corso
Há uma diferença entre corso e pirataria, embora muitas vezes as duas atividades se confundam. O corso acontece quando alguém que se dedica ao trabalho de pilhagem no mar ou em terra está munido de um documento régio que o legitime – a chamada carta de corso, passada por um monarca, que autoriza o exercício da atividade, e uma ordenança de corso. Esta ação exerce-se contra os inimigos, nomeadamente em momentos de guerra, sendo uma forma de extensão dos conflitos bélicos do espaço terrestre para o marítimo. É nesses momentos que mais se fazem sentir os efeitos nefastos da guerra de corso, como sucedeu, e.g., no período da União Peninsular, a partir de 1580, e, depois, com as guerras de sucessão da Áustria e de independência das colónias europeias dos continentes americanos. Já a pirataria acontece quando as embarcações que desenvolvem a atividade de perseguição e saqueio doutras embarcações, ou em terra, não têm a sua ação legitimada por uma carta e ordenança de corso. É por isso que o ataque francês de 1566 ao Funchal poderá ser entendido como uma atividade de pirataria, enquanto muitas das ações de nações inimigas, que se sucederam entre 1580 e 1640, contra as embarcações ibéricas que em algum momento atingiram o Funchal, foram atividades de corso. No pós-1640, Francisco Álvaro Homem, conhecido como o “pirata do jardim do mar”, recebeu carta de corso de D. João IV, em troca de proteção aos navios do comércio do Brasil. Recorde-se que, por esse motivo, foi deserdado por sua mãe, D. Maria Gonçalves de Távora. Entretanto, em 1730, Pantaleão Faria de Abreu solicitava autorização para armar o bergantim Santana e São Joaquim para poder perseguir uma setia moura que empestava os mares da Ilha, criando insegurança. A ordem favorável do governador funcionava como documento jurídico legitimador da ação. Era através das chamadas ordenanças de corso que os monarcas organizavam o modo de atuação das diversas delegações do almirantado e o apoio a conceder, aos níveis naval e militar, aos corsários, bem como as bases de ação de corso. Para que um corsário fosse dado como tal pelas potências beligerantes ou amigas, tinha de possuir a referida ordem ou documento comprovativo e de ter prestado fiança, e era obrigado a entregar as presas a um tribunal especial, a quem competia determinar o seu destino. Este direito de corsário deixava de ter efeito quando não fossem respeitados estes requisitos e, acima de tudo, quando não existia a carta de patente, ou estava caducada, ou quando, por qualquer motivo, o corsário violava a lei do direito das gentes. Este perdia ainda essa condição quando atuava nas águas fluviais do inimigo. Assim, e.g., em 1739, o bergantim castelhano Santelmo e Nossa Senhora da Candelária aportou ao Funchal e apresentou a sua carta de corso de 24 de novembro de 1739, como forma de legitimar a sua ação contra os Ingleses. Os mares do Funchal eram constantemente invadidos por corsários franceses e castelhanos que andavam em busca da sua presa, os navios ingleses. Em 1803, a tomada de uma galera espanhola por um corsário inglês, no porto de Ponta Delgada, conduziu a uma viva polémica, em razão de o ato se ter praticado em águas territoriais portuguesas. O caso repetiu-se, no mesmo ano, com o corsário Gordon, que tomou a galera espanhola Nossa Senhora das Mercês dentro do porto, e a quem o governador da Ilha solicitou por carta a apresentação de documento comprovativo da declaração de guerra e a ordem de corso, pois caso contrário seria considerado pirata. Contudo, segundo informe do cônsul, Gordon possuía ordem de corso. A patente de corso justificava e legitimava a ação do corsário. Já o ato de apresamento de um navio deveria partir de uma causa que o justificasse. Nos sécs. XVIII e XIX a causa que levava ao corso estava ligada de modo direto às guerras europeias, por um lado, e às guerras da independência das colónias americanas, por outro. Assim, quer durante a Guerra de Sucessão da Casa de Áustria (1740-1748), quer durante as Guerras Napoleónicas (1799-1815), houve um confronto aberto entre Ingleses, Franceses e Espanhóis, com particular incidência na Madeira, uma vez que os Ingleses haviam escolhido o Funchal como base de apoio às suas ações de corso no Atlântico, razão por que a Ilha se vê envolvida neste tipo de guerra. Por vezes, não era necessária uma declaração aberta sobre as potências para se lançarem ações de corso, pois estas articulavam-se frequentemente a partir de rivalidades latentes pela posse das rotas e dos mercados coloniais. Era a luta entre os adeptos do mare liberum e do mare clausum. Muitas vezes, bastava o navio pertencer a uma nacionalidade neutral em face dos conflitos, mas com uma certa colaboração ativa com o inimigo, para se justificar uma ação de corso, tal como sucedeu com Portugal relativamente a Inglaterra; outras vezes, era suficiente o transporte de mercadorias de nação inimiga. Em face destas situações, a atuação, bem como a organização e o apoio ao corso, estava regulamentada pelas respetivas ordenanças, das quais temos notícia, em França, em 1584, 1881 e 1778, na Holanda, em 1597, 1622 e 1705, em Inglaterra, apenas em 1707, na Dinamarca, em 1720, e em Espanha, em 1718, 1762, 1779 e 1802. As mesmas ordenanças estipulavam os aspetos logísticos das embarcações armadas em corso, não só por meio das casas de apoio, onde estas podiam fazer aguada e prover-se de munições dos armazéns reais, mas igualmente do serviço da tripulação a bordo. Se atentarmos um pouco na adição da ordenança de 1718, veremos o lugar de destaque que é dado à questão do armamento, das munições e do apoio diversificado pelas diversas dependências do almirantado, ao mesmo tempo que se constata, e.g., que existia um controlo rigoroso da tripulação ao serviço. A questão da legitimidade jurídica destas ações de corso prende-se com várias noções difusas de direito internacional que marcaram os primórdios da expansão europeia; não parece ter havido entendimento entre os diversos participantes, não obstante a criação de tribunais arbitrais para o efeito. O período que decorre nas duas décadas finais do séc. XVI é marcado por inúmeros esforços da diplomacia europeia no sentido de conseguir a solução para as presas do corso. Para isso, Portugal e França haviam acordado, em 1548, a criação de dois tribunais de arbitragem, cuja função era anular as autorizações de represália e cartas de corso. Contudo, a sua existência não teve reflexos evidentes na ação dos corsários. A abertura do mundo atlântico foi, no início, geradora de conflitos com a disputa pela posse das Canárias, que se alargou, depois, ao próprio domínio do mar oceânico. Portugueses e Castelhanos entraram em aceso confronto, servindo o papado de árbitro na partilha. Os Franceses, os Ingleses e os Holandeses, que num primeiro momento foram apenas espectadores atentos, entraram também na disputa, reivindicando um mare liberum, i.e., o mar livre ou aberto a todos, e o usufruto das novas rotas e e dos novos mercados. Por outro lado, o Atlântico não foi apenas o mercado e a via comercial, por excelência, da Europa, mas também um dos palcos principais para onde se transferiram e onde se desenrolaram os conflitos das coroas europeias, por meio da guerra de corso. Neste contexto, sendo as ilhas atlânticas os principais pilares da estratégia de domínio do oceano e da afirmação dos impérios, acabaram por se ver envolvidas nesta guerra de corso, que tem como palco os mares. Quando os Portugueses se lançaram, no séc. XV, à exploração do oceano, encontraram, à partida, um primeiro obstáculo. As Canárias, que tão necessárias se apresentavam para o controlo exclusivo do oceano, estavam já a ser conquistadas por Jean de Béthencourt, navegador francês financiado pelos mercadores de Sevilha. Esta foi a primeira dificuldade, que causou inúmeros problemas à plena afirmação do mare clausum lusitano. Em face disso, só havia uma possibilidade: tomar posse de uma das ilhas por conquistar (La Gomera, por exemplo) e avançar com o povoamento da Madeira, que poderia funcionar como área suplementar no apoio ao progresso das viagens para o Sul. Rapidamente, do mare clausum ibérico se passou ao mare liberum, partilhado por todos, por força da pressão dos impérios francês, holandês e inglês. Se é certo que a disputa peninsular pelo domínio dos mares ficou solucionada com os tratados assinados em 1479 e 1494, o mesmo já não poderá dizer-se quanto à cobiça e ao empenho de outras Coroas europeias pela posse das rotas e dos novos espaços, como foi o caso de França. Restava aos que haviam ficado de fora o recurso à guerra de corso, o contrabando e o comércio ilegal. O corso foi a resposta dada pelos excluídos ao domínio ibérico dos mares e do chamado Novo Mundo. Isto porque aos demais povos europeus, habituados desde muito cedo às lides do mar, só restava uma reduzida franja do Atlântico, a norte, e o Mediterrâneo. O cisma do Ocidente, por um lado, e a desvinculação de algumas comunidades da alçada papal, por outro, retiraram aos atos jurídicos a plenitude da ação e da eficácia. À doutrina definidora do mare clausum opõe-se a do mare liberum, que teve em Grócio o principal teorizador. Foi esta última visão da realidade oceânica que norteou a intervenção de Franceses, Holandeses e Ingleses neste espaço. Os Ingleses deram início, em 1497, a incursões sucessivas no oceano, enquanto os huguenotes de La Rochelle se afirmaram como o terror dos mares, primeiro com a tentativa de assalto à Gran Canaria e a Tenerife, em 1556, e depois com o assalto concretizado, em 1566, à cidade do Funchal. Os Franceses estiveram ativos por toda a déc. de 50, tendo, depois de um período de curta acalmia (1559-1569), os ataques voltado a recrudescer a partir de 1579, atingindo o auge na déc. de 80. A navegação tornou-se mais difícil e as rotas comerciais tiveram de ser adequadas a uma nova realidade: surgiu a necessidade de artilhá-las e de uma armada para as comboiar até porto seguro. Perante a situação de instabilidade nas ilhas, a Coroa procurou estabelecer um conjunto de medidas de proteção das populações e rotas comerciais. No período de 1536 a 1556, há notícia do envio de pelo menos 12 armadas com esta missão. Depois, procurou-se garantir nos portos costeiros do arquipélago um ancoradouro seguro, construindo-se as fortificações necessárias. Os Castelhanos tinham necessidade de uma estrutura de apoio do mesmo género na área considerada crucial para a navegação atlântica, pelo que, por diversas vezes, solicitaram o apoio das autoridades açorianas. Contudo, a ineficácia, ou a necessidade de uma guarda e defesa mais atuantes, obrigou-os a reorganizar as suas carreiras, criando um sistema de frotas. A partir de 1521, estas frotas, para afugentar os corsários e garantir proteção e segurança ao trânsito das embarcações, passaram a usufruir de uma nova estrutura organizativa e defensiva. Primeiro, vigorou o sistema de frotas anuais artilhadas ou escoltadas por uma armada; depois, a partir de 1555, o estabelecimento de duas frotas para o tráfico americano: Nueva España e Tierra Firme. Para Portugal, em 1565, assinalam-se 43 embarcações e 2825 homens envolvidos neste processo, distribuídos pelas armadas da costa do Algarve, da costa do reino, das ilhas, do Brasil, da Mina, da ilha da Madeira, do Norte de África e do Congo. A conturbada conjuntura política de finais da centúria quinhentista e princípios da seguinte provocou uma mudança do cenário. A crise dinástica e a consequente união das Coroas peninsulares levaram a uma abertura da área ao comércio dos insulares, dos seus vizinhos e dos demais europeus, nomeadamente os Holandeses. Se é certo que, em determinando momento, as ilhas se fecharam ao comércio com os inimigos políticos e religiosos, também não é menos verdade que a união não conseguiu garantir o exclusivo dos mercados detidos pelas monarquias ibéricas, agora unidas. Isto representou um passo para a partilha do oceano por todas as potências europeias, que não prescindiram da posição fundamental das ilhas. No caso dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, não foi fácil ao novo Monarca impor limitações à presença dos inimigos estrangeiros. Assim, não obstante a ordem de expulsão dos Ingleses, em 1589, e as posteriores medidas limitativas do tráfico comercial com a Europa do Norte, não se pode dizer que tenha existido uma total rutura nas relações comerciais. O mesmo sucedeu com os Franceses. Na verdade, La Rochelle continuará a ser um porto de permanente contacto com os portos de Angra, do Faial e do Funchal. Perante isto, poderá concluir-se que o mercado das ilhas não foi tão afetado pelas alterações políticas e consequentes represálias como à primeira vista pode parecer. Na Madeira e nos Açores, continuou a afirmar-se a presença britânica, que teve consumação plena na segunda metade do séc. XVI. O mundo das ilhas manteve-se alheio ao jogo de interesses europeus. Apenas nos espaços continentais atlânticos (África e Brasil) e no Oriente se tornava evidente o assalto dos beligerantes às possessões portuguesas, acabando por fragilizar a hegemonia e o império que os Portugueses haviam conseguido em princípios do séc. XVI. Os primeiros indícios do corso, como forma de represália, acontecem na déc. de 70 do séc. XV, por iniciativa de barcos castelhanos que ameaçam o Funchal. Antes disso, já João Gonçalves Zarco atuara como corsário nas costas da Andaluzia e do Algarve. Os conflitos peninsulares e nos mares propiciavam esta situação, uma vez que também os Portugueses faziam corso nas Canárias. Esta situação gera algum receio e leva os moradores do Funchal, em 1476, a lembrar à infanta D. Beatriz a necessidade de acautelar a Ilha contra estas possíveis ameaças. Havia por parte das populações ribeirinhas um pensamento de permanente insegurança sobre o que poderia vir para além da linha do horizonte. O exemplo mais seguro desta situação é a passagem inesperada da armada de Colombo, em 1498, pelo Porto Santo, em que é confundida, no primeiro momento, com um corsário. Cedo os Franceses começaram a infestar os mares da Madeira (1550, 1566), seguidos dos Ingleses e dos Holandeses. A partir da União Peninsular, sucederam-se inúmeros assaltos franceses à Madeira, no que contaram com a pronta resposta de Tristão Vaz da Veiga. Este afirmara-se pelas façanhas bélicas no Oriente; contudo, ficou célebre pelo facto de ter entregado a Fortaleza de S. João da Barra aos Espanhóis, ato que lhe valeu benesses dos novos Monarcas: em 1582, recebeu a capitania de Machico, e, em 1585, o cargo de governador-geral do arquipélago. Em 1566, teve lugar o maior assalto francês a um espaço português: em outubro desse ano, Bertrand de Montluc, ao comando de uma armada composta por três embarcações, atacou a Vila Baleira e a cidade do Funchal, dominando a cidade durante 15 dias. O corsário roubou produtos da terra (vinho e açúcar), profanou igrejas (nomeadamente a Sé do Funchal), roubando alfaias religiosas, e fez bastantes escravos. Do assalto, ficaram alguns relatos e testemunhos presenciais, mas o mais pungente e pormenorizado é o de Gaspar Frutuoso, que, em As Saudades da Terra, dedicado à Madeira, descreve, de modo sucinto, os acontecimentos e condena o descuido das suas gentes, pois a cidade estava “mui rica de muitos açúcares e vinhos, e os moradores prósperos, com muitas alfaias e ricos enxovais, muito pacífica e abastada, sem temor nem receio do mal que não cuidavam” (FRUTUOSO, 1979, 328). Muito se tem dito sobre este ato dos Franceses, afirmando-se a motivação religiosa, por força da sua origem huguenote. Pode ter sido essa a motivação para a dureza da profanação dos espaços sagrados, como a Sé do Funchal, mas estes episódios têm normalmente origem em motivações de carácter político e económico. O corso tomou outro rumo a partir da déc. de 80, sendo as diversas iniciativas uma forma de represália à união das Coroas peninsulares, o que ficou expresso na intervenção de diversas armadas – Francis Drake (1581-1585), George Clifford, conde de Cumberland (1589), John Hawkins, Martin Frobisher, Thomas Howard, Richard Grenville e Robert Devereux, conde de Essex (1597) –, não se limitando ao assalto às embarcações peninsulares de regresso à Europa carregadas de ouro, prata, açúcar e especiarias. Esta ação estendeu-se à terra firme, à procura de um abastecimento de víveres e água ou do saque, como sucedeu em 1585, em Santiago (Cabo Verde), em 1587, na ilha das Flores, e em 1595, no Porto Santo. De um momento para o outro, o pânico acometeu as populações, e o medo de viajar entre a Ilha e os portos do reino era generalizado. Desta forma, em 1619, ao ser notificada para ir ao reino prestar contas das dívidas do marido à Fazenda Real, Constança Dinis negou-se a tal obrigação, alegando que “o mar e toda a costa de Portugal cheia de piratas e navios turcos que andam a furtar e cativar gente e têm cativado e tomado muitos navios que desta ilha vão para Lisboa e desta verdade não é sua Majestade informado” (CARITA, 1998, 266). Estamos na época em que o terror dos mares está representado nos corsários argelinos e turcos. Os primeiros tomaram de assalto o Porto Santo, em 1616, e retornaram, em 1626, à Fajã dos Padres, na Madeira, e, depois, ao Porto Santo, em 1667. Também os Franceses ali