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povoamento

O povoamento da Madeira destaca-se, no contexto da expansão europeia, como o primeiro ensaio de processos e técnicas que serviram de base à afirmação dos portugueses no espaço atlântico: aí se lançaram as bases sociais e económicas do mundo atlântico. Com efeito, tratou-se de um processo de povoamento e não de colonização, porque a Madeira e Porto Santo não eram habitadas. A tradição refere abordagens anteriores, mas sem continuidade no tempo: estas aconteceram a partir da década de vinte do séc. XV. A forma de ocupação e valorização económica da Madeira foi ao encontro das solicitações da conjuntura interna do reino e do espaço oriental do Atlântico, surgindo como resposta à disputa das Canárias e à necessidade de encontrar um ponto de apoio para as operações ao longo da costa africana. Palavras-chave: descobrimentos; capitanias; sociedade; economia.   O povoamento e o processo de valorização económica da Madeira destacam-se, no contexto da expansão europeia, como o primeiro ensaio de processos, técnicas e produtos que serviram de base à afirmação dos portugueses no espaço atlântico. Com efeito, foram aí lançadas as bases sociais e económicas do mundo atlântico. Tratou-se, assim, de um processo de povoamento e não de colonização, porque, na verdade, a Madeira e o Porto Santo não eram ilhas habitadas e houve necessidade de proceder à humanização de ambos os espaços insulares. A tradição refere abordagens anteriores, mas sem continuidade no tempo, como aconteceu a partir da déc. de 20 do séc. XV. A forma de ocupação e valorização económica da Madeira foi ao encontro das solicitações da conjuntura interna do reino e do espaço oriental do Atlântico, surgindo como resposta à disputa das Canárias e à necessidade de encontrar um ponto de apoio para as operações ao longo da costa africana. Zurara faz eco disso ao referir que as embarcações portuguesas faziam escala obrigatória na Madeira, onde se proviam de “vitualhas nas ilhas da Madeira, porque havia aí já abastança de mantimentos” (ZURARA, 1841, 163-164). Os testemunhos dos cronistas são taxativos quanto à inexistência de população em solo madeirense. Assim, para além das referências à abordagem do Porto Santo por castelhanos que aí faziam carnagem, vindos das Canárias, e da presença de Machim na baía de Machico, nada mais indiciava ter havido antes uma preocupação de humanização destas ilhas. Cadamosto afirma mesmo “que fora até então desconhecida” e que “nunca dantes fora habitada” (VIEIRA, 1994, 40). Idêntica é a opinião de Jerónimo Dias Leite, ao referir que perante os navegadores se deparava uma “terra brava e nova, nunca lavrada, nem conhecida desde princípio do mundo até àquela hora” (Id., Ibid.). Todos os autores coevos que se ocupam do tema são unânimes em considerar o povoamento da Madeira como obra portuguesa, tendo como dirigente o infante D. Henrique, apoiado em João Gonçalves Zarco, com ou sem a colaboração de Tristão Vaz Teixeira. Para os cronistas, tudo começou no verão de 1420, com a expedição comandada por João Gonçalves Zarco que tinha como objetivo dar início à ocupação da Ilha. Acompanhavam-no Tristão Vaz, Bartolomeu Perestrelo e alguns homiziados que “queriam buscar vida e ventura foram muitos, os mais deles do Algarve” (Id., Ibid.), segundo afirmam Jerónimo Dias Leite e Gaspar Frutuoso. Não há consenso quanto à data em que o solo da Ilha começou a ser desbravado pelos primeiros colonos europeus. Alguns cronistas e a tradição são unânimes em afirmar o ano de 1420. O infante D. Henrique declarava, em 1460: “comecei a povoar a minha ilha da Madeira haverá ora XXXV anos” (Id., Ibid., 37), isto é, a partir de 1425, data em que terá iniciado o povoamento desse território. Mas, na doação régia de 1433, o monarca afirmara “que agora novamente o dito infante por nossa autoridade povoa” (Id., Ibid., 39). Quererá isto dizer que o infante só então assumiu o comando do processo? Não. Pelo menos esta não é a opinião do infante que, nas cartas de doação das capitanias, apresenta João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo como os primeiros povoadores e por seu mandado. Só podemos falar de povoamento a partir de 1425 ou 1433, contrariando a opinião dos cronistas? A resposta também parece ser negativa, à luz do que nos dizem os documentos. Temos primeiro a sentença do duque D. Diogo, de 6 de fevereiro de 1483, que refere que “podia haver cinquenta e sete anos, pouco mais ou menos, que a essa Ilha fora João Gonçalves Zargo, capitão que fora nessa Ilha, levando consigo sua mulher e filhos e outra gente” (Id., Ibid., 43). Depois, outra sentença de Diogo Pinheiro, vigário de Tomar, em 1499, afirma: “poderá bem haver oitenta anos que a dita Ilha era achada pouco mais ou menos e se começara a povoar” (Id., Ibid.). A última versão é corroborada em 27 de julho de 1519, por acórdão da Câmara do Funchal, em que se dá conta do início do povoamento “há cem anos atrás” (Id., Ibid.). Os documentos oferecem diversas versões. O primeiro coincide com a data apontada pelo infante, o segundo corrobora os cronistas. Face a esta divergência de datas, a única conclusão possível é de que o povoamento efetivo terá começado a partir de finais do primeiro quartel do séc. XV. Com a distribuição das terras pelos três povoadores, as ilhas do Porto Santo e Madeira ficaram divididas em três capitanias. O Porto Santo, por ser uma ilha pequena, ficou entregue na totalidade a Bartolomeu Perestrelo. Mas a Madeira foi separada em duas, por uma linha traçada em diagonal entre as pontas da Oliveira e do Tristão: a vertente meridional, dominada pelo Funchal, ficou quase toda em poder de João Gonçalves Zarco, enquanto a restante área, incidindo na costa norte, ficou sob Tristão Vaz Teixeira. No Porto Santo, ao início, surgiram problemas. Os inúmeros coelhos e as condições pouco propícias do meio não favoreceram o processo de povoação. De acordo com Gaspar Frutuoso, a ilha do Porto Santo era “pequena, mas fresca [...] não tem boas águas, por ser seca e de pouco arvoredo” (FRUTUOSO, 1979, 56) e a Madeira era o inverso, sendo caracterizada pela “fertilidade e frescura (...) e das muitas ribeiras e fontes de água” (Id., Ibid., 49). Uma das questões mais debatidas nos primórdios da história da Madeira prende-se com o protagonismo do rei D. João I e do infante D. Henrique no processo de (re)descobrimento e ocupação das ilhas do arquipélago. A leitura das crónicas leva-nos a concluir que tudo começou sob a orientação da coroa. De todas, a mais esclarecedora é a Relação de Francisco Alcoforado que diz ter o infante ordenado a João Gonçalves Zarco que “fosse logo a el-rei a Lisboa” (MELLO, 1975, 90). E foi o rei quem mandou preparar as embarcações para a viagem de reconhecimento da Ilha, tal como aconteceu depois, por motivo do povoamento. Em 1443, D. Duarte reclamava a sua intervenção referindo as ilhas “que agora novamente o dito infante por nossa autoridade povoa” (VIEIRA, 1994, 38). O próprio infante D. Henrique testemunha o protagonismo de seu pai, ao afirmar, em 1460, tal como indicámos atrás, que “Por serviço de el-rei meu senhor e padre de virtuosa memória, [...] comecei a povoar a minha ilha de Madeira haverá ora XXXV anos, e assim mesmo a de Porto Santo e daí prosseguindo a Deserta” (Id., Ibid., 43). O infante diz que só em 1425 tomou conta do processo, enquanto a documentação estabelece o ano de 1433 como o de início desta intervenção e dos seus direitos como senhor da Ilha. Esta ideia contraria outra veiculada pelo próprio infante nas cartas de doação das capitanias da Madeira e do Porto Santo. Em 1440, ao conceder a posse da capitania de Machico a Tristão Vaz, declara que este havia sido “um dos primeiros que por seu mandado fora povoar as ditas ilhas” (Id., Ibid., 37). O mesmo surge quanto ao Porto Santo, em 1446 e, ao Funchal, em 1450. Neste último caso, o infante considera João Gonçalves Zarco como “o primeiro que por seu mandado povoára a Ilha” (Id., Ibid.). D. Afonso V, em 1454, tem outra opinião ao afirmar que “por serviço de Deus e nosso conquistou e povoou” (Id., Ibid., 38) as ilhas da Madeira e do Porto Santo. Em 1461, reafirma que João Gonçalves Zarco fora o primeiro povoador aí enviado pelo infante. Esta ideia é expressa, mais tarde, pelo capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara: “esta Ilha era uma horta do senhor infante e ele pôs e trouxe a semente e plantou estas canas e a deu a toda a Ilha à sua própria custa” (Id., Ibid.). Isto contraria a ideia defendida por alguns de que a coordenação desta tarefa pertenceu ao rei, por intermédio do vedor da fazenda João Afonso. De concreto, apenas se sabe que foi no uso dos plenos poderes conferidos pela doação de 1433 que o infante D. Henrique distribuiu, a partir de 1440, as terras do arquipélago àqueles que haviam procedido ao reconhecimento delas e que seriam os seus capitães. É comum afirmar-se que os primeiros povoadores da Madeira são oriundos do Algarve. A ideia filia-se na tradição algarvia da gesta expansionista e na seguinte expressão de Jerónimo Dias Leite: “muitos do Algarve” (LEITE, 1947, 16), copiada de Francisco Alcoforado. Estamos perante uma dedução apressada, uma vez que faltam provas e todos os dados disponíveis atestam o predomínio de outras regiões no povoamento da Madeira. Com efeito, uma listagem dos primeiros povoadores referidos nos documentos e crónicas dá-nos a indicação de que a presença nortenha (64%) é superior à algarvia (25%). O mesmo sucede no inventário dos que receberam ordens menores e sacras, entre 1538 e 1558, em que não aparece nenhum algarvio e a maioria é do norte de Portugal, nomeadamente de Braga e Viseu. Os registos de casamento da freguesia da Sé (que existem desde 1539), para o período de 1539 a 1600, também o confirmam. Os nubentes de Braga, Viana e Porto representam 50% do total, enquanto os de Faro não ultrapassam os 3%. A análise de todas as freguesias da Ilha no séc. XVI reforça a posição da população do norte do país, destacando-se Braga (11%) e Viana do Castelo (8,4%). O povoamento da Madeira foi um processo faseado, em que intervieram colonos oriundos das mais diversas origens. De todo o reino surgiram gentes para esta experiência de povoamento. Do Algarve, partiram, de facto, muitos dos apaniguados da casa do infante com funções importantes no lançamento das bases institucionais do senhorio. Do norte de Portugal, da região de Entre Douro e Minho, vieram os cabouqueiros que transformaram a Ilha num rico espaço agrícola. É evidente a vinculação dos moradores da costa algarvia (Tavira, Lagos, Silves, Aljezur e Sagres) no início do povoamento da Ilha. A iniciativa das primeiras viagens algarvias traçou o rumo que perdurou, nos primeiros tempos, como uma via privilegiada de circulação de homens e de mercadorias. Muitos deles pertenciam à casa do infante. Eram criados, escudeiros, cavaleiros e fidalgos que o acompanhavam nas andanças algarvias e que aderiram ao projeto de descobrimentos que teve na Madeira o primeiro passo. A iniciativa da viagem de reconhecimento iniciou-se no Algarve, mas foi de Lisboa que partiram as embarcações com os povoadores deste novo espaço. Conta Jerónimo Dias Leite que o infante recomendou, em 1419, a João Gonçalves Zarco que fosse a Lisboa, oferecendo-se ao rei para tal tarefa. Acompanharam-no alguns homens afeitos a qualquer feito de guerra no mar e em terra e “mais alguns homens de Lagos como foram António Gago, Lourenço Gomes, [...]” (Id., Ibid.). A presença algarvia na Madeira deixou algumas marcas na toponímia. Chegou-se, inclusivamente, a associar Machico e Monchique, sendo o último considerado uma corruptela do primeiro, o que hoje ninguém aceita. Mas outros locais evidenciam a relação: Algarvio (na freguesia de São Gonçalo), Boliqueime (freguesia de Santo António) e vila Baleira (no Porto Santo). O povoamento na Madeira alastrou rapidamente a toda a costa meridional, levando à criação de outros lugares de fixação, concretamente Santa Cruz, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta. Zurara refere-nos um primeiro núcleo de 150 casais a que se juntaram outros, como mercadores, homens e mulheres solteiros e mancebos. Por sua vez, Cadamosto dá-nos conta de 800 homens, destacando os principais núcleos de povoamento: Machico, Funchal, Santa Cruz e Câmara de Lobos. As dificuldades da orografia da Ilha não travaram o processo; a elevada fertilidade do solo e a pressão do movimento demográfico foram motivos de forte atração. Aos primeiros obreiros e cabouqueiros seguiram-se diversas levas de homens livres e surgiu a necessidade de procurar escravos na costa africana para acudir a tamanha tarefa de preparação dos terrenos. A costa norte da Madeira tardou em contar com a presença de colonos, contribuindo para isso as dificuldades de contacto por via marítima e terrestre. Mesmo assim, já na déc. de 40, refere-se a presença de gentes em São Vicente, uma das primeiras localidades do norte a merecer uma ocupação efetiva. O progresso do movimento demográfico relacionou-se de forma direta com o nível de desenvolvimento económico da Ilha e refletiu-se na sua estrutura institucional. A criação de novos municípios, paróquias e a reforma do sistema administrativo e fiscal resultaram dessa realidade. Ao nível religioso, deu-se o desmembramento das primitivas paróquias das três capitanias com o aparecimento de novas: Santo António, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Arco da Calheta e Santa Cruz. No campo administrativo, tivemos os primeiros juízes pedâneos de Câmara de Lobos e Ribeira Brava e, depois, os municípios da Ponta do Sol (1501) e Calheta (1502). A economia açucareira, entre meados do séc. XV e da centúria seguinte, foi responsável por uma forte atração de forasteiros, motivando-os a fixarem-se no novo espaço. E aqui é evidente a macrocefalia do Funchal, que se afirmou, desde o início, como o principal centro populacional da Madeira. Um dos principais reflexos desta situação está na criação de novas paróquias, na segunda metade do séc. XVI, fruto das reclamações dos párocos e dos moradores. O número de habitantes da ilha do Porto Santo só progrediu nos primeiros anos de ocupação. A praga de coelhos, os escassos recursos e as insistentes invasões de corsários não foram propícios à fixação de colonos. Os corsários argelinos, na primeira metade do séc. XVII, contribuíram para o seu despovoamento quase total, pois só em 1617 foram levados cativos 900 habitantes da ilha. O povoamento do arquipélago da Madeira foi um movimento com origem em todas as regiões do país, que ocorreu, nas primeiras décadas, sob a orientação do infante D. Henrique. Esta variada proveniência geográfica dos primeiros povoadores, embora com forte incidência na região norte do país, foi fator propiciador de uma sociedade diversa, capaz de combinar uma variedade cultural, dando origem a uma nova matriz atlântica e insular nesta primeira fase da expansão portuguesa.   Alberto Vieira (atualizado a 03.02.2017)

