ex-votos (registos de fé)

30 Jan 2017 por "Leocadia"

Ao contrário de alguns santuários portugueses (no Alentejo, por exemplo, encontra-se a maior coleção de ex-votos da Península Ibérica), na Ilha da Madeira são escassas as manifestações votivas que se podem enquadrar na definição tipológica dos ex-votos (ex-voto suscepto) tradicionais. Estes, não são mais do que a materialização formal, expressa tradicionalmente numa pintura de caráter popular, genericamente conhecidas como “quadros ou painéis votivos”, “painéis gratulatórios” ou apenas por “milagres”, onde alguém agradece ao santo da sua devoção, a concretização de um desejo, a graça ou milagre que julgou receber pela intervenção do sobrenatural, em momento de particular aflição ou de doença, onde os recursos humanos, por si só, não chegavam, ficando, desse modo, obrigado a cumprir a promessa.

O medo da doença, morte, catástrofes naturais, acidentes, ou outros aspetos subjacentes, faziam, particularmente nos culos XVII e XVIII, com que os crentes exprimissem o seu pedido de proteção imbuídos de forte pendor apologético, dispensando intermediários, os ministros da igreja, pondo muitas vezes em confronto a eficácia da ciência, nomeadamente, a medicina, fase a estas crenças religiosas.

A promessa de ex-voto não era exclusiva manifestação das classes sociais mais modestas, conhecendo-se exemplares onde os retratados pertencem a classes abastadas.

O pedido de interseção divina era, normalmente, feito ao santo da particular devoção do proponente, havendo, contudo, santos mais vocacionados para tipos específicos de milagres, o que se pode constatar pela leitura de qualquer hagiografia, caso, por exemplo, de Santo António casamenteiro, Nossa Senhora da Luz (advogada dos olhos) para os males da vista, Nossa Senhora da Bonança e São Pedro Gonçalves Telmo para os mareantes ou São Francisco de Assis, patrono dos animais.

Depositados pelos crentes em lugares de culto, como em pequenas ermidas, sacristias, santuários ou outras dependências anexas aos templos, posteriormente designadas como “casas dos milagres”, estes testemunhos, considerados durante muito tempo como “arte menor”, não mereceram um olhar protetor, perdendo-se uma parte significativa do nosso Património cultural tradicional, revelador não apenas da fé e religiosidade do povo, como também constituíam insubstituível parcela da nossa arte e Cultura populares.

Mesmo personalidades com algum relevo intelectual, alheias, contudo, ao sentimento gerador que está na origem dos ex-votos, referiram-se a eles como “hediondos painéis (…), com absurdas legendas e deploráveis produções ”, como escreveu em A Formosa Lusitânia: Portugal em 1873, Lady Catherine Hannah Charlotte Elliott Jackson.

Naturalmente executados na quase totalidade por artistas anónimos, de estratos sociais bastante modestos, na grande maioria datados, não eram feitos com a preocupação de constituírem obras de arte, sendo inegável que muitas deles foram inspiradores para alguns artistas plásticos como Fernando Botero (1932), Frida Kalo (1907-1954), Albuquerque Mendes (1953) ou os brasileiros Farnese de Andrade (1926-1996), Mário Cravo Neto (1947-2009), também para alguns artistas das novíssimas gerações como Mauro Cerqueira (1982) ou mesmo para a tima arte com O Pagador de Promessas, filme realizado em 1962, dirigido por Anselmo Duarte, baseado na obra homónima do dramaturgo Alfredo Dias Gomes (1922-1999).

Embora os ex-votos possam assumir outros suportes, é, sobretudo, na pintura sobre madeira, folha-de-flandres, cartão, tela, azulejo ou papel, quase sempre anónimos e revelando a total ausência das técnicas do desenho e da pintura que se expressam, encontrando-se hoje muitos destes exemplares em museus, núcleos museológicos de museus de arte popular e etnográficos, ou mesmo em destacadas coleções particulares, uns e outros importantíssimos lugares da memória e do futuro.

Em Portugal o mais antigo quadro votivo, apresentando os requisitos tradicionais está datado de 1550 (e para não nos reportarmos a outros de caráter proto-histórico), sendo que é sobretudo a partir do culo XVII que se generalizou o hábito de oferecer estes painéis a entidades devocionais.

Em 1983, o museu da Marinha, em Lisboa, realizou uma grande exposição, de âmbito nacional, dedicada a painéis votivos do rio e do mar, tendo a Ilha da Madeira participado com um ex-voto marítimo, pertencente ao espólio da Igreja de Nossa Senhora do Monte, um óleo sobre tela, datado de 1870 (Fig.1) (Ex-voto: Painéis votivos do rio, do mar e do além mar, entrada de catálogo n.º 206, p.135), legendado: Milagre que, por invocação do capitão e tripulantes do brigue portuguez FREITAS & IRMÃOS, fez a Senhora do Monte, no dia 17 de Septembro de 1870, ás 8 horas da / manhã, em viagem da Trindade para Halifax (Nova Escocia) estando na latitude N.º40 - 4´4, ao longitude Oeste Meridional G.º67 – 4´5 / O Capitão – Manoel de Freitas Martins.

A inscrição desta tela remete-nos, para além do aspeto narrativo da composição, comum nos ex-votos marítimos, para duas referências: a primeira para Nossa Senhora do Monte, Padroeira da Ilha, por Descrito Apostólico do Papa Pio VII, de 15 de Agosto de 1804 (dia onde se celebra o concorrido arraial em seu louvor), imagem que se venera desde os primórdios do povoamento da Ilha; a segunda relativa ao Capitão Manoel de Freitas Martins, antepassado de João de Freitas Martins, família de industriais e armadores, proprietários de vários navios à vela, que, em 1888, fundou uma importante agência de navegação e transportes, ainda hoje em atividade na cidade do Funchal.