estiveram, em 1556, 1690 e 1708, fazendo dessa ilha mártir da guerra de pirataria e corso. Na carta de Constança Dinis de 1619, fala-se dos Turcos, apesar de estes apenas serem referidos no Porto Santo em 1641. Ao mesmo tempo, a instabilidade das potências europeias gera apreensão entre os mercadores, e o comércio ressente-se. O temor da guerra de corso está quase sempre presente no seu quotidiano, mas agrava-se em momentos de tensão política nos continentes, repercutindo-se nos mares. Esta situação é muito clara na correspondência privada, como é o caso de Diogo Fernandes Branco, mercador madeirense, e de William Bolton, mercador inglês. Há um risco, raras vezes calculado, que os leva a confiar, nestes momentos de tensão, na Providência Divina. O quase permanente clima de tensão dos impérios europeus e a persistência de piratas e corsários fazem com que William Bolton, como outro qualquer mercador, afirme, em 1701: “não sabemos como agir nesta situação, enquanto a paz e a guerra estiverem na balança” (Id., 1996, 432). Em abril de 1703, porém, quando atua na qualidade de cônsul inglês, a sua atitude é de regozijo por uma batalha bem sucedida de um barco com o pavilhão inglês face a outro de França, fortemente armado. As mudanças, no domínio político e económico, dos sécs. XVIII e XIX não retiraram às ilhas a função de escala e de espaço de disputa e controlo do mar oceano. A frequência de embarcações manteve-se associada a uma forte escalada do corso. Aos tradicionais corsários de França, Inglaterra e Holanda, juntaram-se os americanos do norte e sul. As ilhas estiveram, de novo, sujeitas a uma conjuntura de instabilidade, pautada pelo medo e pela guerra, que prejudicou o comércio e a segurança das populações. Entre 1763 e 1831, a Madeira e os Açores foram confrontados com as ameaças e intervenção do corso europeu (franceses, ingleses e espanhóis) e americano, salientando-se, relativamente aos últimos, a represália dos insurgentes argentinos. Ambos os arquipélagos se evidenciaram como encruzilhada de interceção do fogo da guerra de represália americana e europeia. As ações de corso no Atlântico articulam-se, de modo direto, com a dinâmica europeia de extensão colonial em que o Atlântico surge como via de ligação imprescindível para o evoluir do processo histórico europeu colonial. A guerra de corso alia-se a esses vetores, e vai surgir uma área de passagem, abrangendo os Açores, a Madeira e as Canárias. É outra forma de guerra das potências beligerantes europeias e americanas, cujos conflitos circunscritos ao domínio terrestre se alargam ao mar, produzindo efeitos catastróficos para as áreas atingidas que apresentam uma economia de mercado fortemente dependente, como é o caso da Madeira. São disso exemplo as ações do corsário inglês Amyas Preston, em 1595, e doutros corsários ingleses, em 1601. Os conflitos europeus, como a guerra de sucessão da Casa de Áustria (1740-1748), as Guerras Napoleónicas (1784-1815) e o consequente bloqueio continental (1806-1809), são a expressão do confronto aberto entre os dois maiores potentados europeus – França e Inglaterra –, levando ao embate das duas esquadras mais poderosas da Europa. Se o período de 1713-1740 pode ser considerado como de paz longa entre França e Inglaterra, ao nível naval, o mesmo não se poderá dizer dos anos consequentes, num período que se arrasta até 1831. Entre 1740 e 1748, num momento de confronto bélico em todo o continente europeu, encontramos uma forte incidência do corso, especificamente na Madeira, onde os Ingleses investiram contra os Espanhóis e os Franceses. Seguiram-se os corsários franceses, em 1793, 1796, 1797 e 1798. Com o dealbar dos conflitos no período posterior à Revolução Francesa, surgem novas ações de corso na Madeira, entre 1793 e 1801, e entre 1804 e 1811. O momento de finais do séc. XVIII é particularmente importante, uma vez que foi o período de maior dimensão da guerra naval britânico-francesa. Até 1798, os Franceses tomaram aos Ingleses e seus aliados 3199 navios comerciais, enquanto estes apenas aprisionaram 934, tendo 513 deles sido retomados. Deste modo, ao nível dos navios de comércio, a situação foi favorável a França, o mesmo não sucedendo com os navios de guerra, onde era vincada a superioridade naval inglesa, demonstrada nas batalhas de Aboukir e Trafalgar. Os períodos de maior incidência do corso na área atlântica situaram-se, na Madeira, entre 1804 e 1811, abrangendo o momento do bloqueio continental e o momento da ocupação inglesa da Ilha; nos Açores, situaram-se entre 1814 e 1821. Das ações registadas, temos os corsários franceses em 1801 e 1806; os ingleses em 1801, 1805, 1806, 1807, 1810, 1813 e 1814; e os argelinos em 1806 e 1807. Os anos de 1818-1821, 1823-1826 e 1828-1831 são marcados por um ressurgir dessas atividades, de modo ativo, na Madeira, com ações esporádicas e de pouca importância em relação aos momentos de início do século, e poucas ou nenhumas foram as presas então feitas. Situada a meio caminho entre o colonizador e as colónias americanas, africanas e asiáticas, a Madeira encontra-se num eixo importante de apoio logístico das rotas coloniais. Primeiro, com a dinâmica colonial principiante, depois, com o período de apogeu, abrangendo assim o vasto período compreendido entre 1450 e 1850. Em razão desse polo de atração das rotas, aí se praticaram, ao longo dos sécs. XV e XVII, constantes ações de pirataria e corso contra as embarcações das rotas ou contra as terras insulanas, como realmente sucedeu na Madeira, em 1566, com os Franceses e, por diversas vezes, no Porto Santo e em Santa Maria, com os piratas argelinos. Para aí convergiam os piratas e corsários, à procura das naus das rotas das Índias, que aí faziam escala na ida e, por vezes, no regresso, servindo-se da conhecida rota dos ventos Alíseos de Nordeste. Esta dinâmica manteve-se e mais se acentuou nos sécs. XVIII e XIX, em razão do forte impulso dado ao comércio do vinho Madeira, o vinho do colonizador europeu nas Índias Ocidentais e Orientais. Várias são as referências à passagem desses comboios, de que podemos destacar o de 1740, com 42 navios com destino às Índias Ocidentais, o de 1769, o de 1799, com 108 embarcações, e o de 1815, que conduzia Napoleão para a ilha de Santa Helena. Mais referências se juntam nos anos imediatos de 1804, 1805 e 1807, onde se dá conta de que os navios comerciais seguiam em comboio, patrulhados por fragatas de guerra bem armadas, como a nau de guerra Malabar, com 50 peças, e a fragata Tiveed, com 24. Entretanto, os Ingleses precisavam de deter o controlo do mar das ilhas, única forma de manterem protegidos os comboios das Índias Ocidentais e Orientais das constantes investidas dos corsários franceses, espanhóis e argelinos, que se intensificaram nestas paragens nos momentos mais críticos das guerras europeias de 1740-1748 e de 1799-1814, conseguindo-o pela manutenção de esquadras permanentes de corsários e navios de guerra com base na Madeira. Destes, regista-se, em 1780, a ação da esquadra britânica sob o comando do comodoro George Johnstone, que andava cruzando a costa da Madeira, enquanto em 1814 se dá conta da saída de um navio inglês, Garland, a proteger um comboio de navios ingleses e portugueses. Era especialmente na área da Madeira que os Ingleses faziam incidir as suas ações de corso contra Espanhóis, Franceses e até mesmo Portugueses. A primeira referência é-nos fornecida em 1700, na qual se refere que, a 17 de novembro, chegaram à Ilha cinco navios comboiados por dois navios de guerra, rumo à costa da Guiné, os quais conduziam um navio francês carregado de “açúcares pretos, que aí venderam a bordo” (ANTT, Provedoria…, liv. 977, fls. 312v.-313). Entre 1740 e 1748, em face da Guerra de Sucessão da Áustria, aumenta a ação dos corsários nas águas da Madeira, destacando-se os Ingleses, “que se servem da ilha com mais proveito [...]. Aproveitando o Funchal como sustentáculo cómodo, corsários ingleses passam a alterar com grandes danos contra a navegação das potências inimigas, sendo especialmente vítimas os navios espanhóis que circulavam no tráfego das ilhas Canárias, Costa de África (de modo particular o norte), Espanha e Mediterrâneo ou América” (Ibid., fls. 87-88). Estes aparecem, então, com um total de 27 presas feitas, sendo 16 delas a embarcações espanholas e cinco a francesas. Das espanholas, 10 foram apresadas nas águas das Canárias, conjuntamente com as únicas duas portuguesas. Para a manutenção deste bloqueio oceânico, os Ingleses precisavam da ilha da Madeira e do apoio das autoridades locais, uma vez que aí estacionavam constantemente corsários ou navios de guerra. Destes, podemos destacar a balandra corsária do capitão Filipe Maré, que aí estacionou durante dois meses, tendo trazido ao porto três presas, e o corsário Rei Jorge, que entre novembro de 1746 e fevereiro de 1747 conseguiu fazer cinco presas. Da parte dos Espanhóis, encontramos uma reação em força, com o bergantim Santelmo e Nossa Senhora da Candelária, sob o comando do Cap. Pascoal de Sousa Verino, armado em corso a 24 de novembro de 1739. Este teve uma ação constante ao largo da Madeira e do Porto Santo. Em 1748, dedicava-se a apanhar presas locais inocentes para depois as apresentar como moeda de troca a Ingleses e Portugueses. A 14 de abril, foi apresada junto ao cabo Girão uma balandra inglesa, que foi atacada pela artilharia dos redutos de Câmara de Lobos e do Ilhéu, ao tentar vender essa presa na Ilha. O resultado foi o seu embargo pelas mãos do bispo governador, que acolheu a pretensão inglesa. Depois disso, o corsário espanhol ainda tomou uma escuna inglesa junto da Ponta do Sol; contudo, em maio, acabou aprisionado pela nau inglesa Chesterfield, sendo depois arrematado na Alfândega. O caso do corsário da Santelmo atesta, mais uma vez, o colaboracionismo das autoridades locais com os Ingleses, quando estes insistiam constantemente na sua pretensa neutralidade. Na segunda metade do séc. XVIII, mantiveram-se a posição privilegiada da força naval inglesa e o apertado bloqueio às Canárias, sem que, da parte de França ou de Espanha, houvesse uma reação em força, mas apenas manifestações esporádicas de represália em 1768 e 1799, com o apresamento de um navio inglês pelo corsário Santa Bárbara. Em 1762, face aos acontecimentos europeus, ordenava-se ao governador José Correia de Sá que se mantivesse neutral, ao mesmo tempo que se lhe ordenava que exercesse represálias sobre os navios espanhóis e franceses, facto que contribuiu para a manutenção da situação privilegiada dos Ingleses na área atlântica. Neste período conturbado, foram apreendidos os seguintes navios espanhóis no bloqueio das Canárias: um em 1756, dois em 1762, um em 1780, outro em 1799 e ainda outro em 1800. Em 1780, o governador da Ilha, em carta a Martinho de Mello e Castro, dá conta das proezas dos corsários ingleses, que atacavam os barcos que faziam os contactos entre os portos da Ilha ou andavam nas pescarias, de que se salientava o Cap. John Marshal, com o seu navio Júpiter. O mesmo havia tentado apresar um navio veneziano que fora até ao Funchal fazer aguada, sendo impedido pelos Portugueses e acabando por seguir rumo ao Porto Santo, onde, com o apoio de uma lancha de pescadores, atacou uma embarcação que aí se encontrava. O período de 1799 a 1815 é marcado pelos conflitos europeus advindos das Guerras Napoleónicas e pautado por um forte impulso da ação dos corsários nestas paragens, destacando-se a represália entre Franceses e Ingleses. Em 1796, uma galera da linha do Brasil é apresada por um corsário francês, sendo retomada pelo corsário Alcovora, que depois a deixou no porto do Funchal. Passados dois anos, sucedeu o mesmo com um bergantim da praça do Funchal, em viagem da Madeira para os Açores. A Madeira manteve-se como base das incursões inglesas nas Canárias, que levaram ao apresamento, em 1799, do navio Fama e, entre 1800 e 1801, de seis embarcações pelo corsário John Smith. Em 1805, os corsários ingleses apresaram vários navios espanhóis na Madeira, um em alto mar e dois junto das Canárias, a que se juntou depois outro no porto do Funchal. Tendo conduzido estas presas ao Funchal para as vender, viram-se impedidos pelo governador, que alegou estar tal ato proibido pelas leis de 30 de agosto de 1780 e de 3 de junho de 1803, onde se estipulavam as regras da neutralidade. A 17 de março, a nau inglesa Immortalité havia apresado o corsário espanhol El Intrépido Coruñés, do mestre Patricio Farto, que trazia a bordo os tripulantes de uma escuna portuguesa que havia apresado. Em julho, a fragata inglesa Venus havia tentado apresar o bergantim espanhol Nossa Senhora da Conceição no Porto do Funchal, sem êxito. Tal facto mereceu viva repulsa do cônsul espanhol, que invocou as regras da neutralidade. Em 1806, os Ingleses apresaram mais quatro navios espanhóis, enquanto em junho o brigue-escuna inglês Saracen, sob o comando de Prevot, lançou na Ilha a tripulação de uma fragata espanhola, levando consigo a presa. Em dezembro, a fragata inglesa Nereyde lançou na Ilha 13 prisioneiros das tripulações de um corsário e de uma corveta espanhola, procedentes, respetivamente, de Bilbau e Pontevedra, que apresara perto da Madeira. Entretanto, em fevereiro do ano seguinte, um brigue de guerra inglês havia tentado apresar um navio francês no porto do Funchal, provocando um protesto do cônsul francês, que argumentou com base no decreto de neutralidade de 3 de junho de 1803. Neste ano, vários navios de guerra (as fragatas Nereyde e Cambian e a escuna de guerra Quail) aportaram à Ilha e estiveram implicados no apresamento de três navios espanhóis. Em 1810, a galera inglesa The Valiant apresou a fragata francesa Cannonier, com fazendas da Índia avaliadas em três milhões de libras esterlinas, no que foi um dos saques mais vantajosos até então feitos nesta área. A rivalidade britânico-americana, acesa com a Guerra da Independência dos Estados Unidos, transferiu para a área atlântica insulana o embate das frotas dos beligerantes, com ações violentas muito destacadas, principalmente nos Açores. Na Madeira, apenas se registou uma ação de represália de um corsário inglês, em 1813, contra um bergantim americano, que conduzira à Ilha para vender, no que foi impedido, pois nesse momento e no período consequente à referida guerra, em 1778-1780, as autoridades locais preocupavam-se muito em manter a maior neutralidade. Por outro lado, persiste a lenda de que um pirata teria enterrado o saque de um roubo de navios mexicanos nas Selvagens. Em 1815, um facto insólito aconteceu na Madeira, em resultado desta constante ação de corso. A galera francesa Mercúrio, com destino à Martinica, entrou no Funchal conjuntamente com um comboio inglês de sete navios, e à saída tinha-se passado para os Ingleses, arvorando a sua bandeira. Este facto deixou estupefactas, e ao mesmo tempo alarmadas, as autoridades locais, que não deram pela situação, que constituía uma violação do direito de asilo e soberania. Depois disto, só em 1822 temos referência de que o bergantim inglês Betsey foi abordado por dois corsários ingleses, que lhe roubaram vinho e presunto. As ações dos Franceses incidiam de modo especial sobre as embarcações portuguesas, menos seguras e protegidas que as inglesas, tornando-se assim presa fácil dos corsários franceses, que as justificavam pela política colaboracionista de Portugal, aliado dos Ingleses. O porto do Funchal esteve por várias vezes ameaçado pela sua ação, ou sob a expectativa da vinda da esquadra de Brest. Muitas dessas presas eram retomadas pelos corsários ingleses, como sucedeu em 1776 e 1798. A partir de maio de 1793, o panfletário corsário de Nantes Sans Cullotte esteve em atividade permanente nas águas da Madeira. Dada a Revolução Francesa e a consequente guerra, muitos navios franceses que se encontravam ou foram ter ao porto do Funchal acabaram por se naturalizar, como forma de fugirem ao corso inglês. Da ação de represália dos corsários franceses contra os navios ou nacionais, registam-se uma presa em 1797, 1798, 1801 e 1813 e quatro em 1814. Neste último ano, temos registo, primeiro, de duas fragatas francesas que apresaram um navio que trazia o conde das Galveias, as quais entregaram os tripulantes ao navio Comerçante, que fazia a patrulha das ilhas; e de mais duas fragatas – Arethuza e L’Yrienne – que apresaram a escuna espanhola Santa Bárbara, os navios portugueses Hércules e Carlota e o brigue Sociedade, que haviam saído do reino para o Brasil. As preocupações das autoridades locais em face destas ações são constantes nas duas últimas décadas do séc. xviii, coincidindo com um período de forte incidência das ações francesas. Em 1785, sob o comando do comandante do porto de Toulon, uma esquadra francesa composta por uma nau e fragatas, segundo lista fornecida pelo ajudante da esquadra, que entrara no Funchal com alguns navios, andava corseando nas águas do Porto Santo. Foi com grande apreensão que as autoridades locais tomaram conta do facto e procuraram em tudo manter a maior neutralidade, uma vez que faltavam à Ilha forças suficientes para lutar com os Franceses, e os Ingleses haviam desaparecido. Entre 1798 e 1799, intensificaram-se as ações dos corsários franceses junto da Madeira, de modo que estes se tornaram num