forte do gorgulho e bateria do calaça

02 Aug 2017 por "Leocadia"

Após o ataque dos corsários calvinistas franceses de 1566, a área poente do Funchal passou a ser olhada com uma especial atenção, sobretudo os pequenos desembarcadouros. As pequenas praias entre a Praia Formosa e a cidade do Funchal passaram a ser objeto de contínuo patrulhamento, sendo o forte do Gorgulho levantado em 1618. Foi guarnecido pelas companhias de ordenanças do Gorgulho e dos Piornais, defendendo igualmente o chamado Caminho da Trincheira. Nos finais do c. XVIII, foi reformulado pelo engenheiro Inácio Joaquim de Castro, articulando-se com a nova bateria do Calaça ou bateria do Alorável.

Palavras-chave: arquitetura militar; defesa; companhias de ordenanças.

[caption id="attachment_3649" align="alignright" width="300"]Gougulho_1910 c1 Gorgulho_1910 c1[/caption]

Após o ataque dos corsários calvinistas franceses em 1566, a área poente do Funchal passou a ser olhada com uma muito especial atenção, sobretudo os pequenos desembarcadouros. As praias entre a praia Formosa e a cidade Funchal passaram a ser objeto de patrulhamento contínuo, sabendo-se, p. ex., que em 1600 houve rebate à aproximação de 14 naus holandesas suspeitas e se deslocou para a área do calhau do Gorgulho a companhia de Francisco Vieira de Abreu, com dois tambores, um pífaro e bandeira e que ali permaneceu enquanto não foi afastada a hipótese de uma tentativa de desembarque. A ação do capitão foi louvada pelo bispo-governador e pelo capitão do presidio castelhano, Diogo de Obregón.

Temos informações de que, uns anos depois, em 1618, estava ali em construção um pequeno forte, composto por um pequeno baluarte e por uma guarita coberta a telha. O risco do forte do Gorgulho deve ter sido do então mestre das obras reais, Jerónimo Jorge (c. 1570-1617), falecido no natal de 1617, ou então já do seu filho, Bartolomeu João (c. 1590-1658). No entanto, assistia à construção da pequena fortaleza, como apontador, o capitão de ordenanças da área, Martim Vaz de Cairos, morgado da capela da Nazaré. Conhecemos as férias pagas em maio desse ano de 1618, constando nelas, entre outras despesas, a do pagamento do trabalho “na parede, pelo saber fazer” do mestre pedreiro Brás Fernandes (ARM, Câmara... , Vereações, 1618).

No ano anterior, os corsários argelinos tinham saqueado o porto santo, levando para Argel toda a população que havia na Ilha, tendo escapado somente cerca de 17 pessoas, escondidas nas fragas. A partir daí, generalizou-se o pânico no Funchal e em Machico, reiniciando-se as obras de fortificação, entretanto interrompidas pelos mais diversos motivos. O dinheiro despendido para estas obras viera dos “açúcares de Sua Majestade”, disponibilizado pelo então provedor António Gomes Rodovalho, sendo reposto no ano seguinte, através de finta a todos habitantes do Funchal, mesmo eclesiásticos e ausentes (Id., Ibid.).

[caption id="attachment_3625" align="alignleft" width="352"]Gorgulho-Praia Formosa-APA-1841-5582-1A-12A-16 Gorgulho-Praia Formosa-APA-1841-5582-1A-12A-16[/caption]

Devia haver então, já neste sítio, uma pequena vigia ou atalaia, transformada depois na pequena fortificação em causa. Sabemos que, ao longo do c. XVII, houve outras pequenas obras defensivas na área, guarnecidas pelas companhias de ordenanças do Gorgulho e dos Piornais (Ordenanças). Nos finais do culo, o alferes João Rodrigues de Oliveira pretendeu construir um forte na Ponta Gorda, à sua custa. O governador D. António Jorge de Melo entendeu ser mais lógico erigi-lo na Ponta da Cruz, de onde se divisava a costa da praia Formosa até câmara de lobos, remetendo o assunto para Lisboa. O sargento-mor Francisco Pimentel, filho do célebre arquiteto-mor Luís Serrão Pimentel (1613-1679), apoiou a proposta do governador, enviando uma planta detalhada, mas a obra que não chegou a ser levantada.