História Económica e Social História Política e Institucional

japão

Antes do séc. XX, as relações entre a Madeira e o Japão terão sido efémeras. A ligação entre os dois territórios reforçou-se, num primeiro momento, com o interesse nipónico pelo vinho da Madeira e, depois, por múltiplos aspetos mediáticos, aos quais não é alheia a figura do futebolista madeirense Cristiano Ronaldo. As diversas séries e os documentários alusivos à Madeira, produzidos pela cadeia de televisão NHK, consolidaram esse interesse da sociedade japonesa, atraindo múltiplos turistas desse território. Por outro lado, as informações que temos sobre as relações e influências em ambos os sentidos são escassas e não sabemos se muitas destas aconteceram de forma direta ou por via indireta. Ainda assim, apresentar-se-á o conjunto de informações consideradas de maior interesse, que expressa esse relacionamento através de diversas influências na botânica, no quotidiano e na atividade económica. Uma das mais evidentes presenças da cultura nipónica encontra-se no Jardim Tropical Monte Palace de José Berardo, aberto ao público desde 1991. A visita a este jardim revela o interesse e a paixão do seu proprietário pela cultura material oriental, nomeadamente do Japão e da China. De entre os vários aspetos, temos a considerar o painel A Aventura dos Portugueses no Japão, uma estrutura de ferro onde, em 166 placas de cerâmica, se conta a história das relações entre Portugal e o Japão. A outro nível, destaque-se a existência, desde 1998, no Museu da Qt. das Cruzes, de um escritório namban, do Japão do final do séc. XVI. São peças isoladas, que remetem para uma possível relação com este território do extremo Oriente. No plano da história da Igreja Católica, são percetíveis as ligações a estas ilhas orientais desde o séc. XVI. Nos princípios deste século, com a criação, a 12 de junho de 1514, da Diocese do Funchal, a Igreja Católica abrangia todas as terras conhecidas até ao Oriente, ficando o Japão, obviamente, na sua alçada. Este estado de coisas manteve-se até 1533, altura em que D. João III solicitou ao Papa Clemente VII a criação de novas dioceses (em Angra, São Tiago, São Tomé e Santa Catarina [Goa]), bem como a elevação da Catedral do Funchal à categoria de metropolitana e primaz. A partir de 31 de janeiro de 1533, é criado o arcebispado do Funchal, que se manteve até 1551; entre 1514 e 1551, há pois um laço institucional que liga as ilhas daquelas dioceses à Madeira. Ainda no campo da Igreja, podemos assinalar outros vínculos. Assim, o Jesuíta madeirense Sebastião de Morais (1534-1588) foi o primeiro bispo do Japão, com o título da cidade de Funai, confirmado pelo Papa Xisto V a 19 de fevereiro de 1587, tendo a sua morte prematura a 18 de agosto de 1588, ao largo de Moçambique, impedido o Jesuíta de tomar posse do lugar. Entretanto, os missionários que tinham chegado a estas ilhas em 1549 foram expulsos. Neste intervalo de presença portuguesa, ocorreram influências que se tornaram mais notadas no vocabulário. É a partir daqui que podemos estabelecer uma ligação à Madeira, pois há referências ao fabrico de alfenim (aruheitou em japonês) – a primeira de 1569, com várias notícias do seu consumo nos séculos seguintes – e outros doces, como os confeitos (komfeiton). O arheitou era e continuaria a ser um doce nanban oferecido em momentos especiais. Ficou célebre o alfenim madeirense que Vasco da Gama ofereceu ao Samorim de Moçambique. Foi também pela rota da Índia que terá chegado ao Japão a arte da confeitaria madeirense, que perdurou sob a designação de “alfeito”. Os estudos de M. Arao reforçam a ideia desta influência portuguesa, estabelecendo uma ponte com a Madeira. O mercado do Japão foi um dos conquistados tardiamente para o vinho Madeira – afirmou-se desde a déc. de 60 do séc. XX –, mas em 1989 suplantou o então tradicional mercado americano, uma vez que os Japoneses preferem vinhos secos e meio secos. A Casa de Vinhos Barbeito, fundada em 1946, foi pioneira naquela rota, mas o mercado viria a interessar a todos os produtores. Esta ligação do Japão à Casa de Vinhos Barbeito fez-se através da Kinoshita International Company. Em 1967, iniciou-se uma ligação entre as duas empresas que levou a que, em 1991, ficasse fortalecida esta parceria, através da aquisição pela Kinoshita International de metade da empresa madeirense. Note-se que, no séc. XXI, o vinho da Madeira ganhou nome no mercado de vinhos licorosos do Japão e assumiu o papel principal no brinde que sucede à cerimónia de casamento. Por múltiplas influências e intervenções, a Madeira foi um viveiro de plantas de todo o mundo, plantas que depois se expandiram para outras regiões. Os jardins públicos e privados são um repositório deste legado, que começou a ganhar importância na segunda metade do séc. XVII, por mão dos Ingleses. Em 1844, E. Wateley destacava esse trabalho e a presença de espécies da China, da Austrália e do Japão, nomeadamente no Jardim da Serra. Uma destas influências está relacionada com a flora das quintas e dos jardins, públicos e privados, da cidade do Funchal e arredores, onde se podem encontrar várias espécies de flora originárias desta região: Acer palmatum (ácer), Angiopteria evecta (feto craca), Ardisia crenata (ardísia), Aucuba japonica (aucuba), Elaeagnus macrophylla (oliveira do paraíso), Camelia japonica (camélia), Chamaecypares obtusa (camacípares), Cinnamomum camphora (canforeira), Cryptomeria japonica (criptoméria), Cyca revoluta (cica), Elaeagnus pungens (eleagnos), Eriobotrya japonica (nespereira), Euonymus japonica (Euonimus), Eurya japonica (euria), Fatsia japonica (arália), Ficus radicans (pastinha), Hibiscus chizoptalus (cardeal bailarina), Hibiscus rosa-sinensis (cardeal), Hovenia dulcis (passas do Japão), Ligustrum japonicum (ligustro), Ligustrum ovalifolium (ligustro), Magnolia obovata (magnólia), Magnolia stellata (magnólia), Pittosporum tobira (incenseiro), Raphiolepsis ovata (espinheiro da Índia), Sophora japonica (acácia do Japão), Trachelospermum jasminoides (jasmins de estrela), Trachycarpus fortunei (palmeira moinho de vento), Ulmus parvifolia (ulmeiro).   Alberto Vieira (atualizado a 03.02.2017)

