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clima e meteorologia

O arquipélago da Madeira situa-se na região subtropical do Atlântico oriental, centrado aproximadamente a 32 ° 45 ’ de latitude norte e 17 ° 00 ’ de longitude oeste, a cerca de 900 km de Portugal continental (Sagres) e dos Açores (Santa Maria). É formado pelas ilhas da Madeira e de Porto Santo, com áreas da ordem dos 730 km2 e 23 km2, respetivamente, e pelos ilhéus das Desertas e das Selvagens, estes últimos a cerca de 300 km a sul da Madeira. A orografia é bastante acidentada, com as formações de maior altitude na parte oriental (pico Ruivo, com 1862 m) e na parte ocidental (planalto do Paul da Serra, com altitude da ordem dos 1300 m). De acordo com a classificação climática de Köppen-Geiger, as ilhas da Madeira e de Porto Santo apresentam clima temperado húmido, com zonas de verão seco e quente e outras zonas de verão seco e suave, dependendo da proximidade ao mar, da exposição solar e principalmente da altitude. Em intervalos de tempo regulares, com base em instrumentos específicos, é feita no arquipélago a observação à superfície dos principais descritores meteorológicos, designadamente a pressão atmosférica, o vento, a temperatura e a humidade relativa do ar. A respetiva difusão sincronizada aos níveis regional, nacional e internacional constitui a informação primária para a descrição do tempo presente e, por acumulação sucessiva, do conhecimento do clima. As primeiras observações meteorológicas à superfície, executadas com regularidade e de forma continuada no Funchal remontam a meados do séc. XIX, tendo sido executadas até meados do séc. XX no Palácio de S. Lourenço, e posteriormente no sítio dos Louros, na orla costeira leste da cidade, onde foi instalado o Observatório Meteorológico do Funchal. Graças à observação regular efetuada, no mínimo diariamente, às 09.00 h, estava disponível, em 2015, uma série longa de dados para o Funchal, o que permitia conhecer, e.g., a variação da temperatura média do ar e da quantidade de precipitação dos 151 anos anteriores e da temperatura da água do mar à superfície dos 65 anos anteriores, executada no porto do Funchal. Fig. 1 – Gráfico com a média anual da temperatura do ar à superfície, registada no Funchal entre 1865 e 2015 (151 anos) (Palácio de S. Lourenço e sítio dos Louros); e a média anual da temperatura da água do mar registada na Pontinha entre 1951 e 2015 (65 anos). Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. Dos registos anuais, destaca-se a subida da média anual da temperatura do ar a partir do início dos anos 70 do séc. XX. Desde 1971 até 2015, a temperatura média anual subiu cerca de 2,2 °C, o que corresponde a um valor médio da ordem de 0,5 °C por década. No entanto, entre 1996 e 2015, período em que as observações foram feitas sempre com o mesmo equipamento, devidamente calibrado, verificou-se que a temperatura do ar subiu cerca de 0,3 °C, o que corresponde a um valor da ordem de 0,15 °C por década, tendo a subida sido mais acentuada entre 1996 e 2004 (8 anos) do que entre 2005 e 2015 (11 anos). À semelhança da temperatura média do ar, a temperatura média da água do mar começou a subir no início da déc. de 70 do século XX, embora de forma menos significativa entre 1995 e 2015. Desde o início da déc. de 70, a diferença entre a temperatura média do ar e da água do mar variou entre 1,3 °C e 0,5 °C, embora nos últimos anos do intervalo essa diferença se tenha mantido próxima dos 0,5 °C. Entre 1995 e 2015, a temperatura média anual do ar variou entre 20,0 °C e 20,4 °C, e a temperatura da água do mar entre 20,4 °C e 21,1 °C. Fig. 2 – Gráfico com a evolução da precipitação média anual registada no Funchal entre 1865 e 2015, desde 1865 no Palácio de S. Lourenço e desde 1951 no sítio dos Louros (Observatório Meteorológico do Funchal). Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. A partir de uma análise simples da fig. 2, conclui-se que a quantidade de precipitação apresenta variabilidade interanual significativa. No 65 anos que medeiam entre o momento em que começou a haver registos no Observatório Meteorológico do Funchal e 2015, a precipitação anual mais baixa foi registada em 2015 (299,5 mm), correspondendo ainda ao quarto valor mais baixo desde 1865 (em 151 anos). O maior valor da quantidade de precipitação anual ocorreu em 2010 (1477 mm) e um valor próximo deste foi registado em 1895 (1420 mm). Entre 2010 e 2015, registou-se o maior período de anos consecutivos com os valores mais baixos da quantidade de precipitação no Funchal. Rede de observação A rede meteorológica do Funchal começou a ser construída em meados dos anos 30 do séc. XX, com a instalação de vários postos meteorológicos. Nos anos 50, a rede meteorológica era constituída por 15 postos, tendo 7 sido desativados durante a déc. de 80; restaram as estações do Funchal (1865), do Areeiro (1936), de Santana (1937), do Porto Santo (1939), do Lugar de Baixo (1941), do Santo da Serra (1942), da Bica da Cana (1950) e de Santa Cruz/Aeroporto (1958). No acompanhamento da modernização tecnológica registada particularmente durante a déc. de 80 do séc. XX, iniciou-se em 1995 a modernização da rede meteorológica do arquipélago da Madeira, com a instalação de duas estações meteorológicas automáticas em Porto Santo/Aeroporto (78 m) e no Funchal/Observatório (58 m); em 2002, foram instaladas cinco estações: Funchal/Lido (25 m), São Jorge (257 m), Chão do Areeiro (1590 m), Lugar de Baixo (40 m) e Ponta do Pargo (298 m); em 2009, e para reforçar a melhoria da previsão meteorológica, foram ainda instaladas duas estações automáticas no Caniçal/Ponta de São Lourenço (133 m) e nas Achadas da Cruz/Lombo da Terça (931 m). Posteriormente, e após o violento temporal de 20 de fevereiro de 2010, reconheceu-se a necessidade de aumentar a densidade de estações, pelo que foram instaladas, em finais de 2010, mais cinco estações automáticas em Quinta Grande (580 m), São Vicente (97 m), Santana (380 m), Bica da Cana (1560 m) Santo da Serra (660 m), tendo as três últimas substituído as estações clássicas existentes, das quais havia apenas uma observação diária, às 09.00 h. Posteriormente, e para completar a rede planeada em 2010, foram instaladas, em 2013, uma estação no Pico do Areeiro (1799 m), e em 2014 três estações: Porto Moniz (35 m), Pico Alto (1118 m) e Santa Cruz/Aeroporto (58 m), aqui para substituir a estação clássica. Estas 18 estações estão equipadas com instrumentos de observação da temperatura e humidade relativa do ar, precipitação e radiação solar global, estando 12 – Funchal/Observatório, Funchal/Lido, São Jorge, Areeiro, Lugar de Baixo, Ponta do Pargo, Caniçal/Ponta de São Lourenço, Santo da Serra, Porto Moniz, Pico Alto, Santa Cruz/Aeroporto e Porto Santo/Aeroporto – equipadas com instrumentos de medição do vento. Três destas estações estão ainda equipadas com instrumentos de medição da pressão atmosférica: Funchal/Observatório, Santa Cruz/Aeroporto e Porto Santo/Aeroporto. Assim, para a Madeira, a densidade de estações meteorológicas é da ordem de uma estação por cada 45 km2 para a temperatura e humidade relativa do ar e radiação solar global, e uma estação por 65 km2 para o vento. Para ilustração, apresenta-se na fig. 3 a distribuição e a localização das estações meteorológicas no arquipélago da Madeira, em 2015. Fig. 3 – Mapa com a distribuição e localização das estações meteorológicas no Arquipélago da Madeira em 2015. A redução na densidade de estações decidida para o arquipélago da Madeira resultou, em particular, da necessidade de melhoria da vigilância meteorológica, sentida após vários episódios de tempo rigoroso, em particular associados a precipitação forte, registados a partir do início de 2009, dos quais se apresentam alguns mais significativos: 27 fevereiro 2009: Funchal 82,7 mm/Areeiro 145,1 mm; 18 de dezembro de 2009: Funchal 36,7 mm/Areeiro 130,1 mm; 2 de fevereiro de 2010: Funchal 42,5 mm/Areeiro 184,7 mm; 20 de fevereiro: Funchal 144,3 mm/Areeiro 389,6 mm; 21 de outubro de 2010: Funchal 82,7 mm/Areeiro 147,0 mm; 26 de novembro de 2010: Funchal 155,1 mm, tendo sido o maior valor diário registado desde sempre/Areeiro 185,2 mm; 28 de dezembro de 2010: Funchal 50,7 mm/Areeiro 95,7 mm; 26 de janeiro de 2011: Funchal 103,4 mm/Areeiro 321,0 mm; 30 de outubro de 2012: Funchal 55,7 mm/Areeiro 258,1 mm; 6 de novembro de 2012: Funchal 19,3 mm/Areeiro 201,1 mm; 3 de março de 2013: Funchal 40,9 mm/Areeiro 274,4 mm; e muitos outros episódios em toda a ilha da Madeira, sendo de registar também os da Ribeira da Janela no dia 5 de novembro de 2012: 186 mm no Lombo da Terça/Porto Moniz; e de Porto da Cruz a 29 de novembro de 2013: 325 mm no Santo da Serra durante dois dias.   Fig. 4.1 – Fotografia de balão meteorológico com radiossonda. A rede de observação no arquipélago da Madeira inclui ainda um sistema de radiossondagens para observação da pressão atmosférica, do vento, da temperatura e da humidade relativa do ar, desde a superfície até cerca de 30 km de altitude, recorrendo ao lançamento de balão com radiossonda (fig. 4.1), executado uma vez por dias às 12.00 h, e ainda quatro estações de tempo presente, instaladas no Funchal/Observatório Meteorológico, em Chão do Areeiro, Pico do Areeiro e São Jorge, para observação da visibilidade horizontal e identificação do tipo de meteoros (chuva, chuvisco, granizo, saraiva e neve).   Fig. 4.2 – Estação meteorológica automática, em teste no Observatório Meteorológico do Funchal, para ser instalada nas Selvagens. Para completar a rede do arquipélago da Madeira, foi instalada uma estação meteorológica automática nas ilhas Selvagens no verão de 2016 (fig. 4.2), a qual permitirá essencialmente acompanhar a evolução de sistemas meteorológicos que se formem a sul da Madeira, para além de que os dados registados nestes ilhéus permitirão o estudo do clima local e o apoio de estudos científicos nos domínios dos ecossistemas locais.     Condições meteorológicas caraterísticas na região da Madeira Fig. 5.1 – Imagem de aproximação de superfície frontal fria As condições meteorológicas predominantes na região do arquipélago da Madeira são principalmente determinadas pela intensidade e localização do anticiclone dos Açores e pelas perturbações da superfície frontal polar que se fazem sentir especialmente de novembro a março, quando se deslocam do Atlântico Norte em direção à Europa, vindas de oeste. Durante o inverno, o anticiclone dos Açores está geralmente deslocado para sul da sua posição média, a sudoeste dos Açores. Importantes também na determinação das condições meteorológicas nesta época do ano são as depressões frontais que se deslocam sobre o Atlântico, que dão origem à aproximação e passagem de superfícies frontais, em particular de superfícies frontais frias (fig. 5.1), mais frequentes e mais ativas do que as superfícies frontais quentes, as quais dão origem a grande nebulosidade, chuva e aguaceiros por vezes fortes, em particular nas zonas montanhosas, e a ventos fortes dos quadrantes de sul. Fig. 5.2 – Imagem de localização do anticiclone dos Açores em dia de verão. Durante o verão, o anticiclone dos Açores, desloca-se frequentemente para nordeste relativamente à sua posição média anual, a sudoeste dos Açores, fortalece-se e estende-se com uma crista de altas pressões, que atinge o Nordeste da Europa (fig. 5.2). Fig. 5.3 – Imagem de depressão estacionária centrada entre Portugal Continental e os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Também de outubro a março, estabelecem-se por vezes, entre a Península Ibérica, os Açores e a Madeira, depressões frias estacionárias que afetam as condições meteorológicas nesta região e podem permanecer cerca de uma semana, dando origem, na região da Madeira, a grande nebulosidade com ocorrência de períodos de chuva ou aguaceiros por vezes fortes (fig. 5.3). Importantes são também as situações em que se observa um anticiclone muito desenvolvido, centrado a norte da latitude da Madeira, e orientado na direção oeste-leste, por vezes associado a baixas pressões sobre o continente africano, e em que a região da Madeira é atingida por vento de leste, muito quente e seco, vindo do deserto do Sahara, com poeira fina que dá origem a bruma. Nesta situação, a temperatura do ar na Madeira pode chegar aos 35 °C e a humidade relativa do ar descer para valores da ordem de 5 % nas regiões montanhosas. O clima da Madeira Para a caraterização do clima da Madeira, recorreu-se à classificação climática de Köppen-Geiger, a qual divide os climas em cinco grandes grupos, identificados por letras maiúsculas, e na qual o arquipélago da Madeira se integra no grupo [C], definido como clima temperado húmido. Para cada grande grupo, o tipo de clima é ainda especificado através de uma letra minúscula que refere o regime da precipitação, que para o arquipélago da Madeira, definido como húmido, é [s]; e uma segunda letra minúscula, que está relacionada com a temperatura média mensal, que para o arquipélago da Madeira é [a] ou [b], correspondendo a verão seco e quente (VSQ) ou verão seco e suave (VSS). No fig. 6, apresenta-se a metodologia utilizada com os limites relativos às temperaturas e precipitações mensais, de acordo com a classificação climática de Köppen-Geiger. [table id=88 /] Recorrendo à série de dados de 1971-2000 (30 anos), em particular às normais climatológicas, da temperatura do ar e da precipitação média mensal, para as estações do Funchal (costa sul, 58 m), do Areeiro (montanha, 1590 m), de Santana (costa norte, 380 m) e da ilha de Porto Santo (78 m), representadas graficamente na fig. 7, e aplicando a classificação de Köppen-Geiger, temos para o Funchal e para Porto Santo clima do tipo Csa (temperado húmido com verão seco e quente) e para o Areeiro e Santana clima do tipo Csb (temperado húmido com verão seco e suave). Fig. 7 – Gráficos com a temperatura do ar e a precipitação média mensal no período de 1971-2000, registadas nas estações meteorológicas do Funchal (58 m), do Areeiro (1590 m), de Santana (380 m) e de Porto Santo (78 m). Aplicando a mesma classificação para as estações que se apresentam na fig. 8, com séries de dados de cinco anos (2011-2015), verifica-se que no Funchal (58 m), no Lugar de Baixo (40 m), na Ponta do Pargo (298 m), em São Vicente (97 m), no Caniçal (133 m) e em Porto Santo (78 m) o clima é Csa (temperado húmido com verão seco e quente) e nas estações de Quinta Grande (580 m), São Jorge (257 m), Santana (380 m), Santo da Serra (660 m), Areeiro (1590 m), Bica da Cana (1560 m) e Lombo da Terça (931 m) o clima é do tipo Csb (temperado húmido com verão seco e suave). [table id=89 /] Legenda: H – Altitude T1 – Temperatura média do ar do mês mais frio I1 – Grupo climático R1 – Precipitação no mês mais seco R2 – Precipitação no mês mais chuvoso I2 – Indicador de tipo T2 – Temperatura média do ar do mês mais quente I3 – Indicador de subtipo TC – Tipo de clima Csa – Clima temperado húmido com verão seco e quente Csb – Clima temperado húmido com verão seco e suave   Na fig. 9 apresenta-se de forma gráfica, para nove das estações indicadas na fig. 8, os valores médios mensais da temperatura do ar e da precipitação para o período 2011-2015. Fig. 9 – Gráficos com a temperatura do ar e a precipitação média mensal no período de 2011-2015, registadas nas estações meteorológicas de São Vicente (97 m), São Jorge (257 m), Ponta do Pargo (295 m), Bica da Cana (1560 m), Santana (340 m), Lugar de Baixo (40 m), Funchal (58 m), Caniçal (133 m) e Porto Santo (78 m). Dos resultados anteriores, conclui-se que, para além da latitude, os fatores determinantes do clima da Madeira são a altitude e a proximidade ao mar. Assim, toda a faixa costeira sul até à cota de 500 m (a avaliar pelos valores da Quinta Grande), a faixa costeira norte até à cota de 100 m, aproximadamente (a avaliar pelos valores de São Vicente e de São Jorge), e o Porto Santo apresentam clima temperado húmido com verão seco e quente, e as restantes regiões clima temperado húmido com verão seco e suave. Resumo de apuramentos estatísticos (1971-2000) A fim de se conhecer com mais detalhe a variação dos vários parâmetros climáticos, apresenta-se uma descrição dos apuramentos estatísticos, também conhecidos por normais, para o período 1971-2000, relativos às estações do Funchal (58 m, costa sul), do Areeiro (1590 m, montanha), de Santana (380 m, costa norte) e do Porto Santo (78 m). (Todos estes dados foram recolhidos no Instituto do Mar e da Atmosfera.)   Temperatura do ar Nas regiões costeiras da ilha da Madeira e em Porto Santo, a temperatura mínima do ar raramente desce abaixo de 10 °C no inverno e a temperatura máxima poucas vezes ultrapassa 30 °C no verão. No entanto, nas terras altas da ilha da Madeira, consideradas acima dos 1000 m, observam-se com frequência valores da temperatura mínima do ar inferiores a 0 ºC. A região do Lugar de Baixo, na vertente sul, a jusante dos ventos dominantes, é a mais quente da ilha da Madeira. Os valores médios anuais da temperatura do ar na ilha da Madeira são maiores na costa sul do que na costa norte e diminuem para o interior da ilha, com a altitude. A temperatura média anual é de 19,0 °C no Funchal (58m), 8,8 °C no Areeiro (1590 m), 15,5 °C em Santana e 18,6 °C na ilha de Porto Santo (78 m). A temperatura média mensal varia pouco ao longo do ano, sendo maior no verão – 22,6 °C no Funchal, 14,3 °C no Areeiro, 19,0 °C em Santana e 22,5 °C em Porto Santo – e menor no inverno: 16,1 °C no Funchal, 4,9 °C no Areeiro, 12,8 °C em Santana e 15,6 °C em Porto Santo. As amplitudes térmicas diárias são pequenas, com valores médios mensais que variam de 5,7 °C a 6,5 °C no Funchal, de 5,9 °C a 8,5 °C no Areeiro, de 4,8 °C a 6,2 °C em Santana e de 4,8 °C a 6,1 °C em Porto Santo. O número médio de dias de verão, definidos como dias em que a temperatura máxima do ar é superior ou igual a 25 °C, é de 72 no Funchal, 7 no Areeiro, 7 em Santana e 39 no Porto Santo; o número de noites tropicais, ou seja, dias de temperatura mínima do ar superior ou igual a 20 °C, é de 28 no Funchal, 1 no Areeiro, 1 em Santana e 37 em Porto Santo. Os dias quentes, com temperatura máxima do ar superior ou igual a 30 °C, podem ser registados tanto nas regiões costeiras como nas regiões montanhosas da ilha da Madeira e também em Porto Santo, mas são bastante reduzidos; em média, inferiores a um dia por ano. As temperaturas máximas absolutas registadas foram 38,5 °C no Funchal, 30,6 °C no Areeiro, 34,1 °C em Santana e 35,3 °C em Porto Santo; e as temperaturas mínimas absolutas foram 7,4 °C no Funchal, -7,0 °C no Areeiro, 5,1 °C em Santana e 6,4 °C no Porto Santo. O número médio de dias do ano com temperatura mínima inferior a 0 ºC é praticamente nulo, exceto no Areeiro onde é de cerca de 40 dias. Precipitação De todos os elementos climáticos, a precipitação é a que apresenta maior variabilidade, existindo um contraste significativo entre a vertente norte e as zonas mais altas, onde ocorrem valores muito elevados de precipitação, e a vertente sul e o Porto Santo, com valores baixos de precipitação. No inverno, a precipitação ultrapassa os 1000 mm nas zonas mais altas, enquanto na costa sul é inferior a 300 mm. Nos meses de verão, a quantidade de precipitação varia entre os 150 mm nas zonas mais altas e menos de 50 mm na costa sul da ilha. O facto de chover mais na parte norte da Madeira durante o verão está claramente associado à direção dominante do vento do quadrante norte nesta estação do ano, e ao facto de a precipitação ser essencialmente de origem orográfica. Os valores médios anuais da precipitação na ilha da Madeira são maiores na costa norte do que na costa sul, aumentando com a altitude, sendo em regra maiores nas encostas voltadas a norte do que nas encostas voltadas a sul para regiões da mesma altitude. Os valores variam de 596 mm no Funchal a 2620 mm no Areeiro, com 1383 mm em Santana. No Porto Santo, o valor médio anual da quantidade de precipitação é 361 mm. Os valores médios mensais da quantidade de precipitação variam muito durante o ano, sendo os meses de outubro a março os mais chuvosos, com valor médio mensal mais elevado nos meses de novembro a janeiro. As maiores quantidades de precipitação diárias variam de local para local, desde o máximo de 215,0 mm no Areeiro, passando por 194,0 mm em Santana, até aos 97,7 mm no Funchal; em Porto Santo, o maior valor diário registado foi 73,0 mm. O número médio anual de dias em que a quantidade da precipitação é igual ou superior a 10 mm é máximo no Areeiro (70) e mínimo em Porto Santo (9), sendo 19 dias no Funchal e 40 dias em Santana. A assimetria norte-sul do número anual de dias com precipitação (≥0,1 mm) é muito significativa. Com efeito, na região do Funchal e noutros pontos da costa sul, ocorrem menos de 90 dias com precipitação por ano, enquanto na costa norte se observam mais de 150 dias por ano. Por outro lado, nas zonas mais altas registam-se mais de 200 dias por ano com precipitação, dos quais mais de 70 são dias com precipitação elevada, superior a 10 mm. Insolação A insolação (número de horas diárias de exposição solar) mensal varia durante o ano com bastante regularidade, Fig. 10 – Gráfico da insolação mensal no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. tendo o valor mínimo em dezembro: 134 h no Funchal, 102 h no Areeiro e 133 h na Ilha de Porto Santo. O máximo mensal é 231 h em agosto no Funchal, 241 h em agosto no Porto Santo e 285 h em julho no Areeiro. A insolação apresenta uma ligeira descida em junho no Funchal e em Porto Santo, mas que não se observa no Areeiro. A insolação mensal média tem assim, para o Funchal e para Porto Santo, uma distribuição bimodal, com máximos em maio e em agosto (fig. 10). Anualmente, o Porto Santo totalizou, neste período, 2157 h de sol e o Funchal 2057 h, estando o maior número de horas de sol em Porto Santo associado à menor orografia, que não favorece tão fortemente a formação de nebulosidade local. O Areeiro totaliza 2053 h de insolação, apresentando uma amplitude mensal de 183 h; o Funchal, com um número anual de horas de sol quase igual ao do Areeiro, tem uma amplitude mensal de 96 h. O número anual de dias sem insolação é de 11 no Funchal, 9 em Porto Santo e 42 no Areeiro; para este valor, contribui essencialmente o número de dias com muita nebulosidade que se registam nos meses de outubro a março. Evaporação (mm) Os valores médios mensais da evaporação nas regiões costeiras da ilha da Madeira e em Porto Santo variam pouco e com bastante regularidade durante o ano. Em geral, os máximos ocorrem em julho e agosto. A quantidade média anual de evaporação é maior em Porto Santo, com 1423 mm, seguindo-se, por ordem decrescente, na ilha da Madeira, o Funchal, com 1109 mm, o Areeiro, com 970 mm, e Santana, com 753 mm. A amplitude mensal é de 23 mm no Funchal, 117 mm no Areeiro, 19 mm em Santana e 36 mm em Porto Santo, sendo de concluir que a evaporação é máxima nas regiões montanhosas.   