[caption id="attachment_3632" align="alignleft" width="300"]05-calac-a aloravel 05- Calaça Alorável[/caption]

O forte do Gorgulho passou a estabelecer a ligação das fortificações do Funchal com as da praia Formosa e da ribeira dos Socorridos, definindo-se mais tarde o chamado Caminho da Trincheira, melhorado ao longo dos cs. XVIII e XIX. Nos inícios do c. XVIII, pelo Livro de Carga da artilharia, sabemos que estava munido de cinco peças de ferro ligeiras, montadas, de calibre de 2 até 9 libras. Possuía, depois, os habituais instrumentos para o tiro, não sendo citada a existência de bandeira.

  [caption id="attachment_3635" align="alignright" width="300"]06-calac-a aloravel 06-Calaça Alorável[/caption]

Era condestável do forte do Gorgulho, em 1724, Pedro da Cunha, a que se seguiu Manuel da Mata, que tomou posse a 8 de maio de 1726 e, pelo seu falecimento, Manuel de Sousa, a 5 de outubro de 1730. Era, no entanto, uma fortificação de segunda linha, como se prova pela nomeação do condestável do forte do Gorgulho, em 1769, António Francisco Martins, provido nesse lugar “pela incapacidade de não saber ler, nem escrever e de ser de avançada idade”. Era até então condestável de São Lourenço “e da marinha desta cidade”, passando a usar o título de “sota condestável de São Lourenço na marinha da cidade”, mas colocado no Gorgulho (ANTT, Provedoria..., lv. 976, fl. 15v.).

[caption id="attachment_3629" align="alignleft" width="212"]bocas-de-fogo 1990_bateria aloravel Clube Naval Bocas-de-fogo 1990_bateria Alorável Clube Naval[/caption]

O forte do Gorgulho era guarnecido por pessoal da companhia de ordenanças desta área, que, por portaria de 8 de maio de 1781, teve direito a ter uma patente de alferes. O interesse por esta linha de costa já levara, em 13 de outubro de 1766, à nomeação do capitão João Correia Vasques de Andrade Neto como capitão do revelim de Nossa Senhora da Ajuda, no Funchal, linha fortificada anexa ao Gorgulho, por certo. Nos finais do c. XVIII determinou a rainha D. Maria a reformulação total da defesa da Ilha, enviando para a Madeira, por ordem de 11 de junho de 1797, o major efetivo do Regimento de artilharia de Corte, aquartelado em São Julião da Barra, Inácio Joaquim de Castro. Foram então revistas todas as defesas da Ilha, mas as propostas não foram especialmente inovadoras, nem consta que fossem colocados em prática quaisquer dos estudos feitos (Defesa).

  [caption id="attachment_3639" align="alignright" width="355"]Forte do Aloravel_5531-1A-12A-16 Forte do Alorável_5531-1A-12A-16[/caption]   [caption id="attachment_3642" align="alignnone" width="326"]Gorgulho 5548-1A-12A-16 Gorgulho 5548-1A-12A-16[/caption] [caption id="attachment_3653" align="alignright" width="300"]Club - Naval _ant. Club - Naval _ant.[/caption]

Nestes previa-se o restauro do velho forte do Gorgulho e a construção de uma bateria de apoio, no lado poente da pequena baía, onde depois se levantaram as casas de verão do cônsul britânico na Madeira Henrique Gordon Veitch (1782-1857) e que são hoje o Club Naval do Funchal, o que foi então feito. Refere o “Plano particular, desde o forte do Gorgulho, até à nova bateria do Calaça na ilha da Madeira”, o modo como se remediou e como se fortificou esse ponto, enviando ainda um “orçamento [do] que poderá custar toda a obra, que se deve fazer para fortificar esta extensão de beira-mar”, mas que não cremos que tenha sido feita (IICT, CECA, pasta 33, n.° 16). Previa-se acabar a bateria do Calaça e “engrossar e altear os parapeitos ao forte do Gorgulho”, fazer uma trincheira de “muro de alegrete”, com terra dentro, para defender essa entrada com “mosquetaria” e continuar a trincheira que ligaria as duas fortificações (Id., Ibid.). A posição fortificada de apoio chamada bateria do Calaça, provável nome do proprietário local da época, da qual restou um dos parapeitos da muralha, ficou também conhecida como bateria do Alorável e teve obras depois, entre 1840 e 1868.