Madeira Global

invejidade

O termo é considerado no “vocabulário madeirense”, sinónimo de “inveja”, mas não será bem assim. A melhor definição que encontramos é dada por Alberto Arthur Sarmento quando fala sobre os problemas em torno da construção e do funcionamento da estufa de John Light Banger, no Funchal, em 1768: “É termo bem característico madeirense – a invejidade, significando a inveja mal reprimida, encapotada, que mói e ginga, repisa e muito gira, a lançar mão de todos os meios para se alastrar, procurando anular a sombra que a escurece e molesta, húmida e fria, infiltrante, deprimindo o que é alheio, a roçar-se a esquina, para realização dos seus fins. É a inveja dinâmica, sem sentido, nem direção, impando uma coragem embexigada pela vacina do medo” (SARMENTO, 1944, 29). A inveja é um dos sete pecados capitais e pode ser entendida como o desejo de alguém em relação a determinados atributos, posses ou status do outro. Este sentimento materializa-se através de uma certa atitude do olhar, a que se chama “mau-olhado”, “olho gordo” ou “roxo”. Através do pensamento ou de tal atitude do olhar, atingimos os outros, provocando danos. Daí a necessidade de “limpar” ou desfazer esta energia. Para afastar os efeitos da invejidade, usam-se plantas, raízes, sementes e ervas, sob a forma de defumações e banhos que têm o efeito de purificar, proteger ou curar. Nos jardins de muitas casas madeirenses, há uma planta de alecrim, em conjunto com uma pimenteira e arruda, com o mesmo objetivo. O alecrim é mesmo conhecido como a “erva das bruxas”, sendo usado “para defesa dos domicílios e amuleto pessoal contra a inveja e mau olhado” (PEREIRA, I, 1989, 189). Para sarar esta inveja, é usual os madeirenses socorrem-se de curandeiros, que fazem umas rezas apoiados nas referidas plantas. E Sarmento refere-nos uma das muitas preces que existem na tradição popular: “Eu te curo de olhado mal invejado e empresado, em o nome que o padre te pôs na pia, com o nome de Deus e da Virge-Maria e das três pessoas da Santíssima Trindade. Se está mal invejada, no seu comer, ou no seu beber, no seu vestir, no seu calçar, no seu ter, na sua boniteza, na sua formosura [...] na sua gordura, no seu andar; quem invejou com mau mado não torne a invejar. Arrebenta-te, cão, vai-te p’ra o inferno. Alecrim verde, que nasce no campo, tirai este mal e este quebranto. Home bom, mulher irada, palhas aguadas, por onde este mal entrou por lá saia. Credo, três vezes credo, arrebenta cão nas profundas do inferno” (SARMENTO, 1912, 114-115). A diversidade destas rezas, o numeroso grupo de curandeiros que existe em quase todas as localidades da Madeira, bem como a insistente presença das plantas em questão nos jardins locais, nomeadamente na entrada das casas, indiciam que, no começo do séc. XXI, esta tradição se mantinha ativa na Madeira e que a inveja tinha aí um terreno fértil para medrar. Neste período, ao grupo de plantas que, por tradição, os madeirenses sempre usaram, juntaram-se outras, como a chamada língua de sogra ou espada de S. Jorge (Sansevieria trifasciata), o asplênio (Asplenium nidus) e as zamioculcas (Zamioculcas zamiifolia). Daqui ressalta a importância que, cada vez mais, a etnobotânica tem no quotidiano dos madeirenses: sabemos que, de forma clara, as plantas e flores deixaram de ter apenas uma função ornamental para se adequarem a outros papéis, em termos energéticos e espirituais, servindo para a “limpeza” e proteção espiritual de pessoas e casas. A invejidade é um traço comportamental que se torna mais notado em espaços pequenos, definidos pelos madeirenses como poios, mesmo na sociedade global do séc. XXI: ninguém larga o seu poio, ou seja, os seus hábitos, usos e costumes, as suas atitudes e os seus sentimentos. Não há estudos de caráter sociológico sobre os comportamentos dos madeirenses nos sécs. XX e XXI que permitam entender este particular. Também no campo da história, faltam estudos ou relatos que permitam entender a diversidade de atitudes e comportamentos que definem o madeirense. A invejidade é a cobiça refinada e destrutiva que limita o progresso e o convívio social. Não é visível em poucas palavras, manifestações e olhares. Funciona como uma mão invisível que todos negam, mas que está presente de forma diária nas atitudes, nos desejos e nas palavras da população e que se torna expressiva, por exemplo, na literatura popular madeirense, nas quadras que o povo canta. Com efeito, encontramos aí um discurso moral no sentido da sua erradicação: “Inveja é pranta ruim / Que lavra por toda terra. / Se traz raízes no mar / Já bota as folhas na serra” (PORTO DA CRUZ, 1954, 14). Na imprensa, como na literatura, é frequente o tema da invejosidade ou da inveja, atitude que aparece como um dos males que assola a Ilha. Assim, em 1874, alguém que assinou sob o pseudónimo de J. Fausto afirmava: “Das mesquinhas intrigas de inveja, de que está desgraçadamente infecionado o solo madeirense” (Estrella Litteraria, 1874, 4). Depois, em 1912, o já citado Alberto Arthur Sarmento, num conto sobre “A camada de olhado”, refere que a invejidade “em matéria de malefícios era d’arromba” (SARMENTO, 1912, 150). Ainda o mesmo autor, na questão sobre a estufa para beneficiação do trigo construída junto ao Pilar de Banger, dedica um capítulo ao que chama “a invejidade” para ilustrar os problemas decorrentes da construção dessa obra (Id., 1944, 30). Para além disso, temos alguns ditados populares que são expressivos, quanto à generalização da inveja. Em 1952, pode ler-se no periódico Re-nhau-nhau o seguinte adágio popular: “Se a inveja fosse tinha toda a gente andava tinhosa” (Re-nhau-nhau, 10 abr. 1952, 2). Depois, em 1996, afirmou-se no mesmo que “ambições, invejas, caprichos, interesses, egoísmos andam com os homens por onde eles vão para todos os rumos, não há direção que não sigam essas fraquezas da raça humana” (Id., 14 jan. 1996, 4). Vale a pena recordar que, em 1882, no Diário da Tarde, ao comentar-se os problemas e as reclamações em torno da ação do visconde de Canavial, foi afirmado: “ Ai! Se a inveja fosse tinha...” (Diário da Tarde, 21 dez. 1882, 2). É certo que estamos perante uma atitude universal, mas que ganha significado e evidência em espaços pequenos e a pequenez do “poio” pode ser um meio facilitador da sua propagação. Talvez por essa razão, Ferreira de Castro acentuou a questão, escrevendo “todos [...] os seus ódios, as suas invejas” (CASTRO, 1977, 159) e a escritora Agustina Bessa Luís, ao escrever sobre a Madeira, refere “a inveja e o ódio de muitos séculos” (LUÍS, 1996, 16).     Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social