forte transtorno para o comércio da Ilha, temendo-se, a todo o momento, o assalto de uma esquadra francesa ou a repetição dos acontecimentos de 1804. Os Franceses fizeram incidir a sua ação sobre os navios portugueses, mais desprotegidos e menos defendidos em relação a qualquer ameaça corsária, constituindo assim uma grande preocupação para as autoridades locais e um grave transtorno para as atividades comerciais da Ilha em finais do séc. XVIII. Além das presas referidas d navios portugueses, há a salientar, por parte dos Franceses, apenas a presa de uma embarcação não portuguesa, facto que se deu em 1797, altura em que apresaram uma galera americana – Virginia – conjuntamente com outra portuguesa – Aníbal. Os corsários argelinos, que ao longo dos sécs. XV e XVII se haviam tornado uma forte ameaça para estas paragens, nomeadamente nas ilhas do Porto Santo e Santa Maria, surgem, em plenos sécs. XVIII e XIX, com pouca importância e ações esporádicas. Assim, neste período, temos notícia de um saque do Porto Santo, em 1708, de algumas presas no alto mar em 1737, 1750 – neste ano levando cativo o cônsul francês, que se deslocava de Lisboa para a Madeira – e em 1771. Entre 1806 e 1867, andavam corseando nas águas da Madeira dois corsários argelinos, à caça de navios portugueses e espanhóis, surgindo depois, em 1827, uma forte ameaça, a qual foi cerceada por uma ação em bloco dos países europeus lesados com o bloqueio do porto de Argel, uma vez que todos os navios argelinos encontrados a navegar no Atlântico eram considerados à época corsários. A 30 de julho de 1827, a questão dos corsários argelinos estava resolvida, e havia boas relações com Portugal. No entanto, houve ações de corsários argelinos na primeira metade do séc. XIX, uma vez que, em 1811, estavam em Argel 610 Portugueses, 247 dos quais foram libertados a troco de 1021 pesos. Em fevereiro desse ano, Manuel Sardinha, da tripulação do brigue Lebre Pequena, esteve cativo em Argel e ficara inválido no combate que travara com um corsário 11 anos e 3 meses antes; em 1823, sabe-se que Diogo António Cabral estivera no cativeiro de Argel mais de 10 anos, pela tomada da fragata Cisne. Destaque-se ainda a ação de outros corsários não identificados, ou antes, de piratas que, entre 1804 e 1820, apresara, na área da Madeira, oito embarcações portuguesas, uma em 1804, outra em 1820 e seis em 1818. Em 1804, o mestre do bergantim português Conceição dizia ter sido apresado a 26 de maio por um corsário “que se dizia inglês, sem o parecer, por falar espanhol e italiano a gente da sua tripulação” (AHU, Madeira e Porto Santo, mç 8, doc. avulso), tendo roubado a carga que transportava. Em 1818, foram apresadas as galeras Luzia, Rainha dos Mares e Ninfa de Lisboa, a escuna Maria, e o bergantim Restaurador, da cidade do Porto. Por fim, em 1820, é apresado o brigue português Providência, por um brigue pirata de sete canhões à banda, sendo esta a única referência que temos sobre a ação dos piratas. Os beligerantes americanos surgem com particular incidência nas ilhas dos Açores, em épocas determinadas da conjuntura histórica setecentista ou oitocentista. No entanto, a Madeira foi igualmente um polo de atração, nomeadamente dos corsários americanos, que aí iam à procura dos seus rivais ingleses. Estas incursões dos corsários americanos inserem-se numa dinâmica própria saída da evolução da conjuntura e estrutura colonial, que alterou o posicionamento dos europeus em face do controlo e da disputa das rotas comerciais. Enquanto as ações dos Ingleses, dos Franceses e outros se inserem no velho quadro da guerra de corso e são características dos momentos de guerras terrestres e da rivalidade e disputa das rotas e dos mercados comerciais, as ações dos corsários americanos e insurgentes inserem-se numa dinâmica de luta pela independência das regiões de forte dominação e exploração colonial no continente americano, como é o caso dos Estados Unidos, da Argentina e da Bolívia. A Guerra da Independência dos Estados Unidos da América (1770-1790) e o litígio permanente que daí adveio – mesmo depois das pazes celebradas em 1873, uma vez que este se alargou ao espírito de guerra latente, com as constantes incursões de corsários armados nas cidades americanas, isolados e em estreita colaboração, a partir de 1816, com os insurgentes, fazendo incidir particularmente esse confronto na área de forte atração do movimento naval e corsário, as ilhas da Madeira e dos Açores – causavam graves transtornos à vida das populações e ao movimento atlântico, sendo igualmente uma constante preocupação das autoridades insulanas, que se avolumou em 1814, com o célebre combate da Baía da Horta. Na ilha da Madeira, temos notícia da permanência destes corsários entre 1778 e 1780, tendo então bloqueado o Porto do Funchal, de modo que, em 1780, o governador se queixava de que os corsários americanos “infestam [...] continuadamente esta costa depois que à guerra da América Setentrional se juntou a de França, e de Espanha; causando os sobreditos corsários particulares e maior incómodo que é possível ao comércio deste porto, ou nas revistas dos navios” (AHU, Ibid., mç. 561, doc. avulso). No entanto, neste período não temos notícia de qualquer presa, surgindo essas referenciadas apenas em 1810, com o apresamento de um navio inglês, e em 1816, com o apresamento de três embarcações espanholas e três portuguesas. Francisco Borges, em carta ao conde das Galveias, dava conta da sua apreensão em face da evolução provável dos acontecimentos e das repercussões futuras, que de facto seriam funestas, como veremos: “Eu não posso sufocar os acontecimentos de desgosto que me possuem vendo suplantar as sábias reflexões de V. Exa. sobre a expedição de Buenos Aires e ver marchar o nosso exército sobre as margens do Panamá a envolver a nação em contendas cujos resultados poderão ser um dia assaz desastrosos à nação e ao Brasil, exaspero, quando recordo as sábias e poderosas razões com que V.ª Ex.ª apoiou esse voto sobre o comportamento, a delicadeza que a nossa corte devia conservar com Buenos Aires pensar diametralmente oposto à cogitação do génio que depois de ter semeado a confusão e a anarquia nas finanças e na Marinha foi de um golpe perder no Brasil o exército e ingerir-nos nas delicadas questões da América espanhola, no momento em que este anunciou, uma revolução espantosa” (AHU, Ibid., doc. avulso). Certamente que nesta carta não se pretendia aludir aos reflexos que o acontecimento veio a ter na dinâmica atlântica de inícios do séc. XIX, mas antes ao perigo de a luta independentista alastrar à rica região brasileira, não prevendo certamente a questão da ação corsária insurgente. O conflito opôs os Portugueses aos rebeldes argentinos, sob o comando de José Artigas, e manteve-se para além da batalha de 7 de janeiro de 1817, de onde estes saíram derrotados. Segundo declarações dos insurgentes, a sua ação de corso inseria-se numa ampla campanha de represália contra a ação portuguesa nos destinos da Argentina. Portugal em face do corso Perante as constantes incursões corsárias nesta importante área de passagem dominada pela Madeira e pelos Açores, a parte portuguesa era muito afetada, não só pelas presas que sofria, mas igualmente pelos constantes bloqueios das rotas, vendo o comércio das ilhas e do Brasil bastante onerado. A Madeira, e.g., com uma economia dependente do mercado externo, viveu algumas vezes momentos aflitivos face a esses bloqueios, que impediam a saída do vinho e o reabastecimento de comestíveis e manufaturas. Seria de esperar de imediato, e como forma de evitar esses transtornos, uma ação de represália pelos constantes prejuízos causados pelos piratas e os corsários ingleses, americanos, franceses e espanhóis. Tal represália começou pela armação de corsários portugueses, seguida pela organização de um acertado sistema de defesa costeira e de vigilância dos mares. Mas os Portugueses não foram apenas vítimas da ação de corso, também tiveram corsários, cuja ação não terá sido menos violenta que a dos franceses e dos argelinos. Já em inícios do séc. XV temos notícia de que João Gonçalves Zarco andava em corso aos espanhóis – era aliás considerado um corsário por Zurara e Duarte Pacheco Pereira – e que fora numa dessas ações que teria encontrado a ilha do Porto Santo. Ao mesmo navegador se atribui ainda a invenção da forma de montar a artilharia a bordo para disparos eficazes contra o inimigo. Em 1557, ordenava-se a Francisco Gonçalves da Câmara que fizesse aprestar um navio para se juntar a um corsário que andava investindo ao longo da costa da Ilha, e em 1571 a Madeira dispunha de uma armada para a defesa da Ilha contra os corsários, paga pela Real Fazenda. Em 1575, Simão Gonçalves da Câmara recebia ordem para auxiliar a guerra de corso, sendo os particulares autorizados a armar navios, para que “todos os corsários e navios que achar de suspeita e mau título meta ao fundo sem dos tais navios ficar viva pessoa alguma por nenhum caso e que faça fazer outros em segredo por uma pessoa de confiança e com testemunho de como são corsários e por tais havidos, os quais autos vos entregará para mos vós entregardes” (ANTT, Miscelanias Manuscriptas, liv. 1104, 43). Em 1730, há à armação de um corsário na Ilha para se juntar a um corsário de mouros que vagueava ao longo da costa. Desse ato, existe o requerimento e o termo de fiança do seu promotor, Pantaleão de Faria e Abreu. São também conhecidas informações sobre outros corsários marroquinos, em 1781 e 1793. Segundo o alvará de 1758, o corso não podia ser feito por Portugueses sem a devida autorização régia, facto que vem comprovar que, nesta época, se passavam patentes de corso. Outra forma de resposta à guerra ou ao corso era interditar os navios da nação inimiga de entrar nos portos e apresar os que aí permaneciam no momento da declaração da guerra. Assim sucedeu em 1762, face à declaração de guerra feita pela França, em que o governador da Madeira, Francisco Correia de Sá, recebeu ordem para exercer represálias sobre os navios franceses, tendo apresado o bergantim francês Ruby, que aportara ao Funchal a pedir refresco, para evitar uma pretensa batalha naval com uma fragata inglesa que se encontrava ancorada. Desde janeiro de 1793 que a Revolução Francesa e a Convenção havia autorizado os oficiais da marinha mercante a armar navios de corso, tendo-se iniciado uma ação de represália, de que apenas temos notícia do apresamento da galera francesa Le Comerçant, em julho de 1793, junto do Porto Santo, e de um corsário francês, em julho de 1798, junto de Mogador, pelo bergantim português Lebre. Em 1815, em face dos acontecimentos de França, refere-se a possibilidade de se armarem novamente corsários para corsear os navios de bandeira tricolor. Embora seja notório o movimento de corso de navios portugueses, entre 1792-1793 e 1815, não temos qualquer referência a uma carta de corso. Somente em 1820, já em fase tardia, surge uma carta de marca dada a Manuel de Sousa Lobo, comerciante da praça de Lisboa, para armar em guerra o seu navio Harmonia com 18 peças e 2 obuses para “correr sobre os piratas, inimigos da minha real coroa, os quais, infestando os mares e perturbando o comércio de meus fiéis vassalos, têm causado a detração, danos, prejuízos e hostilidades manifestas a todas as nações da Europa, apreendendo e represando as suas embarcações. [...] Possa o referido navio [...] atacar, render, e fazer prisioneiros todos os corsários de piratas e inimigos que encontrar em todas aquelas embarcações sobre que houver suspeita, ou falta de legalidade, com todos os efeitos que elas contiverem” (AHU, Madeira e Porto Santo, mç 13, doc. avulso). Por outro lado, estavam regulamentadas medidas proibitivas da ação dos corsários, tais como a proibição de venda das presas das nações aliadas ou amigas em portos nacionais, e legislara-se as normas a ter em conta na hospitalidade a conceder aos corsários. Dessas leis, destaque-se as de 30 de agosto de 1780, de 17 de setembro de 1796 e de 3 de junho de 1803. Em 1805, confrontado com a entrada no porto da fragata inglesa L’Egyptian, com três embarcações espanholas apresadas, o governador da Madeira dizia acerca dos decretos de 30 de agosto de 1780 e de 3 de junho de 1803, dizia: “Fixou um inviolável sistema de neutralidade e as regras que se devem praticar, proibindo que os corsários das potências beligerantes, não sejam admitidos nos portos dos seus estados e domínios, nem as presas, que por eles ou naus, fragatas, ou quaisquer outras embarcações de guerra se fizerem sem outra exceção, que a dos casos em que os direitos das gentes fazem indispensável a hospitalidade, com a condição, porém, que nos mesmos portos se lhes não consinta vender, ou descarregar as ditas presas, nem demorarem-se por mais tempo, que o necessário para evitarem o perigo, ou conseguirem os inocentes socorros, que lhes forem necessários” (AHU, Ibid., doc. 1898). Quanto ao decreto de 30 de agosto de 1780, dizia ainda o governador: “Havendo recebido pelo expediente do Conselho da Guerra um decreto de Sua Majestade de 30 de agosto de 1780, que proíbe o serem admitidos nos portos deste reino os corsários das nações atualmente beligerantes, nem as presas que estes, ou as naus e fragatas de guerra fizerem e sem outra exceção que a do caso da hospitalidade, nem venderem, ou descarregarem as ditas presas, ainda nos referidos casos, o qual fiz logo expedir cópias aos comandantes das fortalezas que guardem os portos destas ilhas (AHU, Ibid., doc. 1558). A resposta prática e visível passava por medidas de fortificação para defesa dos núcleos populacionais e por impedir qualquer assalto. Se a orgânica defensiva costeira procurava atender à segurança de pessoas e haveres e manter os portos ao abrigo das investidas corsárias, a defesa e vigilância dos mares procurava manter as rotas limpas dos corsários, de modo que a navegação mercantil se fizesse com segurança. Nesta época, esta última dimensão assumia grande importância, uma vez que a ação corsária caminhava cada vez mais para o alto mar, fora do alcance das fortificações costeiras. O balanço do assalto francês de 1566 fora trágico: 200 mortos e perdas financeiras de mais de $500.000 rs. Por outro lado, confirmara-se aquilo para que os madeirenses sempre tinham alertado: a ineficácia das fortificações e a reivindicação de uma maior atenção por parte das autoridades. Uma das consequências principais deste assalto foi o maior empenho da Coroa e das autoridades locais nos problemas da defesa da Ilha e, principalmente, da sua cidade, que, por estar cada vez mais rica e engalanada, despertava a cobiça dos corsários. O desleixo na arte de fortificar e organizar as hostes custara caro aos madeirenses, pelo que a defesa da Ilha era um desejo premente. Assim, reativaram-se os planos e recomendações anteriores, no sentido de definir uma defesa eficaz da cidade a qualquer ameaça. O regimento das ordenanças do reino (1549) teve aplicação na Ilha a partir de 1559, enquanto a fortificação teve regimentos (1567 e 1572) e um novo mestre-de-obras, Mateus Fernandes. Perante a incessante investida de corsários no mar e em terra firme, houve necessidade de definir uma estratégia de defesa adequada. No mar, optou-se pelo necessário artilhamento das embarcações comerciais e pela criação de uma armada de defesa das naus em trânsito. Em terra, foi o delinear de uma incipiente linha de defesa dos principais portos, ancoradouros e baías, capaz de travar o possível desembarque destes intrusos. O plano de defesa completou-se, no período da União Peninsular, com a construção da fortaleza de Santiago (1614-1621), o consequente aumento do troço de muralha costeira, e a construção do castelo de São Filipe do Pico (1582-1637). A defesa costeira e dos portos de abrigo é encarada como um meio de preservação e resguardo do espaço territorial das investidas dos corsários, mas a sua utilidade nesta época foi quase nula, uma vez que os corsários, cientes da forte barreira que oferecia a rede de fortificações costeiras, não se aventuravam a entrar em terra e, quando o faziam, era de modo sub-reptício, para fazer aguada. A ação da engenharia militar foi mais intensa nos períodos de maior incidência da pirataria e do corso, entre 1793-1801, 1804-1810 e 1814-1820, sendo de destacar os levantamentos feitos por Pedro de Azevedo e Paulo Dias de Almeida. Em face das ameaças dos corsários, organizaram-se nas ilhas formas diversificadas de defesa adequadas ao embate de qualquer esquadra naval ou de corsário. Essas medidas surgem na sequência da notícia da guerra ou da organização de esquadras estrangeiras para sair aos mares, como sucedeu em 1762, 1797 e 1805, na Madeira, e, em 1818, na Madeira e nos Açores. A defesa dos mares desta importante área de passagem atraiu a atenção das autoridades locais durante este momento e foi o único meio capaz de assegurar o controlo e apaziguamento dos efeitos do corso. Em 1638, estava disponível uma embarcação no Funchal, sob o comando de Matos de Mendonça e Vasconcelos. Depois, o Gov. Duarte Sodré Pereira concedeu cartas de corso em nome do Rei, para afugentar o corso e a pirataria. Para a defesa dos mares, em 1820, foi enviado o bergantim Infante D. Miguel, para atuar contra os corsários entre a Madeira