câmara, maria celina sauvayre da
A escritora Maria Celina Sauvayre da Câmara, filha de João Sauvayre da Câmara e de Matilde Lúcia de Sant’Ana e Vasconcelos moniz de Bettencourt, nasceu no Funchal, na freguesia de Santa Luzia, a 1 de setembro de 1856, e faleceu em Lisboa, em 1929. A data de nascimento levantou nos estudiosos algumas dúvidas, já que as informações fornecidas por diversos investigadores ao longo dos tempos não encontravam confirmação nos documentos de registo da época. autores como o visconde do Porto da Cruz, Alfredo de Freitas Branco (1890-1962), em Notas e Comentários para a História Literária da Madeira, bem como Fernando Augusto da Silva e Carlos Meneses de Azevedo, no volume I do Elucidário Madeirense, situam o nascimento da escritora em 1857, indicando os últimos a data de 1 de setembro. No entanto, no registo paroquial dos batismos da Sé, nesse ano, encontra-se apenas a informação sobre o nascimento, a 9 de setembro, de uma sua irmã, Maria Matilde. Já na paróquia de São Pedro, no ano de 1858, registou-se o batismo de Maria da Graça. Em 1864, nasce Maria das Dores, e, em 1868, João. Matilde Olímpia, a mais nova das irmãs, como aparece referenciado em algumas notícias de jornais da época, nasce em 1871. Tendo os pais contraído matrimónio em 1854, e considerando a ligação privilegiada que Maria Celina Sauvayre da Câmara tem com a avó, a viscondessa das Nogueiras, era provável que fosse uma das irmãs mais velhas. Encontra-se, de facto, a notícia do seu batismo no registo paroquial de Santa Luzia, e não nos registos paroquiais da Sé ou de São Pedro, nos quais estão lavradas as notícias dos batismos dos seus irmãos.
Proveniente de uma família da aristocracia funchalense, cuja história se liga ao panorama literário e cultural da Ilha, a autora cresce num ambiente letrado, pautado por uma educação moderna, atenta à literatura e às artes. Neta da escritora madeirense Matilde de Sant’Ana e de Vasconcelos (1805-1888), a viscondessa das Nogueiras, que publicou, em 1862, Diálogos entre Uma Avó e Suas Netas, escolhido pelo Conselho Superior de Instrução Pública para uso nas escolas, e que foi a primeira senhora a escrever para o Almanaque Luso-Brasileiro de Lembranças, como se pode comprovar pelo estudo levado a cabo por Vania Chaves e Isabel Lousada (2014), Maria Celina teve o privilégio de privar com uma das mulheres mais notáveis do séc. XIX da Madeira. Profunda conhecedora das línguas inglesa e francesa, a viscondessa das Nogueiras traduziu Lamartine para português e foi autora de uma retroversão para francês de Eurico, O Presbítero, de Alexandre Herculano. O visconde do Porto da Cruz escreveu, nas suas Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (vol. II), que a viscondessa tinha sido uma das figuras mais proeminentes da intelectualidade portuguesa do séc. XIX, atribuindo-lhe qualidades que a distinguiam no cenário literário da época.
Bulhão Pato – amigo de Jacinto Augusto de Sant’Anna e Vasconcelos, filho da escritora e tio de Maria Celina – conta, nas suas Memórias, a visita que fez à viscondessa, referindo as suas qualidades precisamente como escritora: “compunha versos, admiráveis de mimo e sentimento. Escrevia prosa adorável. Num meio mais largo teria sido uma escritora de primeira ordem” (PATO, 1894, 279). No mesmo sentido se dirigem as palavras de Alberto F. Gomes, que a considerou um espírito superior e uma mulher pouco vulgar para a época e para o meio, dando “exemplo de estreito contacto com o público e de estímulo às senhoras que escreviam nessa época” (GOMES, 1953, 20).