incêndios

A história assinala, de forma evidente, os efeitos devastadores do fogo. Ao descobri-lo, o Homem revolucionou o seu modo de vida, colocando-se, ao mesmo tempo, perante novos perigos. Da mesma forma, o fogo assume um papel fundamental na história da Madeira, pois, logo nos seus primórdios, foi através desse elemento que o europeu purificou a terra e abriu clareiras para assentar morada. No contexto madeirense, é desde logo de salientar o incêndio que, de acordo com a tradição, lavrou a Ilha durante sete anos. À sua chegada, os navegadores portugueses terão ateado um incêndio à floresta densa para nela poder penetrar, mas este terá ganho tais proporções que os atemorizou. Foram sete anos de chama acesa, diz a narrativa tradicional. Segundo Cadamosto, foi com um violento incêndio que os povoadores “varreram grande parte da dita madeira, fazendo terra de lavoura” (ARAGÃO, 1981, 36). Por sua vez, João de Barros escreve: “assim tomou o fogo posse da roça e do mais arvoredo, que sete anos andou vivo no bravio daquelas grandes matas que a natureza tinha criado havia tantas centenas de anos. A qual destruição de madeira posto que foi proveitosa para os primeiros povoadores logo em breve começaram [a] lograr as novidades da terra: os presentes sentem bem este dano, pela falta que têm de madeira e lenha: porque mais queimou aquele primeiro fogo do que lentamente ora poderá delepar força de braço e machado” (BARROS, 1932, 19). Também Fernando Augusto da Silva relata o incêndio, dizendo: “Havendo na Madeira um denso arvoredo que impedia a agricultura, um dos primeiros trabalhos dos seus habitantes foi naturalmente a derruba: Zargo mandou lançar fogo ao arvoredo e ao funcho que havia em grande quantidade no sítio onde depois foi o Funchal, para que desnudado assim o terreno, o pudesse mandar cultivar” (VIEIRA, 1998, 160). Dizem, assim, alguns cronistas, como Manuel Tomás na Insulana, que o incêndio durou sete anos, tendo sido atingida toda a Ilha; porém, outros sustentam que só o foi a sua parte sul. Nesta medida, o incêndio é-nos relatado, primeiro por João de Barros e depois por Gaspar Frutuoso, como sendo parcial, o que parece mais verosímil. Frutuoso dá conta, nos termos seguintes, do incêndio no sertão da Madeira: “Daqui acordou o capitão (João Gonçalves Zarco), vendo que se não podia com o trabalho dos homens desfazer tanto, arvoredo que estava nesta Ilha desde o princípio do mundo ou da feitura dela, e para o consumir, e se lavrarem as terras, e aproveitar-se delas era necessário pôr-lhe o fogo; [...] e, por ser o vale muito espesso assim de muito funcho, como de arvoredo, ateou-se de maneira o fogo, que andou sete anos apegado pelas árvores, e troncos, e raízes debaixo do chão, que se não podia apagar, e fez grande destruição na madeira assim no Funchal, como em o mais da Ilha ao longo do mar na costa da banda do sul, onde se determinou roçar e aproveitar” (FRUTUOSO, 1968, 83). Referindo-se ao mesmo incêndio, Francisco Manuel de Melo diz, na “Epanáfora III”, o seguinte: “É força que duvide do incêndio que (Barros) afirma durou sete anos por toda a Ilha. Ao que, parece, implicam os bosques, que sempre nela permaneceram, dos quais há tantos anos, se cortam madeiras, para fábrica de açúcares: de que dizem chegou a haver na Ilha, cento e cinquenta engenhos; que mal poderiam continuamente sustentar-se, depois de um incêndio tão universal, e menos produzir-se depois dele: mas fique sempre salvo o crédito de tal Autor” (CASTRO, 1975, 78). Os argumentos de Melo são úteis para mostrar que o incêndio da Madeira nem durou sete anos, nem se estendeu a todos os pontos da Ilha, havendo ainda a acrescentar que, se ele tivesse sido geral, como pretendem alguns escritores, não poderia Cadamosto dizer, em 1450, que o país produzia madeiras muito apreciadas, entre as quais sobressaíam o cedro e o teixo. É ainda de salientar que, para o fogo durar sete anos consecutivos em matas constituídas especialmente por essências folhosas, seria preciso que durante esse longo período de tempo não caíssem na Ilha nenhuns dos violentos aguaceiros que continuamente inundam os vales do interior e dão origem a torrentes que se despenham em catadupas do alto das serranias. Ao longo do tempo, os incêndios passaram a deflagrar nas florestas, nas habitações e no espaço urbano. O fogo era indispensável em muitos aspetos do quotidiano, mas as condições de segurança do seu uso eram muito precárias, o que implicava um risco quase permanente. A par disso, houve uma diversidade de incêndios na floresta que resultou da incúria ou malévola iniciativa dos carvoeiros. As fogueiras ateadas para produzir carvão, indispensável à indústria e à vida caseira, era um foco de risco relevante, pelo que, no decurso do séc. XIX, os carvoeiros eram considerados os principais inimigos da floresta. Paulo Dias de Almeida, engenheiro militar, foi para a Ilha em comissão de serviço com o objetivo de atacar os males da aluvião. Na memória descritiva que elaborou em 1817, traça-nos, de forma clarividente, o panorama desolador que encontrou. O seu dedo acusador é apontado à ação devastadora dos carvoeiros, principais responsáveis pela destruição geral dos arvoredos. A sua visão é, a vários níveis, desencantada. Nesse sentido, constata: “as montanhas que não há muitos anos vi cobertas de arvoredos, hoje as vejo reduzidas a um esqueleto”, aditando que até mesmo o “centro da Ilha se acha todo descoberto de arvoredo, com apenas algumas árvores dispersas e isto em lugares onde os carvoeiros não têm chegado” (CARITA, 1982, 53). Outro testemunho atento sobre esta degradação do meio natural surge em meados do séc. XIX pela pena de Isabella de França, uma jovem inglesa que, sendo casada com um madeirense, estava em viagem pela Ilha. O seu olhar atento debruça-se sobre as diversas espécies botânicas e sobre o variado mundo animal, terrestre e marinho. Suscita-lhe particular interesse a flora do Palheiro Ferreiro e da Camacha, locais onde a mão do Homem contribuiu para recuperar a paisagem, através do plantio de pinheiros e espécies exóticas. Aí, o principal depredador não é o carvoeiro, mas o vendedor de lenha na cidade, que saqueia as árvores “sem remorsos, de modo que estas crescem apenas para que as roubem, quando lhes chega a vez” (FRANÇA, 1969, 139). Também Manuel Braz Sequeira, no seu Opusculo de Propaganda, resultante do panorama vivido no verão de 1910, marcado por um incêndio de grandes proporções nas serras, volta o dedo acusador aos carvoeiros, aos pastores de gado e aos lenhadores. Confrontado com esse selvático “vandalismo que se está cometendo nas serras desta Ilha”, o autor clama por medidas e faz campanha em prol da sua arborização (VIEIRA, 1998, 149). Por editais de 23 de agosto de 1802 e de 6 de novembro de 1803, proibiu-se a construção de estufas no recinto da cidade, evocando o juiz do povo os inconvenientes que daí advinham para a saúde pública, pelo fumo e constante perigo de incêndio no período de laboração. Os comerciantes da praça do Funchal manifestaram-se contra, alegando os prejuízos e contrariando os argumentos infundados do referido juiz do povo. Até 1803, só houve três ameaças, sendo já posterior o incêndio que acometeu a estufa de Phelps Page & Ca, a 29 de outubro de 1806. Depois disso, temos referência a três incêndios na última década da centúria: a 20 de janeiro de 1894, o fogo devorou a estufa da firma de vinhos Araújo & Henriques; a 15 de dezembro de 1898, a estufa do conde de Canavial; a 11 de julho de 1900, um prédio da R. do Esmeraldo, propriedade dos herdeiros de Júlio Henriques de Freitas, que tinha, no primeiro andar, uma estufa com 49 pipas, que felizmente se salvaram. Nos inícios do séc. XX, a grande preocupação prendia-se com a necessidade de preservar o pouco manto florestal existente e de pugnar pela recuperação dos espaços ermos. Assim, a necessidade de regulamentação do pastoreio conduziu à lei das pastagens de 23 de julho de 1913. Neste contexto, várias são as vozes que clamam por um reordenamento dos pastos, como é o caso de José Maria Carvalho, ou pela arborização, como J. Henriques Camacho, que será posta em prática por Eduardo Campos Andrade na déc. de 50. O texto O Revestimento Florestal do Arquipélago da Madeira (1946), de Fernando Augusto da Silva, é revelador da forma como evoluiu o panorama florestal ao longo dos séculos e das insistentes medidas ordenadas pelas autoridades. Os dados apresentados provam que uma valiosa riqueza natural, se não for devidamente acautelada, prontamente desaparece, deixando efeitos nefastos sobre o meio. Os incêndios são, assim, uma presença constante na história da Madeira, tendo ficado registada a memória daqueles que mais se evidenciaram. Aqueles que tiveram lugar no espaço urbano, em oficinas, armazéns, padarias, lojas, mercearias e igrejas, tornaram-se mais conhecidos, na medida em que ficaram registados nas ocorrências das associações de bombeiros. Pelo contrário, falta muitas vezes o registo dos que deflagraram nas serras, e que foram uma constante no período estival, porque eram um encargo das câmaras municipais, sendo raramente registados na imprensa. Nos anais da história do arquipélago, encontramos o registo de vários incêndios florestais: 1419, 1838, 1919, 1994, 1995, 1996, 1997, 2000, 2001, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2012, 2014 e 2015. Destes fogos florestais, salientam-se o primeiro e os que se registaram a partir de princípios do séc. XX, que assolaram sobretudo a vertente sul, mais precisamente a área florestal sobranceira ao Funchal. Nas primeiras décadas do séc. XXI, estes destacaram-se pela sua grande violência. Quanto aos incêndios urbanos (habitações e indústrias), registam-se os seguintes: 1593, 1699, 1857, 1878, 1883, 1884, 1885, 1886, 1889, 1891, 1892, 1893, 1894, 1898, 1899, 1900, 1902, 1903, 1904, 1905, 1906, 1907, 1908, 1909, 1910, 1911, 1915, 1916, 1917, 1919, 1924, 1926, 1927, 1928, 1929, 1931, 1932, 1933, 1934, 1935, 1936, 1937, 1938, 1940, 1941, 1942, 1943, 1944, 1945, 1946, 1947, 1948, 1949, 1950, 1951, 1952, 1953, 1955, 956, 1957, 1958, 1959, 1960, 1961, 1962, 1963, 1964, 1965, 1966, 1969, 1971, 1993, 1994, 1995, 1996, 1997, 1998, 1999, 2000, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2016. Estes incêndios de que temos notícia revelam que as mercearias (atingidas em 1903, 1908, 1945, 1952 e 1962) foram espaços muito vulneráveis, às quais se juntam as casas de bordados (1916, 1949 e 1950) e as igrejas e construções religiosas: 12 de julho de 1908, na igreja de Ponta Delgada; 17 de agosto de 1958, na igreja velha do Porto da Cruz; 24 de abril de 1959, no mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, na Caldeira de Câmara de Lobos; 12 de setembro de 1960, na igreja do Faial. Dos incêndios que ocorreram no espaço urbano, alguns atingiram importantes edifícios públicos: 1699 – instalações do governador no palácio de S. Lourenço; 1885 (10 de agosto) – Casa dos Loucos do Hospital de Santa Isabel; 1906 (18 de dezembro) – Quartel do Regimento da Infantaria n.º 27; 1915 (25 de novembro) – engenho do Hinton; 1924 (4 de janeiro) – Casa dos Loucos do Hospital de Santa Isabel; 1927 (23 de fevereiro) – casino Vitória; 1928 (25 de março) – instalações do Tribunal e das Repartições Públicas de Santa Cruz; 1936 (12 de agosto) – Casa da Luz; 1938 (1 de novembro) – fábrica de aguardente nas Quebradas, em São Martinho; 1943 (12 de maio) – fortaleza de Santiago; 1943 (6 de novembro) – Fotografia Vicente, à R. da Carreira; 1947 (9 de janeiro) – palácio de S. Pedro; 1971 (25 de junho) – vários prédios no quarteirão da Casa das Balanças à R. Esmeraldo; 1986 – prédio à R. do Esmeraldo onde esteve instalada a Marconi e, posteriormente, a sede do Tribunal de Contas; 2007 (3 de junho) – edifício da Câmara do Comércio e Indústria da Madeira (ACIF) e do Club Sports Madeira, na Av. Arriaga       Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

