microalga produtora de uma biotoxina suscetível de provocar alterações ao nível da saúde humana”. As Ilhas Selvagens são uma área classificada de Zona Especial de Conservação e de Zona de Proteção Especial (o dec. reg. regional n.º 3/2014/M, de 3 de março, estabeleceu a Zona de Proteção Especial das Ilhas Selvagens, com uma extensão de 124.530 ha), estando inscritas na categoria 1.a de gestão de áreas protegidas da União Internacional da Conservação da Natureza como “área de reserva natural integral gerida prioritariamente para fins de pesquisa científica, assegurando que os habitats, ecossistemas e as espécies nativas se mantenham livres de perturbação, tanto quanto possível”. A Reserva Natural das Ilhas Desertas foi criada pelo dec. leg. regional n.º 14/90/M, de 23 de maio, como Área de Proteção Especial das Ilhas Desertas, sendo posteriormente o seu estatuto jurídico alterado pelo dec. leg. regional n.º 9/95/M, de 20 de maio. Nos termos do art. 2.º, a Reserva Natural das Ilhas Desertas é “delimitada pela linha batimétrica dos 100 m em volta das Ilhas Desertas, incluindo todas as suas ilhas e ilhéus e a respetiva área marítima”, tendo uma área total de 9455 ha (em conformidade com a informação disponível no Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Selvagens). Relativamente aos usos do espaço marítimo, o art. 4.º, após as alterações introduzidas pelo segundo dos diplomas antes citados, estabelece que nos locais a sul “do marco geodésico da doca e da Ponta da Fajã Grande, nela se incluindo o ilhéu Chão” são proibidos: “a) A pesca comercial e a pesca sem fins comerciais, designadamente a desportiva; b) A prática de caça submarina; e c) A colheita de exemplares vegetais e animais, exceto para fins científicos, desde que devidamente autorizada; e d) O acesso de pessoas e embarcações, salvo as que hajam sido autorizadas e credenciadas pelo Parque Natural da Madeira”. Em conformidade com o art. 5.º, na sua versão alterada, aplicável a toda à área protegida, é ainda proibido: “a) O uso de artes de redes de emalhar, cercar e arrastar, com exceção das que são empregues na captura de isco vivo; (…), c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos; d) A extração de quaisquer inertes, quer de origem marinha, quer terrestre; e e) A prática de caça submarina”. Em conformidade com o art. 11.º, com a epígrafe “atividades condicionadas”, do Regulamento do Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Desertas, aprovado pela resolução n.º 1292/2009, de 25 de setembro, ficaram “sujeitas a autorização da Entidade Gestora, os seguintes atos e atividades: b) A recolha de amostras biológicas, geológicas ou arqueológicas quer de origem marinha quer terrestre; k) A pesca recreativa; e l) A caça submarina”. As Ilhas Desertas são uma área classificada de Zona Especial de Conservação e de Zona de Proteção Especial (o dec. reg. regional n.º 3/2014/M, de 3 de março, estabeleceu a Zona de Proteção Especial das Ilhas Desertas, com uma extensão de 76.462 ha). A Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo foi criada pelo dec. leg. regional n.º 32/2008/M, de 11 de agosto. Nos termos do n.º 1 do art. 2.º, é “constituída pela parte terrestre de todos os seus ilhéus e pelas zonas marinhas circundantes do Ilhéu da Cal ou de Baixo e do Ilhéu de Cima, incluindo a zona onde se encontra afundado o navio O Madeirense”, sendo ainda acrescentado no número seguinte, relativamente às áreas marítimas, que integra, em conformidade com a alínea b) a “área marinha limitada a oeste pela batimétrica dos 50 m e pelo azimute verdadeiro 315º a partir da extremidade oeste da Ponta do Focinho do Urso, a sul pela batimétrica dos 50 m, a norte pela linha da preia-mar máxima de marés-vivas equinociais da costa da ilha do Porto Santo e a este pela batimétrica dos 50 m e pelo azimute verdadeiro 135º a partir do enfiamento do Pico de Ana Ferreira” e, nos termos da alínea c), pela “área marinha limitada a oeste pelo azimute verdadeiro 160º a partir da extremidade oeste do Porto de Abrigo, a sul e este pela batimétrica dos 50 m e a norte pela linha da preia-mar máxima de marés-vivas equinociais da costa da ilha do Porto Santo e pelo azimute verdadeiro 90º a partir da Ponta das Ferreiras”. Em toda a área da Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo, em conformidade com o n.º 1 do art. 5.º, é interdito: “a) O exercício da pesca para fins comerciais, exceto a captura de isco vivo destinado à pesca de tunídeos (…); b) A apanha de lapa e caramujo de mergulho; c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos, quer sejam provenientes de terra ou de embarcações; d) A instalação de condutas de efluentes provenientes de instalações industriais e domésticas; e) A extração de areias ou de outros recursos geológicos; f) As atividades náuticas, com exceção das necessárias ao exercício das atividades autorizadas […]; g) A colheita, captura, abate ou detenção de exemplares de quaisquer espécies vegetais ou animais sujeitas ou não a medidas de proteção legal ou efetuar outras atividades intrusivas ou perturbadoras do seu desenvolvimento”. Em contraponto, no art. 6.