Humidade relativa do ar A humidade relativa do ar é em regra maior na costa norte do que na costa sul da ilha da Madeira, sendo a variabilidade mensal maior nas regiões montanhosas. Fig. 11 – Gráfico dos valores médios mensais da humanidade relativa do ar no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera.   Nas regiões costeiras da ilha da Madeira, os valores médios mensais da humidade relativa do ar apresentam pequena variação durante o ano, sendo menores no inverno do que no verão. Com efeito, o mês mais seco é abril no Funchal, com 69 %, e fevereiro e março em Santana, com 80 %. No Areeiro, os valores médios são mais altos no inverno, 85 %, do que no verão, 64 %. Também na ilha de Porto Santo a humidade relativa é maior no inverno, com 80 %, sendo nos meses de abril a julho da ordem dos 76 %. Na fig. 11, apresentam-se os valores médios mensais da humidade relativa do ar no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.   Vento O regime anual do vento é diferente na costa norte e na costa sul da ilha da Madeira, sendo os ventos predominantes de NE (10 %) e SW (10 %) no Funchal, de NE (38 %) no Areeiro, de WNW (14 %) e SE (10 %) em Santana/São Jorge, e de N (20 %) em Porto Santo. A frequência de calma é de 13,4 % no Funchal, 1,7 % no Areeiro, 4,0 % em Santana/São Jorge, e 2,3 % no Porto Santo. As rajadas superiores a 40 km/h ocorrem no Funchal com frequência de 1 % e muito raramente são registadas rajadas superiores a 70 km/h. Rajadas superiores a 70 km/h são registadas no Areeiro em 5 % das observações, em Santana/São Jorge em 0,6 % das observações e em Porto Santo em 0,2 %. Entre 1995 e 2015, a maior rajada do vento no Funchal foi de 86 km/h, em março de 2010; no Areeiro, foi de 160 km/h, em Santana/São Jorge, de 159 km/h e em Porto Santo, de 104 km/h, todas no mês de fevereiro de 2010. Assinale-se que os ventos fortes e muito fortes a que por vezes correspondem temporais, particularmente nas terras altas da Madeira e em Porto Santo, estão associados normalmente aos valores mais baixos da pressão atmosférica que em regra ocorrem entre novembro e março.   Temperatura da água do mar Os valores médios mensais da temperatura da água do mar à superfície variam com regularidade durante o ano. Os valores máximos ocorrem em agosto ou em setembro e os mínimos em fevereiro ou março. A temperatura média mensal é relativamente alta ao longo do ano, variando entre 17,8 °C em março e 23,3 °C em setembro no Funchal, e entre 17,3 °C em fevereiro e março e 22,4 °C em setembro no Porto Santo. A temperatura média anual é 20,2 °C no Funchal e 19,5 °C em Porto Santo. A amplitude média da variação mensal é 5,5 °C no Funchal e 5,1 °C em Porto Santo. Os valores observados na região raramente descem abaixo dos 15 °C e raramente ultrapassam os 25 °C.   Ondulação A ondulação na região da Madeira é geralmente fraca ou moderada, com rumos predominantes de NW a NE, exceto junto ao litoral sul da ilha da Madeira, em que predominam rumos de SE a SW. As situações que ocorrem mais frequentemente nos meses de inverno, e que correspondem à ocorrência de depressões no Atlântico Norte em latitudes entre 35° e 55° N, conduzem à geração de ondulação do quadrante NW na região da Madeira. A ondulação do quadrante NE é proveniente, em geral, de áreas de geração localizadas no bordo SE do anticiclone dos Açores, quando este se estende sobre a Europa Ocidental. Durante os meses de verão, cresce a importância desta situação relativamente à anterior, quer pela localização habitual nestes meses do anticiclone dos Açores, quer pelo menor número de depressões a atravessar o Atlântico Norte a latitudes suficientemente baixas para que a ondulação por elas provocada atinja a Madeira.   Pressão atmosférica Os valores da pressão atmosférica ao nível da estação apresentam diferenças quase constantes de local para local, resultantes das diferenças de altitude. Os valores médios mensais reduzidos ao nível médio do mar, registados no Funchal e em Porto Santo, variam pouco durante o ano – 3 hPa no Funchal e 3,3 hPa no Porto Santo –, sendo maiores no inverno e no verão, com diferença de cerca de 1 hPa, e menores na primavera e no outono. A variabilidade interanual dos valores médios mensais nos vários anos é maior durante o inverno e menor durante o verão: 15,0 hPa em janeiro e fevereiro e 2,4 hPa em agosto. Os valores mínimos ao nível médio do mar observados em anos recentes foram 985,9 hPa no Funchal, em 20 de fevereiro de 2004, e 985,8 hPa em Porto Santo, em 4 de março de 2013; os valores máximos foram 1037,2 hPa no Funchal, em 1 de janeiro de 2007, e 1039,3 hPa, em 25 de Janeiro de 2014, em Porto Santo.   Trovoada, granizo, neve e nevoeiro O número de dias com trovoada é de 7 no Funchal, 4 no Areeiro, 4 em Santana e 5 em Porto Santo, sendo a frequência maior no outono e na primavera. O número de dias com precipitação de granizo e saraiva é de 1 no Funchal, 14 no Areeiro, 2 em Santana e inferior a 1 no Porto Santo; a frequência é maior desde meados do outono até à primavera. O número médio de dias do ano com precipitação de neve e com geada é praticamente nulo na Madeira, exceto no Areeiro, em que são registados 7 e 16 dias, respetivamente, com maior frequência em janeiro e março. O número de dias com nevoeiro tem valores desde 1 no Funchal e em Porto Santo, 8 em Santana e 227 no Areeiro, sendo pouco nítida a variação ao longo do ano. É muito nítida e acentuada a variação em altitude. Victor Prior (atualizado a 29.01.2017)

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clarissas

A presença de Franciscanos e do seu ramo feminino, as Clarissas, desde muito cedo se fez sentir no arquipélago da Madeira. Os frades de S. Francisco acompanharam Zarco e Teixeira na sua jornada de (re)descobrimento das ilhas e foram os primeiros arrimos espirituais dos povoadores. As irmãs de S.ta Clara foram a Ordem escolhida por João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do donatário, para ocupar, na Madeira, o primeiro convento feminino. A intenção de dotar a Ilha de uma casa conventual começou a materializar-se a 4 de maio de 1476, quando a bula Eximiæ Devocionis Affectus foi publicada pelo Papa Sisto IV, em resposta a um pedido que lhe fora endereçado pelo capitão, o qual sentia a necessidade de prover a Ilha de um mosteiro onde se pudessem recolher duas das suas filhas, que então se encontravam no Convento de N.a S.ra da Conceição, em Beja, mas também outras jovens que decidissem seguir a vida religiosa. A mesma bula concedia, ainda, a João Gonçalves da Câmara e mulher, D. Maria de Noronha, o padroado do convento, o qual era extensível aos seus descendentes. Para este empreendimento pode, ainda, ter contribuído o empenho de D. Manuel, enquanto duque de Beja e mestre da Ordem de Cristo, que, a 17 de julho de 1488, enviava para a Madeira uma carta onde dizia que o próprio Pontífice se lhe dirigira a solicitar diligências para a fundação de uma casa de religiosas na igreja da Conceição de Cima, comprometendo-se o futuro Rei a doar esmolas para a manutenção das freiras. A localização escolhida foi, como se viu, a zona que circundava a igreja de N.a S.ra da Conceição de Cima, a qual, por sua vez, se situava muito perto da moradia do capitão, nas Cruzes. Determinado o local e em posse da autorização pontifícia, o início das obras foi, no entanto, adiado por razões que se desconhecem, e a edificação só teve lugar a partir da concessão de nova autorização, que o Papa Inocêncio III expediu a 1 de fevereiro de 1491, datando o princípio da construção desse mesmo ano, ou, o mais tardar, dos primeiros meses de 1492. Dadas as frequentes ausências do capitão para a corte, onde era conselheiro do Rei, o acompanhamento das obras ficou entregue a uma das suas filhas, D. Constança, o que talvez explique a demora na conclusão do edifício, que só se verificou em 1497. Uma nova bula, agora a Ex Injunto Nobis, de Alexandre VI, com data de 30 de março de 1495, concedia a licença definitiva e estipulava que o mosteiro fosse de clausura perpétua, subordinado ao guardião franciscano do Funchal, e obedecesse à Regra de Urbano IV, também chamada Segunda Regra de Santa Clara. Esta Regra, fundada em 18 de outubro de 1263, distinguia-se da Primeira pela concessão de benefícios às freiras, que incluíam o direito de receber e ter em comum “rendas e possessões”, o que contrariava o espírito muito mais restritivo e humilde que estava na mente de S.ta Clara, aquando da instituição da sua Ordem (FONTOURA, 2000, 27). Assim, e dentro do quadro da Segunda Regra ou Regra Urbaniana, às irmãs de S.ta Clara do Funchal era ainda autorizado o consumo de laticínios e ovos em todos os dias em que a Igreja permitisse esse tipo de alimentação aos seculares, bem como terem criadas para o seu serviço dentro dos muros do Convento. A inauguração das instalações deu-se com a entrada de quatro ou cinco freiras originárias do Convento de N.a S.ra da Conceição de Beja, entre as quais figuravam uma filha de João Gonçalves da Câmara, D. Isabel, que se tornaria a primeira abadessa do Convento. O facto de as primeiras irmãs terem vindo do Mosteiro de Beja prende-se com a ligação que esta casa monástica tinha à família de D. Fernando, grão-mestre da Ordem de Cristo, a que presidia na qualidade de sobrinho e filho adotivo do infante D. Henrique, sendo casado com D. Beatriz e pai de três senhores da Madeira, D. João, D. Diogo e D. Manuel. Fora, com efeito, por determinação conjunta de D. Afonso V, do irmão, D. Fernando, e da cunhada, D. Beatriz, que se obtivera, do Papa Pio II, autorização para a fundação de um mosteiro da Segunda Regra de Santa Clara, o qual veio a ser precisamente o já referido Mosteiro de Beja. Assim, sem sobressaltos de adaptação a novas condições de profissão, saíram de Beja para o Funchal a filha do capitão e outras quatro companheiras, que iniciaram a vida conventual em S.ta Clara, no Funchal. Uma vez que a Regra Urbaniana permitia a existência de propriedades entregues ao Convento, o património das freiras cedo se começou a consolidar, para o que muito contribuiu a anexação do dote das filhas de João Gonçalves da Câmara, sendo que o plural “filhas” se reporta não só à abadessa, D. Isabel, como a D. Constança, que ingressou também no Convento, embora não chegasse a professar, por ser doente, e a D. Elvira, que igualmente entrou na altura da fundação. Estas irmãs receberam de seu pai uma vasta extensão de terreno que o mesmo tinha adquirido para aquele fim a Rui Teixeira e mulher, D. Branca, a 11 de setembro de 1840, e que até então se chamava Curral Grande. A partir do momento em que passou a pertencer ao Convento, a propriedade mudou de nome e ficou conhecida pela designação de Curral das Freiras, tendo sido nela que, em 1566, aquando do saque dos corsários franceses, as religiosas se refugiaram, tirando partido do carácter recôndito da sua localização. Na senda desta primeira doação, outras muitas se lhe juntaram, tanto mais que D. Manuel, por carta de 17 de julho de 1488, determinara que as freiras que se haveriam de recolher no Mosteiro fossem recrutadas entre “as filhas e as parentes dos principais da terra” (Arquivo Histórico da Madeira, XVI, 1973, 212-213), o que, naturalmente, favorecia a acumulação de bens patrimoniais para a instituição. Do acervo de propriedades que foram entregues ao Convento, contam-se prédios rurais e urbanos, situados, nos sécs. XVI e XVII, no Funchal, em Câmara de Lobos e em Ponta do Sol; no séc. XVIII, foi enriquecido com doações em Santa Cruz, na Calheta e no Porto Santo. Destas terras, cultivadas por colonos ou arrendatários, provinham não só produtos que se exportavam – o açúcar e o vinho – como também bens alimentares fundamentais para a subsistência das freiras e de outro pessoal ao serviço do Convento, pois a pequena cerca situada no interior do Mosteiro não conseguia suprir todas as necessidades dos residentes. Outro recurso financeiro que ajudava a equilibrar a contabilidade conventual era o empréstimo de dinheiro a uns módicos 5 % de juros, montante que a Igreja consentia e que fazia de S.ta Clara uma espécie de casa bancária, permitia às irmãs uma vida desafogada e ainda autorizava as diversas campanhas de obras e melhoramentos que o edifício foi sofrendo ao longo dos tempos (Convento de S.ta Clara). O montante do dote necessário para o ingresso no Mosteiro é um dos critérios que sublinha o carácter elitista da casa religiosa. O montante em questão era, na altura da fundação do Convento, de 200.000 réis, mas, no princípio do séc. XVIII, já alcançava os 600.000, atingindo, mais tarde, o valor de um conto de réis, o que, como facilmente se depreende, não estava ao alcance de famílias com poucos recursos. A idade mínima de entrada no Convento era de sete anos, embora se tenham registado casos em que ingressaram meninas mais novas, e o destino das jovens que o demandavam podia seguir uma de duas vias: ou a educação esmerada, dispensada a quem se destinava, mais tarde, a ser mãe de família e senhora de sociedade, ou o prosseguimento da vida religiosa, alcançando o noviciado e, um ano depois, a profissão. Independentemente do percurso, as educandas do Mosteiro eram instruídas nas artes de ler, escrever e contar, seguidas da aprendizagem da música, do latim e da caligrafia, sendo as freiras famosas, ainda, pelos seus atributos nas artes decorativas, nos bordados e nos cozinhados. No âmbito das suas competências culinárias incluem-se os famosos doces do Convento, o mais célebre dos quais, e segundo Eduardo C. N. Pereira, seria o famoso bolo de mel, de reputação internacional. Confirmações dos atributos das religiosas nestas áreas são ainda obtidas por testemunhos, que foram ficando, de visitantes do Convento, um dos quais do médico inglês Hans Sloane, que, em 1707, se deslocou ao Convento a pedido da abadessa, a fim de observar o estado de saúde das irmãs. Pelo relato que deixou dessa incursão se fica a saber que achou que as freiras sofriam de tuberculose e “clorose” (anemia), motivada esta última por uma “vida melancólica, solitária, sedentária”, à qual faltava exercício. Mas constatou o médico, igualmente, que se tinha deliciado com uma refeição de frutas e compotas, consumida numa divisão cuja mobília tinha tido o contributo das irmãs, crê-se que na decoração, concluindo que “até agora, quer nas compotas, quer no mobiliário nunca vi coisas tão boas” (SILVA, 2008, 27). Um século depois, eram as flores, umas de cera, outras de penas pintadas, que, em conjunto com as compotas, eram compradas no locutório do Convento por visitantes, alguns dos quais Ingleses que passaram a incluir uma visita a S.ta Clara no seu itinerário insular, atraídos pela beleza singular, e muito nórdica, de uma freira em particular – a irmã Clementina. Para além desta irmã, cujo encanto ficou famoso, outras havia, donas também de grande formosura – de que são exemplo Genoveva e Cândida Luísa, cuja presença justificava o afluxo, às vezes enorme, junto do parlatório do Convento. No conjunto dos visitantes encontravam-se cavalheiros que, embora contentando-se com “um olhar do coro, uma palavra na grade, um suspiro no ralo”, não deixaram de ser apodados de freiráticos e seguidores de um movimento que já nascera no século anterior (SILVA, 1987, 178). Com efeito, encontram-se sinais destas práticas logo em 1734, quando uma visita ao cabido da Sé do Funchal, ordenada por D. Fr. Manuel Coutinho, identificou dois cónegos que mantinham “correspondência ilícita” com as freiras de S.ta Clara, tendo um deles sido visto a receber “uma cestinha… que parecia ser presentinho de freira” (ACDF, cx. 47-A, doc. 15, fls. 5-6v.). Esta interação entre o exterior e o interior do Convento vinha de longe e tinha muitos protagonistas. Por um lado, ao abrigo da Regra que professavam, estavam as freiras autorizadas a ter criadas e escravos para o seu serviço no Mosteiro, os quais, não estando limitados por votos de nenhuma espécie, saíam e entravam livremente na cerca, trazendo e levando notícias. Por outro, era também tradição que senhoras da sociedade, familiares ou não das professas, solicitassem autorização para permanecer alguns dias, anos, ou para sempre no Convento, aumentando assim o número de pessoas que passavam a residir no interior, situação que se agravava pelo facto de elas também se fazerem acompanhar de servidores. Assim, não admira que as instalações, que, nos finais do séc. XVI, registavam cerca de 60 residentes, passassem a contar, em 1722, com 170, das quais 100 supranumerárias, decrescendo depois o número para perto das 150, em 1764, embora, depois, as vicissitudes económicas e políticas que trouxe o séc. XIX acabassem por o reduzir para perto de 50. Com efeito, a conjuntura adversa para as congregações religiosas, que se registou com o advento do liberalismo, afetou profundamente a vida no Convento, que não conseguiu manter-se imune às circunstâncias que se alteravam fora dele, antes repercutindo o comportamento das freiras os reflexos das mudanças. A própria Ir. Clementina, já antes referida, admitia, perante os seus admiradores, ser apreciadora das obras de Madame de Staël, figura importante do Iluminismo francês, e a imprensa regional fazia-se palco dos desabafos de uma “Freira Constitucional” que, em 1821, utilizava as páginas de O Heraldo da Madeira para criticar a governação do Convento e a sua excessiva sujeição ao custódio de S. Francisco. Numa tentativa desajeitada para contrariar as denúncias, “Uma Freira Zeladora da Verdade” e um “Donato Constitucional da Portaria”, que se pensa ser o leigo que controlava os ingressos no Mosteiro, publicavam uma resposta que mais não fazia que confirmar as queixas da “Freira Constitucional”, quando repudiavam ser responsabilidade da abadessa o que se via no parlatório e que incluía “funções de comer, beber, tocar e cantar” (SILVA, 1987, 179). Para agravar este mal-estar contribuía, também, o descalabro das contas do Mosteiro, o qual, desde os finais do séc. XVIII, vinha a acumular uma série de anos de saldo negativo, que, em 1871, já atingia os dois contos de réis. Outra manifestação da conjuntura adversa encontra-se no aumento do número de pedidos para interromper a clausura por parte de freiras que alegavam motivos de saúde e necessidade de tratamento, reclamando igualmente para si os benefícios da liberdade conferida por D. Pedro IV na sua Carta Constitucional. A vitória definitiva do liberalismo produziu legislação muito lesiva da vida monástica, como se atesta pela publicação do decreto de 5 de agosto de 1833, que impedia os conventos de aceitarem candidatos ao noviciado, seguido, pouco depois, a 30 de maio de 1834, do decreto de Joaquim António de Aguiar, o “mata-frades”, que implicava o encerramento imediato das congregações masculinas. As femininas não foram atingidas por esta última determinação, tendo, porém, de seguir o estipulado no decreto de 1833, que as condenava a um lento agonizar. Desta longa caminhada para o fim, atingido em 1890, com a morte da derradeira freira, ficou um testemunho na visitação que o bispo fez ao Convento em junho de 1860, pela qual se constata que as freiras, idosas e doentes, apenas se queixavam de serem maltratadas pelas criadas, ao mesmo tempo que afirmavam nada haver a declarar como transgressão à regra e confirmavam a observância dos “atos corais” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 103, fls. 111v.