História Económica e Social

impostos e revoltas

A nossa história regista várias convulsões geradas por decisões em torno dos impostos. Entre elas, assinalamos as lutas da Patuleia, em parte, envolvendo o tema da atualização das matrizes; a Janeirinha, contra o imposto de consumo; e a Saldanhada, que compreendeu questões concernentes ao sistema fiscal. Estes tumultos refletiram-se na história do arquipélago da Madeira, onde se referenciaram algumas insurreições contra o lançamento ou a existência dos impostos em causa. Palavras-chave: impostos; tributação; revoltas; guerra; política. Os impostos nunca mereceram a aceitação da população, daí o seu nome. A nossa história regista diversas convulsões geradas por medidas concernentes a impostos e tributos. Entre elas, no séc. XVII, a Revolta do Manuelinho, que alastrou de Évora a Lisboa e Beja. Mais tarde, aconteceram as lutas da Patuleia, em parte, envolvendo o tema da atualização das matrizes; a Janeirinha, contra o imposto de consumo; e a Saldanhada, que compreendeu questões respeitantes ao sistema fiscal. Estes tumultos refletiram-se na história do arquipélago da Madeira, onde se referenciaram algumas insurreições contra o lançamento ou a existência destes impostos. “Maria da Fonte” ou “Revolução do Minho” é o nome por que ficou conhecida a revolta popular que irrompeu em maio de 1846 contra o governo do partido cartista chefiado por António Bernardo da Costa Cabral. A situação de tensão política do país, associada ao descontentamento popular, em consequência de algumas medidas governamentais, como as leis de recrutamento militar, as alterações fiscais e, acima de tudo, a proibição de realizar enterros dentro de igrejas conduziram a esta revolta popular. À sublevação inicial, sucedeu, a partir de 6 de outubro, uma situação de guerra civil que ficou conhecida como “Patuleia”, situação acima referida, e que perdurou até 30 de junho de 1847, altura em que foi assinada a Convenção de Gramido. Um dos principais motivos desta convulsão social foi a lei de 19 de abril de 1845 que dividiu a décima em outros três impostos: a contribuição predial, industrial e de juros. A queda do governo inviabilizou esta alteração tributária que foi revogada pelo dec. de 22 de maio de 1846, adiando a sua aplicação e obrigando-a a ser feita de forma faseada, mais tarde. Durante o último quartel do séc. XIX, estes foram um dos principais rastilhos das diversas convulsões populares que aconteceram por toda a Ilha, em 1880, 1897, 1899. À voz dos deputados, juntou-se, em 1887, a dos populares que se revoltaram, por toda a Madeira, contra a medida de implantação das juntas de paróquia criadas em 1836 e que foram adiadas por força do código administrativo de 1886 A oposição popular surgiu quando se divulgou a ideia de que, das mesmas juntas, resultariam novos impostos. Esta revolta representou a expressão do descontentamento popular perante o abandono a que a Ilha fora votada, o que se tornava evidente em momentos de aflição. Mas as juntas de paróquia não funcionaram em muitos dos casos e, apenas com a promulgação do código administrativo de 1886 se pretendeu implantar a referida estrutura na Ilha. O temor de que fossem portadoras de novos impostos conduziu a motins populares aquando das eleições para as mesmas, ficando estes conhecidos como “Parreca”. Os desacatos aconteceram por toda a Ilha, entre 1887 e 1888, com especial incidência no Faial, Caniço, Ponta de Sol e Santana, obrigando ao envio de batalhões militares dos Açores e de Lisboa. Em São Vicente, estes desacatos resultaram na queima de toda a documentação do arquivo municipal, perdendo-se, irremediavelmente, o que estava aí depositado. Em Ponta Delgada e Boaventura, resultaram na não concretização do ato eleitoral para as juntas de paróquia. Em qualquer uma destas convulsões, os agitadores políticos serviram-se dos argumentos que mais faziam alimentar o descontentamento popular. No concelho de São Vicente, estão referenciados tumultos da população, tendo dois como origem o sistema de cobrança de impostos. O mais relevante ocorreu em 12 de abril de 1868 e levou à destruição total do arquivo camarário, tal como referimos. Os tumultos confundem-se com a convulsão política que ocorreu a 8 de março de 1868 e que ficou conhecida como “Pedrada”. As eleições acirraram os ânimos entre os defensores dos partidos Popular e Fusionista e foi esta conjuntura de afrontamento que fez despoletar a revolta popular tendo como objetivo a aplicação do decreto sobre o sistema métrico decimal e a abolição do imposto indireto sobre a eira e o lagar que foi substituído pela contribuição predial. A rebelião alastrou também às diversas autoridades das freguesias. O governador civil enviou forças militares da Ponta do Sol e do Funchal, que aí se mantiveram por algum tempo, sendo suportadas pelo município. O maior problema daqui resultante foi a perda de documentação do arquivo municipal, à qual antes aludimos, que teve implicações negativas na administração corrente dos anos imediatos. Na verdade, quase toda a documentação concelhia foi levada pela população enfurecida e devorada pelas chamas. Assim, de data anterior, apenas restaram quatro livros de registo de testamentos (1801-1834), um livro de despesas do hospital provisório de São Vicente, lavrado aquando do surto de cholera morbus (1856), quatro livros de correspondência para as diversas autoridades do concelho (1843-1867), quatro livros de correspondência expedida às autoridades superiores do distrito (1845-1866) e outros quatro de registo de testamentos (1842-1878). Tudo o mais se perdeu. Depois disto, a população do concelho parece ter adquirido a fama de arruaceira. Sempre que eram tomadas decisões com implicações diretas na vida da população, o temor das autoridades camarárias era evidente. Em 1897, a vereação ordenou ao administrador do concelho que fizesse um auto de investigação para apurar a verdade sobre certos boatos subversivos contra a câmara, que era acusada de falsear as disposições das posturas atribuindo-lhe providencias e lançamentos de impostos revoltantes, talvez com o fim de levar o povo à sublevação. Sabe-se que, na freguesia do Seixal, havia ocorrido, em janeiro de 1868, uma manifestação de desagravo pela revisão das matrizes, o que obrigou a comissão revisora a abandonar o serviço. Certamente, em face disto, a vereação fez sentir, em 1899, a necessidade do serviço de três guardas-civis para a repartição, que apresentava tanto valor e destacou a “importância das loucuras dos contribuintes, face a um concelho tão populoso como este, que se acha excitado não só para praticarem os mesmos desatinos que os povos de Santana, como talvez perdas da Fazenda” (VIEIRA, 1997, 39). Tantas cautelas da câmara não impediram que, noutros momentos, não tivesse havido tumultos, como os que sucederam em abril de 1911, face às medidas governamentais que determinavam o encerramento das fábricas de aguardente. A 20 de março, a câmara apelara às autoridades para a necessidade de revogar esta decisão, face aos receios da ira popular, mas a resposta do governo foi o envio, em segredo, de uma força militar que não impediu que a revolta acontecesse. O resultado foi a prisão de 10 dos revoltosos: Manuel de Sousa Marinheiro, João José Serra, António Sebastião Costa, Vicente, filho de Vicente Vieira, Gregório Fernandes, Francisco Fernandes, João António Gonçalves, Manuel Pereira, Manuel Gonçalves Bacalhau e Manuel Pestana. Em 1880, a câmara decidiu lançar o imposto ad valorem, baseando-se a medida na necessidade urgente de criar receitas para satisfazer as despesas obrigatórias a que era mester atender a fim de conseguir-se o equilíbrio do orçamento da receita e despesa municipais. O imposto incidia sobre todos os produtos exportados do concelho: vimes, cana, carne, coiros, peles, cereais, vinho aguardente, aves, batata, lenha, madeira, nata e manteiga, bordados. O imposto motivou, uma vez mais, a ira popular, sendo um primeiro indício disso as afirmações do comandante da guarda fiscal, Manuel Filipe de Andrade, que havia “afirmado que o imposto ad valorem foi lançado apenas com o intuito de com o rendimento dele os vereadores comerem jantares, ceias e galinhas, isto em São Vicente, e de haver também escutado no Funchal que a atual vereação e município era composta de malandros sabendo ainda a comissão que o dito fiscal nunca perde o ensejo de poder maldizer quer da vereação quer dos seus atos” (Id., Ibid.). A hecatombe eclodiu no dia 10 de julho e levou a vereação a revogar tal imposto. Não sem antes criticar esta atitude. Assim, “considerando que, a forma tumultuosa dos movimentos populares dos dias dez e doze do corrente mês de julho neste concelho e vila, provou que a multidão por palavras e obras se revoltara com o intuito de não pagar impostos municipais, nomeadamente o imposto ad valorem e cuvatos; considerando que tais atos de rebelião coíbem e são a variação municipal duma ação proveitosa e útil dos seus esforços em benefício do mesmo município” (Id., Ibid.). No dia 10 de julho, um grupo de moradores de Boaventura marchou sobre a vila de São Vicente, onde chegou um grupo de mais de mil pessoas, que, em pouco tempo, duplicou. O primeiro alvo da ira foi Heliodoro de Sousa, oficial da repartição do Registo Civil e presidente da comissão executiva da câmara. Os populares acusavam-no de cobrar pelas cédulas um valor superior ao estabelecido no dec. 9521, de 14 de abril de 1924. Foram cercados os edifícios públicos e as casas dos seus responsáveis, que foram obrigados a fugir. Para serenar os ânimos, o Governo enviou uma força, no mesmo dia, que sitiou a vila. Alguns populares da Vargem e de Ponta Delgada obrigaram certas personalidades locais, mais influentes, a acompanharem-nos à vila. Os tumultos alargaram-se à Ribeira Brava e a Câmara de Lobos, municípios onde também se havia lançado o referido imposto ad valorem, criado em 1920 para taxar as mercadorias de exportação para fora do concelho. O relato dos acontecimentos correu nos periódicos funchalenses e despertou a atenção das autoridades. A 11 de julho de 1920, o Diário de Notícias do Funchal questionava a legitimidade das câmaras para sobrecarregar os seus munícipes com estes pesados encargos: “Não se capacitarão as câmaras municipais de que são mandatárias do povo e que, portanto, se eles impõe o dever de fiel e lealmente interpretarem o sentimento dos seus eleitores?” (VIEIRA, 1997, 41) Entretanto, o governador, em circular de 14 de julho, recomenda às câmaras a revisão deste imposto, a exemplo do que sucedera nos Açores. Todavia, a inevitável solução foi a sua extinção, que ocorreu a 11 de julho, na Ribeira Brava e só a 22 do mesmo mês, em São Vicente.   Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