e as Canárias; em 1821, a fragata Pérola; e em 1824, o bergantim Tejo. Em 1823, referia-se que a área de atuação dos corsários na Madeira incidia até 10 léguas ao norte do Porto Santo, e entre o cabo de São Vicente e o cabo de Santa Maria. Essas embarcações destacadas para as ilhas tanto patrulhavam a área, como comboiavam as embarcações comerciais a porto seguro. Os próprios comerciantes e consignatários dos navios de comércio solicitavam constantemente esse apoio. O mar das ilhas foi, desta forma, um dos grandes centros da guerra de corso no Atlântico, onde atuaram Franceses, Castelhanos, Ingleses e Marroquinos. Alguns viram a sua posição reforçada pela sua presença em solo insular, outros, como os corsários de Salé, pela proximidade da sua base continental atlântica de atuação. Atente-se no facto de os Ingleses assumirem a sua posição e presença na sociedade madeirense através de mecanismos legitimados por tratados, que lhes facultavam uma posição estratégica nesta guerra de corso atlântico, contribuindo para que o Funchal se visse envolvido em conflitos para os quais não era chamado. O Tratado Luso-Britânico de 1793 é claro na cooperação de ambas as armadas e na defesa das embarcações de bandeira de ambos os países, e recorde-se a ocupação inglesa do arquipélago, em 1801 e 1807. O corso francês atua contra o arquipélago e as embarcações portuguesas que o servem, mais no séc. XVI que nas centúrias seguintes, não obstante a investida ao Porto Santo, em 1794, e depois na Madeira, em 1798. Parece-nos haver aqui evidência de uma guerra religiosa, que não é fácil detetar no assalto francês de 1566, embora protagonizado por huguenotes. Um dos aspetos que marcam a atuação dos Franceses na déc. de 90 do séc. XIX é o bloqueio que estabelecem ao porto do Funchal como represália aos Ingleses, mas que tem pronta e permanente resposta inglesa, o que não impede a continuidade do movimento do porto do Funchal. O que está aqui presente é o interesse económico e político, que atua de forma desfavorável na economia do arquipélago, não apenas pelo volume das presas e pela quebra do movimento, mas, antes de tudo, com a ansiedade e inquietação que geram nos agentes comerciantes, uma vez que permanece sempre uma nova possibilidade de perda, que se vem juntar aos naufrágios e que surge sob a forma de avisos e temores da guerra. É por isso que, tirando a situação particular do assalto francês de 1566, as perdas para a Madeira desta guerra de corso não resultam de uma ação direta, mas sim das consequências, quase sempre indiretas, das mesmas no movimento portuário e na circulação das mercadorias. Alberto Vieira (atualizado a 01.02.2017)
cooperativa
A segunda metade do séc. XIX foi definida por uma conjuntura difícil para as diversas classes socioprofissionais, mas foi também o momento do despoletar da sua consciência para o associativismo, na busca de soluções que propiciassem a assistência e proteção aos trabalhadores nos acidentes, na doença e na velhice. A tudo isto acresce o filantropismo social de ajuda aos mendigos, às crianças e às viúvas. Deste modo, a partir de meados da centúria, o mutualismo, o cooperativismo e o associativismo socioprofissional foram a solução capaz de minorar as dificuldades com que se debatia a população. Na Madeira, a conjuntura era deveras catastrófica. A retração do mercado consumidor do vinho, a partir da déc. de 20 do séc. XIX, associada à grave crise de fome de 1847, são os testemunhos mais evidentes das dificuldades que os madeirenses tiveram de enfrentar. A subnutrição foi responsável, em certa medida, pelas epidemias que se sucederam, como a cólera em 1856. E outras mais apareceram até final do século, ceifando muitas vidas e destroçando famílias. Perante tanta instabilidade e insegurança, era inevitável a busca de soluções ancoradas no filantropismo, mutualismo e cooperativismo. A partir de 1820, várias foram as soluções apresentadas para proteger os grupos mais desfavorecidos e as principais vítimas desta crise. Através das diversas tribunas políticas, com voz ativa nos jornais que se publicaram no Funchal, chegavam à Ilha as novas ideias da praxis política europeia e continental. Neste contexto, é de realçar toda a discussão teórica que teve lugar em França, em Inglaterra e na Alemanha, com múltiplos intervenientes, que se afirmavam como salvadores do proletariado. Estes apresentavam soluções para a melhoria da sua situação e afirmavam-se como alternativa ao poder instituído, pretensão de que a Comuna de Paris (1871) foi uma efémera esperança. Os teóricos do cooperativismo começaram por preconizar as cooperativas de produção e consumo como sendo o mecanismo capaz de propiciar as condições à sua plena afirmação e a solução dos problemas sociais. Desde princípios do séc. XIX que os teóricos saídos da Revolução Francesa vinham apelando à criação de cooperativas como meio de suprir os desequilíbrios entre a produção e o consumo. Assim, destaca-se a ação de Robert Owen (1771-1858), que iniciou a luta a favor do cooperativismo, primeiro com uma cooperativa de produção e depois de consumo. Em 1824, fundou a colónia Nova Harmonia, baseada nesses princípios, que se revelou um autêntico fracasso. O verdadeiro ideal cooperativista surge em Rochdale. em 1844. Neste ano, 28 tecelões reuniram-se para criar um armazém para compra dos bens de consumo de que necessitavam. A chegada deste ideário a Portugal preludia-se com a Revolução Liberal de 1820, mas só ganhou expressão na déc. de 30. A 3 de maio de 1833, foi abolida a Casa do Vinte e Quatro, a monárquica associação de classe, propiciando o aparecimento do associativismo socioprofissional. Foi Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) quem deu o arranque para este movimento ao criar, em 1839, a Sociedade dos Artistas Lisbonenses. O movimento ganhou uma desusada afirmação, de forma que, em 1894, o primeiro encontro deste movimento contou com 30 associações. O cooperativismo na Madeira começou no sector comercial, mas alargou-se a outras áreas como a habitação, e o sector produtivo (agricultura e pescas). Podemos assinalar três momentos que marcaram o arquipélago: o último quartel do séc. XIX, com as cooperativas de crédito e consumo; depois, com o Estado Novo, as cooperativas do sector leiteiro, que foram o rastilho do movimento popular de desconfiança e anti cooperativas na ilha; e finalmente, após a mudança de regime com o 25 de Abril de 1974, em 1975, o incentivo por partidos e grupos políticos de esquerda das cooperativas nos vários sectores, consideradas mecanismos de proteção dos trabalhadores. As primeiras cooperativas de que temos conhecimento na Madeira surgem em 1875 e são A Perseverança e a Sociedade Cooperativa de consumo e Crédito do Funchal. Da primeira nada se sabe, mas da segunda é possível acompanhar a vida efémera até 1889, altura em que foi extinta. Esta sociedade foi criada por iniciativa de um grupo de ilustres personalidades madeirenses. A sede foi instalada num prédio à R. do Esmeraldo, onde depois se instalou o Tribunal de Contas da Madeira. Aí funcionou uma mercearia para os associados. Em 1880, os seus promotores foram forçados a encerrar as portas, pelos elevados prejuízos acumulados, mantendo-se ainda até 1889 por ação de dois comerciantes. A esta seguiram-se outras duas (em 1893 e 1919), mas também de vida efémera. Temos ainda a Cooperativa Popular, com estatutos de 6 de março de 1919, mas que só abriu as portas a 8 de abril de 1920. Criada em 1892, a Cooperativa da Guarnição Militar do Funchal funcionou, inicialmente para os seus sócios e mais tarde para toda a comunidade, ao longo de 100 anos – até encerrar definitivamente as suas portas nos inícios do séc. XXI, como Sociedade de Consumo, Crédito e Previdência. Considerada desde a sua fundação como uma instituição de utilidade pública, a Cooperativa da Guarnição Militar do Funchal, Sociedade Cooperativa de Responsabilidade Limitada, de número de sócios indeterminado e duração ilimitada, foi fundada – segundo os seus estatutos, aprovados em assembleia geral em sessão de 27 de outubro de 1947 – em 1 de fevereiro de 1892, com a designação Sociedade Cooperativa dos Oficiais do Regimento de Caçadores n.º 12, funcionando como Sociedade de Consumo, Crédito e Previdência; este Regimento chegara à Madeira a 28 de julho de 1864 e era composto por 10 oficiais e 72 praças, os quais foram aquartelados no Funchal. Note-se que a partir de 9 de outubro de 1899, ao abrigo do dec. de 14 de setembro do mesmo ano, volvidos que eram 35 anos após início de estacionamento na Madeira, este Regimento passou a chamar-se Regimento de Infantaria n.º 27. De acordo com os estatutos da dita cooperativa militar funchalense, esta dispunha de uma direção composta por um presidente, um tesoureiro e um secretário, e tinha como principal objetivo fornecer aos sócios, sempre nas melhores condições de preço e qualidade, géneros alimentícios, artigos de capelista e papelaria, vestuário, calçado, utensílios domésticos e tabacos; servir de caixa económica aos sócios, capitalizando-lhes as quantias que depositassem e facilitando-lhes empréstimos; bem como prestar ao Estado, aos organismos oficiais e a instituições de beneficência pública os serviços compatíveis com os seus recursos e índole social; e ainda organizar conferências sobre assuntos económicos e outros de interesse geral. Era também missão da Cooperativa proporcionar aos oficiais do Regimento crédito na compra de géneros de primeira necessidade ou empréstimos à taxa de juro de 6 %; neste último caso, funcionava como caixa de crédito para os seus associados. De acordo com os estatutos, era uma sociedade de consumo, crédito e previdência, uma figura comum à época. Exemplo semelhante sucedeu com a cooperativa criada em 1875. No princípio, só eram admitidos como sócios os oficiais do Regimento, mas a pequena dimensão deste grupo e a solicitação dos demais oficiais das forças militares da Ilha conduziram a que fosse alargado o quadro dos sócios. Deste modo, foi criada a situação de sócio extraordinário, a que ficaram submetidos. No ano de 1892, entraram a fazer parte da mesma 18 oficiais, sendo 3 reformados. Posteriormente, alargou-se o grupo de sócios a todos os militares no ativo ou na reforma, pelo que a cooperativa passou a chamar-se Cooperativa da Guarnição militar do Funchal. Mais tarde, voltou a ampliar-se o leque dos sócios, passando a existir dois grupos: sócios efetivos: oficiais, sargentos e praças dos diversos aquartelamentos militares da Ilha; e sócios eventuais: sócios da liga dos combatentes e de outras cooperativas militares, e funcionários civis. Os últimos anos foram definidos por algumas alterações que marcaram o destino da cooperativa: a 29 de julho de 1982, foi integrada no sector cooperativo com a designação de Coomilmadeira – Cooperativa Militar da Madeira, Cooperativa de Responsabilidade Limitada; e por escritura de 12 de maio de 1986, como Cooperativa de Consumo Pro Militar da Madeira. CRL. Na déc. de 30 do séc. XX, teve lugar a reorganização do sector leiteiro, com a criação de cooperativas de agricultores para fabrico de manteiga e queijo. A 30 de junho de 1930, surgiu a Cooperativa de Lacticínios de São Jorge e em 1932 as Cooperativas de Lacticínios dos Canhas e do Norte, esta última com sede em São Vicente, a Cooperativa Agrícola dos Lavradores do Santo da Serra, a Cooperativa Agrícola dos Lacticínios do Porto da Cruz, e a Cooperativa Agrícola dos Produtores de Leite do Funchal. A de São Vicente, com a fábrica no Saramago, vendia a sua manteiga para o Funchal; dispunha de uma casa de espetáculos no sítio das Feiteiras, o Teatro Gil Vicente, que foi um polo de animação e divulgação cultural na freguesia, nos anos 30 do séc. XX. A União das Cooperativas Agrícolas de Lacticínios e Produtores de leite da Ilha da Madeira surgiu em 1960, para agregar todas as cooperativas do sector leiteiro, revelando uma estratégia concentracionista forçada pelo regime político, que interveio no sector cooperativo, convertendo-o ao corporativismo. Com efeito, o dec. 43.418, de 21 de dezembro de 1960, que determinou a reorganização da indústria de laticínios da ilha da Madeira, considera que esta decisão é importante para o sector. Foi o segundo momento de intervenção do Estado, no sentido da adaptação corporativa das cooperativas, que conceituou todo o pensamento negativo das populações rurais ao sector cooperativo. Depois, a lei 48.593, de 26 de setembro de 1968 estabeleceu a reorganização da indústria de laticínios da ilha da Madeira, procedendo à concentração das fábricas existentes numa só unidade, que será instalada e explorada por uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada, em cujo capital social terão participação as empresas industriais de produção de laticínios existentes na Ilha, a lavoura afeta à produção e industrialização do leite, representada pelo Grémio da Lavoura do Funchal, pela União das Cooperativas Agrícolas de Lacticínios e de Produtores de Leite da Ilha da Madeira e pelas cooperativas agrícolas de lacticínios, e a Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Note-se ainda as tentativas estaduais no sentido de criação, na déc. de 30, de idênticas cooperativas no sector do vinho, que se ficaram pelas experiências-piloto das adegas do Porto Santo e de Câmara de Lobos. Em 1957, fala-se da criação de uma cooperativa de viticultores e exportadores de vinho. A Junta Geral tenta transformar o sector cooperativo de acordo com as orientações políticas do corporativismo do Estado Novo; esta intervenção torna-se evidente nos sectores produtivos, nomeadamente a agricultura, o sector leiteiro e a produção de banana. Em 1957, no quarto curso de férias para os agricultores, uma das conferências foi subordinado a este tema. Em 1969, um grupo de cidadãos, em carta ao governador, apela à criação de cooperativas-piloto, como forma de divulgar e afirmar o movimento cooperativo. Neste sector ainda deveremos ter em conta as cooperativas dos criadores de gado da serra, que surgiram no Funchal, em Santa Cruz e na Calheta. Destas, podemos salientar a Cooperativa dos Tratadores de Gado do Concelho de Santa Cruz, a Cooperativa dos Criadores de Ovinos nas Serras dos Concelhos do Oeste da Ilha da Madeira, e a Cooperativa Agropecuária do Porto Santo. Temos, ainda, a Cooperativa de Criadores de Gado da Fajã da Ovelha, que surgiu a 20 de setembro de 1986. As cooperativas de consumo foram a principal aposta da república, mas o Estado Novo favoreceu o sector do comércio retalhista em detrimento destas. O 25 de abril de 1974 foi um momento favorável à sua afirmação, nomeadamente a partir de 1976. A criação, nesse ano, do Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo foi um forte incentivo. Desta forma, criou-se em todo o país uma diversidade de cooperativas, sendo de salientar que esta forma de cooperação chegou também à cultura e ensino. Na Madeira, a principal aposta destas iniciativas, promovidas por grupos de cidadãos e forças políticas, continuou a ser no sector do consumo; só depois teremos a sua presença em sectores produtivos, como os vimes, o bordado e as pescas. Sabemos que funcionou na Camacha a Cooperativa Popular de Consumo Esperança no Futuro, CRL; e no Jardim da Serra a CAL - Cooperativa de Produção e Consumo Liberdade, SCRL. Em 1975 são de referir as iniciativas cooperativas ligadas à União Democrática Popular, que surgiram no Funchal, em Câmara de Lobos, no Caniçal e em Machico. No sector produtivo agrícola e das pescas, as cooperativas assumem um papel de relevo a partir dos anos 50 do séc. XX, a começar pela Cooperativa Agrícola do Funchal, criada em 2 de abril de 1951 como importante mecanismo institucional de apoio aos agricultores da Madeira, e passando pela Coopobama - Cooperativa de Produtores de Banana da Madeira, CRL. No sector da habitação, surgiram, também, diversas iniciativas de cooperativas. A 12 de dezembro de 1901, nasceu a Sociedade Cooperativa Construção Predial do Funchal, cujos estatutos haviam sido aprovados em 23 de setembro de 1900. Na déc. de 50, já funcionava a Sociedade Cooperativa a Nossa Casa, que apostava na promoção da habitação social aos associados do concelho do Funchal. Neste sector surgiram ainda a CORTEL - Cooperativa de Habitação dos Correios e Telecomunicações da Madeira, CRL; a COOLOBOS - Cooperativa de Habitação Social de Câmara de Lobos, CRL; e a COOHAFAL - Cooperativa de Habitação Económica do Funchal, CRL. Os problemas do artesanato, dos vimes e do bordado obrigaram a gizar soluções para esses setores. Após o 25 de Abril de 1974, surgiram as seguintes cooperativas: Cooperativa das Bordadeiras da Ribeira Brava, Cooperativa Rural de São João na Ribeira Brava, Cooperativa dos Trabalhadores de Tricot e Crochet do Arquipélago da Madeira (São Jorge). No sector das pescas, nasceu a Coopescamadeira - Cooperativa de Pesca do Arquipélago da Madeira. O fracasso de muitas destas iniciativas, por força da intervenção corporativa do Estado desde a déc. de 50, impediu que o ideal cooperativista tivesse uma adesão significativa da população madeirense. De um modo geral, as cooperativas tiveram vida efémera. Apenas a cooperativa militar, talvez por ser uma estrutura assente num grupo socioprofissional, conseguiu manter-se viva, sendo a mais antiga do arquipélago. A Madeira é uma das regiões do país onde o setor apresenta menor importância e onde o número de cooperativas foi decrescendo. Assim, em 1992 assinalam-se 62 cooperativas, que nas estatísticas de 2002 foram reduzidas para 51. Alberto Vieira (atualizado a 28.02.2017)
