donatário
Pessoa individual ou coletiva que recebeu uma doação, da qual se torna proprietário ou senhor, dentro de um determinado enquadramento jurídico, advindo daí o termo “senhorio” para a donataria. Este tipo de figura jurídica e administrativa remonta ao direito romano, com as doações das terras conquistadas aos soldados romanos, e percorreu toda a Idade Média, estando, por exemplo, na base da fundação de Portugal, com a doação do condado Portucalense feita pelo Rei de Leão, D. Afonso VI, ao conde D. Henrique de Borgonha, três anos depois de este ter casado com uma filha daquele, D. Teresa, como recompensa pelos serviços prestados na luta contra os mouros. Sendo um contrato, implica sempre obrigações para ambas as partes. Na Idade Média, por exemplo, os laços de vassalagem eram fundamentais e, na doação do condado Portucalense, implicaram que o conde D. Henrique reconhecesse o Rei de Leão como seu senhor e o auxiliasse em caso de guerra. Assim, a doação nunca é incondicional, pois como contrato, compreendendo obrigações e deveres para as partes, deve ser colocada em causa sempre que os pressupostos forem desrespeitados.
O termo “doação” tem uma aplicação muito vasta (capelas e confrarias), considerando-se aqui, sob o lema “donatário”, a questão da organização jurídico-administrativa da Madeira durante os primeiros séculos da sua ocupação, em concreto, a forma como foi originalmente estruturada a administração da Ilha.
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O povoamento do arquipélago foi iniciado por ordem de D. João I (1357-1433), em 1421, como referem os cronistas, ou em 1425, o mais tardar, data em que se encontram pessoas a viver efetivamente na Ilha. Neste último ano, D. João I terá emitido o seu regimento de povoamento, de que só conhecemos uma cópia mais tardia – uma confirmação de D. João II (1455-1495) de 7 de maio de 1493 –, tendo a direção dos negócios desta nova atividade real passado a ser fortemente disputada pelos infantes. Por morte de D. Lopo Dias de Sousa, em 1420, D. João I solicitou a Roma a nomeação do seu filho D. Henrique (1394-1460) para mestre e governador da Ordem de Cristo. Pretendia-se que os rendimentos dessa Ordem militar, de acordo com o espírito da fundação da mesma, fossem aplicados na luta contra os mouros e na dilatação da fé católica. A defesa de Ceuta era então uma preocupação do Monarca, pelo que as despesas daí resultantes teriam de ser, em larga medida, cobertas pela mesma Ordem.
A ideia do povoamento da Madeira surgiu na sequência do descerco de Ceuta, nos finais de 1419, e da defesa da costa do Algarve, em que esteve empenhado o infante D. Henrique. Foram João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471) e Tristão Vaz Teixeira (c. 1395-1480), dois dos escudeiros “pobres” do infante, no dizer de alguns cronistas da época, que a propuseram e que se deslocaram à Ilha para fazerem o reconhecimento. No entanto, quando se iniciou o povoamento, acompanhou Zarco e Tristão um outro escudeiro ou pequeno fidalgo, Bartolomeu Perestrelo (c. 1400-1458), que pertencia à casa do infante D. João (1400-1442), mestre da Ordem de Santiago.
O infante D. Henrique terá sido um elemento ativo nos incentivos ao povoamento, em nome de seu pai, como indica na sua carta testamentária, de 18 de setembro de 1460: “Comecei a povoar a minha ilha da Madeira haverá agora 35 anos, e assim mesmo a de porto santo, e daí prosseguindo a Deserta” (ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 516). O testamento do infante D. Henrique foi feito a favor de seu sobrinho, o infante D. Fernando (1433-1470), filho do Rei D. Duarte (1391-1438), a quem deixou a Ordem de Cristo e os senhorios atlânticos que lhe tinham sido dados pelo Rei e pai pelo espaço de uma vida; ainda assim, doou algumas ilhas dos Açores ao então Rei D. Afonso V (1432-1481).