História Económica e Social

imposição do vinho

A necessidade de encontrar uma fonte de receitas para cobrir as despesas do concelho levou os funchalenses a propor ao senhorio o lançamento da imposição do vinho sobre a venda do vinho “atabernado”, o que veio a acontecer em 22 de março de 1485. Para tal, solicitou-se o traslado do regimento da imposição do vinho aprovado para a cidade de Lisboa, que veio a ser publicado a 11 de junho de 1486. O lançamento da imposição do vinho foi determinado, em 1484, por D. Manuel, a exemplo do que se fazia no reino com o real do vinho e da água, ficando a receita para “enobrecimento e cousas do concelho” do Funchal (VIEIRA, 2003, 305). A imposição enquadra-se no conjunto de impostos camarários indiretos, uma vez que só a partir do séc. XVII passou para o controlo do erário régio e a receita a ser repartida. A imposição incidia também sobre outros bens de consumo para além do vinho. Destes, temos nota da carne, cereais, farinha e biscoito. Da referente aos cereais, sabemos que foi arrecadada em 1485, mas, depois, com as dificuldades relativas ao abastecimento deste produto, foi levantada por algum tempo, estando de novo implantada em 1488, altura em que sabemos ser esta de 1 real por alqueire. Para a arrecadação da imposição sobre a venda da carne, a Câmara do Funchal nomeava um oficial, com o encargo de assistir nos açougues ao peso da carne lançado, partindo daí o imposto. De acordo com o lançamento do imposto de 1484, a incidência era sobre o vinho vendido nas tavernas, onerando-se as transações locais entre o comerciante ou produtor e o taberneiro. Todos os que vendessem vinhos deveriam comunicar ao vereador que “o dito carrego tiverem pera se lhe ser esprito o perco a que o puser e lhe ser lancada a vara pera se saber quantos almudes tem […]. Do mesmo modo o mercador fara saber aos oficiais que o carrego teverem, todos os vinhos que trouxer e dos que vender atavernados sera obrigado a fazer a saber ante do abrir pera lhe ser esprito o preço e lhe ser lançada a vara [...]” (Id., Ibid., 305). Aos infratores aplicava-se a pena de 1.000 reais e “mais lhe sera logo levado em cheo todo ho que a dita pipa ou toda ou quanto avia de render a dita renda [...]”(Id., Ibid., 305). O taverneiro que baixasse o preço do vinho deveria participar ao escrivão e ao varejador, para a imposição da quantia ser arrecadada pelo novo preço, ou seja, “uma canada de vinho por almude de 13 canadas por canto a recebe em dinheiro do pouo que asy do dito vinho bebe” (Id., Ibid., 305), enquanto do vinho vendido na pipa deveria ser retirada uma canada ou um almude de 13 canadas. Para a arrecadação do referido imposto, a Câmara estabeleceu três funcionários: o varejador, o escrivão e o recebedor, que respondiam perante a vereação. A arrecadação desta renda fazia-se por arrematação, o que acontecia, anualmente, na presença do governador e do capitão general, do juiz de fora, dos vereadores, do procurador do Concelho e do procurador da Real Fazenda. O porteiro da Câmara, com um ramo verde na mão, fazia o pregão, que era dito durante “muito tempo” (Id., Ibid., 305). Os interessados faziam os lanços, sendo arrematado aquele que apresentasse valor mais elevado, recebendo ele o ramo. Antes de ficar legitimada a sua função de arrecadar a imposição, o arrematante deveria apresentar um fiador e prestar juramento. Para se proceder ao lançamento do tributo, o escrivão da Câmara fazia, no início do ano, uma vistoria às tabernas e lançava, num rol, o vinho aí existente. A partir deste rol, era arrecadada a imposição pelos rendeiros ou recebedor da Câmara. A vereação deveria igualmente nomear, de entre os mesteres, dois varejadores para procederem à vistoria do vinho. O arrieiro-mor conduzia os vinhos às tavernas. A eficácia das medidas de arrecadação do novo direito só foi possível com o recurso a um quadro administrativo. O cargo de condutor de vinhos para as tabernas, com o encargo de aí fazer chegar o vinho, mediante manifestos, foi criado para tornar o controlo da circulação dos vinhos mais eficaz. O varejador percorria as tabernas ou casas onde se vendesse vinho e lançava a vara em todas as vasilhas, dando conta ao escrivão da quantidade disponível, do preço de venda e do dia em que tinha procedido ao varejamento. O recebedor tinha o encargo de proceder ao recebimento e à arrecadação do dinheiro, tendo um livro onde assentava a conta, para dela ser deduzida a soma a pagar e dela dar notícia aos oficiais da Câmara, ao recebedor e ao escrivão da Câmara. O dinheiro coletado começou por ser usado no custeamento das despesas correntes da Câmara, mas, depois, em 1489, foi consignado ao que então se entendia como o “nobrecimento desta vila” (Id., Ibid., 305) e que incluía diversas obras públicas, como caminhos e pontes. Desta forma, por ser uma principal fonte de renda, foi usada, de várias formas, na realização de diversas obras e no custeamento de diferentes despesas. Em 1508, dois terços da imposição das carnes foram aplicados nas obras do baluarte e da fortaleza do Funchal, ficando, assim, estabelecidos dois ramos de arrecadação desta imposição. Nesta mesma data, ficou igualmente estabelecido que a imposição seria de duas canadas por almude de 14 canadas, isto é, um sétimo do vinho vendido nas tavernas. Por alvará de 20 de setembro de 1516, D. Manuel mandou aplicar parte deste produto à construção do hospital do Funchal. Para o período de 1581, foram aplicados dois terços da renda para as despesas de abastecimento de cereal à cidade. Em 1663, nos concelhos de Santa Cruz e Machico, estas rendas foram repartidas entre as obras das igrejas que estavam arruinadas e a construção dos muros das ribeiras. O valor da cobrança era de duas canadas em cada almude de 14 canadas, ou a sétima parte, o que equivale a 14,3 % de imposto. A partir do séc. XVII, a Câmara ficava apenas com um terço do tributo, sendo o remanescente receita da Coroa. O fiador do rendeiro tinha de ser pessoa “abonada”, caso contrário havia quebra de contrato, repetindo-se o ato da arrematação, poucos dias depois. O taverneiro estava igualmente obrigado a apresentar fiador, “para que ele possa na sua taverna vender vinho e tudo o que nele tiver para vender” (Id., Ibid., 305), pagando a imposição. Este imposto incidia sobre o vinho vendido a retalho, havendo obrigatoriedade de os proprietários manifestarem o vinho, ato que era repetido, anualmente, antes de começar a venda do vinho novo. As vendeiras não cumpridoras, geralmente denunciadas pelo rendeiro, eram chamadas à Câmara. Em junho de 1724, o rendeiro da imposição relembrava a Lei Real que proibia as vendeiras de vinho de vender aguardente, sob pena de 6$000 réis e cadeia, e que o pagamento do vinho da imposição não fosse medido por almude. Em 1725, um terço da renda da imposição do vinho no Funchal revertia para os lázaros. Este imposto, sendo embora uma boa fonte de receitas, onerava a vida dos contribuintes, situação agravada quando coincidia com o pagamento do finto. Assim, a 27 de julho de 1729, Sebastião Figueira, rendeiro da imposição do vinho no Funchal e seu termo, queixou-se de 18 ou 19 vendeiras de vinho, as quais, por sua vez, também se queixaram do aumento dos impostos. Parece que, entretanto, fora lançada uma finta, por ordem de Lisboa, o que provocou uma reação dos pagadores e cobradores. Já em finais do séc. XV, o vinho apresentava-se como um produto de grande relevo na economia madeirense, sendo uma importante fonte de receita, por intermédio da imposição, lançada para custear as despesas do concelho ou seu enobrecimento. Esta nova fonte de receita, lançada em 1483 e autorizada em 1485, foi regulamentada pelos regimentos de 1485, 1628, 1640, 1776 e 1782. No séc. XVII, o vinho afirmava-se já como o principal produto da economia madeirense, apresentando-se como a primacial fonte de rendimentos da administração da Ilha. Assim, houve necessidade de melhorar a forma da sua arrecadação, tornando-a mais eficaz e de acordo com o aumento do volume de vinho transacionado nas tabernas. Em 1628, temos novo regimento, em que se delegava toda a responsabilidade da sua arrecadação no juiz, que tinha sob a sua alçada o feitor e o escrivão da Câmara. O juiz assentava o preço, o que recebiam dos direitos, as pipas vazias e os almudes das pipas já abertas. Só após ser colocada a “insígnia de Juiz” (Id., Ibid., 306) o vinho podia ser vendido, procedendo-se à arrecadação dos direitos aos quartéis. Com o decorrer dos anos, aumentou a importância do vinho, assim como os subterfúgios dos taberneiros para se furtarem ao pagamento da arrecadação. Assim sucedeu em finais do séc. XVIII, com a sua arrematação, em lanços bienais, passando a sua alçada para os denominados administradores da renda, que procediam à arrematação dos contratos ao rendeiro ou arrematador, recebendo destes os respetivos valores, aos quartéis, em data estabelecida no contrato. A