comércio
A atividade comercial só acontece quando existe um excedente que encontra procura noutro mercado, ou então quando um espaço determina a aposta em culturas vocacionadas para produzirem elevados excedentes para exportação. É o que acontece com produtos introduzidos com a finalidade de estabelecer e de fundamentar um sistema de trocas, como foi o caso do pastel e do açúcar. A elevada demanda destes produtos no mercado europeu, do Mediterrâneo e Norte da Europa, conduziram a esta aposta. Entender as relações comerciais que se estabeleceram na Ilha com os diversos mercados passa por uma disponibilidade de documentação alfandegária, que se apresenta escassa em muitas situações. Não podemos esquecer que a presença dos cereais e do vinho na economia madeirense se rege primeiro por necessidades internas de subsistência, e só depois pelas solicitações do mercado. As conexões insulares resultam mais de fatores estranhos à progressão do trato comercial que às exigências e às possibilidades de troca. Por outro lado, para um espaço como o arquipélago da Madeira, onde assume significado económico apenas uma ilha, com problemas de espaços adaptáveis à agricultura, não é fácil estabelecer uma economia de mercado que não provoque situações complexas no mercado interno. A questão do trigo é uma das dominantes na história da metrópole e das ilhas. Aliás, no decurso do séc. XIX, foi uma das importantes questões do debate político. A luta pelo pão parece ter sido constante na história insular, mas de modo particular na Madeira. A desarticulação entre o movimento demográfico e a economia de aproveitamento do solo levou a isso. Assim, há uma aposta preferencial nos produtos de exportação, com uma grande solicitação no mercado do Novo e do Velho Mundos, o que afasta as culturas de subsistência das áreas pobres de cultivo e das áreas próximas dos grandes centros de exportação. Daqui resulta um vasto hinterland em torno dos portos cimeiros de relacionamento com o exterior ou de outros que estão próximos da Ilha e dela dependem. Esta vinculação de ilhas a um porto de tráfico internacional é uma realidade apenas nas Canárias e nos Açores. Todavia, a incessante luta pelo pão conduz o relacionamento entre as ilhas em todo o processo histórico. O mercado europeu definiu os circuitos comerciais e procurou mantê-los sob controlo. As Coroas peninsulares, porque empenhadas num comércio monopolista, intervieram com assiduidade, regulamentando de forma exaustiva as atividades económicas e definindo o espaço de manobra dos agentes. As ilhas, como regiões periféricas do centro de negócios europeu, ajustaram o seu desenvolvimento económico às necessidades do mercado e às carências alimentares europeias. Em contrapartida, foram consumidores compulsivos das manufaturas europeias. A economia das ilhas definiu-se, assim, pelo carácter periférico, assente numa troca desigual de cariz colonial muito favorável ao mercado europeu. A excessiva intervenção da Coroa, aliada às intempéries sazonais, às tempestades marítimas, à peste, às epidemias, à pirataria e ao corso, podem ser considerados os responsáveis pelo bloqueio dos circuitos comerciais. O permanente empenho no controlo e na regulamentação do sistema de trocas é resultado da necessidade de preservar para a Coroa o monopólio do comércio de determinados produtos em certas áreas, de assegurar o abastecimento local e de definir os produtos adequados ao intercâmbio nos mercados atlântico e mediterrânico. A Fazenda Real, o almoxarifado e, depois, a Provedoria da Fazenda, em consonância com os municípios, ditavam a política económica e controlavam a sua execução. As autoridades intervinham em todos os sectores de atividade e nas fases do processo: o município, sob a forma de postura, e a Coroa, por meio de regimentos. O sistema de trocas estabelecido pelos Portugueses no séc. XV para a Madeira foi diversificado. Primeiro, assinala-se a importância do comércio de cabotagem interna e interinsular, que englobava as comunicações e os contactos comerciais no mercado interno, de nível local, regional e inter-regional, definindo o último os contactos entre as duas ilhas do arquipélago. Já o comércio interinsular se define pelas conexões entre os diversos arquipélagos atlânticos e radica numa política de complementaridade definida pelos próprios insulares, onde muitas vezes impera o contrabando. Por seu lado, o comércio atlântico define-se pelos contactos de longa ou de curta distância com os mercados europeu, africano e americano. A rota de ligação às origens europeias foi a mais importante do comércio externo nos sécs. xv e xvi. A sua permanência e o fortalecimento dos contactos foi resultado da existência de produtos e de mercados adequados e incentivadores da troca entre estes destinos. A orografia da Ilha não facilitou o acesso ao interior e à locomoção terrestre, obrigando a apostar-se num sistema de cabotagem para a manutenção dos contactos entre as diversas localidades. Na encosta norte, o mar não os permitia todo o ano, sendo necessário o recurso à via terrestre. Assim, apostou-se, ainda que de forma lenta, no estabelecimento de infraestruturas de apoio, com a abertura e o permanente reparo de caminhos, e a construção de cais nas localidades mais importantes da Ilha. Fica demonstrada a importância assumida por estes contactos humanos e comerciais, que, no primeiro caso, resultou da necessidade de abastecimento de cereais e, no segundo, das possibilidades de intervenção no tráfico negreiro, mercê da sua vinculação às áreas africanas da Costa da Guiné, da Mina e de Angola. A praça comercial madeirense, para além do privilegiado relacionamento com o mundo insular, foi protagonista de outros destinos no litoral africano. No primeiro rumo, ressalta a costa marroquina, onde os Portugueses assentaram algumas praças, defendidas, a ferro e fogo, pelas gentes da Ilha. Também aos madeirenses foi permitido o comércio com Larache e Berbéria. Insiste-se no facto de as Canárias e os Açores terem sido os protagonistas do comércio com o Novo Mundo, deslocando-se a Madeira para uma posição excêntrica. Mas acontece que os dados disponíveis na documentação revelam o contrário, contribuindo para isso o facto de a Madeira ter servido de modelo para todas as tentativas de valorização económica do Novo Mundo. A última situação favoreceu uma pronta emigração de madeirenses, especializados nas diversas tarefas, e propiciou a manutenção do relacionamento com os destinos da emigração, ainda que por motivos por vezes sentimentais, saindo reforçada a economia com a oferta madeirense de produtos demandados por estes novos mercados. E, finalmente, deverá juntar-se a ativa participação dos mercadores nos circuitos comerciais, então traçados para o fornecimento de mão de obra escrava ou para o escoamento do açúcar. Na Madeira, o desenvolvimento das vias de comunicação terrestre só foi uma realidade a partir da segunda metade do séc. XIX. A economia agrícola da Ilha teve de obedecer às possibilidades da via marítima, sendo definida por uma forte incidência na orla litoral. O mar dominou os contactos e o quotidiano. O rumo traçado pelos primeiros povoadores, aquando do reconhecimento da Ilha no séc. XV, perdurou por muito tempo e condicionou a forma de progresso do povoamento e da economia, que se fez a partir das enseadas e dos ancoradouros: Funchal, Machico, Santa Cruz, Ponta de Sol, Calheta. Foi em torno destas localidades que girou o movimento de mercadorias e pessoas. Para manter este circuito, era necessário um grupo numeroso de barqueiros. O Funchal e as demais localidades estavam em condições de satisfazer tal procura. A rede de escoamento do açúcar é exemplar e a expressão perfeita desta realidade. Não obstante existir uma alfândega em cada capitania, o porto do Funchal manteve-se como a porta de entrada e de saída da Madeira. A Alfândega de Santa Cruz foi de vida efémera e a Coroa sempre se preocupou em manter o sistema de trocas de cada ilha centrado numa localidade portuária importante, como forma de controlar este movimento. Era ao Funchal que acolhiam os mercadores interessados no comércio de exportação e era ali que se recebiam o cereal e as manufaturas depois distribuídos por toda a Ilha. O porto do Funchal não oferecia grandes condições à navegação internacional. A sua baía, ao contrário da de Machico, não era abrigada, sucedendo muitas vezes naufrágios. As condições de abordagem não eram as melhores, resumindo-se, por muito tempo, a um varadouro para os barcos pequenos e a um calhau aberto para a descarga da mercadoria e dos passageiros. O primeiro cais de desembarque surgiu na Pontinha no séc. XVIII, mas só a partir de 1910 o molhe estaria apto a oferecer algumas condições como porto comercial. O relacionamento com as ilhas de Cabo Verde foi facilitado pelos benefícios fiscais atribuídos pela Coroa desde 1507. A contrapartida baseava-se no fornecimento de cereal da Madeira e, depois, dos Açores. A Madeira usufruiu, em 1562 e 1567, de facilidades no comércio de escravos de Cabo Verde e costa da Guiné. Esta foi uma forma de suprir os problemas surgidos com a crise açucareira. A oferta de Cabo Verde alargava-se também ao sal, à carne e aos couros. A comunidade madeirense residente em Santiago foi numerosa, merecendo referência Francisco Dias, morador na Ribeira Grande. Através da informação colhida no seu testamento de 1599, pode ser definido como um dos mais importantes mercadores de escravos, empenhado no tráfico com a Madeira e as Antilhas. Os madeirenses assumiram a partir daqui uma posição privilegiada no trato de escravos com a Costa da Guiné e os destinos finais do outro lado do Atlântico. As conexões interinsulares mantiveram-se até ao séc. XVII sem alterações significativas. A situação de afrontamento gerada pela Restauração da monarquia portuguesa, em 1640, afastou as ilhas da Madeira e dos Açores dos contactos regulares com as Canárias. Em Cabo Verde, o movimento perdeu importância, pelo desinteresse no comércio de escravos, e só foi reatado no decurso dos sécs. XVIII e XIX, por força da rota de comércio do vinho. As memórias de viagem, distanciadas no tempo em 37 anos, atestam que a crise açucareira da primeira metade do século não provocou o colapso da economia madeirense. Primeiro, porque o açúcar local, não obstante a quebra sofrida, continuou a ser um dos mais valorizados e procurados produtos pelo mercado europeu; depois, porque o vinho veio preencher a lacuna deixada em aberto. A economia alicerçou-se no confronto das solicitações da economia de subsistência e de mercado: no primeiro caso, condicionaram a valorização dos componentes da dieta alimentar (o vinho, os cereais), enquanto, no segundo, implicaram a inserção da economia insular na europeia, através da exploração de produtos como o açúcar e o pastel. Os produtos referenciados, pelas razões apontadas, impuseram-se no mercado insular, galvanizando o sistema de trocas. A Madeira, até à afirmação da economia açucareira, a partir de meados do séc. XV, evidenciou-se como o principal celeiro atlântico, fornecedor das praças e das áreas carecidas dele no litoral português. Para isso, a Coroa traçou uma política cerealífera, definida pela abertura de duas rotas de escoamento: uma, orientada no sentido dos portos do reino (Lisboa, Porto, Lagos), e incentivada em 1439 por meio de isenções fiscais; outra, imposta por D. Afonso V, tinha como finalidade o abastecimento das praças do litoral africano e guineense. Esta última solução definia-se pelo monopólio ou pelo direito preferencial com um contrato firmado com os mercadores. As dificuldades sentidas, a partir de 1461, e agravadas na década seguinte, ditaram as profundas alterações da economia madeirense que conduziram a uma inversão do comércio do cereal. As tentativas do infante D. Fernando, em 1461 e 1466, para manter a dominante cerealífera na economia madeirense, e as correspondentes rotas de escoamento, esbarraram com a alta rentabilidade e a valorização da cultura do açúcar. Deste modo, o impulso da safra açucareira e o aumento populacional estão na origem de uma insuficiente produção cerealífera e da necessidade de definição de um mercado fornecedor. Esta evidência implicou a tomada de medidas no sentido de estabelecer uma área abastecedora do cereal de que a Ilha carecia, o que veio a acontecer a partir de 1483, com a definição da saca do trigo necessário ao consumo madeirense nas ilhas vizinhas. Para atrair este produto, a Coroa estipulara, em 1508, a isenção da dízima de entrada e, a partir de 1527, foram custeados os encargos com a descarga, os sacos e o armazenamento. A Coroa, ao mesmo tempo que procurava definir um celeiro de abastecimento da Madeira, atuava no sentido de preencher a lacuna aberta pela ausência do trigo madeirense. A sua concretização só foi possível mediante uma constante e rigorosa intervenção régia. No séc. xvi, definido de modo rigoroso o celeiro de provimento nas ilhas vizinhas, a questão cerealífera atenua-se, agravando-se apenas com as crises sazonais das áreas produtoras. Este insuficiente aprovisionamento obrigou o ilhéu a socorrer-se do velho continente, com quem manteve um ativo comércio a troco de açúcar. Assim, a Madeira recebeu 42 % de cereal da Europa continental e 40 % das Canárias, enquanto na Europa dominou o mercado flamengo, com 32 %. O madeirense, habituado a negociar com os estrangeiros, reagiu veementemente contra esta decisão, pelo que o infante D. Fernando, restringidas as suas possibilidades, arrematou, em 1471, todo o açúcar a uma companhia formada por Vicente Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo e Martim Anes Boa Viagem. Desta decisão resultou um conflito aceso entre a vereação e os referidos contratadores. O estabelecimento dos contingentes de saída, em 1498, definia de modo preciso o mercado consumidor do açúcar madeirense, que se circunscrevia a três áreas distintas: o reino, a Europa nórdica e a mediterrânica. As praças do mar do Norte dominavam este comércio, recebendo mais de metade das referidas escápulas. Entre elas, evidenciava-se a Flandres, enquanto, no Mediterrâneo, igual posição é atribuída a Veneza, conjuntamente com as cidades levantinas de Chios e Constantinopla. A ordenança de 1498 não determinava apenas o contingente das diversas escápulas, mas também a forma da sua comercialização. A Coroa, para facilitar o seu escoamento, monopoliza as escápulas de Roma e Veneza, o equivalente a 33 % do total. A este açúcar juntava-se o valor do quinto ou quarto e da dízima de exportação, que o Rei carregava por meio de contrato estabelecido com as grandes companhias nacionais e internacionais. Os réditos arrecadados com os direitos eram exportados para a Flandres e para Veneza. No período entre 1495 e 1526, receberam, respetivamente, 160.000 e 26.000 arrobas. As escápulas, até 1504, e o produto dos direitos reais eram canalizados para o comércio europeu, quer por carregação direta, quer por negócio livre, ou a troco de pimenta. Este açúcar era contratado por mercadores. Para além do mundo insular, a Madeira apostou nas ligações a longa distância rumo à Europa ou ao Novo Mundo. Os contactos entre a Madeira e o reino eram constantes e faziam-se com maior frequência a partir dos portos de Lisboa, de Viana e de Caminha. Os portos do Norte mantiveram uma ação muito importante no período de apogeu da safra açucareira, uma vez que os marinheiros e os mercadores daí oriundos controlavam uma parte significativa do tráfico comercial. Abasteciam a Ilha de carne e panos, levando em troca o açúcar para os mercados nórdicos. O reino não dispunha de todos os artefactos solicitados pelos insulares, e assim tornava-se imprescindível o alargamento geográfico das trocas comerciais. As riquezas acumuladas com o comércio apelavam ao luxo, com produtos que só poderiam ser conseguidos nas praças de Ypres, de Ruão e de Londres. A Madeira tinha para oferecer ao mercador do reino um grupo restrito de produtos, mas capazes de cativar o seu interesse. No começo, foram as madeiras, o sangue-de-drago e os excedentes da produção cerealífera, depois o açúcar fez redobrar a oferta e, finalmente, o vinho, para abastecer as naus das rotas do Brasil ou de outros destinos. A Ilha recebia em troca um conjunto variado de produtos, como as manufaturas imprescindíveis ao uso e ao consumo quotidianos: louça, telha de Setúbal, de Lisboa e do Porto, panos, azeite e carne do Norte. O porto do Funchal atuou ainda como intermediário entre os portos do reino e as feitorias africanas no comércio de peles, de escravos e de algodão de Cabo Verde. No início do povoamento, o produto que cativou os Portugueses, e que deu nome à Ilha, foi a madeira. Esta, por ser de boa qualidade, teve usos múltiplos, na Ilha e fora dela. Muita foi exportada para o reino, para as praças africanas (Mogador e Safim) e para os portos europeus (Ruão). O madeirense orientou, nos sécs. XV e XVI, o sistema de trocas internacionais para o tradicional mercado