º, relativo a “atos ou atividades sujeitos a autorização”, está previsto que, desde que devidamente autorizados pela entidade gestora, são permitidos: “a) A pesca marítima sem fins comerciais ou lúdica, com exceção do Ilhéu de Cima, onde é proibida toda e qualquer atividade de pesca (…); b) A apanha de lapa e caramujo no calhau; c) O mergulho de escafandro; d) Caça submarina, com exceção da área do ilhéu de Cima, onde é proibida toda e qualquer atividade de pesca; (…); e f) As atividades marítimo-turísticas (…) que não sejam suscetíveis de pôr em risco a proteção ambiental da Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo”. O n.º 3 do artigo citado ainda prevê que é “permitida a travessia de embarcações pelos boqueirões do Ilhéu de Cima e do Ilhéu de Baixo ou da Cal, incluindo a passagem, com esse fim, das respetivas áreas da Rede de Áreas Marinhas Protegidas de Porto Santo”. O n.º 3 do art. 7.º determina que “poderá ser dada prioridade às comunidades locais dependentes da pequena pesca” quando sejam “estabelecidas condições específicas para o exercício da pesca lúdica e para a captura de isco vivo destinado à pesca de tunídeos”. Os Ilhéus do Porto Santo são uma área classificada de Zona Especial de Conservação. No que concerne especificamente ao espaço marítimo, importa realçar que uma adequada compreensão do regime jurídico aplicável às AMP implica que tenham em consideração três questões de natureza jurídico-internacional, na medida em que os poderes que os Estados costeiros podem exercer nos mares e nos oceanos não são equivalentes aos poderes de soberania que os Estados exercem no âmbito do seu território terrestre, em razão de estes serem por natureza exclusivos e excludentes. Em primeiro lugar, deve ser posto em destaque que os mares e os oceanos, apesar da sua unidade física, estão divididos em espaços marítimos com estatutos jurídico-internacionais diferenciados. Em termos gerais, importa distinguir entre espaços marítimos sujeitos à soberania ou à jurisdição dos Estados costeiros (com destaque para o mar territorial, a zona económica exclusiva e a plataforma continental) e os espaços marítimos internacionais (alto mar) ou com um regime jurídico de internacionalização (Área). Os poderes dos Estados variam em função dos espaços marítimos em questão, pelo que a apreciação de qualquer comportamento levado a cabo por um Estado ou pelos seus nacionais, seja pelo Estado costeiro, seja por terceiros Estados, importa uma prévia localização geográfica no espaço em que ocorrem. Daqui resulta que as referências às batimétricas nas zonas marítimas abrangidas pelas AMP na RAM, como forma de delimitação das áreas especialmente protegidas do ponto de vista ambiental, não tenham de estar necessariamente compatibilizadas com os poderes que os Estados costeiros podem exercer nos espaços marítimos sob a sua soberania ou jurisdição, tendo em consideração os diferentes poderes que são reconhecidos aos Estados nas águas interiores, no mar territorial, na zona económica exclusiva e na plataforma continental. Em segundo lugar, importa salientar que a atuação dos Estados nos mares e nos oceanos se encontra genericamente enquadrada pelo princípio da liberdade dos mares, em conformidade com o qual todos os Estados, sejam ou não costeiros, podem prosseguir atividades nos diferentes espaços marítimos, sujeitos às limitações que decorrem do direito internacional. As utilizações específicas que podem ser prosseguidas pelos diferentes Estados e pelos seus nacionais estão dependentes do espaço marítimo em questão, mas a ideia básica que subjaz à atuação nos mares e nos oceanos é a de conciliação entre os diversos usos possíveis. Assim, a título de exemplo, embora os Estados costeiros exerçam poderes muito alargados no mar territorial, com a extensão máxima de 12 milhas marítimas (ou milhas náuticas, equivalentes a cerca de 22,22 km), os navios com a bandeira de terceiros Estados podem circular pelas suas águas ao abrigo do direito de passagem inofensiva, sem a necessidade de obterem a anuência ou a autorização desses Estados (arts. 17 a 19 da CNUDM). Finalmente, em terceiro lugar, deve ser tido em consideração que, salvo em situações muito circunscritas, como a colocação de instalações para a exploração de petróleo ou de gás natural ou a construção de ilhas artificiais, os usos dos mares e dos oceanos são temporários e prosseguidos por navios. Daqui decorre a necessidade de se autonomizar os usos que estão reservados para os Estados costeiros, nos casos em que estes tenham lugar num espaço sujeito à soberania ou à jurisdição dos Estados costeiros, como nos casos do mar territorial, das zonas económicas exclusivas ou das plataformas continentais, e daqueles outros usos, como a navegação, que constituem uma prerrogativa de todo e de qualquer Estado, seja ou não um Estado costeiro, podendo ser prosseguidos em qualquer lugar, com a exceção das águas interiores do Estado costeiro. A necessidade de ser respeitada a liberdade de navegação dos navios com o pavilhão ou bandeira de um terceiro Estado é particularmente relevante em algumas das AMP existentes na RAM, em razão da sua dimensão, com particular destaque para a Reserva Natural das Ilhas Selvagens.   Fernando Loureiro Bastos (atualizado a 14.12.2016)

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