Responsável pela educação nas letras das netas, a quem dedica o volume dos Diálogos, a viscondessa contribuía com composições poéticas para os periódicos da época, não descurando, como afirma numa das suas poesias, o papel de educadora em prol do de poetisa. Esta posição explica o cuidado que teve na instrução das netas e a forte impressão que deixou em Maria Celina.
Na família da escritora não era só a avó a ter uma forte propensão para as letras: o tio Jacinto Augusto de Sant’Anna e Vasconcelos era poeta, autor de um livro de versos prefaciado por Latino Coelho, “com muito aplauso” (PATO, 1894, 278), e fazia parte do círculo ao qual pertenciam, em Lisboa, Mendes Leal, A. Pedro Lopes de Mendonça, José Maria d’Andrade Ferreira, Luiz de Vasconcelos, António Correia Herédia e Bulhão Pato. Também a sua tia-avó, Maria do Monte de Sant’Ana e de Vasconcelos, irmã do visconde das Nogueiras, colaborava na imprensa, mantinha um encontro regular de letrados em sua casa e dedicava-se à escrita, tendo publicado obras na área do romance histórico.
A irmã mais nova de Maria Celina, Matilde Olímpia, destacou-se como compositora, poetisa e autora de comédia. Aquando da visita à Madeira dos Reis D. Carlos e D. Amélia, em 1901, presenteia-os com Morto à Força, comédia que é representada no Teatro D. Maria Pia (sala cuja construção tinha sido iniciada com o apoio de João Sauvayre da Câmara, quando este fazia parte do executivo camarário), e cujos atores foram a própria autora e uma das irmãs, Maria das Dores, além de várias figuras da elite social madeirense.
Maria Celina obteve considerável notoriedade no meio social e cultural português, como comprovam as notícias publicadas no Diário Illustrado, de Lisboa, na secção “High-Life”, que dão conta dos seus passeios na avenida, do seu iminente regresso de Jerusalém e da sua chegada do estrangeiro, a 11 de maio de 1898. No Diário de Notícias, aquando do seu falecimento, é descrita como “senhora madeirense das mais ilustres pelo sangue, pelo espírito, pela inteligência” (DNM, 28 fev. 1929, 2). Na residência que tinha na capital, reunia a alta aristocracia portuguesa em serões que lembravam os tempos “em que ainda em Lisboa se juntavam tantos e tantos que marcaram em Portugal pela sua distinção e seu talento” (Ibid.). O jornal lembra a publicação do seu livro de impressões de viagem e considera a autora “invulgarmente culta” (Ibid.). De facto, a escritora não só tinha uma educação esmerada, mas também possuía um vasto conhecimento, que adquirira com as várias viagens que realizara pela Europa e pelo Médio Oriente.
É à avó que Maria Celina Sauvayre da Câmara dedica, lembrando “aquela que semeou em minha alma o gérmen de todas as virtudes” (CÂMARA, 1899, I), o seu livro De Nápoles a Jerusalém: Diário de Viagem – relato das lembranças e impressões de uma longa viagem que tinha levado a autora da cidade italiana de Nápoles a Jerusalém (passando por Alexandria, Cairo e Jafa) –, com edição em Lisboa de 1899. A abertura de espírito e o gosto pela literatura que alarga os horizontes, especialmente das mulheres, são os traços definidores que a autora assume como direta influência da avó. Se o texto abre com uma dedicatória que a recorda, termina com a declaração da “saudade eterna” (Id., Ibid., 196) que a sua figura representa; saudade esta que conduz a autora a refletir sobre o sentido da própria existência (“A sensação do vácuo, da imensidade, levadas por uma frágil embarcação que levantou âncora!... A última página deste jornal que emudeceu e fechei!... A saudade eterna da minha querida avó!...” – Id., Ibid.), encontrando, em parte, resposta nos lugares com forte carga evocativa que a autora visita, como é o caso de Jerusalém.