europeu, com particular incidência no Mediterrâneo. Aqui, assinalam-se cinco áreas: os portos do reino, Lagos, Lisboa, Porto, Vila do Conde e Viana; os portos do Norte da Europa, em especial da Inglaterra e da Flandres; as praças espanholas de Sevilha, de San Lucar de Barrameda, de Valência e de Barcelona; as cidades italianas de Génova, de Veneza e de Livorno; os portos do Mediterrâneo Oriental, como Quios e Constantinopla. As praças espanholas e italianas funcionaram, muitas vezes, como áreas de redistribuição para o mercado levantino. A partir da segunda metade do séc. XVI, a concorrência do açúcar americano retirou à Madeira a situação preferencial no mercado europeu. Os produtos derivados do açúcar, como as conservas e a casca, continuaram a ativar o movimento com estes mercados. Era pouco o açúcar exportado, mas abundantes os produtos dele derivados. Estamos na época do comércio de casca e de conservas. Os contactos entre a Madeira e o litoral americano desenvolveram-se, após a quebra da cultura da cana-de-açúcar, com o incremento do comércio do vinho. As colónias inglesas das Antilhas e da América do Norte afirmaram-se como espaços consumidores do vinho. A partir de finais do séc. XVII, aos portos de Pernambuco, do Rio de Janeiro e da Baía juntaram-se os de New England, de Nova Iorque, da Pensilvânia, da Virgínia, de Maryland, das Bermudas, de Barbados, da Jamaica, de Antígua e de Curaçau. Nos sécs. XVIII e XIX, não foi menor o protagonismo insular. As ilhas continuaram a manter a função de pontos de escala de navegação, tornando-se esta mais justificada a partir de finais do séc. XIX, com a necessidade de reabastecimento de carvão. A isto juntou-se a função de centro de apoio e de laboratório das expedições científicas europeias. Os cientistas cruzaram-se com os mercadores e seguiram as rotas delineadas desde o séc. XV. A estes juntaram-se os turistas, que passaram a afluir às ilhas desde o séc. XVIII, na busca de cura para a tísica pulmonar, ou à sua descoberta. O protagonismo da Madeira ficou evidenciado por força da presença dos Ingleses e da função que a Ilha exerceu na estratégia colonial britânica. Fora deste universo, registar-se-á como novidade a separação do mercado da América do Norte, a partir da independência, em 1776, que ficou como o interlocutor destacado no comércio externo da Ilha entre finais do séc. XVIII e princípios do séc. XX. A política de incentivo do Governo espanhol, com a criação dos portos francos das Canárias, desviou uma parte significativa do tráfico madeirense. O porto do Funchal perdeu competitividade face aos excessivos direitos de ancoramento e de tonelagem, não conseguindo os comerciantes e os políticos madeirenses fazer vingar a política de porto franco como forma de recuperação económica do arquipélago. A situação económica da Ilha esteve sob a dependência do mundo continental envolvente, tendo o Atlântico como caminho. Os conflitos locais e mundiais repercutiram-se de forma direta na conjuntura, definindo crises, secundadas pela fome e pela emigração. Foi isso que sucedeu nas décs. de 40 e 50 do séc. XIX, com a crise do comércio do vinho e, mais tarde, com o deflagrar das Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945). O Atlântico abriu o caminho de fuga à guerra, à fome e ao sofrimento. No período da Primeira Guerra Mundial, a América, que dois séculos antes se afirmara como o preferencial consumidor do vinho, foi o único mercado a comprar os produtos da Ilha (vinho, vimes e bordados) e a abrir as portas à emigração. Entretanto, das províncias portuguesas africanas, como Angola e Cabo Verde, chegava o milho, o principal ingrediente da dieta madeirense. A economia madeirense definia-se então por uma multiplicidade de produtos que garantiam as exportações. O vinho, o bordado, os vimes (e os artefactos dele derivados) mantiveram a animação comercial com o exterior, enquanto o turismo completava esta realidade ao nível interno. A animação não resultou apenas da disponibilidade de serviços e de produtos, mas também da função do porto do Funchal como escala oceânica. Aqui aportavam os vapores das carreiras do Cabo, do Brasil, das colónias portuguesas e dos Estados Unidos da América. A ausência de embarcações no porto repercutiu-se de forma direta no abastecimento da Ilha em mantimentos (cereais) e nas exportações disponíveis. O movimento só se restabeleceu a partir de 1946. A Guerra levou à destruição da marinha mercante e tardou algum tempo a reposição da frota. Logo no verão de 1940, a situação começou a agudizar-se. O vinho e os vimes entraram em crise. Apenas as exportações do bordado conseguiram manter-se em plena atividade, para gáudio das cerca de 130.000 bordadeiras (entre 1942-1946), devido à aposta no mercado dos Estados Unidos, que recebeu 72 % destas exportações. Deste modo, a tendência foi para a subida do bordado nos anos de Guerra. Pior que a ausência de exportação dos produtos da terra, foi a falta de entrada dos cereais que serviam para alimentar os madeirenses. A situação a que a Ilha ficou sujeita, após o deflagrar da Segunda Guerra Mundial, obrigou à tomada de medidas, de modo a não se repetir o sucedido entre 1914 e 1919. A 16 de novembro, 15 dias após o início do conflito, o governador civil do Distrito determinou algumas medidas de controlo dos preços e uma intensificação do cultivo da terra, para, 15 dias mais tarde, estabelecer comissões de socorro capazes de assegurar trabalho aos desempregados, conforme o decreto-lei n.º 30.605. Do plano, faziam parte um projeto hidroelétrico e a intensificação das obras públicas. As décs. de 20 e de 30 foram de crise para o arquipélago madeirense. As dificuldades financeiras internacionais, com o crush de Nova Iorque, em 1929, repercutem-se na Ilha com a falência das casas bancárias de Henrique Figueira e Sardinha. A casa bancária com o nome do seu proprietário, Henrique Figueira da Silva (1868-1945), mais conhecida como Banco Figueira, tinha uma importante carteira de depósitos e de empréstimos, no valor de um milhão de libras esterlinas, entregue a um grupo significativo de empresas madeirenses. Surgiu, em 1898, com instalações na R. dos Murças. Esta casa dominava os financiamentos ao comércio e à indústria da Ilha, sendo de destacar a sua ação nos sectores das moagens e dos engenhos de açúcar e aguardente com a Fábrica de S. Filipe. Não pode esquecer-se que a primeira metade do séc. XX foi marcada por profundas mudanças na economia madeirense. O quadro económico da Ilha apontava para uma aposta na policultura, mas sem a pujança de outras épocas. A déc. de 20 foi a década de ouro para o bordado da Madeira. Desde 1938 que a Ilha produzia excedentes hortícolas e frutícolas que exportava para o continente português e para alguns países europeus, como a Inglaterra, a Irlanda, a Bélgica, a Alemanha, a Itália, a África, e também para os Açores, por força do incentivo da Delegação no Funchal da Junta Nacional de Exportações de Fruta, criada em 1936, e do Grémio dos Exportadores de Frutas e Produtos Hortícolas da Madeira. Em 1940, as exportações de produtos frutícolas e hortícolas representavam 3960 contos, sendo 6 % do total da receita entrada na Ilha. Neste grupo, a banana tinha já um peso significativo, com mais de 99 %. O turismo, apesar das guerras mundiais, continuará a ser um objetivo dos madeirenses depois da Segunda Guerra Mundial. Em 1938, dava uma importante animação à cidade, fazendo recordar as primeiras décadas da centúria, mas, entretanto, a Segunda Guerra Mundial veio retirar todo este brio e movimento à cidade. As mudanças ocorrem apenas a partir da déc. de 70, altura em que se alarga o horizonte da origem dos turistas e em que o turismo passa a acontecer durante todo o ano. A aposta da Secretaria Regional do Turismo numa animação capaz de realçar alguns dos principais cartazes turísticos da Ilha conduziu a que o turismo perdesse finalmente o carácter sazonal, para se consolidar como a principal atividade económica do arquipélago. O bordado, que se afirmara, em finais da centúria anterior, como um produto de relevo nas exportações, estava agora em situação difícil. As dificuldades começaram a surgir a partir de 1924, com a saída dos sírios. Nota-se uma perda nas exportações de 100.000 contos, sendo de 30.000 no bordado. A situação de crise, agravada com o crush da bolsa de Nova Iorque, em 1929, repercutiu-se na indústria, conduzindo para o desemprego mais de 30 % da mão de obra do sector. A Guerra atingiu diretamente mercados concorrentes do bordado na Europa e no Pacífico, abrindo espaço ao da Madeira. Mas os efeitos do conflito mundial foram devastadores para esta indústria. Em agosto de 1939, era já evidente a situação, como refere o governador civil José Nosolini. Desta forma, tomaram-se medidas no sentido da defesa da mesma, através de isenções na importação dos materiais, pano e linhas. Em 1936, a Madeira continuava a exportar o bordado para vários destinos, como a Inglaterra, os Estados Unidos, a Austrália, o Canadá, a França, a União Sul-Africana, o Brasil, a Alemanha, a Bélgica, a Holanda, o Peru, Malta, a Noruega e Singapura. Em 1956, perdeu o mercado do Brasil, ao mesmo tempo que se afirmava um espaço concorrente, nos morros da cidade de Santos. Muitas das bordadeiras e vários empregados madeirenses do sector do bordado que tinham emigrado para o Brasil não deixaram de lado o trabalho que os ocupava na Ilha. Na déc. de 60, o bordado da Madeira chegava a novos e tradicionais mercados, como os Estados Unidos, a Suíça, a Suécia, a Dinamarca, a Alemanha, a França, a Inglaterra, a Espanha, a Austrália e a África do Sul. Nos anos de 1966 e 1967, foi notória a quebra nas exportações, fruto da crise interna de alguns mercados, como os dos Estados Unidos e da África do Sul, e da concorrência do bordado à mão, do Oriente, e, à máquina, da Suíça e de Hong Kong. A Itália é um novo mercado que surge apenas a partir de 1967, e só conseguirá suplantar os Estados Unidos a partir de 1974, assumindo uma posição dominante nos anos 80. A diversificação de atividades e produtos da centúria oitocentista está também na origem do incremento dado, a partir da déc. de 20 do séc. XX, à indústria de obra de vimes. Nos anos 30, a grande aposta esteve na exportação do vime em bruto para os Estados Unidos e para o continente. A situação repercutiu-se no volume de negócios. Assim, dos cerca de 300 contos na déc. de 30, passou-se para mais de 10.000 contos em 1945 e, passados 10 anos, atingiu-se o dobro. As exportações destinavam-se a dois mercados: o continente e os Estados Unidos. Em 1953, o continente recebia mais de 70 % do vime em bruto, e a Inglaterra 22 %, enquanto os Estados Unidos absorviam 90 % da obra de vimes. Na déc. de 50, a concorrência da Jugoslávia, da Hungria, de Hong Kong e do Japão repercutiu-se de forma negativa, provocando uma quebra, em 1954. Nos anos 80, o vime parece ter sucumbido com a concorrência, diminuindo a exportação em bruto e em obra, o que se refletiu na área de cultivo. Nos começos do séc. XXI, o principal mercado do vime está na venda de obra, na Ilha, aos locais e aos turistas. Alberto Vieira (atualizado a 28.02.2017)
colonia
É um contrato regulado pelo direito consuetudinário, em que o proprietário da terra a cede a outrem, tendo este a obrigação de a tornar arável, construir as benfeitorias e dar àquele, na altura da colheita, a metade da mesma. Este contrato atípico era quase sempre estabelecido de forma perpétua, daí a persistência no tempo desta forma de vinculação à terra da maioria da população rural madeirense. É um sistema típico da Madeira, razão pela qual era quase sempre ignorado na codificação do direito administrativo nacional. O facto de quase sempre ser confundido com os regimes similares do continente, como a parceria agrícola, levou a inúmeras confusões. Na documentação madeirense dos sécs. XVI e XVIII, encontra-se referências a contratos de arrendamento de meias e enfatiotas, mas não temos qualquer indicação quanto à data em que começou a celebrar-se este contrato. No caso de Machico, as informações que aparecem nas posturas sobre a terra e os proprietários podem esclarecer esta situação: nas posturas de 1629, não aparecem quaisquer referências a este sistema, ao contrário do que sucede nas posturas de 1769. Isto permite afirmar que foi neste intervalo que tudo aconteceu, pelo menos em Machico. Embora o sistema seja ditado pelo direito consuetudinário, existem regras que determinam o seu funcionamento e quase sempre são definidas na escritura, quando esta é realizada. Este contrato, escrito ou não, era celebrado entre duas partes, o proprietário da terra, conhecido como senhor e amo, e o agricultor, que assume a condição de colono, quando reside na propriedade, ou de mieiro, se reside fora da mesma terra. Não há qualquer passagem da propriedade ao colono. Quanto ao espaço agrícola, alvo deste contrato entre ambas as partes, assinalava-se sempre as chamadas benfeitorias (consistindo em paredes, árvores, palheiro) que são a mais-valia atribuída ao mesmo pelo colono ou mieiro, mediante regras. Assim, o colono não poderia construir obras de pedra e cal, isto é, casa ou palheiro, sem autorização do senhor, sob pena de os perder, como também não poderia arrancar árvores ou destruir qualquer benfeitoria. Algumas obrigações estão acometidas ao senhorio, quando se iniciava o contrato. Segundo postura de Machico de 7 de maio de 1769, os senhores estavam obrigados a fornecer a semente de feijão no primeiro ano. José Silvestre Ribeiro, em 1854, numa proposta de lei de alteração deste contrato, propunha que fossem os senhorios a assumir os custos das benfeitorias. Em 1973, na resolução de um contrato de colonia de uma terra no sítio da Ajuda, referia-se como benfeitorias as paredes, as levadas, as vinhas, o telheiro e as empenas. O usufruto do rendimento da terra variava, de acordo com os condicionantes de cada contrato que, por norma, era de meias. Mas poderiam acontecer exceções. Assim, quando as terras tinham já benfeitorias do amo, o colono tinha apenas direito a 1/3 da colheita. No caso de existirem dívidas das benfeitorias aos próprios nacionais, por dívida fiscal, o colono ficava apenas com um quarto da produção. Para entendermos este sistema, torna-se necessário entender como evoluiu o sistema de propriedade da terra no arquipélago. O conhecimento do regime de propriedade requer um estudo aturado, assente nas fontes documentais que atestem o sistema de relações estabelecido na posse e na produção da superfície arável. No caso madeirense, a historiografia preocupava-se, única e exclusivamente, com as condições jurídicas que regulavam a distribuição das terras e, depois, degradando-se o sistema, com o alheamento do proprietário da parcela arroteável e com a fixação daquele no meio urbano. A situação contribuiu para a definição do conhecido contrato de colonia. Não interessava conhecer quem e como se recebiam as terras de sesmaria, que tipo de propriedade condicionou a política de doação e distribuição de terras, qual a evolução da estrutura e as cambiantes, de acordo com as condições mesológicas do solo arável. O equacionar da problemática em estudo não poderá desligar-se, como é óbvio, da evolução do sistema de propriedade. A ilha da Madeira, porque desabitada, apresentava as condições necessárias para o primeiro ensaio de colonização europeia fora do continente. E daí partiram os processos, as técnicas e os produtos para as restantes ilhas do Atlântico e Brasil. O sistema de propriedade ficou definido pela distribuição de terras aos povoadores e, depois, pela venda, troca ou nova doação. Num e noutro caso, as situações são idênticas, variando apenas a forma de expressão, consoante o processo de povoamento e as peculiaridades de cada ilha. Todas as doações eram feitas de acordo com normas estabelecidas pela Coroa e seguiam o modelo já definido para o repovoamento da península. Para além da condição social do contemplado, das indicações, por vezes imprecisas, da área de cultivo para erguer benfeitorias, estabelecia-se também o prazo para as arrotear, que inicialmente era de 10 anos, mas diminuiu para 5 e assim se manteve a partir de 1433, não obstante as reclamações dos moradores, que anotavam as dificuldades no arroteamento. Quem quisesse adquirir o estatuto de povoador com posse de terras estava obrigado a estabelecer uma residência e, se solteiro, a se casar. Estas condições revelam que o principal intuito da distribuição de terras era fomentar o povoamento das ilhas. Sendo a Ilha um espaço limitado, rapidamente a terra se transformou num bem escasso, pelo que os seus principais detentores usaram diversas estratégias para travar a pressão constante do movimento demográfico e assegurar a preservação do património fundiário. Para isso, socorreram-se da estratégia de vinculação da terra, através de capelas e morgadios, ou então alienaram a sua propriedade útil a colonos, dando lugar ao sistema peculiar que ficou conhecido como contrato de colonia. A fundação de uma capela, dentro de um templo já existente ou construída de raiz, fazia-se normalmente por disposição testamentária. À beira da morte, estabelecia-se um conjunto de obrigações de missas, assegurando-se um terço do património para a sua manutenção. Na