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Após a morte de D. João I, em agosto de 1433, o infante D. Henrique conseguiu do novo Rei, o seu irmão D. Duarte, logo a 26 de setembro, a doação do arquipélago e também do “espiritual” das ilhas à Ordem de Cristo, de que era administrador (ARM, Câmara..., Registo Geral, tombo 1, fl. 218). O Rei D. Duarte doou a seu irmão D. Henrique as “suas ilhas” da Madeira, porto santo e Deserta, com todos os direitos e rendas que até aí retivera. Neste documento, o Rei declarou o endosso ao infante D. Henrique “da jurisdição civil e crime, salvo em sentença de morte ou talhamento de membro”, casos em que, conforme era costume, ressalvava para si a resolução final (Id., Ibid., fls. 128-132). O infante D. Henrique ficou ainda autorizado a fazer naquelas ilhas todos os “proveitos e benfeitorias” que lhe parecessem para bem delas, tal como aforar, “em perpétuo ou a tempo”, todas as terras que entendesse, com o direito de dádivas de terrenos e com a remissão de qualquer foro, prerrogativa que o infante conservaria em sua vida (Id., Ibid.).
Para além das questões da justiça, que enformaram os séculos seguintes nas ilhas e demais territórios portugueses, o Rei fez mais uma restrição: o donatário, ou seja, o infante D. Henrique, não poderia cunhar moeda própria nestes territórios, pois D. Duarte queria, e afirmou-o, que a sua moeda aí corresse. O Rei reservou ainda para si o foro e certos direitos reais, como a dízima do pescado. Todavia, alguns anos depois, durante os primeiros tempos da regência do infante D. Pedro (1392-1449), D. Henrique conseguiu dispensar os ocupantes da Madeira de alguns destes impostos, por um determinado período. Mais tarde, o Rei D. Afonso V reequacionou o assunto, exigindo o pagamento, no que teve o apoio da infanta D. beatriz (c. 1420-1506), que várias vezes escreveu para a Ilha a exigir os pagamentos em atraso.
O sistema administrativo das donatarias que foi aplicado nas terras portuguesas de além-mar, iniciado na ilha da Madeira e depois exportado para os restantes domínios da Coroa, nasceu da impossibilidade de o Monarca exercer diretamente o seu poder sobre essas terras. A donataria foi um instrumento a que o Rei recorreu, de início (e, até certo ponto, condicionado pela ação do infante D. Henrique e pela Ordem de Cristo), para delegar os seus poderes, com algumas restrições, nem sempre cumpridas, em pessoas da sua inteira confiança. Assim, competia ao donatário administrar a terra em nome do soberano, considerando-se aquela à luz dos limites legais que constituíam a donataria, com regalias, direitos e obrigações próprias, bem definidas, e restringindo-se a ação do donatário em diversos campos, nomeadamente o da justiça, que veio a ser dos mais controversos. Deste modo, o sistema de donatarias estabeleceu-se por toda a área atlântica, sem excluir a costa da Guiné e o Brasil.
Os donatários atuaram de dois modos distintos: designando capitães, os chamados “capitães do donatário”, que exerciam localmente os seus poderes, com ainda mais algumas restrições, como aconteceu na Madeira e no porto santo; ou transferindo-se, eles mesmos, para esses domínios, a fim de os administrarem diretamente e de obterem maiores proveitos, acumulando as funções de donatários e de capitães. No Oriente, optou-se pela solução de um governador, ou até vice-rei, que substituía o Monarca; o mesmo veio a acontecer no Brasil, com a criação de uma capitania-geral, embora no âmbito de certas diretivas, levadas de Lisboa, sobre atos administrativos, financeiros, legais e de guerra concernentes ao respetivo mandato.
Criadas as capitanias, antes da doação do Rei D. Duarte ao infante D. Henrique, as mesmas foram confirmadas por D. Afonso V, mas também com alguns problemas no âmbito da justiça. D. Henrique, por testamento, veio a deixar os seus senhorios atlânticos ao sobrinho, o infante D. Fernando, com referimos, de forma não definitiva, mas por uma vida, aspeto que o Rei veio a alterar, a 7 de março de 1436. Falecido D. Duarte, a doação foi confirmada pelo infante D. Pedro, em nome de D. Afonso V, a 11 de março de 1449, a pedido de D. Henrique, alegando que os originais se haviam degradado. A mesma voltou a ser alterada e novamente confirmada, como de juro e herdade (logo, transmissível a herdeiros, neste caso, ao infante D. Fernando), a 18 de janeiro de 1452, o que foi transmitido à Madeira, a 16 de agosto de 1461. Com todas estas alterações, o testamento de D. Henrique acabou por ter duas versões.