-115). Apesar de falecida a última irmã, ainda havia no Convento um grupo de pessoas, no qual se contavam 31 senhoras, entre pupilas, servas e recolhidas, que pediram licença para que se pudessem conservar no edifício, a qual, depois de concedida, acabou por transformar o antigo Convento em recolhimento. Quando, em 1896, o prédio foi entregue à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas, elas continuaram a poder viver em algumas dependências, e ali se mantiveram até pelo menos 1940. Em 1898, a Associação conseguiu instalar em S.ta Clara a Congregação das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, que ali se entregaram à preparação de irmãs destinadas a prestar serviço nas colónias, bem como às outras finalidades contempladas na concessão do prédio: colégio, refúgio para retemperar as forças das freiras regressadas do ultramar e asilo para raparigas pobres. A implantação da república veio, no entanto, obrigar ao abandono do edifício por parte da Congregação, tendo o edifício passado sucessivamente para as mãos da Câmara Municipal, da Santa Casa da Misericórdia e do Auxílio Maternal. O reacender da necessidade de investimento em África determinou, em 1926, a passagem da construção para a tutela do Ministério das Colónias, que o devolveu à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas e às Franciscanas Missionárias de Maria. A partir de 1928, no antigo Convento de S.ta Clara esteve um lar para estudantes, uma escola primária, e finalmente um infantário. Convento de N.a S.ra da Encarnação O Convento de N.a S.ra da Encarnação nasceu do cumprimento de uma promessa que o Cón. Henrique Calaça Viveiros fizera, no sentido de instituir uma casa religiosa, caso conseguisse ver, de novo, um Rei português no trono de Portugal. Alcançado esse desígnio com o golpe de 1640, que devolveu o governo do reino a um representante da Casa de Bragança, D. João IV, o cónego deu, de imediato, andamento à concretização do seu projeto. Proprietário de uma quinta, “no melhor sítio da cidade”, em terreno anexo à capela de N.a S.ra da Encarnação e sobranceiro ao Funchal, o cónego logo tratou de nela fazer construir um recolhimento para donzelas, cujas obras se iniciaram em novembro de 1645 (FONTOURA, 2000, 152-153). Em 1652, já nele se encontravam as primeiras recolhidas, a quem o fundador dotou da Regra Terceira da Ordem do Carmo, e cujo número foi crescendo, pois, quando, em 1658, o cónego solicitou à Rainha autorização para que o recolhimento passasse a mosteiro, já se contabilizavam 20 entre as que lá residiam (GOMES, 1995, 18). Antes disso, porém, já Calaça Viveiros impetrara ao Papa Inocêncio X licença para que o recolhimento passasse a convento, a qual lhe foi concedida por breve de 16 de novembro de 1651, que autorizava, ainda, a saída de uma freira de S.ta Clara que pudesse desempenhar no novo estabelecimento as funções de abadessa, desde que houvesse o compromisso de que a Regra a professar fosse uma das existentes. A Ordem Terceira do Carmo cumpria esse critério, mas o facto de impedir o consumo de carne às suas seguidoras foi o fator que pesou na sua não adoção, pois, naquela altura, a falta de pescado existente na Ilha não permitia assumir um compromisso desse tipo. O Convento, devidamente autorizado pelo Pontífice e pela Rainha, e dotado dos rendimentos necessários ao funcionamento, cedidos pelo fundador, pôde receber as primeiras professas, por alvará de 15 de novembro de 1659, ainda que a Regra a que obedeceria tivesse deixado de ser a do Carmo, substituída pela Segunda Regra de Santa Clara, em razão das restrições alimentares já referidas. Uma outra razão que também contribuiu para a pronta aceitação da fundação de um mosteiro de freiras no Funchal prendia-se com a necessidade que a Ilha sentia de mais uma casa conventual feminina, pois a única existente, o Convento de S.ta Clara, era manifestamente incapaz de acolher todas as candidatas, cujo número aumentava na proporção do crescimento populacional que o arquipélago vinha registando. A demora no surgimento do segundo convento feminino não deixou, no entanto, de ser estranha, particularmente se se contrastar o que se passava na Madeira com o que sucedia nos Açores, onde, entre o séc. XVI e o séc. XVIII, surgiram pelo menos 16 casas de Clarissas, conforme registado em estudo de Margarida Lalanda, mas a intervenção do Cón. Calaça veio permitir o colmatar da lacuna. Outras condições subjacentes à fundação da casa monástica eram o número de professas, que deveria ser de 30, alterável com autorização régia, e a sujeição ao prelado da Diocese, ao contrário do que acontecia com S.ta Clara, que obedecia ao custódio franciscano. O padroado do Convento ficou para o cónego fundador, ainda que este se tivesse esforçado por prescindir dele, na medida em que tentou transferi-lo para a Coroa, a qual, contudo, pelo mesmo alvará de 15 de novembro de 1659, já atrás mencionado, lho voltou a atribuir. O cónego até renunciava a ser sepultado no Mosteiro, argumentando que, como membro do cabido, teria túmulo na Sé, mas as freiras nisso não consentiram, jazendo o seu corpo na capela da Encarnação. Por escritura mencionada no seu testamento se estipulou, ainda, que a família Andrada, possuidora do lugar da Provedoria da Fazenda régia na Madeira, se tornasse protetora do Mosteiro, o que explica que os provedores se tornassem amparos do Convento e nele se fizessem enterrar. O ingresso no Mosteiro podia fazer-se a partir de idade muito jovem, encontrando-se nos registos conventuais casos de meninas que ali entraram com idades que variavam entre os 5 e os 12 anos, de origem social diversa. Tanto podiam provir, e muitas eram essas situações, de meios familiares abastados e favorecidos, destinando-se a serem educadas para a sociedade, ou a professar, se essa viesse a ser a sua vontade, ou a da família, como se encontram jovens pobres, cuja estadia era subsidiada pela própria casa conventual ou pelo bispo. A organização interna do Mosteiro passava pela obediência à abadessa, eleita de três em três anos e impedida de permanecer dois períodos consecutivos à frente dos destinos da comunidade, sendo escolhido, para assessorar a superiora, um número variável de freiras, que podia oscilar entre três a oito, conforme o número de professas que o Convento ia tendo. Esse conjunto de auxiliares diretas intitulava-se “discretório”, e, para além deste conselho restrito, o normal funcionamento do Convento exigia, ainda, reuniões semanais do capítulo provincial, às quais compareciam todas as professas, que tinham de ser informadas sobre os atos maiores da administração, quer fossem de ordem material, quer espiritual. As jovens admitidas à vivência conventual eram, depois, sujeitas a um percurso educativo que as levava da aprendizagem do básico (ler, escrever e contar) até ao domínio de conhecimentos mais sofisticados, do latim e da música, e.g., necessários tanto às que saíam e se queriam superiormente instruídas, como às que permaneciam e tinham de colaborar em celebrações litúrgicas, lendo os textos em latim ou cantando para acompanhar os ofícios sagrados. Outras artes eram também ministradas no Convento: as decorativas (o desenho, a pintura, o bordado) e as da culinária, nas quais, mais uma vez, se celebrizou a produção conventual. Testemunhos dos consumos na área dos cozinhados ficaram exarados em documentos recuperados por Cabral do Nascimento, que os publicou e a partir dos quais se pode constatar a fartura e a variedade que ia à mesa das freiras. Os recursos materiais para manter aquele nível de vida vinham, como seria de esperar, da pertença do Convento à Segunda Regra de Santa Clara, o que implicava, como se viu, a posse de dotes vultosos para ingresso na comunidade, sendo esta casa monástica, à semelhança do que acontecia com S.ta Clara, beneficiada pela acumulação de propriedades rústicas. Estas situavam-se, sobretudo, na Calheta, em São Vicente, em Santana e em Câmara de Lobos, enquanto na cidade se localizavam alguns prédios urbanos, havendo outros no Porto Santo, terra de origem do Cón. Calaça. Das propriedades lhes vinham os legumes necessários ao quotidiano, mas também trigo, e outros cereais, açúcar e vinho, que se comercializavam. Outro produto que também figura nos bens transacionados pelo Mosteiro é o tabaco, que chegava ao Convento como forma de pagamento usada pelos Ingleses, que se serviam dele para pagar encomendas de vinho. Inicialmente considerado medicinal, uma vez que tinha propriedades relacionadas com o alívio da dor e adjuvantes da cicatrização, o seu uso, sobretudo inalado, vulgarizou-se, não só dentro, como fora do Convento, sendo também utilizado para presentear colaboradores da instituição. A vivência religiosa desta casa conventual registou momentos de grande elevação, compendiados por Noronha, que já fizera o mesmo em relação às freiras de S.ta Clara, e que elencou os casos mais assinalados de freiras que levaram vidas exemplares, mas também situações que não podem deixar de ser reprovadas e que resultavam, sobretudo, da forte contaminação que a vida intramuros sofria do exterior. Assim, em tempos de D. Fr. Manuel Coutinho (D. Fr. Manuel Coutinho), um bispo jacobeu que fora para a Madeira com intenções de “plantar nova cristandade” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, l. 1346, fl. 65), e que rapidamente se envolvera em conflitos, que, entre outras entidades, implicavam a Câmara Municipal, à frente da qual se encontravam parentes das freiras, registou-se um enfrentamento entre prelado e professas nunca dantes visto. Sendo a abadessa parente próxima de importantes homens da governança, as más relações entre o bispo e o senado ultrapassaram os muros do Convento e estiveram na origem de um rompimento de clausura que muito escandalizou a população da cidade. Os acontecimentos precipitaram-se quando o prelado, usando de uma prerrogativa sua que condicionava a nomeação de titulares de ofícios conventuais, decidiu mudar a porteira, numa tentativa de impedir o acesso indiscriminado às freiras por parte de elementos da sociedade civil. Entendendo que esta atitude violava privilégios que tinham como adquiridos, as freiras alvoroçaram-se e decidiram sair do Convento, descendo a Calç. da Encarnação em direção ao paço episcopal, sendo travadas já muito perto de atingirem o seu objetivo, e, depois de convencidas pelo desembargador José de Sequeira, acabaram por recolher a casa. Em tempos de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1756-1784) o bispo incumbiu dois sacerdotes vicentinos que o acompanhavam desde o reino, os padres José Alásio e José dos Reis, de visitar conventos, entre os quais o da Encarnação, e o relato que os sacerdotes deixaram das suas averiguações é muito pouco abonatório das práticas que lá encontraram. Segundo o que ficou registado, o P.e Alásio dava conta de que, no Convento da Encarnação, as freiras “traziam véus de seda, veiados de pano fino, e ornavam a testa (pouco juízo havia nela!) com um bico mui comprido. Andavam vestidas de azul (linda cor) e para afetar a sua gravidade, arrastavam uma grande cauda” (PEREIRA, 1993, 48). Se se tiver em conta que a cor dos hábitos das Clarissas é o castanho, com véu branco ou preto, conforme forem noviças ou professas, não é de estranhar o espanto do P.e Alásio, agravado, ainda, pela tomada de consciência de quanto os valores do mundo exterior se refletiam num universo que se desejava despojado, centrado na oração e no abandono das práticas mundanas. Talvez influenciado pelas notícias que recebera das formas de vida daquele Convento, o bispo seguinte, D. José da Costa Torres (1874-1796) em carta que endereçou ao ministro Martinho de Melo e Castro, com data de 10 de agosto de 1788, na qual abordava várias questões da Diocese, referia-se ao Convento da Encarnação, começando por afirmar que subscrevia a posição já tomada por D. Fr. Manuel Coutinho, que há mais de 50 anos deixara escrito que “melhor fora que não o houvesse” (AHU, Madeira, pasta 5, capilha 842). As razões em que apoiava a sua opinião prendiam-se com diversas irregularidades, nomeadamente a de o Convento ter sido fundado para 30 freiras, mas já ter atingido as 140, e de as freiras serem servidas por 30 criadas que lá ainda se mantinham, apesar de, à época, aquelas serem apenas 69. Como o número ainda era excessivo, o prelado fazia por se manter “surdo” aos apelos da abadessa, que queria deixar entrar mais noviças, acrescentando que se não fossem alguns condicionalismos que o embaraçavam, já teria mandado pôr na rua “uma grande parte delas”. Em termos económicos, o Mosteiro também deixava muito a desejar, pois as rendas eram muito escassas, ou por má gestão ou por roubo dos administradores, pelo que as freiras se encontravam sem o “necessário para viver”, padecendo muitas “necessidades”. Com alguma candura, o prelado confessava “estar tremendo” de ir visitar o Convento, pois temia que qualquer providência que pretendesse aplicar tropeçasse na falta do “necessário comum, que é a primeira causa de toda a relaxação”. A proposta do bispo para resolver esta situação aflitiva era a da fusão deste Mosteiro com o de S.ta Clara, que tinha “melhor governo”, o que permitiria utilizar o prédio da Encarnação para nele se instalarem Salésias, vocacionadas para o ensino de meninas, o que o bispo considerava de “suma utilidade”. Assim, pedia ao ministro que intercedesse junto da Rainha para que se autorizasse a vinda de quatro Ursulinas, cujo sustento o bispo providenciaria pelo menos por 10 anos (Ibid.). A opção episcopal quer por Salésias, quer por Ursulinas, duas Ordens vocacionadas para a educação de jovens raparigas, umas mais nobres (Salésias), outras mais pobres (Ursulinas), mostra bem onde se localizava parte das preocupações do bispo, para as quais ele considerava não haver resposta possível por parte das freiras da Encarnação, nem também das de S.ta Clara. A pretendida união dos Conventos da Segunda Regra de Santa Clara então existentes na Madeira não se operou com a proposta de D. José da Costa Torres, mas acabou por se verificar quando, fruto da ocupação inglesa, as tropas britânicas necessitaram das instalações da Encarnação para alojamento militar, pelo que, em janeiro de 1810, aquilo por que as autoridades eclesiásticas tanto tinham ansiado acabou por se concretizar, fruto de circunstâncias muito diversas. As duas comunidades viveram juntas até que, depois da saída dos britânicos, em 1814, as religiosas da Encarnação puderam regressar às suas antigas instalações e, assim, cumprir uma vontade que desde há muito as animava. Aquilo que as esperava não era, porém, o que haviam deixado. A presença inglesa e as obras de adaptação do Convento a hospital das tropas britânicas tinham modificado profundamente a estrutura do edifício e a sua requalificação para Convento foi feita a expensas das próprias religiosas. Esta circunstância, acrescida da mudança dos tempos, com a vitória do liberalismo, e a constante integração na comunidade de recolhidas e servas vindas do século, não fizeram senão agravar a já muito débil economia da comunidade, pelo que o conjunto cada vez mais diminuto de freiras residentes acabou por se extinguir com o falecimento da última religiosa, em 1890. Passado o edifício, que, de resto, estava “velho e desmantelado”, para a posse do Estado, encaminhadas as derradeiras recolhidas, umas para S.ta Clara, outras para a família, e ainda algumas para o labor de funcionárias públicas, era preciso decidir sobre o futuro do prédio. Depois de ponderada a sua passagem para a misericórdia e para as Oficinas de S. José, que ainda lá chegaram a instalar-se, ainda que por pouco tempo, em 1904, o bispo D. Manuel Agostinho Barreto intercedeu junto do Ministério da Fazenda para que lhe cedessem a posse do velho edifício, pois lhe parecia ideal para lá fazer edificar o Seminário Diocesano, que desde a sua fundação cumpria uma longa itinerância por vários locais do Funchal. Obtida a autorização, o bispo meteu ombros à tarefa e, com fundos seus, da Diocese e provenientes de dádivas de particulares, o novo edifício, uma vez que o velho fora demolido, foi crescendo a bom ritmo, de modo que, em 1909, embora ainda não estivesse pronto, pôde já recolher os primeiros estudantes. Escasso foi, porém, o tempo de funcionamento do Seminário, pois, logo em 1910, a implantação da república ditaria o seu fim, no imediato. A construção foi cedida para que nela se instalasse uma escola de Belas Artes, que principiou a funcionar em 1914, à qual se seguiu a utilização do prédio para a Junta Geral do Distrito, que o comprara ao Estado. Uma nova alteração das circunstâncias políticas da nação, proporcionada pelo golpe de Estado de 28 de maio de 1926, fez com que o edifício retornasse à posse da Diocese, o que não se concretizou sem que a Junta Geral apresentasse veemente protesto. Ultrapassados os entraves levantados, foi então possível que, em 1933, o Seminário lá voltasse a instalar-se. Aquela construção, sempre muito atingida pelas vicissitudes políticas de épocas diversas, voltaria a ser perturbada no pós-25 de Abril de 1974, quando um grupo de estudantes decidiu ocupar as instalações do Seminário, que pouco antes fora encerrado por decisão do bispo D. Francisco Santana. A partir de então, e até 2004, funcionou ali a Escola Básica de 2.º e 3.º Ciclos Bartolomeu Perestrelo, a qual, nessa data, e por ter sido dotada de edifício novo, se transferiu para novas instalações. Em 2015, o velho edifício da Encarnação estava na posse da Diocese, ainda que, à data, sem utilização. Convento de N.a S.ra das Mercês O Convento de N.a S.ra das Mercês foi, tal como o recolhimento que o antecedeu, fundado por Gaspar Berenguer, um descendente de Pedro Berenguer de Lemilhana, médico natural de Valência que, em finais do séc. XVI, se estabeleceu na Calheta, em lugar que se chama Lombo do Doutor. Vários membros desta família foram para o Brasil combater, quando os territórios portugueses se acharam ameaçados pela presença holandesa, e entre eles contava-se, precisamente, Gaspar Berenguer, o qual, pela bravura demonstrada em combate, foi agraciado com o título de fidalgo d’El-Rei e com o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo. Regressado à Madeira, tornou-se senhor do morgadio do Lombo do Doutor e casou-se com D. Isabel de França, mulher com quem se irmanava no fervor religioso. Juntos, determinaram fundar a capela de N.a S.ra das Mercês, a qual seria, posteriormente, acrescentada de um recolhimento, primeiro, e de um Convento, depois. A capela acabaria por ser erguida num terreno “ainda selva”, situado nas proximidades quer do Convento de S.ta Clara, quer da igreja de S. Pedro, e foi consagrada a N.a S.ra das Mercês, por estar esta invocação muito ligada ao resgate de cativos, e Gaspar Berenguer, dada a sua vida aventurosa de combatente, se sentir particularmente ligado a quem intercedia pela libertação dos prisioneiros. Pode, inclusivamente, e em abono desta tese, registar-se um episódio em que um parente de Gaspar Berenguer, António Berenguer de Andrade, tendo ficado prisioneiro no Arraial do Bom Jesus, conseguiu depois ser resgatado por uma quantia elevada, graças à intercessão de Nossa Senhora. A escolha da localização da capela está ligada à primeira lenda das várias que se entrelaçam com a história desta casa monástica. Segundo se contava, na altura, alguém, de “reconhecida virtude”, viu aparecer, durante algumas noites consecutivas, no local onde depois nasceria o Convento, a Virgem, rodeada de luz, a combater uma legião de demónios, que assim manifestavam a vontade de que ali se não construísse uma torre que abrigasse “uma milícia de virgens”. Esta convicção ficou tão enraizada na população que nem o liberal Álvaro de Azevedo ousou questioná-la, tanto mais que na primitiva igreja do Convento se encontrava uma figuração do episódio, representando a Virgem na mira de flechas disparadas pelos seres malignos, que o anotador de Saudades da Terra considerava não ser de “moderna data”, sendo, pois, respeitável pela antiguidade (FRUTUOSO, 2008, 591). Azevedo, contudo, e um tanto paradoxalmente, uma vez que reproduz muitas das lendas que rodeiam a fundação deste Convento, não se exime de reprovar que as Constituições do bispado não contenham qualquer alínea que impeça a proliferação de relatos fantasiosos que povoam a história eclesiástica da Madeira. Ainda que se desconheça a data da construção da capela, sabe-se que o Jesuíta João Ribeiro, amigo íntimo do casal Berenguer, logo incentivou Berenguer a que prosseguisse a obra, juntando-lhe um recolhimento para “donzelas nobres e virtuosas” (NORONHA, 1996, 283), tendo o projeto arrancado com dinheiro de família, a que se acrescentou mais algum, proveniente de contribuições de diversos particulares. De acordo com nova lenda, outros fundos teriam surgido por intervenção da própria Senhora das Mercês, que, numa noite, aparecera em sonhos a D. Isabel de França, na altura muito preocupada com o depauperado estado das suas finanças, o que ameaçava impedir a continuação da obra. A Virgem ordenou-lhe, então, que se desfizesse de todos os bens que pudessem ajudar à construção, inclusive da “camisa” (FRUTUOSO, 2008, 592), e, ao assim proceder, conseguiu D. Isabel o essencial para dar início à construção. A 12 de outubro de 1655, lançou-se a primeira pedra do edifício, e a obra foi progredindo, apesar de um variado número de obstáculos que se apresentavam, entre os quais estavam a oposição movida quer pelo governador, D. Francisco de Mascarenhas, quer pelo deão, Pedro Moreira. Para obviar à perseguição do governador, que ameaçava prender os trabalhadores da obra, aparece de novo uma outra lenda, que diz que D. Isabel de França recolhia, durante o dia, os homens envolvidos na construção em sua casa, os quais só de noite prosseguiam os trabalhos, ajudados pela própria patrona. Esta, que continuava com problemas de dinheiro, mais uma vez os viu resolvidos pela intervenção de Nossa Senhora das Mercês, que em sonhos lhe apareceu, informando-a de que, junto a uma pedra de moinho que havia no jardim, se encontrava o montante suficiente para a conclusão das obras. Depois de acordar, D. Isabel de França deslocou-se ao local indicado e lá encontrou um brinco de ouro e mais dinheiro, com os quais confortavelmente se pôde terminar a obra. Outras circunstâncias providenciais se encarregaram, no entanto, de prosseguir com a remoção das animosidades manifestadas à progressão do projeto. Do lado do governador, a sedição de 1668, encabeçada precisamente pelo deão, acabou por conduzir à sua prisão e deportação. No tocante ao deão, surge, mais uma vez, uma lenda que explica que, tendo o capitular ido ao Porto Santo, no desempenho das suas obrigações, sofreu um naufrágio na viagem. Vendo-se em grande aflição, atribuiu o sucedido à má vontade que manifestava em relação ao recolhimento das Mercês e logo ali se encomendou àquela Senhora, jurando mudar de atitude para com as recolhidas. Esta é, portanto, uma explicação para a futura disponibilidade que Pedro Moreira mostrará para com o recolhimento e o Convento das Mercês. Com o avanço das obras, foi possível que, a 15 de junho de 1656, nele entrassem as primeiras sete recolhidas, entre as quais se contava a irmã mais nova do fundador. A 12 de fevereiro de 1658, o deão, Pedro Moreira, visitou as instalações e, por as achar conformes, autorizou que o recolhimento assumisse um cariz religioso, com sacrário e outras graças concedidas a “lugares pios” (FONTOURA, 2000, 253). Cresceu a instituição em número de recolhidas e de práticas devocionais, manifestando as senhoras residentes uma vontade cada vez maior de se tornarem professas. Nesse sentido, o vigário geral prometeu tomá-las à sua responsabilidade, que se estendia também a futuros bispos da Diocese, e foi esta a conjuntura que levou Gaspar Berenguer a encetar diligências para transformar o recolhimento em Convento, para o que endereçou uma petição ao Rei, secundada pela Câmara Municipal, pelo governador e pelo provedor da Fazenda. Perante uma tal coincidência de vontades insulares, o Rei não demorou a conceder a mercê solicitada, estipulando que o Convento se fundasse com lugar para 21 professas, sob a Primeira Regra de Santa Clara, e tendo como padroeiros Gaspar Berenguer e a mulher, que beneficiavam de dois lugares para jovens da sua família, e vinculavam à manutenção da casa o rendimento de 130.000 réis por ano. O novo Convento ficava também, e à semelhança do da Encarnação, sujeito à jurisdição episcopal. Concedida a licença régia por alvará de 15 de agosto de 1661, posteriormente reafirmada a 19 de maio de 1662, só a 20 de dezembro de 1663 saiu de Lisboa o documento, o que explica a demora no pedido de autorização endereçado às autoridades eclesiásticas, as quais só a 5 de julho de 1664 receberam a petição do Cap. Berenguer. Depois de auscultados o comissário do Convento de S. Francisco e o vigário de S. Pedro que oficiava no recolhimento, o deão e vigário geral, Pedro