renda era estabelecida a partir do vinho coletado no ano anterior, sendo deduzida através da abertura do preço corrente do barril de vinho do ano em causa. O rendeiro arrematava a arrecadação da imposição do vinho, em praça pública, obrigando-se a proceder à sua arrecadação, com o auxílio do varejador e do arrieiro-mor ou condutor dos vinhos “atabernados”. Segundo documento de 1784, este último tinha por obrigação “examinar continuadamente por todas as tabernas da cidade o vinho que para elas vai a vender e no fim de cada dia dar conta ao rendeiro para este arrecadar o devido imposto” (Id., Ibid., 310). Até 1796, o arrieiro-mor era nomeado pela Câmara, mas, desde sempre, o rendeiro da imposição do vinho tinha o privilégio de eleger e nomear os seus cobradores. Contudo, no meio rural, manteve-se o hábito da sua eleição pela Câmara, como sucedeu, em 1819, em Santa Cruz. Aliás, em 1834 existiam dois arrieiros – José de Freitas e José da Costa Martins – com o encargo da condução dos vinhos das freguesias do norte para as tabernas. Feita a inspeção para avaliação da quantidade de vinho e estabelecimento do seu preço de venda, procedia-se à sua arrecadação, em género ou em dinheiro. Segundo o regimento de 1628, a imposição era paga em quartéis, de três em três meses. O rendeiro, conforme o contrato, estava obrigado a entregar ao administrador da renda os quartéis estipulados. Depois de deduzidas as despesas inerentes à sua arrecadação, ele deveria confiar metade à Câmara e a outra ao administrador da renda ou à Junta da Real Fazenda. Em 1794, da parte desta última, retirava-se, no Funchal, para o Senado da Câmara. A boa administração desta renda definia-se quer por uma forma prática e responsável da sua arrecadação, quer por medidas proibitivas ou limitativas da venda do vinho a retalho. Assim, por regimento de 1485, foi determinada a imposição de pena de 1000 réis e a apreensão do vinho não varejado. Em 1628, esta pena passou para 2000 réis, e, em 1715, a venda do vinho, por miúdo, sem a insígnia do juiz de fora, na taberna com ramo à porta implicava a perda do vinho encontrado em armazéns e dois meses de prisão irremissíveis, consagrando a proibição de vender vinho na cidade. Ao denunciante era atribuída parte do vinho aprisionado, ao mesmo tempo que se mantinha segredo sobre este. Em muitas freguesias rurais da Ilha escasseavam os agentes económicos interessados na arrematação das rendas, ficando a cargo da Câmara respetiva. O mesmo sucedia na ilha do Porto Santo, onde eram arrecadadas, por inteiro, pela Câmara, que delas se servia para custear as suas despesas correntes. Esta imposição era da sua inteira responsabilidade e esta não admitia intromissões de outras autoridades nesta questão, o que a levou a reclamar, em 1784, contra a intromissão que a Junta da Fazenda Real pretendia exercer. A renda era estabelecida a partir de um rol de vinho disponível nas tabernas, feito pelo escrivão da Câmara no início do ano. Essa vitória marcava, igualmente, o momento a partir do qual os(as) vendeiros(as) podiam iniciar a venda do vinho novo. Esta imposição fora criada, em 1485, para que as suas receitas fossem usadas na beneficiação e defesa da vila do Funchal, razão pela qual, em 1610, uma parte da mesma continuava a ser utilizada para defesa da dita cidade. A renda da imposição do vinho foi empregue na construção da sé do Funchal, tendo o mesmo sucedido em 1502 com as rendas de Ponta de Sol e Calheta. Todavia, em 1508, concluída a construção do novo templo, a Câmara do Funchal solicitava o retorno das mesmas para as obras de enobrecimento da cidade, o que foi autorizado por carta régia de 13 de setembro de 1508. Desta renda, el-rei D. Sebastião autorizou que se retirasse 20 réis para a ajuda das festas de S. Roque. Em 1713, o relojoeiro municipal era pago pelos sobejos dos dízimos, uma vez que o rendimento da imposição do vinho estava aplicado ao sustento dos lázaros e dos expostos. Em 1599, a despesa de construção de uma galé e fragata, para “comboiarem” os mares da Ilha, foi feita através desta renda. No continente, o vinho pagava 7 reais do real de água. Com o novo regimento de 1628, a imposição foi aumentada para duas canadas, enquanto a pena dos infratores passou para 2.000 reais. O vereador mais velho da Câmara era o juiz da Imposição, tendo alçada sobre o feitor e o escrivão da Câmara. A aplicação das penas aos infratores foi alvo de atropelos, acontecendo muitas vezes o juiz julgar indevidamente os taberneiros. Um foi incriminado, em 1780, porque “na sua taverna estava medindo e vendendo vinhos sem insígnia de juiz” (Id., Ibid., 306). A Câmara discordou da pena e da multa, ilibando o réu e obrigando o juiz a indemnizá-lo pelos danos causados. Ao mesmo tempo, retirou-lhe a licença de ofício e proibiu-o de exercer todo e qualquer cargo público. Não estamos perante um episódio único, uma vez que foram constantes as provisões e cartas a recomendar o cuidado a ter na arrecadação, de modo a evitar-se ocultações e desvios. Em 1715, foi proibida a venda a retalho pelos mercadores nos armazéns “contra a forma do regimento, porque sem ramo nem licença o vendiam como lhes parecia” (Id., Ibid., 307), punindo-se os infratores com penas pesadas. Em carta de 1782, D. Maria I ordenou às câmaras da cidade do Funchal e da vila da Calheta a aplicação do regimento que regulamentava a arrecadação da imposição, proibindo a venda de vinhos a retalho fora das tabernas com ramo à porta, dando recomendações sobre a forma de evitar o dolo. Na que dirigiu ao Funchal, refere que os “desvios, e ocultações acometidos na arrecadação da imposição do vinho, sem que tenham sido bastantes os regimentos, posturas e Alvarás, que tem coibido se não venda vinho por quaisquer medidas legais ou arbitrárias, sem se pagar a imposição, procedendo manifestos aos rendeiros ou administradores, cometendo os vendedores o dolo conhecido”. Daí a aplicação das leis reais que proibissem semelhantes descaminhos, não consentindo que pessoa de qualquer qualidade vendesse vinho sem o manifesto e o pagamento da imposição. Na segunda carta, a rainha alude ao “pouco cuidado, com que na Câmara deixa imprevenidas estas distrações em ofensa não só das posturas dela e da Câmara desta cidade, nos Alvarás”(Id., Ibid., 307). Ao mesmo tempo, ordenava-se que o vereador mais velho deveria proceder à devassa contra os infratores, o que na realidade sucedeu, como dá conta ao administrador da imposição do vinho da Calheta, em carta de 12 de abril de 1783. A medida seria suspensa a 7 de maio desse ano. Perante tantas recomendações e ordens repressivas, seria de esperar o cumprimento daquilo que estava estabelecido. A realidade era outra, pois, a 27 de fevereiro de 1806, a Câmara do Funchal ordenava à da Calheta a obediência às ordens régias, enviando-as para que se desfizessem algumas dúvidas surgidas. A mesma ordem foi dada, em 1818, ao juiz ordinário da Câmara da Ponta do Sol, em resposta a pedido de esclarecimento, aludindo-se a que “todo o vinho que se vende atabernado paga imposição e que todo aquele que entra para a venda paga, ainda que seja dado, trocado ou bebido pelo taverneiro” (Id., Ibid., 308). As determinações, por parte do reino, da Junta ou da Câmara, continuaram em cartas, provisões e alvarás, o que comprova que eram insuficientes para evitar o dolo, a infração, os desvios e o suborno. A Junta, em portaria de 1834, dava conta da introdução de vinhos nas tabernas fora da alçada do arrieiro-mor e da venda a retalho nos armazéns. Perante os factos consumados, restava-lhe fazer apelo, por edital, ao juiz do povo, juízes ordinários da Calheta e de Santa Cruz, administrador da renda e público para que fosse posta em prática a lei de 23 de dezembro de 1715. A ação da justiça perante os infratores não condizia com o carácter repressivo das ordens e admoestações das autoridades municipais, sendo a maioria dos casos absolvida, como sucedeu em 1780, 1783 e 1838. Para que a imposição fosse arrecadada na melhor forma, evitando as infrações ou o dolo, tornou-se necessário criar uma estrutura administrativa capaz, em que os agentes, encarregados da arrecadação do imposto, manifestassem interesse e empenho. A solução encontrada foi a arrematação, em lanços bienais, a particulares. O administrador da renda procedia à arrematação dos contratos e recebia os quartéis, na altura determinada. A arrematação do imposto nos diversos municípios passou a contar, desde o séc. XVII, com a presença de um representante do governador. O rendeiro ou arrematador detinha o contrato, de acordo com o estabelecido em praça, e obrigava-se a recolher a renda por meio de agentes. Roque Rodrigues era, em 1792, o arrematador da Câmara do Funchal. Nas freguesias, havia igualmente o arrematador, que procedia à arrecadação, como sucedeu, em 1819, em São Jorge, na alçada do concelho de Machico. Caso não existisse, as funções eram da competência da