A ideia que a escritora madeirense concebe da viagem em De Nápoles a Jerusalém, e das palavras que a contam e fixam na memória, é a de algo dinâmico, que permite a mudança do ser que viaja e do leitor que experimenta as impressões da deslocação através das palavras. À união da imaginação com a investigação, que caracteriza as motivações da viajante e também da escritora, é aliado o plano da comparação: esse plano permite as viagens mentais entre o espaço que ocupa e trilha e o espaço afetivo da terra pátria, uma deslocação em pensamento à Madeira, lugar de saudade, mas igualmente de mudança, já que Maria Celina da Câmara também vê e imagina com o objetivo de comunicar e aplicar à Madeira aquilo que julga ser válido. Em Jaffa, comenta: “Os Irmãos das escolas cristãs têm aqui dois colégios para rapazes, as Irmãs de S. José da Aparição um outro para meninas. Além destes cada rito tem as suas escolas e hospitais, nós latinos temos um muito bem montado com um dispensário gratuito. (Assim tivéssemos um na Madeira!)” (Id., Ibid., 66). Na sua morte, o que considerara no seu livro como necessário à Ilha torna-se possível, através da doação de uma das suas residências (na R. da Mouraria, n.º 29) para instalação de um dispensário.
A obra de Maria Celina Sauvayre da Câmara insere-se no ambiente social e cultural do séc. XIX, quando a viagem começa a fazer parte do mundo da mulher, com o surgimento da ideia de “tempo livre” (na segunda metade do século) e da viagem pedagógica, o grand tour – longa viagem de “educação” e “europeização” das camadas mais elevadas da sociedade, que incluía paragens em Londres, Paris, Bruxelas, Roma –, iniciando-se, assim, o turismo feminino. O périplo pelos países mais desenvolvidos do continente era entendido como importante para a ilustração social, histórica e cultural das jovens e das senhoras que se podiam permitir viajar. As mulheres começavam a ganhar, assim, através das deslocações a outros países – que as levavam para longe da esfera da proteção familiar, parental ou marital –, a autonomia que conduziria a uma maior autodeterminação. Os novos espaços percorridos, ao corresponder a uma abertura de horizontes, que resultava no incentivo a uma maior liberdade de espírito, potenciavam também uma maior capacidade feminina de intervenção, como refere a autora madeirense. Esta independência da mulher advinha, segundo a escritora, da possibilidade de imaginar, ver e adquirir um novo olhar sobre os valores, as tradições, os costumes e as religiões de outros povos, redimensionando a própria Cultura, história e mesmo o seu próprio ser. A autora não raro refere o exemplo de Inglesas, Americanas e Holandesas, de mulheres cuja sociedade vê com naturalidade que viajem para aprender e para se divertir, ao contrário das Portuguesas, menos aventureiras e mais fechadas.
Misto de diário de viagem turístico e de diário de peregrinação, o livro da escritora madeirense, cuja narração se centra principalmente no Médio Oriente, deixando muito pouco espaço para algumas pequenas indicações sobre Nápoles, contém uma parte que fornece recomendações de viagem (melhores agências a contratar, custos, alojamento, duração das deslocações entre cidades, restaurantes, ementas, lugares de diversão), chegando a transcrever um contrato de viagem, e apontamentos sobre os monumentos, as paisagens, as gentes, os costumes, bem como uma outra parte em que se dedica à descrição dos espaços simbólicos do cristianismo e dos sentimentos que esses lugares provocam. Esta última parte relaciona-se de forma mais evidente com o modo do diário de peregrinação no interior do género da literatura de viagens, ocupando-se a autora da viagem espiritual que os lugares santos permitem, percorrendo os espaços num ritual de expiação, com a promessa de salvação. Daí a referência privilegiada aos sentimentos, à introspeção, ao guia dos percursos a seguir, às leituras bíblicas ou ligadas aos lugares visitados, a orações e à possibilidade de obtenção de indulgências.