Moreira, deu, então, a última das autorizações, i.e., aquela que finalmente possibilitava a ereção canónica do Convento. Como uma das condições para o seu funcionamento era a de estar dotado dos bens suficientes à sustentação das freiras, que, por serem da Primeira Regra de Santa Clara, a de mais rigorosa pobreza, não podiam ter propriedades, o fundador complementou a renda anual já anteriormente estipulada com mais 11 moios de trigo por ano, os quais, acrescentados aos 3 que já abasteciam o recolhimento, passaram, então, a ser 14. Seguiu-se o breve pontifício que legitimava todos os passos anteriormente dados, o qual foi dado em Roma a 17 de agosto de 1665, e chegou ao Funchal em finais de 1666. A 13 de junho de 1667, recebeu o Convento a sua primeira abadessa, novamente uma freira de S.ta Clara que para ali se mudou, a fim de dotar o Mosteiro das regras necessárias ao seu bom funcionamento. Com efeito, e de acordo com outra das várias lendas que se encontram associadas a esta casa monástica, as freiras, que começaram por professar a restritiva Regra de Santa Clara, cedo se interrogaram se nela deviam continuar, ou antes mudar para a Regra Urbaniana, bem mais generosa para com o quotidiano conventual. A fim de tomarem uma decisão sobre o assunto, reuniram-se em capítulo, mas então desencadeou-se uma tal tempestade que “de repente começaram a abalar os alicerces e a abanar o pavimento”, pelo que as freiras, “com sumo temor caíram na conta de que a vontade de Deus era que se fizesse de pobreza, como o fizeram, e se conserva”, ficando, pois, definitivamente estabelecida a obediência à Primeira Regra de Santa Clara (FRUTUOSO, 2008, 593). Dentro do espírito dos estatutos, o Convento acolhia não só jovens provenientes dos mais altos escalões da sociedade local, mas também meninas pobres, nas quais se verificasse uma forte vocação religiosa. Este estado de alma era, de resto, muito considerado pelas abadessas que se esforçavam para que este desígnio estivesse sempre presente aquando da admissão das candidatas e, quando tal não acontecia, muito se empenhavam em que as jovens fossem devolvidas ao seio da família. Uma gritante exceção a esta regra encontra-se, porém, no processo da M.e Isabel Filipa de Santo António, que, em inícios da déc. de 1740, foi obrigada, por familiares, a ingressar em N.a S.ra das Mercês, e cujo comportamento acabou por ser objeto de processo na Inquisição. Passou-se o caso no seio da família Câmara Leme, uma das principais da sociedade madeirense, quando uma jovem adolescente, órfã de pais e dependente do irmão mais velho, Jacinto Câmara Leme, se apaixonou por homem abaixo da sua condição. Determinado a proibir a união, o irmão tudo fez para que a jovem ingressasse no Convento, contra a sua expressa e reiterada vontade. Em profundo desespero, Isabel Filipa, conforme por diversas vezes afirmou ao comissário do Santo Ofício, fez um pacto com o demónio, ainda antes de entrar na casa religiosa, e, uma vez lá dentro, procurou, por todos os meios possíveis, forçar a libertação. Com esse fim em vista, confessou ao comissário ter tido relações carnais com o diabo, ter contribuído para a morte de dois dos seus irmãos, usando uns pós que o demónio lhe fornecera, ter cuspido no cruxifixo e pisado no chão partículas consagradas, até, finalmente, ter tentado matar toda a comunidade, fazendo uma sopa com vidro moído. O ruído produzido no processo de moer o vidro traiu-a e conduziu-a à prisão, onde se encontrava enquanto decorriam as diligências judiciais, processo em que conseguiu acesso a um advogado que tentou obter, junto do Papa, a anulação dos votos. Gorado este propósito, nada mais se sabe da dita freira, a não ser que deveria ser transferida de Convento, mas não libertada para voltar à condição de secular. Este episódio pungente mostra que, apesar de toda a boa vontade posta pela comunidade no sentido de só aceitar as verdadeiras vocações, o peso das circunstâncias familiares era, por vezes, excessivamente grande para ser evitado, acabando por condenar muitas jovens a uma vida de clausura que lhes repugnava e para a qual não sentiam a menor inclinação. Apesar de ser inegável que nem todas as mulheres que professavam o faziam por verdadeiro chamamento, a verdade é que, de um modo geral neste Convento, a Regra se observava sem sobressaltos, até porque o facto de ser de menores dimensões que os seus congéneres insulares, de receber muito menos educandas e senhoras do exterior, acrescido da impossibilidade de terem criadas, por exigência estatutária, proporcionava às professas um maior recolhimento e isolamento do mundo secular. Apesar disso, o Mosteiro acabou por se ver envolvido, sem que isso fosse por sua direta responsabilidade, em questões que se arrastaram pelos tribunais e que se prendiam com a posse do padroado. Com efeito, por morte de Gaspar Berenguer, ficara instituído que aquele título passaria para o filho mais velho, o P.e Bartolomeu César Berenguer, tendo transitado depois para o seu irmão José de França Berenguer, que o conservou até 1720. Fora este José Berenguer, pai de vários filhos, o mais velho dos quais falecera ainda em vida do pai, que, por testamento, entregara o padroado do Mosteiro ao seu filho segundo, Agostinho César Berenguer. Esta situação acabou por causar um grave conflito na família, quando os herdeiros do falecido primogénito, de seu nome João de Andrade Berenguer, sentindo-se preteridos na herança, levaram o caso a tribunal, por onde se arrastou cerca de 100 anos. Quando, em 1725, D. Fr. Manuel Coutinho se torna bispo do Funchal, é informado do diferendo, ainda agravado pela suspeita de que o protetor do Convento em funções, Agostinho César Berenguer, se estaria a aproveitar da situação para desviar verbas da sacristia do Convento em proveito próprio, prejudicando, assim, as condições de vida das freiras. O prelado logo impôs um inquérito à contabilidade conventual e, pouco depois, suspendeu o protetor, substituindo-o por um clérigo da sua confiança e seu familiar, o P.e António Mendes de Almeida. À situação da disputa do padroado se refere, ainda, D. José da Costa Torres quando, em 1788, se corresponde com o ministro Martinho Melo e Castro e menciona que “ainda corre litígio” por não se terem verificado as promessas dos instituidores no sentido da doação de certas rendas para “a sustentação das freiras” (AHU, Madeira, pasta 5, capilha 842). Apesar disso, o bispo não deixa de opinar que “floresce neste convento disciplina regular e religiosa […] com grande edificação desta cidade”, não necessitando as freiras dos familiares para sobreviver, porque “o convento lhe[s] subministra o necessário”, para além de que ainda recebem esmolas que de muito boa vontade lhes dão “muitos dos mesmos parentes e estranhos”. Em relação às finanças do Convento, os problemas criados por Agostinho César Berenguer parecem ultrapassados, pois o prelado declara que “além de dois legados perpétuos por cujos rendimentos têm todas as freiras túnicas e hábitos de dois em dois anos, tem o convento seiscentos mil reis cada ano […], juros dos dotes com que entram, que são de quatrocentos mil reis aplicados à sacristia e dos quais […] se sustentam; estes juros são bem pagos, o que é de admirar, se o síndico é zeloso, como o atual, e se não descuida”. E, a terminar, deixa o bispo escapar um desejo: “Assim fora o convento da Encarnação, que também me é sujeito” (Ibid.). A administração interna do Mosteiro fazia-se de acordo com a Regra de Santa Clara e era constituída por uma abadessa eleita por períodos de três anos, não imediatamente renováveis, coadjuvada por uma vigária, um discretório e a habitual reunião semanal do capítulo. O sistema eleitoral que vigorava não só para a abadessa, mas também para os outros cargos, procurava atribuir as funções a pessoas com o perfil certo para as cumprir, e isto, a juntar a um isolamento bem maior do exterior, fazia com que a vida corresse nesta casa monástica sem os sobressaltos que perturbavam a existência das suas congéneres madeirenses. A legislação pombalina de 1764 atingiu, de certo modo, a vida conventual, ao proibir o ingresso de noviças, mas a subida ao trono, pouco depois, de D. Maria I fez reverter o processo, pelo que, a 20 de agosto de 1777, já era autorizada a entrada de seis candidatas. Em 1786, porém, fruto do falecimento de quatro freiras, o número das professas tinha-se tornado demasiado pequeno, o que levou a abadessa a solicitar à Rainha a possibilidade de se admitirem mais algumas, pois nesta comunidade, como o trabalho era executado pelas próprias freiras, a necessidade de braços fazia-se sentir de forma mais aguda. Nesse sentido, argumentava a abadessa que as freiras estavam, de um modo geral, velhas, “seis se acham na enfermaria, e as demais não podem acudir às obrigações do convento, pelas suplicantes não terem servas e serem elas que fazem todo o serviço […] de cozinhar e servir as enfermas, por cuja razão só cinco das suplicantes vão ao coro e às vezes menos” (FONTOURA, 2000, 296). Consultado o bispo, ainda D. José da Costa Torres, este mostrou-se favorável à conservação do Mosteiro, “porque ele é observantíssimo e de singular exemplo de virtudes no meu Bispado” (Id., Ibid., 297). Deste modo, obtiveram as freiras autorização para irem repondo os lugares que fossem vagando, desde que se não ultrapassasse o limite de 24, o máximo autorizado. Apesar dos excelentes indicadores que se foram registando da vivência deste Convento de N.a S.ra das Mercês, ele também foi apanhado nas malhas do liberalismo e sujeito, como os outros, ao encerramento preconizado para aquando da morte da última freira. Acontece, porém, que, talvez graças ao respeito que esta comunidade merecia da população e das autoridades locais, esta casa monástica não sofreu o destino das restantes e continuou a receber candidatas, designadas “pupilas” para não desobedecer à proibição de aceitação de noviças, mas, no resto da vida conventual, a situação manteve-se como sempre fora, embora o ingresso no Convento fosse lentamente decaindo, até que, em 1910, data da implantação da república, já lá se encontravam apenas 15 religiosas. Em 1901, aquando da legalização dos institutos religiosos sob a forma de associações, o Convento de N.a S.ra das Mercês transformou-se em associação, permanecendo as religiosas, então designadas “sócias ativas”, na sede da associação, ou seja, no Convento, sendo responsáveis pela sua administração. A república veio, porém, pôr um ponto final a esta situação que se prolongava, de resto, para além do expectável, e, a 13 de outubro de 1910, as últimas freiras foram levadas do Convento para o palácio de S. Lourenço, onde aguardaram que as famílias as resgatassem. O edifício do Mosteiro foi, a pedido da Câmara Municipal do Funchal, destinado a cadeia, desígnio que se gorou quando se constatou o elevado montante que seria preciso despender até lhe dar a configuração exigida pelas novas funções. Assim, destinou-se, depois, a “Escola Modelo, Biblioteca Popular ou Museu Municipal”, mas também estas ambições não foram adiante, preferindo-se antes atender a um pedido da edilidade para que se demolisse uma parte do prédio para alargamento das vias circundantes. A outra parte, abandonada durante algum tempo, acabou igualmente por ser demolida, construindo-se de raiz, naquele espaço, um edifício destinado ao Auxílio Maternal do Funchal (FONTOURA, 2000, 384-385).   O Convento de N.a S.ra da Piedade, na Caldeira O destino das freiras provisoriamente acolhidas em S. Lourenço foi o regresso a contextos mais ou menos familiares, i.e., enquanto algumas, entre as quais se contava a M.e Virgínia Brites da Paixão, superiora do Convento, regressaram de facto a casa dos pais, outras conseguiram retomar a vida em comunidade, partilhando habitações particulares da posse de parentes seus. Assim aconteceu em Câmara de Lobos, onde, no sítio da Palmeira, um grupo de sete freiras se juntou em casa que havia pertencido aos pais da Ir. M.a Matilde da Circuncisão, enquanto um outro núcleo, desta vez com três professas e uma candidata, fixou residência no lugar da Caldeira, em casa dos pais da Ir. M.a Francisca da Anunciação. Aí se mantiveram juntas, usando hábito – risco que corriam apesar da legislação anticongreganista da Primeira República –, rezando e trabalhando como sempre haviam feito. A M.e Virgínia, apesar de se manter instalada em casa de família, era visita assídua quer de uma quer de outra das comunidades, ajudando a manter vivo o espírito da Primeira Regra de Santa Clara. A propriedade da Caldeira ficava junto de uma capela consagrada a N.a S.ra da Piedade, fundada em finais do séc. XVIII pelo P.e Manuel Gonçalves Henriques, que a dotara de todos os requisitos para nela se celebrarem os ofícios divinos. Por altura da expulsão das freiras do seu Convento das Mercês, pertencia a referida capela ao P.e António Rodrigues Dinis Henriques, o qual, quando deixou a paróquia de que estava encarregado, se devotou ao acompanhamento espiritual das freiras suas vizinhas e igualmente se comprometeu com o desígnio de dotar as madres de novo convento. Com esse fim em vista, deixou, em testamento, a propriedade onde se encontrava a capela à paróquia de Câmara de Lobos, estratégia encontrada para salvaguardar a posse dos terrenos que, se entregues à Diocese, poderiam ser retomados pelo Estado. O tempo político não era, porém, favorável a projetos congreganistas, pelo que foi preciso esperar por nova mudança de regime, operada com o golpe de 28 de maio de 1926, para que o desejo do P.e Dinis e das freiras egressas pudesse começar a tomar forma, o que veio a suceder logo em 1927-1928, altura em que começaram as obras da nova casa conventual, as quais sempre contaram com o apoio do bispo da Diocese, D. António Manuel Pereira Ribeiro. O Mosteiro foi, assim, nascendo, fruto da colaboração de muitas vontades, entre as quais a da própria população da zona, que contribuía com o que podia, quer doando materiais, quer oferecendo dias de trabalho. A 16 abril de 1931, as oito freiras que ainda viviam, do pequeno grupo que saíra do Convento das Mercês, puderam finalmente voltar a reunir-se entre muros conventuais, conseguindo assim o feito único em Portugal de uma comunidade que ultrapassou as adversidades, reorganizando-se, uma vez mais, sob a Primeira Regra de Santa Clara. Com o aumento das solicitações para ingressar no Convento, houve necessidade de proceder a um redimensionamento das instalações, o que veio a acontecer em 1954, embora, pouco tempo depois, um incêndio, ocorrido em 1959, viesse, uma vez mais, obrigar a comunidade a ultrapassar outra dificuldade. Recebidas pelas Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, então instaladas no Convento de S.ta Clara, as freiras aguardaram pela reconstrução, e, uma vez mais ou menos terminada, regressaram à Caldeira e às suas costumeiras ocupações de fabrico de hóstias, tratamento de roupa para a Sé e outras paróquias, bordados, jardinagem e lavoura. Por ter o bispo D. David de Sousa, Franciscano como elas, constatado que a população vizinha do Convento vivia muito isolada, com dificuldades de acesso à catequese e até ao ensino primário, solicitou às freiras a prestação desse serviço social, ao que elas prontamente acederam, tendo ficado responsáveis por aquelas missões durante 19 anos. Nos inícios do séc. xxi, a comunidade permanece instalada no sítio da Caldeira, mas o crescimento do número de candidatas à profissão determinou que se expandisse, dando origem a novas casas de religiosas, uma das quais em Santo António, nos arredores do Funchal.   O Mosteiro de S.to António A M.e Virgínia Brites da Paixão foi viver, conforme se disse, para casa de seus pais, no Lombo dos Aguiares em Santo António, onde continuou a levar uma vida muito próxima da de clausura, dedicada à oração e pontuada das experiências místicas com visões de Nossa Senhora que a acompanhavam desde muito nova. O seu modo de viver despertava a admiração não só das suas correligionárias de Câmara de Lobos, como da população em geral, e, anos depois da sua morte, ocorrida a 17 de janeiro de 1929, começou a germinar a ideia da fundação de um Convento junto da casa onde habitara e que se encontrava na posse de umas sobrinhas. Apresentado o projeto ao bispo do Funchal, D. João Saraiva, este logo se entusiasmou e envidou esforços no sentido de se concretizar o desígnio, para o qual igualmente contribuiu a doação da propriedade por parte das sobrinhas. Em março de 1967, transferiram-se para instalações ainda provisórias as primeiras três irmãs oriundas do Convento de N.a S.ra da Piedade, e, em 1971, o prelado funchalense começou a equacionar a possibilidade de aquela casa passar a mosteiro autónomo. Com este fim em vista, diligenciou a obtenção de licença junto da Congregação dos Religiosos e Institutos Seculares, em Roma, que respondeu a 21 de julho, confirmando a aceitação do pedido. Em posse do documento, D. João Saraiva tudo fez para tornar realidade o novo Convento e, a 2 de outubro do mesmo ano, em reunião da comunidade, o bispo procedeu à nomeação da madre abadessa. A ereção canónica tardou ainda quatro anos, mas, em 1975, por ação do bispo D. Francisco Santana foi alcançada, passando, desde então, a Madeira a contar com mais uma casa conventual de Clarissas.     Ana Cristina Trindade (atualizado a 25.02.2017)

Religiões

castro, luís vieira de

Fig. 1 – Fotografia de Luís Vieira de Castro. Fonte: Museu Vicentes.   Luís Lopes Vieira de Castro nasceu no Funchal no dia 10 de maio de 1898. Concluiu o ensino secundário no Liceu do Funchal, após o que se matriculou em Direito na Universidade de Coimbra, vindo a acabar o curso em Lisboa em 1922. Foi depois para a sua terra natal, onde abriu banca de advogado, ao mesmo tempo que se dedicava ao jornalismo e à política. Monárquico integralista convicto, defendia a restauração da monarquia pré-liberal e o regresso à sociedade cristã e patriarcal tradicional, pugnando por uma monarquia orgânica, tradicionalista, antiparlamentar, que deveria apoiar-se no poder das corporações e dos municípios, sob o comando pessoal e incontestável do Rei. Desde cedo, em Coimbra, onde conviveu com monárquicos integralistas, vai dedicar-se ao jornalismo, fundando dois jornais académicos que estavam alinhados com o seu credo político, o Pátria Nova (1916) e o Restauração (1921), e colaborando ainda com outros. Nestes dois semanários, vai desenvolver e defender as ideias políticas e sociais que desejava ver implantadas no país. No Pátria Nova, combate pelos ideais do integralismo lusitano. No Restauração, começa por lutar pelas mesmas ideias, mas, a partir de 1922, com o Pacto de Paris, que leva ao rompimento do Integralismo Lusitano com o ex-Monarca português, D. Manuel II, então exilado em Inglaterra, vai afastar-se daquele movimento político, que passa a optar pelo pretendente legitimista D. Miguel, do ramo familiar de D. Miguel, Rei absoluto que governara o país entre 1828 e 1834. Tal como os seus amigos do Restauração, vai aderir à outra fação integralista, entretanto fundada por Alfredo Pimenta, a Ação Realista Portuguesa, que, embora integralista, não rejeitava D. Manuel. Em 1922, depois de concluída a licenciatura, regressa a casa e vai ser convidado pelo lugar-tenente do Rei, o madeirense Aires de Ornelas, para organizar a Causa Monárquica na Madeira. Funda então o Jornal da Madeira, em 22 de novembro de 1923, periódico de cariz regionalista que se apresenta como defensor de uma imprensa regional independente da nacional e que, segundo o seu fundador, aparece para defender a autonomia da Madeira do centralismo da república. É de facto Luís Vieira de Castro que, no princípio da déc. de 20, e na sequência da época festiva que se vivera na Madeira, em 1922, com a comemoração do 5.