Câmara. A arrematação deste direito da Câmara do Funchal de 1792 foi feita por uma sociedade composta por Francisco Martins de Gouveia, José Gonçalves Braveza e António Cipriano. O processo não foi fácil para a empresa, pelos desentendimentos havidos, como se pode deduzir de alguns documentos. O rendeiro tinha alçada sobre o arrieiro-mor ou condutor dos vinhos vendidos, nas tavernas, “da livre escolha como as mais pessoas aí ocupadas”. Disso nos dá conta o governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, em 1784: “De todo tempo teve o rendeiro da imposição do vinho o privilégio de eleger e nomear os seus cobradores e vigiar, entre os quais há um capataz a que chamam condutor” (Id., Ibid., 309). Segundo o Gov. Florêncio Correia de Melo, em 1818, a Câmara interveio na nomeação: “Houve um tempo em que a Câmara nomeava sujeito para aquele lugar, mas como a nomeação nem sempre era de vontade dos rendeiros, deixou-se a estes a liberdade de escolher para condutor dos vinhos algum homem de confiança” (Id., Ibid., 307). A Junta não podia, nem devia, interferir na nomeação, como refere a Câmara, em 1784, não se justificando os requerimentos de António Pinho e António João da Silva, pois, por alvará de 14 de abril de 1796, estava impedida de o fazer. O provimento de Tomé da Silva e de Silvestre Jesus Seabra para o cargo de condutor dos vinhos, em 1784, deu lugar a acesa polémica. O facto repetiu-se em 1797 e 1816, respetivamente, com António Silva e João Gonçalves. Na maioria dos municípios rurais, a situação não se justificava, mas nas vilas mais importantes, como Santa Cruz e Machico, poderiam ser necessários, sendo providos pela respetiva câmara, como sucedeu, em 1819, em Santa Cruz, com o soldo de 35 réis por barril, pagos pelo taberneiro. José de Freitas e José da Costa Mateus eram os arrieiros que, em 1834, tinham o encargo de conduzir os vinhos das freguesias do norte para as tabernas. A situação justificava-se pela necessidade de evitar a baldeação com os do sul, uma vez que se alude à medida proibitiva do governador J. A. Sá Pereira. A abertura do preço do vinho, por três homens “probos debaixo juramento” (Id., Ibid., 310), antecedia o ato de arrematação da renda. De acordo com o preço corrente do barril de vinho, estabelecia-se a quantia do imposto, procedendo-se à arrematação, em lanços. O conhecimento público era feito por meio de edital. O arrieiro-mor e o varejador, sob as ordens do rendeiro, percorriam as tabernas da cidade dando conta do vinho, que, depois, registavam em livro próprio. Feita a inspeção, procedia-se ao lançamento da imposição, avançando-se com a arrecadação, em género ou dinheiro. A coleta era feita em género, como se pode deduzir dos avisos da Junta a Paulo Vicente de Ornelas, administrador da renda de São Jorge, para entregar vários lotes de vinho de 200 pipas da renda arrematada a quem a havia adquirido por arrematação. Em 1834, a Junta ordenou ao administrador da renda de Machico que o pagamento aos carreteiros do vinho deveria ser feito pelo preço do ano anterior. Os carreteiros tinham o encargo de transportar o vinho das rendas do lagar aos armazéns da Junta ou do administrador. No ato da arrematação, o rendeiro combinava o modo de entrega da receita da Junta, por norma em quartéis distribuídos pelo período do contrato. O dinheiro da arrematação tinha como base o preço corrente, estipulado a partir da produção do ano antecedente. Os preços eram estabelecidos de acordo com a qualidade da colheita ou o tipo de casta. Assim, em 1828, relativamente à freguesia de São Jorge, temos 600 barris pagos a 1350 réis ao barril, 600 a 1300 réis, e 915 a 1200 réis. Deduzido o dinheiro, procedia-se ao pagamento aos quartéis. Retiradas as despesas de arrecadação, o rendeiro entregava metade à câmara da zona do arrendamento e a outra ao administrador local da renda. Já em 1792, em aviso do juiz da Câmara da Ponta do Sol, e em 1798 e 1835, por aviso ao rendeiro da imposição do vinho de São Vicente, João António de Gouveia, é patente que metade da renda era entregue à Câmara e a outra à Junta. Em 1794, da parte da Junta deduzia-se, no Funchal, um terço para o Senado da Câmara. No Porto Santo, à falta de rendeiro, a soma era arrecadada, por inteiro, pela Câmara, que dela se servia para custear as despesas normais. Os quartéis da renda eram pagos, de forma irregular, justificando-se pelas condições adversas da produção. Para evitar perdas com o contrato, o arrematador reclamava das dificuldades, esperando poder contar com os bons ofícios das autoridades. Acontece que a disputa entre diversos grupos de arrematadores fazia elevar a renda a valores incomportáveis A solução estava no recurso a diversos subterfúgios para evitar a entrega do imposto. Foi o que sucedeu com o contrato de 1776/1778, em que a renda foi arrematada em 601.000 réis. Em 1785, ainda estavam por arrecadar 2.881.000 réis, pelo que a Junta deu parecer favorável à proposta apresentada por António Cipriano da Conceição, arrematador de 1783/1784, para ser novo rendeiro dos anos de 1785/1787 por 5.610.000 réis ao ano, com a cláusula de não ser posta em praça. A Junta estava consciente da situação, insistindo nos inconvenientes do ato de arrematação. O valor elevado das dívidas, em 1790, obrigou à decisão drástica de proibir os devedores de proceder a novas arrematações. A informação sobre as rendas da imposição é muito limitada e só dispomos de dados em série, para o período que decorre, a partir de 1775. No quadro geral do valor das rendas arrecadadas, podemos assinalar, entre 1781 e 1799, uma tendência de aumento, até se atingir, em 1797/1798, quase o dobro dos anos de 1780 e 1781. No período de 1803 a 1805, atingiu-se, de novo, valores baixos, inferiores aos de 1780-1781, mas a receita voltou a subir. Entre 1818 e 1834, faltam-nos dados totais, mas dispomos de alguns parcelares que elucidam, ainda que de modo precário, acerca da imposição em momentos críticos da primeira metade do séc. XIX. A renda começou por ser administrada pelo município, contudo, com o domínio filipino, passou a contar com a intervenção da Coroa, através do erário régio, sendo a receita dividida entre o município e este. Não obstante ter sido uma renda criada para usufruto dos municípios, no sentido de suprir as despesas, a forma de aplicação foi distinta ao longo dos tempos. No Funchal, a primeira aplicação da renda foi na construção da praça que deveria servir o edifício da Alfândega e a Igreja. Em 1488, o imposto só poderia ser aplicado na aposentadoria do tabelião, mas em 1489 e 1490 insiste-se no uso para enobrecimento da vila, que, em 1493, significava a realização de obras para as casas do concelho e da cerca e muros. D. Manuel tinha perfeita consciência do objetivo da imposição e queria seguir, rigorosamente, a finalidade, reprovando a atitude da Câmara quando pretende desviá-lo para outros fins: “Em outro apontamento que pedis por mercê que vos deixe gastar a imposição no que vos bem parecer este requerimento fora razoado se me viras gastar dela em alguma coisa que não pertencera ao bem dessa terra mas vós sabeis que eu vos tenho dado segurança que nem meus sucessores não gastem nem metam mão nessa renda se não em coisas de enobrecimento e acrescentamento e honra dessa vila como até aqui é feito”(Id., Ibid., 313-314) Nos primeiros anos do séc. XVI, as rendas do Funchal, Ponta de Sol e Calheta foram usadas no financiamento das obras da Sé do Funchal. Concluída a obra, desviou-se o dinheiro para a aposentadoria, a correção das ribeiras e obras do hospital. A partir de 1568, a grande preocupação da cidade estava nas despesas militares, em que se incluíam a fortificação da cidade e as despesas do presídio. Ao longo dos tempos, foi evidente o choque de interesses entre o município e as autoridades régias sobre a forma de utilização da receita do imposto. Assim, quando, em 1611, se estabeleceu que dois terços ficariam consignados à fortificação, a Câmara considerou que seriam mais bem aproveitados na canalização das ribeiras, sendo contrariada pela intervenção decisiva do governador, que insistiu na construção da fortaleza do Pico. No decurso do séc. XVIII, parece que a receita passou a ser distribuída em três partes para diversas finalidades. Assim, para além da parte usada no apoio social aos lázaros, há dois terços dedicados à fortificação. Os princípios que regeram o lançamento da imposição do vinho perduraram até ao séc. XIX. Assim, em 1839, na prestação de contas ao administrador geral, justificou-se a despesa de 4612.275 réis da imposição do vinho, que “foi gasta em obras municipais, sustento dos expostos, sustento dos Lázaro, pagamentos dos empregados, pagamento às Câmaras municipais desta ilha da quarta parte do imposto dos cereais, que lhes pertence, e em diversas despesas miúdas”(Id., Ibid., 314).   Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

História Económica e Social