    [caption id="attachment_3645" align="alignleft" width="197"]Forte da Ponta Gorda-Franc Pimentel-1699 Forte da Ponta Gorda-Franc Pimentel-1699[/caption]

Em 1814 tinha-se instalado no forte do Gorgulho uma força do corpo de artilharia Auxiliar. No entanto, poucos anos depois, tudo necessitava de obras, salientando Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em 1817, que o “forte do Gorgulho da costa só tem o nome, porque apenas existem restos de paredes sem cal; sem casa de guarnição, e com 2 peças reprovadas no chão” (CARITA, 1982, 94). Em 1850, o engenheiro António Pedro de Azevedo (1812-1889) mantém a descrição de ruína, descrevendo-o como distando 3 km do Funchal e situado no caminho da Trincheira. Acrescenta que este caminho, que teria então 2 a 3 m de largura, era contornado pelo mar no lado sul e que às vezes o banhava, pelo que a muralha estava interrompida por diversos rombos. O caminho da Trincheira, nesta parte, unia o forte à quinta do Calaça, informando o engenheiro que a mesma pertencia aos herdeiros de Henrique Gordon Veitch, pois o cônsul falecera em 1857. Já então não se fala naquela antiga bateria, apenas se mencionando que os terrenos à volta do forte pertenciam a Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880), morgado das Cruzes.

  [caption id="attachment_3657" align="alignright" width="300"]Forte Gorgulho 1940 Forte Gorgulho 1940[/caption]

Três anos depois, no tombo deste forte, o mesmo militar queixa-se que não poderia receber mais de duas bocas-de-fogo, dada a sua insignificância, e que não valeria a pena repará-lo, pois a despesa não compensaria. Os terrenos anexos tinham sido arrendados, por ordem do Ministério da Guerra, a Roque e a Caetano Alberto de Araújo, visando uma plantação de cochonilha, entretanto abandonada. Por ofício do comandante militar de 20 de junho de 1857, tinha sido autorizado tapar-se provisoriamente o caminho da Trincheira a fim de evitar que os contrabandistas o utilizassem. O forte estava então abandonado, não se conseguindo encontrar quem nele quisesse morar e responder pela sua conservação. Em janeiro de 1899 foi arrendado a João Figueira da Silva, terminando o arrendamento, em 1901, foi entregue à câmara do Funchal.

Nos finais do c. XX foram construídas nesta área as piscinas municipais, que, em 1986, se ampliaram, sendo o velho forte um vaga ruína. Dada a necessidade de espaço para as arrecadações da época de inverno e de vestiários para o pessoal, o imóvel foi levantado de novo, segundo a planta do c. xviii e reconstruído como decoração. Para a esplanada foram solicitadas aos herdeiros do engenheiro João Catanho de Meneses (1854-1942), proprietário do Forte do Faial, três bocas-de-fogo desta época. Vieram então duas caronadas e uma peça de acompanhamento, todas em ferro, sem marcas, provavelmente inglesas e pertencentes a antigos navios desmantelados (artilharia). O forte foi inaugurado a 21 de agosto de 1987, com uma sala de exposição e uma amostra de desenhos de Henrique e Francisco Franco, propriedade da Câmara do Funchal e dos arquivos do homónimo museu, inaugurado no ano anterior.

  [caption id="attachment_3666" align="alignleft" width="407"]Forte do Gorgulho-JLSilva-2012_01 Forte do Gorgulho-JLSilva-2012_01[/caption] [caption id="attachment_3660" align="alignleft" width="336"]02-forte-gorgulho Forte-Gorgulho_02[/caption]            

Bibliog.: manuscrita: AGS, Guerra Antiga, leg. 188-78; ANTT, Conselho de Guerra, maç. 58, doc. 145; ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 976; ARM, Arquivos Particulares, António Pedro de Azevedo, tombo 11 dos prédios militares e plantas avulsas; ANTT, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 3 e vereações de 1618; ANTT, Governo Civil, livs. 418 e 532; DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar, n.os 5531 e 5548 (1A-12A-16); IICT, Centro de Estudos de Cartografia Antiga, pasta 33, n.º 16, Plano particular desde a praia Formosa até ao forte do Gorgulho e à nova bateria do Calaça, 20 de dezembro de 1798; impressa: CARITA, Rui, Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, Funchal, DRAC, 1982; Id., O Regimento de Fortificação de D. Sebastião, 1572 e a Carta de Bartolomeu João, 1654, Funchal, SRE, 1984; Id., A Arquitectura Militar na Madeira nos culos xv a xvii, Funchal/Lisboa, EME/universidade da madeira, 1998; Id., História da Madeira, vol. vii, Funchal, SER, 2008; GUERRA, Jorge, “O Saque dos Argelinos à Ilha do porto santo em 1617”, Islenha, n.º 8, jan.-jun. 1991, pp. 57-78; SILVA, Fernando Augusto da e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na sociedade Madeirense do culo XVII, DRAC, Funchal, 2000.

Rui Carita

 

(atualizado a 31.01.2017)