º centenário do descobrimento da Madeira, dá voz à propaganda autonomista, ao abrir, nas colunas do seu jornal, um espaço de debate dedicado a este tema. Promove então um inquérito sobre esta temática a algumas figuras ilustres da região. São auscultados o banqueiro Henrique Vieira de Castro, seu pai, e o P.e Fernando Augusto da Silva, entre outros. Não se pensava em independência, mas apenas numa descentralização administrativa, embora o sacerdote tenha defendido a criação de um partido autonomista. Estas ideias autonomistas, vazias de conteúdo, foram ficando no papel, visto que a conceção de Luís Vieira de Castro mais representava uma demarcação relativamente ao regime republicano do continente, que ele combatia. A autonomia, para ele, era apenas uma estratégia para colher dividendos políticos e aglutinar os descontentes contra a república, já que, no seu entender, essa autonomia só seria realizável dentro da monarquia tradicional e antiparlamentar. Isto mesmo o exprime logo no primeiro editorial do Jornal da Madeira: “Descentralização, no rigoroso sentido da palavra, teve-a Portugal, com licença dos espíritos avançados (?) no bom tempo antigo. Veio depois o liberalismo, com eleições, foguetes, discursos, sonetos e hinos – consoante reza o mestre Herculano – e surripiou-nos as atribuições conferidas pelos velhos forais, que eram as autênticas cartas de lei da nossa autonomia. Deu este caminhar para a morte, no tão citado congestionamento do Terreiro do Paço, espectro que nos persegue e atormenta […] para saciar o monstro do Terreiro do Paço e a sua dependência de S. Bento, foi necessário sacrificar quasi todos os valores úteis, por isso que os deslocaram do quadro natural onde deveriam exercer a sua função. A organização política do país é porém, no meu entender, incompatível com a efetivação desse belo pensamento. Quaisquer instituições que se apoiem em partidos políticos estão inibidas de conceder uma reforma administrativa que haveria fatalmente de bulir com o chamado equilíbrio constitucional. O regionalismo, apoiando-se na força histórica da tradição, será de substituir-se aos partidos políticos, gastos e desacreditados, constituindo-se em instrumentos das aspirações locais. Para que elas se convertam em realidade, não teremos de negar a unidade da Pátria” (CASTRO, 1923, 1). Mais do que a autonomia da Madeira, o que movia Vieira de Castro era a vontade de que triunfasse na Ilha uma orientação política diferente da do território continental, a ânsia de afirmação pessoal na política e a defesa dos seus interesses pessoais. A posição assumida perante a Revolta da Madeira, em 1931, viria, aliás, a confirmá-lo. Os problemas locais aparecem em larga escala nas páginas do seu jornal, mas nem sempre são expostos com a clareza que exigiria a sua resolução. A partir de 1924, começa a ser evidente que o país necessita de ordem e de autoridade e a república revela-se incapaz de as proporcionar. É então que Luís Vieira de Castro se vai tornar conspirador, participando nas várias tentativas – falhadas – de golpe contra a república. Neste âmbito, acompanha a preparação do golpe de 18 de abril de 1925, e a derrota no mesmo é considerada um parêntesis amargo na vida política de Luís Vieira de Castro, que acompanha o desenrolar do correspondente processo de julgamento, fazendo da república a ré do mesmo. Nesse ano, embora condenando as eleições, vai concorrer a elas, com sucesso. No entanto, devido a uma irregularidade encontrada nos boletins de voto, não chegará a assumir as funções de deputado. O golpe militar de 28 de maio de 1926 não é tão coberto pelo Jornal da Madeira como o fora o anterior, embora apareça uma entrevista com um militar, no próprio dia do golpe, dando conta dos preparativos e indicando para breve o seu eclodir. Este golpe vitorioso é comentado por Luís Vieira de Castro no seu jornal no dia 3 de junho. Congratulando-se com a vitória dos militares, integra-a no movimento de ressurgimento que caracterizava a época; no entanto, o cariz republicano do golpe põe-no na expectativa e continua dizendo que mantém a sua posição de monárquico que espera pela restauração da monarquia. A partir do contragolpe falhado, em 3 e 7 de fevereiro de 1927, começa o seu percurso ao encontro do regime do Estado Novo, que defende veementemente após a nomeação de Salazar para ministro das Finanças. Por esta altura, volta a defender a autonomia da Madeira, mas já sem a força e o entusiasmo do princípio da década. Em 1928, vai para Lisboa, com o objetivo de dirigir o Correio da Manhã, jornal da Causa Monárquica. A sua índole facciosa vai ser posta em evidência durante a crise por que passou a Madeira nos finais do ano de 1930 e nos princípios de 1931, que levou ao despoletar da já referida Revolta da Madeira. O seu comportamento face a este acontecimento é bastante dúbio. Em novembro de 1930, quando se dá a falência da casa bancária Henrique Figueira da Silva, e no início de 1931, aquando do célebre “decreto da fome”, é ele quem escreve os manifestos incitando o povo à insurreição; mas, quando a rebelião toma figura, ele retira-se de cena, tentando assim defender os seus interesses particulares, esquecendo os da sua terra. Durante estes incidentes, o seu jornal é tomado pelos revoltosos, que se servem das instalações para publicar o jornal Notícias da Madeira, porta-voz do movimento rebelde. Com o esmagamento do levantamento, Luís Vieira de Castro, de regresso ao seu jornal, condena-o como se não tivesse tomado parte ativa nele. Os seus opositores imputam-lhe então ter sido o seu grande impulsionador, e foi inclusivamente acusado de duplicidade por alguns dos seus correligionários políticos. Depois da Revolta da Madeira, pouco se ouviu falar de autonomia. A 30 de abril de 1932, recusa continuar na direção do seu jornal, que entretanto mudara de nome para O Jornal, “em virtude de ocupar outras funções para que era chamado” (O Jornal, 30 abr. 1932, 1) em Lisboa. Neste ano, O Jornal é vendido à Diocese do Funchal. Após o convite feito por Salazar aos monárquicos para que “não se prendessem a cadáveres” (SALAZAR, 1928, 169), entra para a União Nacional em 1934. Em 1940, é um dos organizadores do Congresso do Mundo Português, sendo seu vice-secretário geral. Entre 1942-1945 e 1946-1949, é deputado à Assembleia Nacional. Distinguiu-se também como comentador de política internacional em vários jornais. Foi ainda cônsul da Polónia, sócio da Academia Portuguesa da História, do Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia e da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. Para além de colaborar com diversos jornais e revistas, Luís Vieira de Castro publicou várias obras de carácter histórico, literário e político, entre as quais se salientam: Nebulosas, Livro Estranho, Civilizados, A Hora Internacional, A Nacionalidade Portuguesa, A Europa e a República Portuguesa, O Mundo Que Finda e o Mundo Que Começa, D. Carlos, Limbo, A Noiva de Dois Reis, O Exílio do Prior do Crato, Em Pé de Guerra, Pedra sobre Pedra, Homens e Livros, Rumo à Vitória, Quarto de Vigia. Faleceu em Lisboa a 7 de setembro de 1954.   Obras de Luís Vieira de Castro: Nebulosas, Livro Estranho (1916); Civilizados (1918); A Hora Internacional; A Nacionalidade Portuguesa (1919); A Europa e a República Portuguesa (1922); “Regionalismo” (1923); O Mundo Que Finda e o Mundo Que Começa, D. Carlos (1935); Limbo; A Noiva de Dois Reis (1936); O Exílio do Prior do Crato; Em Pé de Guerra (1938); Pedra sobre Pedra (1942); Homens e Livros; Rumo à Vitória (1943); Quarto de Vigia (1948).   Emanuel Janes (atualizado a 25.02.2017)

Personalidades

câmara, luís gonçalves da

(Funchal, c. 1519-Lisboa, 1575) Padre da Companhia de Jesus, foi confidente de Inácio de Loyola, confessor e preceptor do príncipe herdeiro, D. João Manuel, e, anos mais tarde, mestre, encarregado da instrução moral e intelectual do filho daquele, D. Sebastião, tornando-se também seu confessor e o seu mais íntimo conselheiro. Privou e correspondeu-se com importantes figuras seiscentistas, sendo uma personagem ambígua – odiada e admirada – e cujos percurso e legado são de uma importância indiscutível para a história da sua Ordem e do seu país. Palavras-chave: Companhia de Jesus; Jesuítas; Inácio de Loyola; D. Sebastião; Universidade de Coimbra. Luís Gonçalves da Câmara nasceu na Madeira, por volta de 1519, e faleceu na capital do reino, em 1575. Padre da Companhia de Jesus, foi confidente de Inácio de Loyola, confessor e preceptor do príncipe herdeiro, D. João Manuel, e, anos mais tarde, mestre, encarregado da instrução moral e intelectual do filho daquele, o Rei D. Sebastião, tornando-se também seu confessor e o seu mais íntimo conselheiro. Privou e correspondeu-se com importantes figuras seiscentistas, sendo uma personagem tenaz que recolheu ódio e admiração, algo que Camões terá até referido nos seus cantos, e cujos percurso e legado são de uma importância indiscutível para a história da sua Ordem e do seu país. Era trineto de João Gonçalves Zarco, o primeiro capitão do donatário do Funchal, e filho de João Gonçalves da Câmara, quarto capitão-donatário do Funchal, e de D. Leonor de Vilhena. Os seus avós paternos eram Simão Gonçalves da Câmara, terceiro capitão do Funchal, e D. Joana Valente, filha do primeiro governador da Casa do Cível. Os seus avós maternos, de ascendência nobre, eram D. João de Meneses, conde de Tarouca, prior do Crato e mordomo-mor dos Reis D. João II e D. Manuel I, e D. Joana de Vilhena. Era primo de D. João de Menezes, outro Jesuíta célebre. A vida religiosa também foi abraçada por outro dos seus irmãos, o P.e Martim Gonçalves da Câmara. Era sobrinho de D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego, e o seu irmão Simão Gonçalves da Câmara tornou-se o quinto capitão do Funchal e, a partir de 1576, conde da Calheta – para a atribuição do título, além da sua participação na caça às armadas de corsários, foi decisiva a influência que os seus dois irmãos tinham na corte. No séc. XVI, em plena época de ouro da cana-de-açúcar madeirense, a família do capitão do Funchal foi alcançando notoriedade na corte. Da sua juventude, nada é conhecido, até ingressar, em 1535, como bolseiro do Rei D. João III no Colégio de S.ta Bárbara da Universidade de Paris, cujo principal era o português Diogo de Gouveia, o Velho. Francisco Rodrigues, em História da Companhia de Jesus na Assistência a Portugal, confirma a sua naturalidade, “Lodovicus Goncalve de Camara nobilis funiculensis dioecesis” [“Luís Gonçalves da Câmara, nobre da Diocese do Funchal”], através do livro das atas reitorais da Universidade de Paris (RODRIGUES, 1931-1950, I, 1, 447). No tocante à sua ida para Paris, deveremos ter em consideração a importância que a rede de parentescos nisso desempenhou, numa altura em que esta cidade constituía um dos grandes centros de cultura europeia. Foi na capital francesa que Inácio de Loyola obteve o grau de mestre em Artes e de onde partiu, em fevereiro de 1535, sete anos após chegar a Paris, rumo à sua cidade natal. Será, portanto, pouco provável que o jovem Gonçalves da Câmara se tenha cruzado com Loyola nesse período, ao contrário da proximidade que estabeleceu com o francês Pedro Fabro, o único fundador da Companhia que era padre a 20 de agosto de 1534, a data de celebração da cerimónia que esteve na génese da futura Ordem. Em 1538, Câmara prestou juramento universitário. Após a conclusão dos seus estudos em Paris, onde alcançou o grau de mestre, também em Artes, regressou a Portugal, indo para a Universidade de Coimbra. Segundo António Franco, em Imagem da Virtude em o Noviciado da Companhia de Jesus…, com a refundação da Universidade de Coimbra, D. João III mandou regressar os Portugueses que estudavam em Paris. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, em Elucidário Madeirense, e Maria Augusta Cruz, em D. Sebastião, referem que Câmara foi um dos escolhidos pelo Rei para fazer parte do corpo docente da Universidade. Em 1544, reencontrou Fabro, que estava de visita a Coimbra, a quem foi atribuída a sua vocação. Depois desse encontro, Câmara retirou-se para a Vila de Coja, onde, afastado de tudo e de todos, pôde realizar os exercícios espirituais da Companhia. Ingressou na Ordem a 27 de abril de 1545, cinco anos depois do reconhecimento papal dessa jovem congregação. A sua entrada ocorreu um ano após ter sido revogado o limite de 60 professos na congregação, que tinha sido imposto por Paulo III na bula de fundação, possibilitando assim que a Companhia respondesse aos apelos de novos ingressos; nesse ano, começaram a chegar relatos de práticas penitenciais estranhas dos estudantes do Colégio de Coimbra, parcialmente instigadas pelo padre provincial português, o mestre Simão Rodrigues. Gonçalves da Câmara fez o seu noviciado no novo Colégio de Valença, onde era reitor o P.e Diogo de Miró, retornando depois para Coimbra, devido a uma enfermidade nos olhos. Tendo de se deslocar a Madrid, o madeirense reencontra-se com o P.e Pedro Fabro, em janeiro de 1546. Regressa a Coimbra cinco dias depois do encontro, que parece ter sido proveitoso, como se depreende da carta de recomendação que ele e o seu companheiro de viagem, Gonçalo Fernandes, receberam para entregar ao reitor do Colégio de Jesus. Em 1547, foi ordenado sacerdote e, no mesmo ano, nomeado reitor do Colégio de Coimbra, numa subida meteórica, substituindo o P.e Martinho de Santa Cruz, reitor quando Câmara ingressou na Companhia. Em pouco mais de dois anos, Luís Gonçalves da Câmara ingressa na Ordem e chega a reitor de um dos seus colégios. Já no séc. XVII o P.e António Franco relatava, na sua narrativa afetuosa e parcial, que Simão Rodrigues o retirou do cargo de reitor, atribuindo-lhe a função de cozinheiro, “no qual ofício se houve, como se só para ele entrara na Companhia” (FRANCO, 1930, 145). Aliás, o próprio Simão afiançava, em carta ao padre geral da Ordem, que “mais se gozava e maior contentamento recebia em ser cozinheiro da Companhia de Jesus do que mestre e confessor do príncipe”, num sinal que Rodrigues interpretou como de simples humildade, situação que Câmara, todavia, não iria reconhecer com complacência, e que seria o prefácio do confronto que iria abalar a província portuguesa (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 31). Em 1547, quando o madeirense era o reitor, Loyola escrevia à comunidade do Mondego sobre as práticas adotadas por aqueles estudantes, parcialmente instigadas por Simão Rodrigues, como anteriormente referido, e que estavam a chocar a comunidade e a comprometer a posição da Ordem em Portugal. Inspirados por interpretações erradas de algumas passagens dos Exercícios inacianos, alguns estudantes desfilavam por Coimbra carregando crânios e vestidos de forma pouco séria, numa atitude excessiva que Loyola repudiava. A carta do geral atesta a preocupação do líder da Companhia perante os testemunhos que chegavam a Roma: “Quando tal moderação está ausente, o bem é transformado em mal e a virtude em vício” (Monumenta Ignatiana…, 1903, 504). Em 1548, o padre madeirense parte para a primeira missão jesuíta em Tetuão (Marrocos), pretendendo prestar ajuda espiritual aos Portugueses e visitar os cristãos cativos, e acabando por regressar a Lisboa, novamente devido a doença. Francisco Rodrigues relata que, nesse ano, nascia em Roma a intenção de substituir o provincial português, cuja liderança não satisfazia inteiramente Loyola. Desde 1545, chegavam relatos da província portuguesa sobre a insubordinação de alguns membros da Companhia, incluindo do próprio provincial, perante as ordens oriundas de Roma. O P.e Simão, pela incoerência e pela imprudência que demonstrava ter em algumas das suas missivas – e de acordo com os relatos de outros padres –, estava a desagradar à cúpula da Companhia em Roma. A 9 de dezembro de 1550, quando Simão Rodrigues obteve do Rei a desejada licença para se ausentar para Roma, deixou o ofício de confessor do príncipe regente D. João ao P.e Gonçalves da Câmara, nomeado pelo próprio geral, que se ocuparia dessa missão até meados de 1552. O cargo conferia grande destaque à Ordem a que pertencesse o escolhido, e é certo que o confessor e o preceptor possuíam alguma influência nas decisões políticas que eram tomadas. Ampliava-se, deste modo, uma teia de interesses que criou muitos inimigos aos inacianos e lhes provocou muitos dissabores. No início da déc. de 50 do séc. XVI, a província portuguesa da Companhia viveu um período de “grande tribulação” (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 10), com uma profunda cisão no seu seio, a qual teve dois protagonistas: o próprio Simão Rodrigues, provincial desde 1546 e um dos prime patris da Ordem, e Luís Gonçalves da Câmara. Confrontavam-se, assim, os partidários de uma posição mais moderada e os adeptos de uma linha mais rigorosa, onde se inseria o madeirense. O cisma instalado acabou por conduzir a uma divisão interna na Companhia, prolongando-se durante as décadas seguintes. A 18 de agosto de 1551, atendendo a um pedido de D. João III, o padre valenciano Diogo Miró chegou, por determinação do geral, a Coimbra, onde se inteirou sobre a veracidade das críticas dirigidas ao provincial. As acusações contra Simão acumulavam-se e Loyola decidiu, por fim, afastá-lo do governo da província, sendo expulso do reino em 1553. Não parece haver registo dos delatores e das acusações finais contra o provincial, pela ausência de correspondência conservada. No início de 1552, são remetidas as missivas de Loyola que depunham o provincial. Após o seu afastamento, o cargo transitou para Miró e Simão foi designado líder da nova província de Aragão, que foi propositadamente erigida neste contexto. Nesse período, outros Jesuítas tornaram-se confessores das personalidades mais influentes do reino, potenciando as tensões externas contra província portuguesa da Ordem, agravadas pela própria celeuma interna. Alguns investigadores acusam Gonçalves da Câmara de desacreditar Simão Rodrigues perante a cúpula da Companhia, o que pode ser verificado nas críticas por ele enviadas a Roma, mediante as quais pretendia que o provincial, para além de deixar o governo da província, abandonasse Portugal. A (alegada) estima de outrora havia desaparecido por completo e a tensão entre ambos é relatada de tal forma que “só de ouvir o nome do P.e Simão Rodrigues, acendia-se de tal modo [Câmara], que parecia sair fora dos seus sentidos” (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 83). Nas cartas de Câmara estão patentes uma certa extrapolação que fez dos acontecimentos, o pendor negativo que conferiu à atuação do provincial e a interpretação fantasiosa das consequências do seu afastamento para a província. Nas suas palavras, os aliados do antigo provincial sairiam da Ordem ou seriam expulsos, por compactuarem com as suas ideias perversas. Após a expulsão de Rodrigues, pouco tempo passou até que o P.e Gonçalves da Câmara reincidisse na sua visão crítica sobre o governo da província e escrevesse para Roma, indicando a falta de habilidade de Miró para a liderança. Em 1553, Câmara deixou Portugal, chegando a 23 de maio a Roma, onde executou um trabalho que o perpetuou na história da Companhia. Quando se encontra com Loyola, o impacto é tão grande que o próprio Pedro Fabro, tão admirado pelo madeirense, parecerá, aos seus olhos, uma criança em comparação com a grandiosa figura do geral. No início de dezembro, para esclarecer o diferendo contra Simão Rodrigues, Loyola estabeleceu um julgamento e nomeou Gonçalves da Câmara como um dos acusadores. A 7 de fevereiro de 1554, foi pronunciada a sentença que ratificava a saída de Rodrigues do reino e do cargo. O padre madeirense saiu, uma vez mais, vencedor. A ida de Câmara a Roma estava relacionada com os problemas da província portuguesa, conforme amplamente relatado nas várias missivas trocadas entre Roma e Portugal ao longo dos anos, mas Câmara acabaria por ter aí uma missão ainda mais importante. O padre fundador recebia vários apelos para que deixasse um registo da sua vida, principalmente do período anterior ao reconhecimento da Ordem. O Jesuíta madeirense acabou por ser o escolhido – segundo alguns relatos internos, devido à sua memória prodigiosa – para o elaborar. Certamente, preferiu-se Gonçalves da Câmara devido ao seu empenho na resolução dos problemas da província portuguesa e à lealdade a toda rede de influências de que se cercava, e que crescia. As diligências e o comportamento de Câmara, durante todo o período de crise, e a sua intervenção na gestão desse processo turbulento foram decisivos para impedir uma cisão profunda entre Roma e Portugal, que comprometeria até a expansão da Ordem pelos novos domínios e a unidade e a continuidade de uma congregação tão jovem. A 26 de março de 1553, por sugestão do madeirense, Loyola escreve aquela que ficou conhecida como a “carta de obediência”, que selou o fim do conflito. Em agosto, começa a escrever a narrativa ditada por Inácio de Loyola em três curtos períodos: de agosto a setembro de 1553, em março de 1555 e de setembro a outubro de 1555. Câmara ouviu as memórias do fundador, fez breves apontamentos e depois ditou-os a um cronista. O madeirense assumiu os papéis de confidente e secretário do geral da Companhia, além do de ministro da sua casa, a partir de setembro de 1554. Devido à ausência de título nos vários manuscritos de Câmara, a obra ditada por Loyola acabou por ser publicada com diferentes nomes ao longo do tempo: Atas do P. Inácio, Feitos do P. Inácio, Autobiografia, entre outros, sendo apenas citada como Autobiografia por J. F. O’Connor, em 1900. Os relatos ficaram, durante vários séculos, nos segredos da Ordem. Depois do último encontro entre os dois, que teve lugar entre os dias 20 e 22 de outubro de 1555, o madeirense deixa Roma e os relatos da entrevista acabam por ser transcritos na cidade de Génova, em italiano. Anos mais tarde, em 1566, o terceiro geral da Companhia, Francisco de Borja, mandaria recolher todos os relatos dos manuscritos inacianos, proibindo a sua leitura e difusão, alegadamente por estarem incompletos, e encarregou o P.e Ribadeneira de executar uma biografia, que acabou por se traduzir numa versão em castelhano, de estilo clássico, dos próprios originais de Câmara. Entre os vários aspetos a serem investigados na biografia do madeirense está a relação entre a desconsideração que os seus escritos tiveram no governo de Borja, que se propagou no tempo, e a fama que o cargo na corte portuguesa lhe deu. Após quatro meses a desempenhar funções de secretário, em finais de janeiro de 1555, Câmara decidiu fazer o seu próprio registo acerca do que entendeu ser importante para ser recordado sobre o fundador, escrevendo o que seria o Memorial de lo que Nuestro Padre Me Responde acerca de las Cosas de Casa, Començado á 26 de Henero del Año de 1555, guardado, com alto secretismo, durante séculos. A sua presença discreta é mais importante do que se possa pensar. O Memorial assume-se como uma obra ímpar, que funciona como um precioso complemento da biografia inaciana. A 9 de março de 1555, poucos meses após a sua decisão sobre a escrita do Memorial, os trabalhos ditados por Loyola, que tinham sido interrompidos, recomeçaram. A partir desse momento, o tempo de escrita de Câmara foi repartido entre a Autobiografia e o Memorial. O labor foi interrompido com a morte do Papa Júlio III e retomado apenas a 22 de setembro. Em setembro e outubro, a narrativa da autobiografia absorveu Câmara quase por completo, devido ao ritmo acelerado imposto pelo fundador. Na véspera do seu regresso a Portugal, os relatos tinham fim. Cinco dia antes, a 18 de outubro, o Jesuíta interrompera os trabalhos do Memorial, retomados apenas em 1573, quando se encontrava em Évora. A narrativa ditada pelo fundador representa um documento histórico único, de valor incalculável, sendo a biografia espiritual de Loyola mais importante e a mais difundida. O método de trabalho para as duas obras foi distinto. Com Loyola, durante a preparação da Autobiografia, Câmara privou, por diversas vezes, na chamada “torre vermelha”, onde memorizava as conversas com o geral; após o encontro, recolhia-se na sua cela para ditar ao cronista o que tinha ouvido. Para a elaboração do Memorial, o madeirense registou o que viu e ouviu na presença do próprio Inácio, durante as atividades do quotidiano; posteriormente, também ditou estes escritos ao seu secretário pessoal; o objetivo foi a execução de um diário com o máximo possível de informações sobre o padre fundador, o qual foi composto durante pouco mais de seis meses. Durante a sua estadia em Roma, Gonçalves da Câmara manteve correspondência com D. João III. O Monarca não escondeu o desejo de ver o madeirense de regresso a Portugal. Quando deixou Roma, a 23 de outubro de 1555, fez-se acompanhar de vários Jesuítas e levou consigo várias cartas de recomendação. Além disso, Loyola atribuiu-lhe importantes prerrogativas: nomeou-o colateral do provincial português, o castelhano Miguel de Torres, que passava assim a partilhar o governo da província com o madeirense; isentou-o da