A donataria das ilhas atlânticas portuguesas veio, depois, a ser administrada pela infanta D. beatriz, entre 1470 e 1483, durante a menoridade dos seus filhos. O donatário seguinte foi o seu filho D. Diogo (1450-1484), duque de Viseu e, assassinado por se haver envolvido numa conspiração contra D. João II, sucedeu-lhe o irmão mais novo, D. Manuel (1469-1521). Inesperadamente, este foi nomeado herdeiro da Coroa pelo Rei D. João II, depois de o seu primogénito, o infante D. Afonso (1475-1491), ter falecido num acidente. Assim, com a subida ao trono de D. Manuel, em 1495, as donatarias entraram para a Coroa, configurando-se um quadro mais institucional. Alguns anos depois, por volta de 1590, o cronista Gaspar Frutuoso, noutro contexto, escreveu que D. João II avaliaria a situação de uma forma diferente, entendendo que a ilha da Madeira “era razão, por ser coisa tamanha”, para integrar a Coroa: “se tornasse à Coroa e aos reis destes reinos que os sucedessem” (AZEVEDO, 2007, 12). As palavras do Rei teriam sido uma “profecia do que ao diante se viu, pois tudo foi como ele então disse” (Id., Ibid., 313).
Já noutro contexto, a 1 de novembro de 1656, o Rei d. joão iv (1604-1656), poucos dias antes de morrer, doou a ilha da Madeira, “com todos os seus lugares”, bem como a cidade de Lamego e a vila de Moura, “com todas as suas rendas e direitos, foros, tributos, ofícios, datas, castelos e padroados, exceto alfândegas, sisas” e os bispados, “que sempre ficarão na provisão da Coroa”, a sua filha D. Catarina de Bragança (1638-1705) (ARM, Câmara..., Registo Geral, tombo 6, fls. 135-135v.). A apresentação e o registo destes documentos foram feitos no Funchal, somente quatro anos depois, a 7 de dezembro de 1660, pelo Gov. Diogo de Mendonça Furtado (Furtado, Diogo de Mendonça), como procurador da infanta.
Em 1660, terão decorrido as negociações para o casamento de D. Catarina de Bragança com o Rei Carlos II de Inglaterra (1630-1678), iniciadas oficialmente no ano seguinte, sendo o contrato matrimonial assinado em 1662. A Madeira terá chegado a integrar, numa primeira hipótese, o dote da infanta, mas, posteriormente, o dote acabou por compreender apenas as cidades de Tânger e de Bombaim, para além de um importante montante, a ser pago pelas rendas do Brasil. Tudo leva a crer, assim, que a doação da Madeira à infanta e futura Rainha de Inglaterra foi forjada, em meados de 1660, pois a 1 de novembro de 1656, o Rei d. joão iv não estava em condições de a assinar e, inclusivamente, a doação “original” que o governador levou consigo para o Funchal, em finais de 1660, e mandou registar na Câmara, depois de transcrita, voltou à sua posse, ficando na Ilha somente a carta da rainha regente D. Luísa de Gusmão (1613-1666), que a enviava. Alterados os domínios portugueses a incluir no dote de D. Catarina, o assunto praticamente não voltou a ser referido.
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Bibliog.: manuscrita: ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 516; ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombos 1 e 6; BNP, reservados, cód. 8391, Index Geral do Registo da Antiga Junta e Provedoria da Real Fazenda do Funchal; impressa: ALBUQUERQUE, Luís de, e VIEIRA, Alberto, O Arquipélago da Madeira no século XV, Funchal, DRAC, 1987; AZEVEDO, Álvaro Rodrigues de, “Notas”, in As Saudades da Terra pelo Doutor Gaspar Frutuoso, Manuscrito do século XVI, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2007; AZURARA, Gomes Eanes de, Crónica dos Feitos da Guiné, Lisboa, Alfa, 1989; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. i, Funchal, SER, 1999; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita, As “Notas para a História da Ilha da Madeira” no pelourinho, Funchal, ed. do Autor, 1959; Id., O Arquipélago da Madeira, Terra do Senhor Infante, Funchal, JGDAF, 1959; Id., O Infante D. Henrique e a Descoberta e povoamento da Ilha da Madeira, Funchal, JGDAF, 1960; SALDANHA, António Vasconcelos de, As capitanias. O Regime Senhorial na Expansão Ultramarina Portuguesa, CEHA, Funchal, 1992; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na sociedade Madeirense do século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
Rui Carita
(atualizado a 05.04.2016)