partilha do património imóvel, estabeleciam-se, por norma, três partes iguais, que eram divididas entre os filhos, a mulher e a capela. O cumprimento das disposições testamentárias era feito por um testamenteiro ou administrador, normalmente o filho primogénito. A partir de 1486, começou a existir o juiz dos resíduos e provedor das capelas, que tinha o encargo de fazer cumprir os legados estabelecidos. A garantia da indivisibilidade da terra era ainda assegurada pela criação de morgadios. Em 1527, João Esmeraldo criou para as suas terras os morgados do Vale da Bica e do Espírito Santo que passaram a ser administrados pelos dois filhos. Este sistema de vinculação dominou o património fundiário madeirense, ficando a Ilha conhecida como a região do país com maior número de morgadios. Em 1847, o governador José Silvestre Ribeiro refere que 2/3 da terra da Ilha estavam de morgadio, sendo tal responsável pelo estado de abandono da agricultura e de miséria da maioria da população. Em 19 de maio de 1863, data da extinção da instituição de morgadios, existia 659 vínculos, isto depois de uma outra lei de 9 de setembro de 1769 ter acabado com os pequenos morgadios e de outros terem desaparecido por sentença, com falta de rendimentos para a sua manutenção. O arrendamento adquiriu importância fundamental no sistema de exploração agrícola e em diversas formas de domínio útil da propriedade. Em 4 de setembro de 1475, João Afonso do Estreito arrendou umas terras no Estreito da Calheta a Vasco Dias Evangelho. As condições do contrato não eram muito pesadas para o rendeiro, uma vez que o proprietário acudia com a despesa da levada que deveria construir e recebia junto com a terra casas e engenho de açúcar. Em contrapartida, ficou estabelecida uma renda anual de 30.000 reais. As mesmas famílias dos capitães estiveram envolvidas nesta nova situação. Em 4 de julho de 1477, lavrou-se um contrato de arrendamento entre João Gonçalves da Câmara e Álvaro Lopes. O rendeiro ficava com o encargo de explorar umas terras na Ponta de Sol, construindo a levada, plantando a cana e construindo o engenho. Ao arrendatário, ficava o direito a 30 arrobas de açúcar de uma cozedura. A segunda metade do séc.XVI foi marcada por um forte incremento de diversas formas de domínio útil da terra. Ao mesmo tempo, a contrapartida para o proprietário assume uma relação direta com os resultados da colheita, surgindo assim os primeiros contratos de "meias". Referimos alguns exemplos. A 18 de novembro de 1558, Francisco Martins estabelece um contrato de arrendamento de meias por nove anos sobre umas terras em Câmara de Lobos. A terra dispõe de água, ficando ao encargo do colono plantar da cana. A situação de decadência da cana torna impossível apostar num engenho, podendo ele moer a cana em qualquer dos que se encontravam em atividade. As despesas da moenda eram suportadas a meias, sendo o açúcar resultante dividido no estendal. Uma vez que a cultura só se tornava produtiva ao fim de dois anos, os contratos estabeleciam regras quanto às contrapartidas. Assim, se as terras eram de pranta, ficaria o meeiro isento de encargos por dois anos, caso fosse de soca (cana de dois anos) ou ressoca (cana de três e mais anos), a medida não tinha efeito. Em 1591, Francisco Lopes recebeu umas terras no Funchal por nove anos, sendo obrigado a meter planta nova. O convento contribui com água da levada dos Piornais e comparticipa na soca de cana para a plantar, recebendo, em contrapartida, metade da colheita partida no tendal de um engenho. A partir da distribuição inicial de terras, ficou assente uma forma de domínio da propriedade da terra que iria evoluir ao longo dos tempos, de acordo com as condições sociais que dominaram a exploração agrícola e os produtos dominantes e fazedores de riqueza. A economia açucareira começou com um domínio direto do proprietário da terra, mas, à medida que perdeu rentabilidade, surgiram formas distintas de exploração. A riqueza dos primeiros anos permitiu que o proprietário perdesse a proximidade com a terra, fixando-se no meio urbano. As terras, de canaviais e cana, foram entregues a arrendatários que evoluíram para a situação especial de colonos. É neste contexto de transformação que se afirma paulatinamente o contrato de colonia. O contrato de colonia demarca-se na história da Ilha como um dos aspetos mais peculiares e questionáveis. Ele não deve ser considerado como um contrato de arrendamento, uma parceria agrícola, uma forma de colonato voluntário ou contrato enfitêutico, mas sim um sistema específico que surge na Madeira, na forma mais original, nos sécs. XVII e XVIII. A especificidade está no facto de existirem duas formas de propriedade útil: a da terra e a das benfeitorias. Estas formas guiavam-se exclusivamente pelo direito consuetudinário e definiam uma situação peculiar de interdependência entre ambas as partes. Daqui resultou a perpetuação, chegando até aos nossos dias com algumas alterações conjunturais. Estamos perante um compromisso inabalável que nem a morte poderia quebrar. O proprietário do terreno, por esta condição, recebia uma das partes dos produtos, que variava de local para local, enquanto o colono era proprietário das benfeitorias nele realizadas e receberia, por isso, a outra parte do cultivo das terras. As opiniões dividem-se quanto à origem deste sistema de exploração agrícola. Uns encaram-no como o resultado acabado da evolução do regime de sesmarias, outros como o fruto das circunstâncias económicas e sociais da conjuntura histórica madeirense. Ramon Honorato Rodrigues filia a sua origem na crise açucareira da primeira metade do séc. XVI, que foi responsável pelo absentismo dos proprietários, o reforço e a garantia da posição dos arrendatários ou meeiros, em face dos necessários investimentos para o progresso da nova cultura – a vinha. Em nosso entender, a origem deste peculiar contrato gerado pelo direito consuetudinário não é uma viciação dos sistemas peninsulares para aqui trasladados, nem o fruto da conjuntura social e económica‚ pois deve ser entendido como a simbiose dos dois elementos que se desenrolaram num longo processo de gestação que teve início em 1477 com o primeiro contrato de arrendamento de terras na Ponta do Sol celebrado entre João Gonçalves Zarco, segundo capitão do donatário do Funchal, e Álvaro Lopes. Ao último, competia o necessário investimento – tirar a levada da Ribeira da Madalena, plantar o canavial e vinhas, construir o engenho – e, ao primeiro, o usufruto anual de 30 arrobas de açúcar branco da primeira cozedura. O uso deste tipo de contrato, na segunda metade do séc. XVI e nas duas centúrias seguintes, teve uma dupla origem social e económica. Em primeiro lugar, o movimento demográfico, em consonância com a área agrícola escassa, e as dificuldades de recrutamento de escravos geraram a dinâmica de interdependência; em segundo, o rendimento baixo da exploração agrícola, um resultado da crise do comércio do açúcar com a necessidade do investimento na nova cultura da vinha, obrigou ao processo de mudança da posse útil do domínio fundiário. Assim, em 1649, Maria Góis de Vasconcelos, do Porto da Cruz, entregou a terra a um colono para que lançasse as necessárias benfeitorias. Em 1774, o Governador, em ofício a Martinho de Melo e Castro, dava conta dos vexames sofridos pelos colonos, dando apoio à extinção da colonia. Em 1776, a pretensão dos colonos e rendeiros arrecadarem 2/3 da colheita conduziu a um protesto da Câmara, justificado pela tradição histórica da partilha a meias. Os colonos baseavam-se na ordem do Conselho da Fazenda de 17 de outubro de 1722, que regulamentava uma situação distinta para o Porto Santo. Em 1818, deu-se uma sublevação dos colonos que reclamavam a aplicação da lei na Madeira. Em 1852, A. Gonçalves apresentou o contrato de colonia, conjuntamente com o sistema de morgado, como o responsável pela ruína da agricultura da Ilha, pugnando pela sua extinção. A exemplificação está patente em documentos do arquivo da família de Agostinho de Ornelas e Vasconcellos. A casa dispunha de fazendas em toda a Ilha, mas apenas no Caniço, Câmara de Lobos e Estreito de Câmara de Lobos surgem vinhas. O mosto era vendido aos mercadores do Funchal à bica do lagar, como sucedeu, em 1895, à firma Blandy. Da receita, que competia ao senhor, retirava-se as despesas do feitor, com o plantio de novos bacelos e com a compra do enxofre. Os gastos com o enxofre eram avaliados à razão de 200 réis por barril de mosto. Uma análise do sistema de propriedade na sua relação com as culturas dos canaviais torna mais clara a sua evolução no tempo. A situação dos canaviais e da produção do açúcar na Madeira apresentava-se distinta daquela que acontece do outro lado do oceano. O binómio engenho/canaviais não foi tão evidente e a orografia não permitiu a existência de extensos canaviais. À tendência para o excessivo parcelamento, acresce-se a evolução do sistema fundiário, com o recurso a diversas formas de domínio útil (arrendamento, contrato de colonia). Em 1494, era evidente a excessiva divisão da propriedade, pois para 431 canaviais surgem apenas 209 proprietários, 21 % dos quais eram arrendatários. A conjuntura depressionária da economia açucareira madeirense contribuiu para a concentração dos canaviais nos grandes proprietários. Os de poucos recursos financeiros tiveram que abandonar os canaviais, substitui-los pelos vinhedos ou então penhorá-los e vendê-los aos grandes proprietários e mercadores. A situação contribuiu para o reforço do grande proprietário das Partes do Fundo, nomeadamente nas comarcas da Calheta e Ribeira Brava. A tendência acentuara-se na transição do séc. XV para o XVI. A mutação da posse dos canaviais, no período de 1494 a 1537, poderá ser aferida pela variância do nome dos proprietários. Entre os finais do séc. XV e a primeira metade do séc. XVI, verifica-se a manutenção de 32 nomes (11 %), enquanto no período de 1509 e 1537 apenas se mantiveram 19 (6 %). Os números poderão significar que a mutação é mais evidente no período de crise que na fase ascendente; por outro lado, indicam a maior incidência nas Partes do Fundo, pois que, no Funchal, permanecem 17 nomes, isto é, 53 % do total de nomes em causa. Outro aspeto de particular significado na conjuntura de crise é o estabelecimento de contratos de arrendamento e, depois, de colonia, que conduzem ao afastamento do real proprietário da terra e dos canaviais. A relação só existirá à beira do estendal para receber o açúcar. Exemplo disso é o contrato de arrendamento de meias de terras em Câmara de Lobos, estabelecido entre o convento de Santa Clara e Francisco Martins, em 1558. A conjugação dos vínculos ou legados pios, do duplo estatuto social com as alianças matrimoniais ou extramatrimoniais, poderá ser apontada como o principal mecanismo de reforço da grande propriedade na economia açucareira. É uma conjuntura premente no momento de crise da primeira metade do séc. XVI. A intervenção da infanta D. Catarina foi no sentido da manutenção dos canaviais através da regulamentação das heranças. Em 1559, foi eleito um procurador para tratar das heranças dos canaviais, que em 1562, decidiu usar o regime de morgados para aqueles. Nos sécs. XVII e XVIII, a estrutura fundiária apresenta-se distinta. Dominam os pequenos proprietários de canaviais, o que demonstra ser uma cultura subsidiária, que medrava ao lado das outras, pela necessidade familiar ou interna. Apenas em 1766 é possível conhecer uma das cambiantes típicas da estrutura fundiária madeirense: o contrato de colonia. O registo do oitavo refere 34 caseiros, sendo 7 dependentes do senhor do engenho, aqui não identificado, 6 do Convento de Santa Clara e 3 do capitão João Betencourt. Nos sécs. XIX e XX, a estrutura fundiária não mereceu qualquer alteração. Apenas com o processo autonómico, iniciado em 1974, foi possível alterar a situação com a abolição do contrato de colonia em 1977. A cultura foi conquistando importância e captando o interesse dos agricultores em toda a Ilha, mesmo em terras impróprias. Deste modo, os problemas do mercado da primeira metade do séc. XX levaram o Governo a delimitar áreas de produção, ficando de fora os concelhos de Santana e S. Vicente, que, em 1953, reclamavam o direito à mesma. A propriedade, de acordo com os mecanismos do direito sucessório, estava extremamente dividida. Os canaviais não fugiram à regra. Em 1928, temos um grupo de 3535 proprietários a reclamar junto do Governo a preservação do dec. n.º 14.168. Na déc. de 50, parece ter aumentado o número de proprietários e a área de produção. Assim, em 1955, as 42.500 t de cana da safra eram produzidas por 8000 lavradores, dos quais menos de 1000 eram senhorios e mais de 5000 eram colonos, que produziam, em média, pouco mais de 5 t de cana, cada um. Em 1971, temos 35.586 t de cana fornecidas por 10.500 agricultores, mas, de acordo com informação do Engenho do Hinton, existiam 11.661 produtores, dos quais 7.709 produziam cana destinada ao fabrico de açúcar e 1000 produziam aguardente e mel. Isto evidencia que os lotes de terreno dedicados à cana eram muito pequenos, para além de provar o excessivo parcelamento da terra. Aqui podemos encontrar proprietários diretos, arrendatários ou colonos. No caso da cultura da vinha, é possível conhecer a situação da propriedade da terra a partir de alguns livros que registam os tributos que oneravam a produção, como o subsídio literário. Os livros de manifesto do vinho e a receita do subsídio literário elucidam-nos sobre a forma como estava estabelecida a estrutura fundiária. Quanto ao morgadio, temos a predominância na vertente Sul, nomeadamente na área entre o Funchal e o a Campanário. Entre 1819/1834, referem-se 12 (50 %) em Câmara de Lobos, de que podemos destacar os mais importantes, como o Visconde de Torre Bela (Câmara de Lobos e Tabua), João de Carvalhal (São Martinho, Camacha, Ponta do Sol, Ponta Delgada, São Roque, Serra de Agua, C. de Lobos), Ayres de Ornellas de Vasconcellos (Ponta do Sol, S. Martinho, Ponta do Pargo, C. de Lobos) e D. João da Câmara Leme (Quinta do Leme). Em Câmara de Lobos, juntam-se os morgados José Ferreira, António Ferreira, Carlos Vicente, Henrique Fernandes e Fernando da Câmara. Em Santa Luzia, os morgados Dória, Agostinho António; em S. Roque, os morgados Faria e Rego. Em Nossa Senhora do Calhau, os morgados Faria, Albuquerque, Nunes Freitas; em São Pedro, Agostinho; em São Martinho, Luís Alexandre Souveraine, Francisco João de Vasconcelos, Diogo Dias de Ornelas, Pedro Agostinho. Fora da área da cidade e termo, além dos já referidos, o número é reduzido, podendo-se salientar apenas, no Porto Moniz, Francisco Ferro, António Pedro Barbosa; em S. Jorge, o morgado Falcão; na Serra de Água, o morgado Saldanha, Diogo de Ornelas, Francisco Pedro; em Ponta Delgada, João Lúcio e Nuno de Freitas. Todos eram detentores de extensas áreas de produção de vinho, ao cuidado dos colonos. O contrato de colonia predominava no Funchal e áreas limítrofes, em especial Câmara de Lobos onde, em 1829, o número de senhorios era superior a 30. Aqui merecem referência os mais importantes, como Pedro Santana, Visconde de Torre Bela e D. João da Câmara. No Campanário, em 1831, o número elevava-se a 24, destacando-se o morgado João Correia Marques, José Agostinho Jervis, João da Câmara Leme, Luís Sauvaires, João Nunes Bento, A. Francisco Brito, e Penfold. Em São Vicente, Fajã da Ovelha, Paul do Mar, Seixal e São Jorge, nota-se um fraco número de senhorios, o que poderia ser um indício do parcelamento da terra. Quanto ao contrato de colonia, é evidente a presença de proprietários influentes, morgados ou militares. Mais significativa foi a importância assumida pelos proprietários militares (sargento-mor, capitão, tenente, alferes), destacando-se, em São Jorge, as fazendas do sargento-mor, do Cap. João Rodrigues Moderno, de Francisco Correia e do Ten. João Francisco da Silveira; em Santana, do Sarg.-mor José Joaquim de Moira e Silva e dos capitães Francisco Moniz Telles de Menezes e Manuel António Silveira; em São Vicente, do Cap.