obediência a qualquer superior da província, respondendo apenas ao Rei D. João III; concedeu-lhe escolher a casa da Companhia em que preferisse residir; e deu-lhe poder para declarar e determinar sobre a missão na Etiópia. A combinação desse poder com o temperamento explosivo de Câmara acarretou muitos problemas e queixas, que tinham origem no provincial, referindo a natureza colérica do madeirense, e até nos seus companheiros de Ordem. Em 1556, um Jesuíta escreveu que o governo da província estava partido entre Miguel de Torres, Luís Gonçalves da Câmara e Inácio de Azevedo. Ao seu regresso, o madeirense visitou vários colégios e analisou os problemas que a Companhia, por se encontrar “bastante desacreditada”, enfrentava nos estudos cuja superintendência lhe fora confiada (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 362). As reformas que conduziu pareceram produtivas e acabou por desempenhar um papel importante junto do Rei na manutenção da tutela da Companhia sobre o Colégio de Jesus. Em 1556, a Companhia perdeu o seu geral e idealizador, a 31 de julho, e o governo é entregue ao vigário geral, o P.e Diogo Laynez. A congregação que elegeu o segundo geral teve início a 19 de junho de 1558. A 9 de maio, chegaram a Roma os cinco padres eleitores portugueses, que se juntaram ao P.e Simão Rodrigues. Entre eles estava Luís Gonçalves da Câmara. Os enviados foram escolhidos, em novembro de 1556, na congregação provincial que foi celebrada na casa de S. Roque. O novo geral acabou eleito a 2 de julho de 1558, com 13 votos dos 20 eleitores. Poucos dias depois, o padre madeirense foi eleito para o Conselho Supremo da Ordem, com o cargo e o nome de assistente de Portugal. No final dos trabalhos, Câmara permaneceu em Roma. Ainda nesse ano, e no seguimento das decisões tomadas pela congregação, no sentido de organizar o governo da Companhia em “assistências”, Câmara foi nomeado um dos quatro assistentes. Em 1557, a morte do Rei português deu outro rumo e outro impulso à posição de Câmara, mesmo que alguns autores afirmem que tais acontecimentos ocorreram contra a sua vontade. Três dias após a morte do Monarca, a Rainha D. Catarina reuniu o Conselho e assumiu a regência e a tutoria do futuro Rei. Enquanto o nome do aio do jovem D. Sebastião foi escolhido pacificamente, o do seu mestre, que seria o responsável pela sua instrução intelectual e moral, não teve a mesma sorte. Amador Rebelo, padre jesuíta que coadjuvou Gonçalves da Câmara no seu ofício, e autor da Relação da Vida d’El Rei D. Sebastião (1685-1700), refere que a escolha, tanto do aio como do mestre, correspondeu a um desejo expresso de D. João III e muito apoiado pelo seu irmão, o cardeal D. Henrique. A escolha do tio-avô de D. Sebastião “recaíra desde o início no padre Luís Gonçalves da Câmara” (CRUZ, 2012, 77), enquanto a Rainha preferiria um religioso de outra Ordem. A influência exercida pelo Jesuíta Miguel de Torres, que foi confessor da mãe de D. Sebastião, acabou ajudando as pretensões do cardeal para que a nomeação incidisse sobre o madeirense, mas há autores que afirmam que a Rainha “escolheu e preferiu de própria vontade aquele religioso” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 253-254). Em pouco tempo, D. Catarina arrepender-se-ia de tal decisão. Em 1559, aquando da protelada deliberação dos governantes portugueses, Câmara estava, novamente, em Roma. Era certo que a presença de um Jesuíta num cargo de tamanha importância dava destaque à Ordem, mas também acarretava ódios e intrigas, e poderia fazer suspeitar da humildade que a Companhia pregava, dada a influência e dado o destaque da função. A 17 de abril desse ano, D. Catarina solicita ao geral, Diogo Laynez, a dispensa do madeirense, para que ele possa assumir e desempenhar as funções para as quais fora nomeado. O relevo e a preponderância que os Jesuítas ganham ao longo do tempo, acrescidos da juventude do instituto, irão contribuir para uma intensificação da oposição aos padres da Companhia. Em julho de 1559, Câmara parte de Roma rumo a Lisboa, onde só chega em dezembro. As funções iniciam-se apenas em meados do ano seguinte, quando o Rei já caminha para os seus sete anos. A relação estabelecida entre o mestre e o seu preceptor é descrita como sendo a “única afetivamente normal” de que pôde gozar o príncipe, “assumindo contornos de uma relação entre pai e filho” (CRUZ, 2012, 81). O contacto do mestre com o herdeiro do trono – sempre acompanhado do seu aio, D. Aleixo – era frequente: “Duas vezes no dia passava lição ao rei, e lha tomava” (FRANCO, 1719, I, 49). O P.e Câmara foi coadjuvado pelo P.e Amador Rebelo, que, além de ser o “mestre do A. B. C.”, como ele próprio se intitulava, assumiu o encargo da catequese. A primeira confissão de D. Sebastião acontece nos primeiros meses de trabalho de Gonçalves da Câmara, sendo este o seu confessor (CRUZ, 2012, 82). Ao longo do tempo, com o contacto diário, aumentava a proximidade entre o Monarca e o seu mestre. À sua visão diminuída, provavelmente devido a uma doença contraída na missão em Marrocos, juntavam-se vários problemas de saúde, que acabariam por dificultar e condicionar as deslocações diárias do mestre do Colégio de Santo Antão-o-Velho até ao paço da Ribeira, onde as lições tinham lugar. Os dois Jesuítas teriam autorização para tomarem a refeição intermédia no paço (o chamado “jantar”) e, nas deslocações da corte para outros paços (Boavista, Xabregas, Almeirim, Sintra, etc.), integravam o séquito. A função do mestre do Rei não teve fim na fase de instrução literária, que terminou por volta dos 12 anos. Gonçalves da Câmara desempenhou funções até aos 20 anos do Rei, tornando-se “a pessoa que mais intimamente o conheceu”, sendo “o suporte da constância afetiva, da confiança tranquilizadora e da dedicação inabalável” (CRUZ, 2012, 88). Porém, em 1566, o madeirense afasta-se das funções que desempenhava, sendo substituído por Luís de Montoya, frade agostinho. Ainda nesse ano, em outubro, a Madeira sofre um ataque corsário francês, o que desperta no P.e Luís Gonçalves da Câmara e no seu primo, o P.e Leão Henriques (confessor do cardeal D. Henrique), o alegado desejo de embarcar na armada de socorro que foi enviada ao Funchal. Câmara acabou por não ser autorizado pelo Rei a fazê-lo, tal como não obteve autorização para realizar outras deslocações que o afastariam do Rei. Segundo alguns investigadores, os irmãos Câmara desempenhavam uma influência certeira para que o Rei preterisse o cardeal, na disputa que o tio-avô e a avó protagonizavam. Após cerca de dois anos de ausência, o madeirense regressa ao cargo por insistência do Rei, quando este atinge a maioridade. Os historiadores diferem sobre o período de afastamento do P.e Gonçalves da Câmara, em que o agostinho desempenhou o cargo de mestre. A sua saída foi justificada, por um investigador americano, como relacionada com abusos sexuais infligidos pelo madeirense ao jovem Rei. Johnson, em “Um Pedófilo no Palácio…”, alega que a enfermidade de que o Rei sofria, relatada desde 1563 e relacionada com a “expulsão de pequenos cálculos renais” (CRUZ, 2012, 124), e que tem nos historiadores vários diagnósticos (espermatorreia, uretrite, infeção bálano-prepucial, crise renal, etc.), era uma doença venérea, gonorreia ou clamídia (ou ambas), causada por abusos sexuais perpetrados por Câmara, que teria sido contaminado na sua ida a Marrocos no final da déc. de 40. Considerada como uma versão apócrifa dos acontecimentos, não existem indícios credíveis que sustentem esta teoria, que está embrenhada e apoiada em algumas interpretações enganosas ou parciais e envolve contradições e erros na sua argumentação. A 20 de janeiro de 1568, quando completou 14 anos, D. Sebastião assumiu o governo do reino; em maio, já havia notícias da reintegração do P.e Gonçalves da Câmara como seu confessor, adensando o confronto entre o cardeal e D. Catarina, que vinha desde as acusações da influência castelhana da Rainha-Mãe na luta pela regência, o que também refletia a disputa, dentro da Companhia, entre os partidários da linha próxima de Câmara e os seus opositores. Francisco de Borja, que se tornou o terceiro geral da Ordem, ainda tentou remover Câmara do cargo de confessor, mas sem êxito. Dentro da própria congregação, a posição e a influência do madeirense incomodavam. A carta do Jesuíta António Correia ao geral retratava as intrigas do reino: “Dizem que Luís Gonçalves governa, e o cardeal é seu instrumento” (ARSI, Lus. n.º 62, 274). Em nada contribuiu para acalmar as hostes a ascensão a determinados cargos e a visibilidade do seu irmão, o P.e Martim Gonçalves da Câmara, que foi “sacerdote do hábito de S. Pedro [e, mais tarde, Jesuíta], doutor teólogo e antigo reitor da universidade” de Coimbra (ALMEIDA, 2003, 420), além de ser uma figura afeta ao círculo do cardeal. Martim assumiu a liderança da Mesa da Consciência (em 1564), do Desembargo do Paço e dos restantes tribunais e o cargo de escrivão de puridade (em 1569). Também foi vedor da Fazenda no Conselho Real. Com o protagonismo que Martim Gonçalves ganhava, muito por influência do cardeal, os ânimos de D. Catarina exasperam-se, em virtude da sua crescente aversão ao poder que os irmãos Câmara ganhavam. A ascensão do madeirense nos negócios do reino era justificada, por D. Henrique, pela importância que o jovem e inexperiente Rei tinha, fazendo-se cercar de ministros que zelassem pelos interesses do reino. Agora, eram dois Gonçalves da Câmara. Por altura da deslocação do Rei a Coimbra, chega às mãos do P.e Luís Gonçalves da Câmara uma carta anónima contra si, o seu irmão e a Companhia, em que se reflete toda esta celeuma, aguçada com as diligências em torno do casamento do Rei, e em que se defrontavam vários intervenientes, sendo cada vez mais forte a campanha de descrédito contra o madeirense. O confessor privava cada vez mais com o Rei, chegando às três horas por sessão, o que provocava e atiçava os seus críticos. Numa das deslocações à Universidade, a receção pouco amistosa que o Rei recebeu, com uma forte pateada, deve-se em parte aos irmãos Câmara. Os dois madeirenses eram personagens centrais na troça a D. Sebastião difundida nomeadamente nos pasquins da cidade, em que se justificava o facto de o Rei não contrair matrimónio com o estar abarregado (amigado) com os dois irmãos. Não podemos esquecer que já há muitos anos a Universidade e a Companhia estavam envolvidas em grandes disputas, que cessariam com a assinatura de um contrato, em 1572. Este documento assegurava que a Universidade pagaria uma renda ao Colégio das Artes, entre outras prerrogativas conseguidas para a Companhia. A intervenção do madeirense foi fulcral para o processo, o que terá fomentado os movimentos opositores e críticos à sua figura. Sobre os matrimónios falhados do Monarca, interessa dissipar a maquinação criada para culpar os irmãos Câmara, difundida durante o reinado e ampliada nos séculos seguintes. Quando a esposa de Filipe II, Isabel de Valois, morreu, em 1568, seria natural que o Monarca desposasse a sua cunhada, Margarida. França enviou uma embaixada a Madrid, mas o Monarca de Castela mostrou-se pouco decidido no apoio à pretensão de Carlos IX, irmão de Margarida. Face a tão reservada resposta, o Rei de França buscou um enlace na corte portuguesa, o que agradou aos partidários do cardeal. A esse respeito, Fortunato cita um manuscrito da Biblioteca de Paris: “Martim Gonçalves da Câmara, e o Mestre seu irmão, […] foram de parecer que convinha muito ao reino de Portugal aquela aliança de parentesco com França” (ALMEIDA, 2003, 421 e 422). Tudo foi alterado quando Filipe II pediu a D. Sebastião que não aceitasse desposar a irmã do Rei francês. O Rei concordou e deixou ao seu primo o ónus da escolha da futura esposa. Estava combinado que D. Sebastião desposaria a arquiduquesa Isabel e Carlos IX a arquiduquesa Ana. Ambas eram filhas de Maximiliano, Imperador do Sacro-império Romano-Germânico e primo de Filipe II. A todos o arranjo pareceu bem e foi relatado que os irmãos Câmara concordavam com tal perspetiva. Tudo se alteraria, novamente, quando Filipe II decidia desposar Ana e ao Rei de França era deixada a prometida do Rei português, Isabel, sendo os matrimónios concretizados. D. Sebastião desposaria Margarida de Valois, que tinha sido por ele recusada a mando do seu primo. Fortunato volta a referir documentação coeva, indicando que o Rei português não respondeu, por conselho dos irmãos Câmara, a três cartas sobre a mudança de planos que Filipe II lhe remeteu. Além de Filipe II alegar que se tinha visto forçado a dar D. Isabel ao Rei de França, em prol do cristianismo, refere que se comprometeu, com o cardeal de Guise, em relação ao casamento de D. Sebastião com Margarida de Valois (CRUZ, 2012, 152-153). Tal ingerência, em favor do poder de Castela e do Sacro-Império nos negócios portugueses, provocou duras críticas até da Rainha D. Catarina, castelhana de nascimento. Quando D. Sebastião recusa o casamento proposto por Filipe II, os inimigos do P.e Luís Gonçalves da Câmara começam a imputar-lhe a culpa pela rejeição do Rei, esquecendo ou minimizando a intromissão do Monarca de Castela. Sobre as acusações recebidas, o padre madeirense responde ao geral, recordando o que já tinha manifestado aquando da sua escolha para mestre do Rei: “Dei por escrito muitas causas, para não dever tomar este cargo, e uma delas era que todas as coisas que não fossem bem recebidas do mundo, a culpa delas se daria aos que andassem junto do rei” (ARSI, Lus. n.º 64, fls. 98-99v.). Ao contrário do que os seus críticos pregavam, para o Jesuíta os grandes problemas enfrentados pelo Rei estavam na sua política reformadora, conforme atestava a sua missiva ao geral em Roma. Tais reformas causavam ao Monarca fortes dissabores, agravados pela derradeira ameaça de D. Catarina se retirar para Castela, de acordo com o pedido feito pelo seu sobrinho. O madeirense, já muito doente e quase cego, referiu ao geral o seu cansaço e a sua vontade de permanecer retirado no Colégio de Coimbra por mais algum tempo, o que teria feito, não fosse a insistência do Rei para que regressasse à corte. Ainda nesse ano, o Jesuíta Miguel Torres foi dispensado do seu ofício de confessor, alegadamente pela influência nociva que Gonçalves da Câmara teve sobre ele. D. Catarina escreveu ao seu sobrinho, a 8 de junho de 1571, descrevendo um suposto complô que os três confessores jesuítas da corte desenvolveram para criar a discórdia entre o Rei, o seu tio-avô e ela própria. No mesmo dia, a Rainha enviou uma missiva ao Papa sobre a necessidade do matrimónio real para libertar o seu neto da sujeição aos irmãos Câmara. A relativa acalmia nas relações entre o neto e a avó, após uma breve reaproximação, foi interrompida quando o Rei se recusou a cumprir os seus desejos, que incluíam o afastamento dos irmãos Câmara e do próprio cardeal, e quando esses pedidos vieram a público. Foi notório o apoio de Filipe II, que escreveu à sua tia indicando a premência em afastar Gonçalves da Câmara do Rei, sendo necessário reunir esforços e apoiantes, entre os quais o geral e o próprio Papa, para alcançar esse objetivo. Em 1571, a Rainha D. Catarina escreve ao Papa Pio V, atribuindo ao madeirense a culpa pelo ódio generalizado à Companhia. A colagem ao poder e a alegada intromissão nos assuntos políticos estão entre as críticas dirigidas aos padres inacianos, conforme é manifesto na missiva da Rainha ao Papa: “Não posso deixar de sentir o ódio que também por esta causa têm geralmente à Companhia, sendo a culpa particular deste padre [Luís Gonçalves da Câmara]” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 625). E a contestação ao poder dos irmãos Câmara, segundo alguns dos seus detratores desse período, também está patente n’Os Lusíadas: “Nem Camenas, também, cuideis que cante/Quem, com hábito honesto e grave, veio,/Por contentar o Rei no ofício novo,/A despir e roubar o pobre povo” (VII, 85, 5-8, it. nosso); “Nem tão-pouco direi que tome tanto/Em grosso a consciência limpa e certa,/Que se enleve num pobre e humilde manto/Onde a ambição acaso ande encoberta” (VIII, 55, 1-4, it. nosso). Uma interpretação coeva, combatida por alguns, mas que encontra suporte até no séc. XXI, nomeadamente em Vítor Aguiar e Silva. Apesar de a carta da Rainha ao Sumo Pontífice não ter tido o efeito esperado, o geral, seu amigo de infância, visitou, no final de 1571, as províncias espanhola e portuguesa, também movido pelos seus apelos, acompanhado do legado papal, o cardeal Alexandrino, que no futuro seria um fortíssimo crítico da presença dos irmãos Câmara na corte. Quando o P.e Francisco de Borja chegou a Madrid, D. Catarina enviou D. Juan de Borja, embaixador espanhol em Lisboa e filho do geral, para que ele pedisse a Filipe II que o P.e Luís Gonçalves da Câmara fosse chamado pelo geral, o que o Rei de Castela se recusou a fazer. Já em Portugal, o P.e Borja pede paciência à Rainha e promete enviar o madeirense para Roma, o que nunca se chegou a concretizar. O padre geral só chegaria a Roma a 28 de setembro de 1572 e faleceria passados três dias. Ainda durante a visita do legado papal a Portugal, o Jesuíta madeirense escreve a D. Sebastião, reiterando o cansaço já manifestado e a vontade de se retirar: “Parece que não me querem já matar, ando, todavia, sem gosto algum, ainda que trabalho pelo encobrir o mais que posso” (SERRÃO, 1987, 218). Com a morte de Francisco de Borja, a 30 de setembro de 1572, a Rainha vê mais uma oportunidade para afastar, definitivamente, Câmara do Rei. Se o seu jogo de influências fosse vitorioso, conseguiria que o madeirense fosse eleito padre geral e rumasse, permanentemente, para Roma. Na congregação provincial celebrada em Évora durante o mês de dezembro foi debatida a antiga polémica envolvendo os primos Gonçalves da Câmara e Leão Henriques: “Se conviria que os dois […] se depusessem o cargo de confessores […] o que perturbava o sossego da vida regular, e desdizia inteiramente de nosso Instituto” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 388). A congregação conclui que os confessores não deveriam renunciar, ignorando as “murmurações do povo ignorante ou de homens sem religião” (Id., Ibid., 388). Para possível ressentimento do P.e Gonçalves da Câmara, e desespero da Rainha, D. Sebastião não autoriza a ida do padre jesuíta à terceira congregação geral, que elegeu o novo líder da Ordem, apesar de o madeirense ter sido um dos delegados designados para esse efeito na congregação provincial. A posição defendida pela comitiva portuguesa, liderada pelo seu primo, o P.e Leão Henriques, na qualidade de vice-provincial, era a de que o próximo padre geral não fosse castelhano nem cristão-novo, numa clara oposição à eleição do P.e Juan Afonso de Polanco, homem de confiança dos três anteriores gerais, que se enquadrava nesse retrato. Aliás, essa posição foi apoiada pelo Rei e pelo seu tio-avô, que remeteram missivas ao Papa Gregório XIII, a Filipe II e à congregação, nesse sentido. A congregação geral, que reuniu 47 religiosos da Companhia, acabou por ser favorável aos desejos dos Portugueses, apoiados pelos Italianos, defensores do processo de “des-Hispanización [desispanização]” (CASTRO, 2012, 199), e elegeu o P.e Everardo Mercuriano, belga, com 27 votos, a 22 de abril de 1573. No início de 1574, a 11 de janeiro, um acontecimento perturbará e marcará o Rei: o P.e Luís Gonçalves da Câmara, alegando motivos de saúde e espirituais, parte para Évora, abandonando a corte. Alguns meses depois, Câmara remeteu uma missiva ao geral, referindo que se sentira preso nos seus 14 anos de serviço a D. Sebastião e que já não possuía “forças espirituais nem corporais para sofrer o cativeiro” (ARSI, Lus., n.º 65, 208). Estava-se, pois, perante um homem com grandes dotes intelectuais, descrito como feio, cego de um olho e extremamente gago, de “presença bruta” (CRUZ, 2012, 81), e completamente esgotado. Apesar dos constantes pedidos para se afastar da corte, nunca tal tinha sido autorizado, mas agora, logo após a eleição do novo geral, o seu desejo seria concretizado. Outra possibilidade é a de que o afastamento do preceptor não corresponderia a um verdadeiro desejo seu, mas sim a uma imposição por pressão da corte, em consequência de desgaste, ou mesmo pelo retorno de um antigo inimigo. Em abono desta interpretação, refira-se um acontecimento ocorrido no ano anterior. Em setembro de 1573, o P.e Simão Rodrigues, afastado há várias décadas da província portuguesa, num processo em que Câmara teve um papel decisivo, tinha regressado ao reino, motivado e legitimado pela missão de que o novo geral o incumbira, no sentido de o informar sobre o antigo desacordo existente na província. Continuavam a existir duas fações: na sua ala mais conservadora e rigorosa, destacava-se a influência do padre madeirense; na outra, liderava o P.e Manuel Rodrigues, que seria eleito padre provincial do reino. Em Évora, em consonância com o pedido feito pelo geral da Companhia, e também pelo reitor do Colégio, o madeirense Manuel Álvares, o P.e Gonçalves da Câmara retoma os trabalhos do Memorial, interrompido há quase duas décadas. Conclui a sua redação por volta da Festa de Pentecostes de 1574. Apesar de fisicamente afastado da corte, a sua influência não se desvaneceu com facilidade. Afinal, o Jesuíta Maurício Serpe, que o substituiu como confessor do Rei, acompanhara o madeirense enquanto professor de Latim e responsável pelos moços fidalgos companheiros do Rei. A posição de Câmara era contrária à incursão real em territórios africanos e coadunava-se com a política do cardeal D. Henrique, que defendia que o matrimónio deveria preceder qualquer campanha militar, para garantir que a linha de sucessão do trono não ficasse comprometida. Recolhido em Évora, o Jesuíta desloca-se ao paço da Boa Vista em Lisboa, por ordem do provincial, para tentar demover o Rei da sua incursão armada em África. Apesar das acusações de controlo do P.e Gonçalves da Câmara sobre o Monarca, o madeirense não terá sucesso na sua missão. Em 1574, o P.e Simão Rodrigues escreve ao geral, a partir de Coimbra, retratando Câmara como um homem “excessivamente caprichoso, […] eficacíssimo em suas fantasias e apreensões”. Se a sua vontade não fosse atendida, tinha “desmaios, ânsias e dor de coração” (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 87). O tempo nunca sanaria as feridas das lutas do passado. No mesmo ano, D. Sebastião segue para África, apesar da forte objeção da sua avó, do seu tio-avô e do próprio Gonçalves da Câmara. O madeirense ruma para Coimbra, onde o seu estado de saúde se agrava. Escreve ao Rei, pedindo o seu regresso, o que acontece em novembro, quando o Jesuíta, já em Santo Antão, recebe a visita do Monarca. Entre as cartas enviadas a D. Sebastião, apelando ao seu retorno, nenhuma teve tanto impacto, e prova disso poderá ser o facto de a visita real acontecer no dia seguinte à atracagem em Lisboa. Nos meses posteriores, a sua saúde degrada-se irremediavelmente, até que, a 15 de março de 1575, às 04:30 da manhã, morre em Lisboa. Um conterrâneo seu, o P.e Manuel Álvares, vice-reitor do Colégio, dá a notícia da sua morte a Roma. Durante os últimos meses de vida, o seu estado de saúde esteve sob os cuidados do seu “companheiro inseparável”, o P.e Amador Rebelo. Certo é que a sua morte provocou grande consternação no Rei, que se fechou no quarto durante três dias, recusando falar. Depois, encerrou-se no mosteiro de N.ª Sr.ª do Espinheiro por cerca de mais 10 dias. “Que quereis que faça, se eu não conheci outro pai nem outra mãe, senão ao P.e Luís Gonçalves da Câmara”, terão sido, segundo o P.e António Franco, as palavras com que o Rei terá exprimido o seu desgosto (FRANCO, 1930, 148). O Monarca não demonstrou tamanha comoção com a morte da sua mãe, nem a demonstraria com a da avó ou a da tia, declarando, em jeito de epitáfio, que “ninguém sabia quanto devia ao padre Luís Gonçalves da Câmara, senão ele só” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 270-271). Em Lisboa, o Rei visitou a sepultura do madeirense no Colégio de S.to Antão e assistiu a uma missa em sua memória. Em maio de 1576, o seu irmão, Martim Gonçalves da Câmara, abandonou a corte e os cargos que desempenhava, numa posição que já estava muito desgastada. Em 1578, a morte de D. Sebastião e a desastrosa missão africana, que acarretou a perda da independência, constituíram “um locus paradigmático utilizado de maneira recorrente pela literatura antijesuítica” (FRANCO, 1996, 1, 121). Essa crítica foi muito alimentada pelo poder, pelo protagonismo e pela influência dos irmãos Câmara. A sua influência e a sua posição na corte fomentaram o mito contra a Companhia, com vários autores a recorrerem à narrativa que lhes atribuía parte da responsabilidade (ou toda ela) pelo desastre de Alcácer-Quibir. Essas críticas foram potenciadas pela posição de destaque de outros Jesuítas que eram confessores na corte, o que, combinado com a política de apoio à Companhia, contribuiu para consolidar suspeitas e acusações. Para além de tudo o que o P.e Luís Gonçalves da Câmara atingiu em vida, os seus escritos perpetuaram e difundiram elementos únicos da biografia inaciana. A sua atuação despertou sentimentos antagónicos, nunca sendo indiferente aos seus companheiros, amigos e inimigos.   Luís Eduardo Nicolau (atualizado a 25.01.2017)