Mas todos estes pequenos retábulos, são, por si só, fonte inesgotável de informações, pela variedade e riqueza da sua iconografia, representando, na generalidade, para além da referência concreta do milagre concedido, o devoto promitente junto a uma epifania do seu santo, em cenografia de época, revelando interessantes aspetos do quotidiano, abarcando elementos de mobiliário, traje, paisagem, usos, costumes, etc., podendo mesmo falar-se de uma arte padrão na representação dos ex-votos pintados.

O inventário destes exemplares, a sua divulgação, estudo e correspondente bibliografia, que é vastíssima, tanto em Portugal como no estrangeiro, mereceu também a atenção da Fundação Calouste Gulbenkian que, desde 1977, tem possibilitado o inventário de milhares de exemplares em todo o país, catálogo que igualmente problematiza as qualidades da originalidade e do valor estético das artes votivas no extenso universo da arte popular.

A escassez de artesãos vocacionados para este género de trabalhos, “riscadores de milagres e santeiros”, numa Madeira rural de há culos, fora de uma dinâmica cultural mais abrangente, o próprio contexto histórico, social e económico, fizeram-nos rarear entre nós.

NORONHA (1996, 331), em 1722, deu a conhecer, no entanto, algumas manifestações similares, que as vicissitudes do tempo e das pessoas, lamentavelmente, fizeram desaparecer: “Da mesma sorte se frequentam as Romarias, e votos de muito povo, que concorre à Igreja de N. Sra. Da Esperança, sita entre does montes, rodeada de hum espesso arvoredo, na freguesia de São Roque por sima da mesma cidade, na qual se vem alguns milagres da Senhora em pintura, com que seos devotos agradecidos deixavam alli à memória dos benefícios.”

A citada igreja de Nossa Senhora da Esperança, uma das mais antigas da diocese, localizava-se na freguesia de São Roque, sendo um concorrido centro de romagens, sabendo-se que, no culo XVIII, o seu proprietário Gonçalo de Magalhães, doou-a à fábrica da Igreja Paroquial de São Roque (SILVA 1940, 320).

Nos Açores (provavelmente, também, na Ilha da Madeira), o alfenim, massa de açúcar levada ao ponto, numa mistura de água manteiga e vinagre, tomando a forma de animais (a pomba e o touro) ganhou contornos próximos da simbologia dos ex-votos.

Igualmente na Ilha da Madeira outras manifestações de fé aproximam-se, pelo seu conteúdo e intenção gratulatória dos ex-votos, exprimindo-se, contudo, de forma diferente da pintura tradicional que melhor as identifica, exceção, talvez, para a representação do milagre de São Pedro Gonçalves Telmo e a pintura em azulejos figurando o milagre de D. Fuas Roupinho, capela de Nossa Senhora da Nazaré, Funchal).

No inventário destas manifestações podem registar-se “as promessas de corpo”, pagas com objetos antropomórficos produzidos em cera nas antigas fábricas de Machico, Santa Cruz e santana, comercializados nos arraiais da Ilha, conhecendo-se alguns exemplares em prata para o bolso mais abastado (olhinhos de Santa Luzia, pertencentes ao espólio da capela de Nossa Senhora da Saúde, Largo dos Moinhos, Funchal), ou pessoalmente pelos penitentes e fiéis, num percurso feito de joelhos, como se pode observar numa gravura de Pitt Springett, no álbum Recollections of Madeira, 1843, ainda em fotografias dos Perestrellos que integram a Photographia museu Vicentes.

Outras vezes a manifestação do cumprimento do voto remete-nos para testemunhos de carácter arquitetónico ou escultórico, como é o caso, entre nós, por exemplo, da edificação da capela das Almas, Travessa das Capuchinhas, Funchal, como nos dá notícia o Padre Fernando Augusto da Silva (SILVA,1940, 294), ou o Monumento da Paz, inaugurado no Terreiro da Luta, Monte, em 1927, manifestação de voto coletivo, resultante de uma promessa solene feita durante a 1.ª Grande Guerra.

Com a Guerra do Ultramar (1961-1974), a prática destas promessas, sobretudo com o desejo de regresso dos militares sãos e salvos, tornou-se comum o recurso à fotografia, meio mais barato e rápido, passando a figurar o retrato do interessado e não o historial da graça recebida, encontrando-se em Portugal interessantes santuários, repositórios destes documentos, como é o caso de Nossa Senhora de Aires, em Viana do Alentejo.

Bibliog.: Ex-voto, Quadros Votivos do Concelho da Chamusca, catálogo de exposição, Câmara Municipal da Chamusca, março de 1986; NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, Secretaria Regional do turismo e Cultura / Centro de Estudos de História do Atlântico, 1996; Primeira Exposição Nacional de Painéis Votivos do Rio, do Mar e do Além-mar, catálogo de exposição, museu da Marinha, Lisboa, 1983; SAINZ-TRUEVA, José, “Ex-votos da Ilha da Madeira”, Islenha n.º20, janeiro-junho de 1997, pp. 25-31; SILVA, Pe. Fernando Augusto da, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, 1425-1800, vol. I, Funchal, 1940.

José de Sainz-Trueva

(atualizado a 20.10.2016)

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