No entanto, por medo de cansar o leitor e de afastá-lo do livro, designadamente com a exposição dos dias passados nos lugares santos, este jornal de viagem apresenta o relato de episódios do quotidiano dos companheiros de viagem e alojamento, não raras vezes contados com recurso a um humor quase sterniano, com “notas alegres no meio das narrações as mais sérias” (Id., Ibid., 118), fazendo uso da caricatura para traçar o perfil das várias personagens que a rodeiam. Se é certo que a espiritualidade ganha uma presença mais preponderante na visita aos lugares santos, a autora não deixa de continuar a fazer comentários sobre os costumes, a arquitetura, o espírito dos lugares e pequenas digressões sobre variados temas.
Com um ritmo vivo e com a paisagem de fundo, a autora cria através da escrita quadros de cor e movimento, em que evoca pessoas e respetivos costumes, traços dos monumentos e da natureza, luzes, cores e sons. Trata-se de autênticas sinestesias que transportam os leitores aos lugares descritos e que permanecem na memória de uma longa galeria de lugares. As descrições são como bilhetes-postais animados, imagens do olhar de Maria Celina, de uma visualidade que transporta facilmente o leitor ao espírito do lugar.
Além dos retratos dos espaços e das gentes, o relato contém, igualmente, uma preocupação com a mulher e a condição que esta ocupa na sociedade, com a visão do “outro”, de Cultura e religião diferente, e com o diálogo possível entre Oriente e Ocidente. Pode-se considerar, assim, que o texto de Maria Celina não constitui apenas um relato, mas uma verdadeira viagem de reflexão e de um aprofundar de conhecimento, que, segundo se depreende do que declara a autora, se quer tão dinâmico como a própria viagem.
O texto da autora madeirense afigura-se essencial para a perspetivação do ambiente literário e cultural da Ilha, mas também português e europeu, pela sua modernidade e pela voz feminina que se afirma autónoma, culta, de espírito cosmopolita. No início do séc. XXI, o seu livro foi em parte objeto de um estudo académico, dedicado à temática mais ampla das impressões de viagem relacionadas com as cidades europeias, caso da tese de doutoramento de Helena de Azevedo Osório e de alguns ensaios da autoria de Luísa Marinho Antunes, mas a sua riqueza literária e cultural merece uma maior divulgação e interesse científico por parte dos estudiosos.
Obras de Maria Celina Sauvayre da Câmara: De Nápoles a Jerusalém: Diário de Viagem (1899).
Luísa Paolinelli
(atualizado a 14.12.2016)
Bibliog.: CÂMARA, Maria Celina Sauvayre da, De Nápoles a Jerusalém: Diário de Viagem, Lisboa, Imprensa de Libanio da Silva, 1899; CHAVES, Vania et al., As Senhoras do Almanaque: Catálogo da Produção de Autoria Feminina, Lisboa, CLEPUL/Biblioteca Nacional de Portugal, 2014; Diário Illustrado, 18 dez. 1892; Diário Illustrado, 1 maio 1898; Diário Illustrado, 11 maio 1898; DNM, 28 fev. 1929; GOMES, A. F., “Algumas Notas sobre os Poetas das ‘Flores da Madeira’”, Das Artes e da História da Madeira, vol. III, n.º 15, Funchal, 1953, pp. 20-24; OSÓRIO, Helena de Azevedo, Impressões sobre a Arte e o Património nas Cidades Europeias mais Visitadas por Viajantes Portugueses (Londres, Madrid, Nápoles e Paris): Notas para o Estudo de Uma Sensibilidade Estética (1860-1910), Tese de Doutoramento em História da Arte apresentada à Universidade de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela, texto policopiado, 2014; PATO, Bulhão, Memórias, Homens Políticos, t. II, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1894; PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas e Comentários para a História Literária da Madeira, vols. II e III, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1915-1953; SILVA, Fernando Augusto da e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 4.ª ed., vol. I, Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978.