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caldeira, antónio manuel de sales

António Manuel de Sales Caldeira nasceu a 27 de janeiro de 1912, no Porto da Cruz. Filho de João Pedro Sales Caldeira e de Maria Ana Larica Sales Caldeira, casou-se com Rita de Acácio Silva Oliveira de Sales Caldeira, natural de Lisboa, com a qual teve três filhos: Maria Emília Oliveira Sales Caldeira, João Pedro Sales Caldeira e Rita de Acácia Sales Caldeira. Após a conclusão do liceu, Sales Caldeira matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde se licenciou com 23 anos. Foi subdelegado do Tribunal do Trabalho e posteriormente abriu banca de advogado, tendo muita clientela, primeiro na R. Gonçalves da Câmara, de onde transitou para a R. das Pretas n.º 7, e finalmente, na Rua João Tavira n.º 31-1.º. Além de ter sido consultor jurídico de várias empresas comerciais e industriais, esteve também ligado à política. Foi um dos fundadores do Partido Social Democrata (PSD) após o 25 de Abril, e à data da morte era presidente do Congresso Regional do PSD. Muito ligado ao desporto, ao qual dedicou um incontestável apoio, chegou a ser presidente do Clube Desportivo Nacional e do Club Sports Madeira. O Jornal da Madeira de 22 de dezembro de 1981, chega mesmo a referir que o Clube Desportivo Nacional lhe fica a dever dedicação ilimitada. Ainda relacionado com desporto, Luiz Peter Clode refere que António Manuel de Sales Caldeira foi o precursor do Rally da Madeira a nível Europeu. Faleceu no Funchal a 21 de dezembro de 1981, tendo sido sepultado no Cemitério de S. Martinho no dia 22 do mesmo mês. As participações do seu falecimento, no Diário de Notícias de 22 de dezembro de 1981, incluem as da família, do PSD, do grupo parlamentar do PSD na Assembleia Legislativa Regional, do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, da Assembleia Geral da Ordem dos Advogados, da Direção do Clube Sports Madeira e também das empregadas dos cabeleireiros Capucine, dos quais Sales Caldeira era proprietário. Já no Jornal da Madeira da mesma data pode ler-se um artigo que evidencia as qualidades de Sales Caldeira, descrevendo-o como uma figura bastante conhecida e prestigiada da advocacia madeirense, sendo um homem dinâmico e íntegro.       Cláudia Neves (atualizado a 25.02.2017)

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arquitetura do turismo terapêutico

A apologia do ameno clima madeirense, especialmente vocacionado para o tratamento de doenças pulmonares, corria pela Europa desde os finais do séc. XVIII. Escritores e poetas, assim como médicos e publicistas em geral, divulgam a Madeira como um sanatório natural e elogiam a sua temperatura, o espaço propício ao lazer e à contemplação da natureza. A instalação de doentes e das respetivas famílias ocorreu em quintas espalhadas pela encosta do Funchal e deu origem a uma primeira forma de turismo. Com o falecimento da princesa D. Maria Amélia de Bragança no Funchal, em 1853, a sua mãe decidiu instituir um hospício em homenagem à filha, que foi o primeiro sanatório levantado em Portugal e por concurso público. Palavras-chave: arquitetura; conflitos internacionais; hospitais; quintas madeirenses; sanatórios; turismo; urbanismo. A apologia do ameno clima madeirense, especialmente vocacionado para o tratamento de doenças pulmonares, corria pela Europa desde os finais do séc. XVIII. A tuberculose, doença que afetou todas as classes, levou a que, especialmente na época do inverno, a Madeira fosse procurada pelas classes mais abastadas, em vista de um melhor clima e, se possível, da almejada cura. Nem todos os médicos eram da mesma opinião, tendo, inclusivamente, havido acesa polémica entre defensores e detratores do clima da Madeira para os tuberculosos. Para estes doentes, no entanto, por vezes quase em fases terminais, qualquer hipótese era sempre uma esperança a não desperdiçar. Escritores e poetas, assim como publicistas em geral, divulgam o nome da Madeira como um sanatório natural, enaltecendo a fama e a excelência da temperatura, do espaço propício ao lazer e à contemplação da natureza, incitando a ida até à Ilha dos doentes provenientes dos rigorosos climas europeus. Alguns destes doentes, inclusivamente, também se dedicaram a registar as suas impressões em diários, devendo um dos mais interessantes ser o de Emily Shore (1819-1839), que com a família foi para a Madeira na esperança de ali recuperar a saúde, mas acabou por falecer no Funchal. A presença de doentes no Funchal é atestada em quase todos esses escritos, como nos de Isabella de França (1795-1880), entre 1853 e 1854, ou de lady Emmeline Stuart Wortley (1806-1855), na mesma altura, que refere, com alguma nostalgia e algum romantismo, reconhecer ao longe, de quando em vez e pelas ruas e jardins do Funchal (Quintas românticas madeirenses), um forasteiro de tez algo pálida e de andar arrastado – por certo, um tísico. Isabella de França, entre inúmeras descrições, quando se refere aos companheiros de viagem para a Madeira, a 23 de junho de 1853, enumera: “Além da menina Davis, formosa e rechonchuda, tínhamos por companheiros três rapazes, todos doentes. Um, de porte corretíssimo, achava-se realmente em estado desesperado, e de facto morreu na Madeira, durante o Inverno. Conforme nos informaram, era pessoa notável em Cambridge e levava consigo uma gatinha de três cores, nada feia. Outro, de estatura elevada, parecia ter-se esgotado a crescer, circunstância que aliás o não preocupava; filho de um comerciante de Londres, haviam-lhe aconselhado os médicos a viagem de ida e volta. O terceiro, nervoso, ou melhor, desequilibrado, não seria de mau aspeto se não fosse a barba crescida e o fez na cabeça. Os homens consideravam-no sensato, mas era tal a sua timidez que fugia o mais possível de mim e da pequena Davis: ou se refugiava no camarote ou escondia a cara num livro, quando vinha para a coberta” (FRANÇA, 1970, 40-41). A expressão “turismo terapêutico” tem sofrido alguma contestação, a partir do entendimento do turismo como atividade de viagem na procura do prazer e de uma cultura e vivência diferentes, de fuga à rotina e de exercício displicente de uma liberdade. O turista não pode assim ser confundido com um quase inválido, como era referido nos guias ingleses do séc. XIX; logo, o termo pode ser considerado como um perigoso equívoco. A verdade, no entanto, é que não é possível traçar uma fronteira clara entre os vários conceitos de turismo, como também não é possível, logo em relação à Idade Média, demarcar a diferenciação entre os peregrinos penitentes dos caminhos de Santiago e o turismo dito religioso que teve início, grosso moo, no séc. XX, mesclados, ambos, dos perigos da jornada, do esforço, da perseverança e da capacidade de suportar a dor para alcançar a graça de chegar a um santuário. Aliás, prazer e dor encontram-se muitas vezes mesclados e, para se não ir mais longe, basta referir os percursos das levadas da Madeira e desportos considerados radicais. Face ao exposto, alargamos o âmbito do termo “turismo” a todo um leque de atividades programadas e que implicam serviços vários de transporte, alojamento e acompanhamento. Com algumas reservas, pois as fronteiras entre esse alargado campo de atividades não são facilmente demarcáveis, podemos englobar, nos inícios dessa atividade de prototurismo, ainda os projetos educacionais ligados ao Grand Tour, tal como as viagens científicas dos naturalistas dos sécs. XVIII e XIX, e o chamado turismo terapêutico, tal como o turismo de lazer, que lhe sucede. O alojamento do turismo terapêutico A presença de elementos enfermos que procuravam o ameno clima para os seus males, especialmente para as doenças pulmonares contraídas nas poluídas cidades do Norte da Europa, somente ocorre em número significativo com as condições advindas das ocupações inglesas de 1801-1802 e 1807-1814, da ampliação do cemitério britânico e da construção da igreja anglicana. Até à déc. de 20 do séc. XIX, essa presença fora perfeitamente pontual e integrada num outro quadro de viagem, que quase não pressupunha estadia, salvo a estritamente necessária para o reabastecimento e a manutenção das embarcações. Excetuam-se aqui as chamadas viagens científicas dos meados e finais do séc. XVIII (Viagens científicas), na procura, documentação e recolha de novas espécies, que, de alguma forma, criaram também as condições para o turismo terapêutico, com a constituição de coleções botânicas que informaram decididamente as chamadas quintas madeirenses. As quintas madeirenses foram, assim, dada a sua localização periférica em relação à cidade e o facto de serem constituídas por casa de habitação com jardim e, não poucas vezes, também com parque, os locais ideais para essa instalação mais ou menos prolongada. As primeiras informações sobre as quintas madeirenses datam dos meados do séc. XVI, dadas pelo conde Giúlio Landi (c. 1510-1578), que esteve na Madeira na déc. de 30: residências temporárias de certa importância, utilizadas pelos nobres e grandes comerciantes para aí usufruírem de ares mais temperados, eram então, essencialmente, unidades agrícolas. Em 1601, no entanto, Jean Mocquet (1575-1617) já denomina estas habitações da encosta da cidade como “maisons de plaisance” (MOCQUET, 1617, 50), e idêntica referência lhes foi feita pelo Rev. John Ovington (1653-1731), que passou pelo Funchal a caminho de Suratt, em 1689. O reverendo anglicano esteve numa dessas quintas, então já habitada por comerciantes britânicos, e escreveu que ali “a Natureza apresentava-se como um cenário de felicidade e amor, e impunha-se com toda a sua pompa, com todas as delícias e belezas campestres” (OVINGTON, 1696, 14-15).   Senhora doente acompanhada por familiares 1890 Sendo os meses de verão bastante quentes no Funchal, todas as famílias de algumas posses, nessa quadra, se retiravam para a encosta, pelos vistos já nos sécs. XVI e XVII. Em meados do séc. XVIII também o governador e capitão-general fazia o mesmo, chegando o Gov. D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1726-1798) a propor para Lisboa a aquisição da quinta de Charles Murray (c. 1730-1801), no Monte, em 1788. Desde os finais do séc. XVI, aliás, também o faziam os padres da Companhia de Jesus, usando, entre outras, a Qt. do Cardo, em Santo António, e a Qt. do Pico, junto à fortaleza de S. João, onde, nos meses de verão dos finais do séc. XVIII, também habitaram os governadores generais. As quintas passaram assim a bens de aluguer, onde era muitas vezes incluído o recheio e, inclusivamente, o pessoal, embora na maior parte dos casos se optasse depois por escolher o mesmo. As quintas de aluguer mantiveram a tipologia da arquitetura vernácula madeirense, muitas vezes com o edifício a articular-se com uma capela, sobrevivência das iniciais residências vinculadas, como na Qt. das Angústias, posteriormente Quinta Vigia ou integradas na propriedade e com acesso exterior, como na Qt. das Cruzes. A propriedade era quase sempre murada, mantendo uma certa privacidade, e dotada ainda de mirante, dado o escalonamento das encostas, tal como de casinhas de prazer, essencialmente construídas com fasquiados de madeira, chamados rotulados ou muxarabis, que permitiam observar o que se passava no exterior, mas reservando a privacidade dos utentes. A segunda metade do séc. XIX beneficiou desta corrente de turismo terapêutico, pois os outros destinos concorrentes, como o Sul da França, a Itália e a Grécia, estavam nesses anos bloqueados pelas guerras liberais europeias. Os jornais da época em Londres, como The Illustred London News, de 1866, elegiam assim a Madeira como destino ideal das famílias inglesas, graças à sua muito especial natureza, ao seu clima e às comodidades que aí se podiam encontrar, colocando os seus leitores ao corrente dos sucessos alcançados por outros conterrâneos. Enquanto destino, a Madeira era mesmo recomendada por diversos hospitais de renome, e os resultados obtidos eram, na generalidade, muito satisfatórios. Em algumas famílias inglesas parece ter sido tradição, entre os que apresentavam debilidades físicas, a passagem do inverno na Madeira, como foi o caso de lady Susan Harriet Vernon Harcourt (1824-1894), filha do 2.º conde de Sheffield (1802-1876), cujo nome de solteira era Susan Harriet Holroyd, e que se casou com Edward William Vernon Harcourt (1825-1891) em agosto de 1849. No ano anterior teria já acompanhado o noivo à Madeira, com a mãe, a condessa de Sheffield, a quem depois dedica o seu álbum de litografias da Madeira. Edward já havia também estado na Madeira, de outubro de 1847 a abril de 1848; de novembro de 1848 a maio de 1849; de novembro 1848 a maio de 1849; de novembro de 1849 a maio de 1850; e de novembro de 1850 a abril de 1851. Da família Harcourt, ainda ali havia estado o pai, o Rev. William Vernon Harcourt (1789-1871), em data anterior, e, no inverno de 1847 para 1848, o outro filho, William George Granville Venables Vernon Harcourt (1827-1904), posteriormente ministro da Rainha Vitória (1819-1901) e das figuras políticas determinantes do seu tempo, tal como, depois, o seu filho homónimo, William (1827-1904). Algumas quintas remontam aos sécs. XVII e XVIII, mas, na sua grande maioria, são construções totalmente reformuladas na época de Oitocentos e algumas construídas mesmo de raiz, logicamente ao gosto romântico internacional, dentro do cariz neoclássico divulgado pelos Ingleses, mas inspirado muito especialmente na arquitetura clássica italiana. Para tal contribuiu, entre outros, o arquiteto paisagista John Claudius Loudon (1783-1843), com a sua obra An Encyclopædia of Cottage, Farm, and Villa Architecture and Furniture (1833), sucessivamente reeditada. A sua formação romântica é patente nos seus principais trabalhos, essencialmente virados para o arranjo paisagista dos cemitérios britânicos. O jardim foi assim uma das componentes da quinta de aluguer que mais marcada influência recebeu da cultura britânica. Mesmo os mais pequenos e moldados na tradição mediterrânica e insular dos socalcos sê-lo-ão à imagem da mentalidade romântica, de clareiras relvadas, fontanários e tanques decorados com pedra vulcânica, de percursos sinuosos povoados de pormenores arquitetónicos recuperados de outros edifícios, numa natureza moldada a pano de fundo da arquitetura, num dramatismo que estabelece a ligação entre os panoramas abissais, os cumes das montanhas e o horizonte longínquo do oceano. Aos jardins da Madeira coube ainda uma outra função: a terapêutica, pois era ao ar livre que os doentes pulmonares faziam o tratamento. Daí também a criação de um novo tipo de fenestração, dotado de varandas de sacada e de acesso a terraços com comandamento sobre os jardins e, inclusivamente, sobre a paisagem. Acresce que a cura de ares era também uma cura de paixões, o que justifica a relação que a casa passou a manter com o jardim, tal como com a paisagem circundante. Na quinta de aluguer oitocentista, o jardim foi assim tanto manifestação da alma romântica, quanto sistema e quadro essencial de tratamento para aquele tipo de doenças. A casa de habitação também se foi rapidamente adaptando a uma nova vivência e funcionalidade social. O piso térreo, inicialmente uma loja destinada aos produtos da lavoura, que na antiga casa rural funcionava como unidade de produção de apoio à família, desaparece progressivamente. A relação de salas e quartos com o exterior, cuidadosamente ajardinado, é então assegurada por uma ligação tão direta quanto possível, como na Qt. do Monte. As funções dos compartimentos interiores especializam-se, surgindo as salas de jantar, de estar, de jogos e a biblioteca. Diferenciam-se igualmente as áreas de serviço, reservadas aos empregados, ou ocupando o piso térreo ou passando para a parte posterior do edifício. As fachadas também se alteram, introduzindo-se novos corpos relevados e de planta semiesférica, exteriormente dotados de varanda corrida, como na reconstrução da residência da Qt. do Deão, levada a efeito por volta de 1825 pelo cônsul inglês George Stoddart (1795 – c. 1860).   No que respeita à arquitetura geral das novas quintas de aluguer, no entanto, poucas edificações seguiram de perto as villas de inspiração italiana difundidas pela bibliografia internacional. Pontualmente, no entanto, litografias como a do arquiteto galês Edward Jones (1796-1835), Athenian Villa, de 1834, podem ter circulado, mas um conjunto de circunstâncias de ordem social e económica fez com que quase todas essas novas construções ou reconstruções tivessem sido concebidas por mestres anónimos e locais: uma arquitetura sem arquitetos. A sua construção fez-se, assim, de acordo com saberes e tecnologias que mantiveram um elevado grau de imutabilidade ao longo do tempo. Nesse quadro, o modo de lavrar e assentar as cantarias, de erguer as paredes, de escolher a madeira para os sobrados, de armar os telhados e revesti-los a telha de meia cana, ou de calçar, a seixo basáltico rolado, os passeios dos jardins manteve-se (Empedrados madeirenses). É essa a razão por que a maioria das quintas de aluguer, sejam elas originárias do séc. XIX, XVIII, ou mesmo XVII, se apresenta como um conjunto de grande coerência morfológica. O aluguer de residência temporária recaía também, no entanto, sobre habitações urbanas, simples ou não, como aconteceu com inúmeros doentes, entre os quais se destacam algumas figuras importantes das letras portuguesas. Nos finais do séc. XIX, ainda passavam pela Madeira o escritor Júlio Dinis, pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871), que, na casa onde se instalou, na R. da Carreira, viria a iniciar e, depois, a concluir o seu romance Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871), e o poeta António Nobre (1867-1900), na mesma altura (ano de 1899) em que também se encontrava no Funchal o conde de Cascais, Manuel Domingos Xavier Teles da Gama (1840-1910), acompanhando os filhos Domingos e Constança Teles da Gama, igualmente afetados pela tuberculose. Entre muitos outros exemplos, em novembro de 1840, também ali esteve o poeta cego António Feliciano de Castilho (1800-1875), acompanhando o irmão, o cónego da Sé de Lisboa, Augusto Frederico de Castilho (1799-1840), em fase terminal de tuberculose; o Cón. Januário Vicente Camacho (1792-1872) colocou de imediato à disposição dos irmãos as casas da Penha de França, mas o cónego viria a falecer a 31 de dezembro desse ano, regressando o poeta a Lisboa a 9 de janeiro seguinte. O primeiro sanatório português Nos meados do ano de 1852, em agosto, foi a vez de se deslocar para a Madeira a Imperatriz-viúva do Brasil, D. Amélia de Beauharnais (1812-1873), irmã do príncipe Maximiliano de Leuchtenberg (1817-1852), que ali havia estado um ano e pouco antes. A ex-Imperatriz vinha acompanhada da sua filha, a princesa D. Maria Amélia (1831-1853), última filha do malogrado Imperador D. Pedro (1798-1834). A princesa estaria muito doente e, segundo o conselho dos seus médicos, o ameno clima da Madeira poderia ser uma das suas esperanças de recuperação. O Gov. José Silvestre Ribeiro (1807-1891) (Ribeiro, José Silvestre) preparou cuidadosamente a receção da princesa e da mãe, que ficaram instaladas na antiga Qt. das Angústias, onde havia estado o tio pouco tempo antes. As condições de saúde da princesa, contudo, pioraram nesse inverno, vindo a falecer na madrugada do dia 4 de fevereiro de 1853. Em sua memória, a ex-Imperatriz mandou levantar o Hospício Princesa D. Maria Amélia – pedindo autorização à sobrinha, a Rainha D. Maria II de Portugal (1819-1853), por carta de 13 de abril desse ano, recebida a 4 de julho seguinte –, que provisoriamente inaugurou na R. do Castanheiro, a 10 desse mesmo mês, num prédio do morgado António Caetano Moniz de Aragão, nos princípios do séc. XXI ocupado por uma unidade hoteleira. A primeira pedra das obras do futuro Hospício teve lugar três anos depois, a 4 de fevereiro de 1856, quase em frente da quinta onde falecera a princesa. A ex-Imperatriz D. Amélia e a filha tinham-se feito acompanhar de um médico pessoal, o Dr. Francisco António Barral (1801-1878), médico pela Faculdade de Medicina da Universidade de Paris, professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, que nessa época ocupava o cargo de presidente da Sociedade das Ciências Médicas. Em 1849 já tinha sido encarregado de se deslocar a França e a Inglaterra para contactar ali a montagem dos serviços médicos e, em 1851, fez parte da comissão de reforma do serviço hospitalar em Lisboa, tendo assim sido incumbido de supervisionar todo o processo de montagem do futuro Hospício. A direção clínica da instituição foi entregue ao Dr. António da Luz Pita (1802-1870) (Pita, Dr. António da Luz), formado pela Universidade de Montpellier, em França, que exercera medicina em Gibraltar, tendo passaporte britânico, porventura o mais habilitado clínico então no Funchal, e lente da Escola Médico-Cirúrgica. Foi este clínico o encarregado da aquisição do terreno, de que se tomou posse a 24 de agosto de 1855, embora a escolha tenha sido da responsabilidade do Dr. Barral. O terreno escolhido era muito próximo da antiga Qt. das Angústias, numa área considerada salubre e segura, numa zona ligeiramente elevada em relação à cidade e com muito boa exposição solar, sobre a margem poente da ribeira de S. João, mas a uma cota bem elevada, o que colocava o futuro edifício em segurança face às possíveis cheias daquela ribeira. Confinava para poente com a Casa das Angústias, onde desde 1847 funcionava o Asilo de Mendicidade. O terreno encontrava-se bem afastado das zonas residenciais da cidade e, embora confinante com o então cemitério da Santa Casa da Misericórdia do Funchal (Cemitério das Angústias), dado o futuro desenvolvimento da cidade, entendia o Dr. Barral que, num curto espaço de tempo, haveria de ser relocalizado, embora tal só viesse a acontecer em 1939-1940, quase 100 anos depois. O projeto viria a ser elaborado em Londres, mediante concurso, tendo assim sido, em princípio, a primeira edificação portuguesa a ser feita mediante concurso internacional. O concurso ocorreu em julho de 1855, em Londres, tendo sido selecionado o projeto apresentado pelo Arqt. Edward Buckton Lamb (1805-1869). O programa teria sido fornecido pelo Dr. Barral, de acordo com dados já recolhidos em Londres, e, por certo, com o apoio dos seus contactos clínicos naquela cidade, onde deveriam estar elementos do Hospital de Brompton (1849), para o qual trabalhara o Arqt. Lamb, sendo da sua autoria a capela do mesmo Hospital. Edward Lamb trabalhou por vezes em parceria com o seu colega Frederik John Francis (1818-1896), sendo de ambos a ampliação do Hospital de Brompton. Em 1850, Lamb desenharia o primeiro sanatório inglês, o Royal National Sanatorium for Diseases of The Chest, em Bournemouth, no Sul de Inglaterra. O Arqt. Edward Buckton Lamb, ao que se sabe, nunca se deslocou ao Funchal, tendo sido logo assente que a obra seria dirigida pelo Arqt. João Figueiroa de Freitas e Albuquerque (c. 1820-1867), que acompanhara o pai, o coronel de milícias João Agostinho de Brito Freitas Figueiroa de Albuquerque (1793-1862), a Londres, quando o mesmo emigrara, face à ocupação absolutista da Madeira, em 1828, e de onde não regressaria, ali falecendo. João Figueiroa de Freitas e Albuquerque terá cursado Arquitetura em Londres e foi escolhido para a direção das obras do Hospício pela Imperatriz; usufruía de um ordenado mensal de 60$000 réis. Têm escrito alguns autores madeirenses que João Figueiroa introduziu uma série de alterações ao projeto de Lamb (NÓBREGA, 1867, p. 74 e SILVA e MENESES, 1998, II, p. 129), o que parece ser muito pouco provável. A direção da obra estava em Lisboa a cargo do Dr. Barral, que era consultado sobre todas as alterações, e não constam, nesta fase, grandes alterações ao projeto que tinha vindo de Londres, e que respeitava integralmente o programa elaborado pelo abalizado médico português e pelos seus consultores ingleses. O edifício teria sido um dos primeiros sanatórios construídos na Europa, datando o seu projeto da altura em que se começaram a levantar hospitais especializados, e o primeiro levantado em Portugal. Lamb projetou um edifício revivalista, inspirado nas grandes casas de estilo georgiano do séc. XVIII a princípios do séc. XIX, numa solução com provas dadas na arquitetura hospitalar inglesa e de que o Hospital de S.to António do Porto, de 1770, do arquiteto inglês John Carr (1723-1807), é também um exemplo. Segue a filosofia classificada por sir Henry Charles Burdett (1847-1920) como “corridor type” [tipo corredor] (MATOS, 2016, 317), ou seja, uma planta retangular estruturada por um longo e largo corredor central que atravessa todo o edifício, servindo também para os doentes se exercitarem quando as condições atmosféricas exteriores são desfavoráveis. O conjunto possui cave para arrecadações e dois pisos, com o piso térreo ligeiramente acima do solo, de forma a limitar, tanto quanto possível, o contacto com o solo e a humidade. O eixo do edifício é marcado com a entrada, inscrita num bloco com ligeiro avanço, com átrio interior, e de onde parte uma escada de dois lanços que dá acesso à capela no andar superior. Os blocos laterais também possuem ligeiro avanço, mas os terraços com varanda são acrescentos dos primeiros anos do séc. XX. O Hospício foi desenhado para 24 doentes de ambos os sexos, separados em pequenas enfermarias de seis lugares, devendo as mulheres ficar nas enfermarias do braço nascente e os homens na do braço poente. O edifício possuía ainda pequenas inovações para a época, tais como elevadores para transportar a comida até ao andar superior e um outro para transporte de roupa suja. A ocupação relativamente folgada dos espaços adveio da determinação médica de respeitar um metro cúbico de ar por doente, considerada regra no tratamento dos doentes tísicos. Mais tarde, esta estrutura veio a sofrer alguma contestação; considerada demasiado compacta, optou-se pela distribuição dos doentes por pavilhões mais ou menos independentes, delimitando assim as possibilidades de contágio. O protagonismo da alta e elegante capela central, exteriormente marcada pelas armas pessoais da ex-Imperatriz, deve ter sido imposição de D. Amélia, duquesa de Bragança, dado afastar-se da filosofia arquitetónica inglesa da época. A capela dedicada a N.ª S.ra das Dores, inclusivamente, teria sido paga pelo arquiduque Maximiliano de Habsburgo (1832-1867), que estaria, desde 1852, e aquando da sua visita a Lisboa, prometido à falecida princesa. O futuro Imperador do México encomendou mesmo um projeto neobizantino para a capela ao Arqt. Eduardo Van Del Null (1812-1868) e ao pintor Karl von Blaas (1815-1894), executado em Viena, em 1857, e que figura na coleção de Agostinho de Vasconcelos, no Funchal, mas o seu casamento com a princesa Carlota da Bélgica (1840-1927), a 27 de julho desse ano de 1857, levou a que não fosse executado, tendo o retábulo ali existente sido adquirido em Munique. Na sua segunda passagem pelo Funchal, no inverno de 1859, o futuro Imperador do México visitou o Hospício e, nas suas memórias, referia ser um edifício de estilo renascentista, cuja fachada lhe lembrava um castelo de Nápoles, tal como os hospitais ali construídos. Efetivamente, trata-se de um rígido desenho de inspiração clássica, simétrico e de paredes caiadas, rematado por frontão e cornijas, assente em embasamento de pedra aparente, o que parece contrariar as obras que fizera em Inglaterra e que tinham, então, suscitado alguma polémica. O arquiteto fora acusado de procurar o pitoresco com paredes de aparelho de pedra aparente, de certa rudeza e totalmente assimétricas, enquanto, no Hospício do Funchal, é muito mais classicista. Em causa podem estar as diretivas do encomendador, a duquesa de Bragança, e dos médicos que forneceram o programa, tal como, provavelmente, a execução local pelos mestres pedreiros madeirenses. As obras do Hospício estavam quase terminadas nos meados de 1859, altura em que se teria procedido aos arranjos finais e começado o jardim. Tudo leva a crer que o projeto inicial não comportaria jardim, pois a duquesa de Bragança, em 1860, enviou um projeto de jardim assinado por A. A. Gonçalves, que é quase a única peça que subsiste do arquivo do Hospício. Trata-se de um projeto romântico, aliás presente nos jardins de muitas das quintas madeirenses, com caminhos sinuosos, lagos e tanques, tal como com recantos de estadia e descanso. Em linhas gerais foi o projeto construído, mas ter-lhe-ia depois dado continuidade, nos finais do século, o padre alemão Ernesto João Schmitz (1845-1922). Proveniente da Congregação de S. Vicente de Paulo, onde entrara em 1864, estava pontualmente na Madeira 10 anos depois, como capelão do Hospício da Princesa D. Maria Amélia. Regressava em 1878, para ocupar o mesmo lugar, e, a partir de 27 de setembro de 1881, o de vice-reitor do Seminário. Naturalizado português, em 1898 era transferido para reitor do Seminário de Theux, na Bélgica, voltando à Madeira em 1902, onde só permaneceria até 1908, sendo então transferido para Jerusalém e falecendo à frente da direção do Hospício de S. Carlos, em Haifa, em 1922. A vida no Hospício não foi fácil nesses anos, tendo a entrada dos primeiros doentes ocorrido a 4 de fevereiro de 1862 e a inauguração oficial sido em junho seguinte, e tendo os doentes sido entregues às irmãs francesas da Congregação de S. Vicente de Paulo. Dada a polémica em torno do regresso das Ordens a Portugal, em breve teriam de sair do continente e, na sequência disso, a superiora em Paris mandaria regressar as freiras da Madeira, que se encontravam à frente do Hospício Princesa D. Maria Amélia. Regressariam, entretanto, em novembro de 1871, altura da reabertura do edifício com as Irmãs Vicentinas. D. Amélia veio a falecer em 1873, no palácio das Janelas Verdes, legando a administração do Hospício à sua irmã Josefina (1807-1876), Rainha da Suécia e da Noruega, alegando que administrações daquele tipo não deveriam ter maioria de elementos portugueses ou brasileiros. Desde então, passaram os reis da Suécia a ser os administradores daquela instituição. Volvidos 150 anos, a Rainha Sílvia Sommerlath (n. 1943) da Suécia, administradora titular, continua a ser de origem brasileira, tendo, a 3 de outubro de 1986, visitado pela primeira vez o Hospício. O Hospício Princesa D. Maria Amélia tornou-se, entretanto, emblemático dessa época, sendo visita obrigatória dos viajantes internacionais, e especialmente dos médicos. Em 1883, e.g., o explorador e médico de origem alemã Carl Passavant (1854-1887) aventurou-se numa viagem até Angola para recolher material para o seu doutoramento na Universidade de Basileia, na Suíça. Passando pelo Funchal com outros médicos, não deixou de visitar o Hospício e de levar uma fotografia do mesmo para publicar num trabalho que teria depois o título “Entre Bâle et Angola. Les voyages de Carl Passavant en Afrique de l’Ouest et Centrale en 1883-1885”. Com a sua morte prematura, o seu espólio foi legado ao Museu de Basileia, e os seus trabalhos só foram publicados em 2005, com a fotografia do Hospício. O projeto dos Sanatórios Alemães A estadia prolongada de famílias alemãs e russas, por vezes inteiras, na Madeira dos meados do séc. XIX, veio contribuir para a constituição de um clima cultural muito especial, que as famílias inglesas tinham sido incapazes de desenvolver. Em 1861, e.g., chegava à Madeira Sophie Pirch, princesa de Waxel e baronesa Pirch, acompanhada dos filhos Platão (1844-1914) e Nadechda, ambos doentes de tuberculose, trazendo ainda outra filha, Sophie Pirch, sua homónima. A família instalou-se na Qt. Sarmento e, para fazer face às suas despesas, a princesa deu lições de piano, e o filho lições de canto. Nadechda Waxel viria a falecer na Madeira, mas o irmão Platão recuperaria e a irmã Sophie também, e se casaria na Ilha com o ex-sacerdote José Carlos de Faria e Castro. Entretanto, também passaria pela Madeira o príncipe alemão Maximiliano de Leuchtenberg (1817-1852), irmão da ex-Imperatriz do Brasil, que se casara com uma das arquiduquesas da Rússia, com uma comitiva que teria incluído o pintor russo Karl Briullov (1799-1852) (Briullov, Karl), e, mais para os finais do século, fixar-se-ia na Madeira um dos mais importantes médicos e cientistas do seu tempo, o Dr. Paul Langerhans (1847-1888), autor da descoberta das células que têm o seu nome, tudo contribuindo para a divulgação da Madeira como destino terapêutico. A construção de estabelecimentos para o tratamento de doentes afetados pela tuberculose pulmonar assumia-se como uma necessidade desde os meados do séc. XIX e encontrava-se já então em curso na Madeira, através da fundação do Hospício Princesa D. Maria Amélia. Mas o projeto, no entanto, era perfeitamente pontual para a procura que a Ilha estava a ter como estância de saúde para classes abastadas. Impunha-se assim um projeto muito mais global, em que, a par de unidades hospitalares modernas, especializadas no atendimento de tuberculosos, se construíssem unidades hoteleiras para os acompanhantes dos mesmos doentes e, na mesma sequência, também locais de diversão. A questão da construção dos sanatórios em locais mais ou menos isolados e a certa altitude era assim indissociável da construção de hotéis de luxo e de casinos perto do mar, como era o caso do projeto da Madeira. Foi no seguimento da visita, à Madeira, de D. Carlos e D. Amélia (Visita Régia 1901) que se devem ter constituído as condições para que o príncipe alemão Frederick Charles de Hohenlohe Oehringen (1855-1910), em 1903, se propusesse levar a efeito, na Madeira, um vasto projeto de sanatórios marítimos e de altitude, alguns exclusivamente destinados a doentes ricos, logo, dotados dos anexos indispensáveis de jardins e parques, assim como de outros, destinados à população de menos recursos e que funcionavam como contrapartida da futura sociedade. O projeto foi aprovado pelo Governo português, mediante parecer da comissão executiva da Assistência Nacional aos Tuberculosos, e teria tido apoio da Rainha D. Amélia, amiga pessoal do príncipe alemão. A 22 de setembro de 1903, chegava ao Funchal o príncipe Hohenlohe, com uma vasta comitiva alemã e oficial portuguesa, sendo aí recebido, entre outros, pelo comendador Manuel Gonçalves (1867-1919) e o financeiro João Rodrigues Leitão, visconde de Cacongo (1843-1925) (Cacongo, visconde de), e saindo da Madeira a 3 de outubro seguinte. Em breve, a Sociedade dos Sanatórios da Madeira (Sociedade dos Sanatórios da Madeira) estava em marcha e, a 17 de março de 1904, chegava à Madeira nova delegação alemã, entre outros, com importantes financeiros de Berlim, e que, dentro de um igualmente curto espaço de tempo, liderava um importante projeto de turismo terapêutico, com a construção de várias unidades hospitalares, como foram o Hospital dos Marmeleiros, o sanatório popular, e o Sanatório de Santana, no Monte, já para classes mais abastadas, ambos servidos pelo elevador do Monte (Caminho de ferro do Monte), construído já, em parte, com capitais alemães. Para construção estavam planeados ainda os grandes hotéis marítimos, dependentes de futuras aquisições, a serem levantados nas áreas das quintas Lambert, Vigia, Pavão e Bianchi, praticamente as mesmas que deram lugar ao Casino Park Hotel, duas das quais logo adquiridas. Em breve o projeto avançava para outras vertentes, como eram as facilidades de navegação para o Funchal, prevendo a instalação de um depósito de carvão de pedra não só para os navios que iam servir os hotéis e sanatórios, mas também para a restante navegação. Previa-se, assim, retirar aos Ingleses esses monopólios, passando o Funchal a funcionar como nó de comunicações no Atlântico Norte, e.g., entre a América do Norte e a África do Sul, onde os Alemães já possuíam largos interesses. Estavam assim em causa os interesses ingleses na Madeira e, por acréscimo, mesmo no quadro geral do Atlântico Norte. De imediato os periódicos locais atacaram o projeto, incentivados pelas firmas Blandy e Cory, concessionárias da distribuição do carvão, assim como pelos irmãos Reid, proprietários do Reid’s Palace Hotel (Arquitetura do Turismo de Lazer). Foi protagonista deste ataque o Diário de Notícias do Funchal, já propriedade da Casa Blandy, levando a que a Companhia dos Sanatórios da Madeira tivesse mesmo de apoiar a fundação de um periódico diário, o Heraldo da Madeira, cuja redação foi entregue a Fernando Augusto da Silva (1863-1949) para a defesa dos interesses alemães. A guerra nos anos seguintes seria terrível, envolvendo as chancelarias de Londres e de Lisboa, mas também as de Berlim, e acabaria o Estado português por, mais uma vez, sair a perder, tendo de pagar uma pesada indemnização aos concessionários alemães. Nos anos seguintes, a tensão não deixou de aumentar, pois, logo nos inícios de 1905, se adaptava a antiga Qt. de Santana a hotel e sanatório de luxo, e se iniciava a construção de raiz do pequeno, mas luxuoso, Kurhotel Amélia, por certo em homenagem à Rainha de Portugal, que apoiara a Sociedade; e, a 24 de junho desse ano, procedia-se ao lançamento da primeira pedra do sanatório dos pobres, o Hospital dos Marmeleiros, no Monte, e começavam-se as negociações para a construção do projeto do grande Kurhotel sobre a baía do Funchal, a levantar no espaço das quintas Vigia e Bianchi. Os Alemães já haviam adquirido essas quintas, mas necessitavam ainda de adquirir a Qt. Pavão, ao lado, conseguindo, no entanto, os Ingleses a sua aquisição, por direito de opção de um dos anteriores locatários. Os Alemães exigem do Governo português a expropriação por utilidade pública, colocando Lisboa no meio de um grave incidente diplomático entre os interesses britânicos e alemães, tendo-se, inclusivamente, o príncipe Hohenlohe deslocado a Lisboa nos primeiros dias de novembro de 1905. Nunca a Madeira tinha sido tão falada na imprensa continental e internacional, alvitrando-se mesmo uma arbitragem internacional, através do recurso ao Tribunal de Haia, e falando-se abertamente numa indemnização.   [gallery order="DESC" columns="2" size="full" ids="14339,14342"] O luxuoso complexo do sanatório marítimo, que nunca se chegaria a construir, envolvia conjuntos de parques e jardins para exercícios ao ar livre, acesso a praia de banhos, vilas destinadas às famílias que quisessem viver separadamente, etc. O conjunto central apresentava planta em H, tendo quatro pisos de quartos e suites, todos eles dotados de instalações sanitárias privadas, dispostos de ambos os lados de um corredor central. No rés do chão e na semicave situavam-se as áreas sociais e de serviços, sendo o salão central verdadeiramente monumental. Tratava-se de uma verdadeira revolução nos padrões de conforto oferecido pela hotelaria da Ilha, com que nem os mais importantes hotéis então construídos poderiam competir. O sanatório de montanha destinado aos doentes pobres, que, por pressão da Rainha D. Amélia, havia sido a primeira construção a ser levantada, não se afastava muito das linhas gerais programáticas do Hospício, construído 50 anos antes, com a mesma filosofia de um corredor central servindo as enfermarias e os quartos. Ultrapassava-o, no entanto, na volumetria geral, apresentando quatro pisos compactos, sendo o inferior uma semicave, ocupado com os serviços, e estando os dois superiores dotados, a todo o comprimento, de uma arcaria que formava uma extensa varanda coberta e outra aberta. Não tinha a qualidade de construção aparente do Hospício, e estava marcado por uma característica austeridade alemã. Com a extinção da Sociedade e a indemnização paga, o enorme edifício veio a ser entregue ao Estado e acabou por receber o antigo Hospital de S.ta Isabel, da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, libertando aquele edifício para instalação da Junta Geral. Em 1905, também estava pronta a adaptação da antiga Q.ta de Santana, do outro lado do Monte, para receber um pequeno mas luxuoso sanatório, o Kurhaus Sant’Ana, enquanto não estava pronto o luxuoso Sanatório Palácio-Hotel, que a Companhia dos Sanatórios tencionava levantar nas imediações. A residência da antiga quinta deve ter sido então dotada de alpendres, dos quais só ficaram fotografias. Desocupada, nos meados do século veio a sofrer várias alterações para receber a Escola Superior de Enfermagem de S. José de Cluny. O luxuoso Kurhotel Amélia, que chegou a ser construído, total e luxuosamente equipado, ocupou o espaço logo acima da antiga Qt. de Santana, e acusava, na sua arquitetura, a influência da secessão vienense, que à época também se fazia sentir na Alemanha. Com o seu encerramento, veio a perder todo o recheio, que porventura nunca chegou a ser utilizado, podendo ter restado um serviço de cristofle, de grande dimensão, existente no palácio de S. Lourenço, para além de algumas fotografias, raras. O que restava do antigo edifício foi demolido, em 1941, para dar lugar ao Preventório de S.ta Isabel e Sanatório Dr. João de Almada (1874-1942) projetado pelo Arqt. Carlos Ramos (1897-1969), que, entre 1953 e 1958, seria ampliado, então por iniciativa do Dr. Almada e do genro, o Dr. Agostinho Cardoso (1908-1979). A arquitetura do turismo terapêutico representou, através da construção do Hospício Princesa D. Amélia, uma profunda revolução na área do tratamento da tuberculose, tendo sido aquele o primeiro sanatório construído em Portugal e, ao que saibamos, o primeiro edifício a ser levantado mediante concurso internacional. O megaprojeto da Sociedade dos Sanatórios da Madeira gorou-se, mas deixou na Madeira o edifício que permitiu, algumas décadas depois, transferir o velho Hospital de S.ta Isabel, da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, do centro da cidade, e os pequenos sanatórios da freguesia do Monte serviram de base para a Escola Superior de Enfermagem e para o Sanatório Dr. João de Almada, uma peça notável da arquitetura do Estado Novo.   Rui Carita (atualizado a 22.02.2017)

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