-mor Filipe Joaquim Abreu e do Cap. Gil Gomes; no Seixal, dos capitães Filipe e Roiz Pombo e do Alf. Marcos João; na Serra de Água, dos capitães João de Freitas e António Joaquim Basto. O mesmo sucedia no Porto Santo, com o Cap. Cristóvão Pereira de Vasconcellos, os tenentes Domingos de Castro Drumond, José Sebastião da Silva e Justiniano José Lomelino, e o Maj. João de Santana Vasconcellos. A partir da informação aduzida na documentação, podemos distinguir dois espaços de acordo com as formas de dominação da propriedade vitícola: uma zona sul dominando a área do Funchal, de Câmara de Lobos, do Campanário e da Ponta do Sol, onde predominava o morgado; e uma zona norte, abrangendo São Vicente, Seixal e São Jorge, onde se afirmava o contrato de colonia com a predominância do senhorio militar, i.e., os oficiais das ordenanças do distrito de São Vicente. Dentro da primeira área, temos o Campanário como propriedade eclesiástica das confrarias da Sé, do Mosteiro de Santa Clara e das Religiosas da Encarnação. Os conventos assumiam uma posição de destaque. Assim, em relação ao Mosteiro de Santa Clara, conhecem-se vários contratos de arrendamento de meias. Este Mosteiro, mercê das doações recebidas ao longo do séc. XVI, transformou-se no maior proprietário da Ilha. Assim, em 1644, alargou-se a toda a Ilha, com 408 propriedades declaradas, transformando-se, por isso, numa importante empresa agropecuária. Um facto significativo está na ausência quase total dos proprietários estrangeiros, nomeadamente ingleses. A existência está atestada apenas na área circunvizinha do Funchal. Em São Pedro, temos Leonardo B. Gordon e Diogo Bringuel; em São Roque, Penfold; no Monte, Henrique Briguel e Henry Temple; em São Martinho, Thomas Magrath. Isto denota que, à partida, os estrangeiros não manifestavam interesse pela exploração da viticultura, estando apenas empenhados no seu comércio. A contabilidade de algumas fazendas, onde dominava o contrato de colonia, era criteriosa por parte do feitor, o intermediário entre o colono e o proprietário. A exemplificação está patente em alguns documentos do arquivo da família de Agostinho de Ornelas e Vasconcellos. A casa dispunha de fazendas em toda a Ilha, mas apenas no Caniço, Câmara de Lobos e Estreito de Câmara de Lobos surgem vinhas. O mosto era vendido aos mercadores do Funchal perante a bica do lagar, como sucedeu em 1895, bem como à firma Blandy. Da parte da receita, que competia ao senhor, deveria excluir-se algumas despesas do feitor, o plantio de novos bacelos e a compra do enxofre. Os gastos com o enxofre eram avaliados à razão de 200 réis por barril de mosto. A cultura da vinha era rentável, justificando-se o investimento em novas terras de vinha. Em Câmara de Lobos, apostou-se, em simultâneo, na cana doce e novos bacelos, enquanto no Caniço os 89 caseiros receberam barbados de Lisboa e bacelos do norte. A despesa total, com a compra e despesa de transporte dos bacelos, plantio e enxertia, para o Caniço, em 1901, foi de 114$400. O sistema, síntese das preocupações sociais e económicas da Madeira de outrora, foi, num primeiro momento, fator de progresso e afirmação da cultura da vinha na Ilha. O séc. XVIII é o momento da plena afirmação do sistema, que se torna geral e domina o sistema fundiário. Em 1773, diz-se que numa população de 80.000 habitantes, apenas 200 famílias não assumiam a posição de colonos ou mieiros. Com a aluvião de 1956, que atingiu os concelhos de Machico e Santa Cruz, sabemos que 1183 colonos sofreram dados. Depois, em 1971, somos informados pelo Boletim da Junta Geral que 30 % da exploração da terra no arquipélago se fazia em regime de colonia. Na segunda metade do séc. XVIII, inverteu-se a posição, afirmando-se este sistema como o principal motivo de retrocesso económico e social, responsável pela forte sangria populacional e o abandono da terra. É a opinião generalizada que o estado de abandono e decadência da agricultura se deveu a esta situação. Estamos perante uma opinião partilhada por quase todos os que escrevem e intervêm no debate, a partir de meados do séc. XIX. A imprensa funchalense, entre 1820 e 1860, nomeadamente em jornais como o Patriota Funchalense, A Discussão, Atalaia da Liberdade e Defensor, insiste no efeito pernicioso deste sistema ao qual atribui a origem de todos os problemas da agricultura madeirense, o empobrecimento da população rural e a sua constante emigração. O movimento de debate pela defesa da exploração direta da terra, sem senhorios, é apresentado como única solução para a crise agrícola da Madeira e Porto Santo. Na última ilha, conseguiu-se a abolição em 13 de outubro de 1770, como a solução para acabar com o abandono a que estava votada. Note-se que, em 1722, tinha surgido uma maior valorização da posição do colono do Porto Santo com a concessão do usufruto de dois terços da produção, como meio de fixação na terra. A mesma reivindicação dos madeirenses, em 1776, não teve efeito e o sistema foi-se arrastando num lento processo de agonia, durante o séc. XIX, com o movimento liberal. Foi a primeira e mais forte manifestação de repúdio, sem nunca se chegar a uma decisiva extinção. A iniciativa do governo miguelista de extinguir o referido sistema, em 1828, foi uma opção efémera e não passou de uma aventura demagógica. Em 1818, no seguimento dos acontecimentos, deu-se uma sublevação dos colonos, que pretendiam a publicação da lei para a Madeira. Em 1852, A. Gonçalves apresentou o contrato de colonia, conjuntamente com o sistema de morgado, como responsável pela ruína da agricultura da Ilha, pugnando pela sua extinção. Perante este movimento, a Junta Geral decidiu, em 1867, abrir um concurso para apresentação de propostas de projetos de lei reguladores do contrato de colonia. A proposta vencedora teria direito a um prémio pecuniário de 150.000 rs e seria apresentada e defendida pela mesma Junta junto das autoridades. As soluções não foram consensuais e o regime manteve por mais alguns anos o processo lento de agonia. Apenas em 1916, surgiu uma iniciativa parlamentar da autoria de um grupo de deputados chefiados pelo Visconde da Ribeira Brava que não alcançou qualquer resultado nem satisfez as exigências dos colonos, pelo que, em 1927, se gerou um motim na Lombada da Ponta do Sol que forçou o governo a acabar com o referido regime, pelo decreto de 26 de dezembro no qual se expropriou as referidas terras que, depois, foram vendidas aos colonos por escritura feita em 26 de janeiro de 1928. Com o Estado Novo, o processo em questão foi coordenado pela Junta de Colonização Interna, criada em 24 de abril de 1936. Assim, entre 1944 e 1962, tivemos a aquisição e entrega de 99,5 ha de terreno a colonos, no valor de 7.200 contos, em Ponta Delgada, S. Martinho, Estreito de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Caniço e Paul do Mar. A entrega dos alvarás das terras da Primeira Lombada na Ponta Delgada aconteceu a 23 de setembro de 1956, com um grande aparato cerimonioso presidido pelo Governador do Distrito, o Comandante João Inocêncio Camacho de Freitas. Desde 1954, esta era uma atividade prioritária da Junta de Colonização Interna no arquipélago. Assim, até 1967, era a Junta em questão que adquiria os terrenos e os entregava aos colonos que depois os pagavam mediante empréstimo. Com a lei dos melhoramentos agrícolas, o processo de empréstimo acontece entre o senhorio e o colono, situação que impede a sua resolução, segundo algumas vozes. Atente-se ainda na iniciativa deste como deputado à Assembleia Nacional, no sentido de que fosse encontrada uma solução para este contrato. Antes dele, outros deputados, como Agostinho Cardoso e Álvaro Favila Vieira, haviam feito o mesmo, sendo de referir que a última intervenção do deputado Favila Vieira nessa Assembleia foi sobre o contrato de colonia. Mesmo assim, o contrato de colonia continuou a ser uma realidade em muitas zonas da Ilha e, em 1977, foi passado o estado de óbito pelo decreto legislativo regional n.º 13/77/M, de 18 de outubro. Este foi antecedido pelo decreto-lei 580/74, de 5 de novembro, que determinava a suspensão de qualquer ação para anulação de contrato de colonia, enquanto não fosse legislado sobre a matéria. O fim do contrato de colonia ficou a assinalar um dos mais importantes momentos da conquista da autonomia. Alberto Vieira (atualizado a 25.02.2017)
tabaco
O tabaco chegou a Portugal, no séc. XVI, a partir do Brasil. Começando por ser usado como um produto de uso medicinal, foi, durante muito tempo, uma mercadoria de troca do comércio madeirense com o Brasil. Na Madeira, o seu consumo generalizou-se rapidamente a partir do séc. XVII, com o consumo do tabaco em pó. O cheiro ou o fumo do tabaco faziam parte dos fatores de prestígio social, pelo que todos o consumiam. Palavras-chave: comércio; estancos, tabaco. O tabaco chegou a Portugal, no séc. XVI, a partir do Brasil, tendo sido inicialmente usado como um produto de uso medicinal. O tabaco foi, durante muito tempo, uma mercadoria de troca do comércio madeirense com o Brasil. Trocavam-se pipas de vinho e de aguardente por tabaco, cacau e cravo. Foi o que sucedeu em 1673, com o governador e capitão-general da Madeira João Saldanha de Albuquerque, que requereu os bons ofícios do governador do Maranhão, Pedro César de Menezes, remetendo-lhe tabaco em troca de vinho. A importância deste produto está definida na existência da Alfândega do Açúcar e Tabaco, em Lisboa, que se extinguiu em 1761. A Madeira, que tinha contactos permanentes com o Brasil, passou também a receber este produto, que rapidamente se generalizou em termos de consumo a partir do séc. XVII, com o consumo do tabaco em pó. O cheiro e o fumo do tabaco tornaram-se fatores de prestígio social a que todos aderiam, até mesmo os escravos, pois, em 1694, é referido na nota de óbito de um escravo velho do provedor da Fazenda que este fumava tabaco com cachimbo. Os cachimbos de diversas proveniências que têm sido recolhidos em escavações arqueológicas revelam tal uso alargado. Também não devemos esquecer que o tabaco era conhecido como a “erva-santa” e usado como analgésico. Esta situação resulta das assíduas relações comerciais com o Brasil, assim como do facto de a venda do vinho dever ser feita a troco de mercadorias oferecidas pelos mercadores estrangeiros. Entre estas, surgia o tabaco, que, tendo-se tornado uma moda, viu o seu consumo ultrapassar as barreiras da clausura e chegar até aos conventos de Santa Clara e da Encarnação. Neste último, as freiras recebiam, pelo Dia de Reis, uma ração de sete libras e meia de tabaco. A partir da época filipina, deu-se início ao estabelecimento de contratos de arrematação para a sua comercialização. Em 1639, assistiu-se ao estabelecimento do estanco do tabaco. Estancar é impedir a venda livre de um produto, definindo assim o estanco a situação de monopólio de venda. Com o tempo, o estanco passou, também, a designar o espaço ou local de venda ao público do tabaco. Na Madeira, a R. do Estanco Velho guarda a memória desse lugar, que se manteve até à publicação da lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitida a plantação de tabaco nas ilhas da Madeira e dos Açores e o seu livre fabrico e comércio. Os chamados estanqueiros do tabaco aparecem como pessoas prósperas, o que pode ser revelador de que esta atividade mobilizava muito dinheiro. A título de exemplo, referimos que, em 1679, Aires de Ornelas e Vasconcelos arrendou este contrato na Madeira e Porto Santo a Manuel Escórcio, por 130.000 réis. A este contrato surgem ligados, no séc. XVIII, os nomes de Pedro Jorge Monteiro, António José Monteiro e Feliciano Velho Oldemberg. Tudo isto porque o tabaco se vendia nos estancos a preços elevados e o seu consumo, bem como o do rapé (tabaco em pó), estava generalizado e manteve-se por muito tempo na Ilha, como testemunha, por exemplo, em 1864, o alemão Rudolf Schultzen, na obra Die Insel Madeira: Aufenthalt der Kranken und Heilung der Tuberkulose daselbst. A situação de dependência económica insular face à metrópole manteve-se por muito tempo, determinada por decretos e medidas limitativas das relações com outros mercados. As ilhas continuaram sujeitas aos monopólios do tabaco e do sabão, sendo o fornecimento local feito através de um estanqueiro que estabelece uma rede em todas as freguesias rurais. Esta imposição e regularidade das relações com a metrópole, associada aos monopólios de fornecimento de alguns produtos, como o tabaco, o sabão e o sal, geraram uma subordinação e dependência que deram forma a um trato comercial desvantajoso, por falta de contrapartidas. Por outro lado, favoreceram o contrabando, que será praticado, ao longo dos tempos, um pouco por toda a costa madeirense. O estanco do tabaco foi estabelecido em 1639, como se disse, e extinto a 23 de agosto de 1642, sendo, no entanto, o contrato renovado em 26 de junho de 1644. A 14 de maio de 1650, foi adjudicado o contrato por sete anos, ficando excluídos do mesmo a Índia, o Brasil e alguns lugares de África. Por alvará de 14 de julho de 1674, foi criada a Junta da Administração do Tabaco, mantendo-se a lei de 28 de fevereiro de 1668, que regulamentava o contrabando desse produto. A sua composição e atribuições foram estabelecidas pelos regimentos publicados em 6 de dezembro de 1698 e 18 de outubro de 1702. A estrutura de funcionamento era definida por um presidente, cinco deputados e um secretário. A estes juntam-se os cinco ministros (um para cada província) superintendentes do tabaco, coadjuvados por meirinhos e seus escrivães, para fiscalizar a atividade comercial em torno do produto e evitar o contrabando, conforme regimento de 23 de junho de 1678. Por alvará com força de lei de 20 de março de 1756, que acabou com os ofícios de executores da Alfândega do Tabaco, foi criado o cargo de juiz executor das dívidas da Junta da Administração do Tabaco. No âmbito das suas competências e atribuições, destaca-se o facto de, durante a sua administração, lhe pertencerem todas as matérias e negócios relacionados com o produto, bem como as causas cíveis e crimes sobre o mesmo. Era também o juiz que provia todos os lugares da Junta, da Alfândega e dos conservadores do tabaco das comarcas. Todo o tabaco para consumo do reino era adquirido pela Junta do Tabaco, que depois o fazia vender nos diversos estancos, por meio de contratadores. O monopólio ou estanco do tabaco, que estava na superintendência da Junta da Administração do Tabaco, ficou, a partir da sua extinção em 15 de janeiro de 1775, a depender da Junta da Real Fazenda. A sua administração na Madeira estava entregue ao provedor da Fazenda, a que se associavam um meirinho do estanco, um escrivão das diligências, um juiz conservador e um administrador recebedor do tabaco. Foram juízes do estanco o célebre poeta Manuel Tomás, autor da Insulana, e Ambrósio Vieira, provedor da Fazenda. O fim do estanco do tabaco foi novamente decretado a 17 de junho de 1830, sendo restabelecido por decreto de 21 de abril de 1832 e contratado ao barão de Quintela, pelo decreto de 10 de dezembro de 1832. Foi depois, de novo, abolido por lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitido o seu cultivo na Madeira e nos Açores. O contrato do tabaco era uma fonte significativa de rendimento, sendo usado como moeda de troca, como sucedeu, em 1834, ao ser estabelecido como garantia dos empréstimos feitos em Londres pelo Estado português. No séc. XIX, esta indústria teve grande incremento, surgindo duas importantes fábricas em Lisboa e no Porto. Em 1844, surgiu a Companhia Nacional de Tabacos, com sede em Xabregas, a que se juntaram outras três companhias nacionais. Durante esta centúria, esta foi a principal indústria nacional, de forma que, no inquérito industrial de 1881, são referidas 16 fábricas e 6 oficinas em todo o país. Em 1888, a medida de expropriação das fábricas de tabaco, dando-se a exploração à Companhia dos Tabacos de Portugal, gerou inúmeros conflitos no meio nacional. Segundo a lei de 27 de outubro de 1906, regulamentada pelo contrato de 8 de novembro, o Estado tinha uma participação nos lucros de 50 contos, para os anos de 1907 a 1910. Por decreto de 11 de julho de 1907, foi aprovado o contrato para o período de 1 de maio de 1907 a 30 de abril de 1926, em que a Companhia se comprometia, mediante o monopólio da produção do tabaco, a entregar ao Estado uma renda anual fixa de 620 contos e uma participação determinada nos lucros. Por decreto n.º 4510, de 27 de junho de 1918, autorizou-se o aumento do preço do tabaco, mediante um aumento mínimo na participação dos lucros. A 4 de agosto de 1924, foi feito um acordo em que foi fixada a renda para os anos seguintes e alteradas as regras de cálculo da participação nos lucros. A 24 de março de 1924, foi votado o decreto que regulamentaria o novo regime do tabaco, que só foi posto em prática a partir de março de 1926. A partir de 1 de maio de 1926, o Estado passou a administrar diretamente esta atividade, conforme ficou estabelecido no decreto n.º 11.766, de 24 de junho de 1926. A partir do decreto n.º 13.587, de 11 de maio de 1927, foi estabelecida a liberdade de produção e venda sob controlo do Estado. A partir de então, os lucros do Estado advinham do imposto sobre a produção e participação nos lucros das companhias. Assim, abriam-se as portas à liberdade do fabrico de tabaco que só estava permitido nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra. As licenças eram atribuídas, por 30 anos apenas, a empresas cujo capital fosse superior a 1000 contos-ouro. No concurso realizado para a administração das oficinas que pertenciam ao Estado, foi vencedora a Companhia Portuguesa de Tabacos de Lisboa. No caso das ilhas, foi autorizada a livre plantação do tabaco por lei de 13 de maio de 1864, reconfirmada pela lei de 15 de junho de 1864 e pelo decreto de 8 de outubro de 1885. Esta aposta na nova cultura, que não teve sucesso na Madeira, foi considerada uma forma de se procurar meios para segurar a economia agrícola do arquipélago face aos problemas com o comércio do vinho. Foi uma época de experimentação de múltiplas culturas com valor industrial, capazes de substituírem a vinha como factor animador da economia interna e de exportação do arquipélago. As primeiras plantações começaram a partir de 1877, altura em que se fundou a primeira fábrica de manipulação do produto. Com o estabelecimento, em 1908, da Companhia de Tabacos da Madeira e depois, a partir de 1913, da Empresa Madeirense de Tabacos Lda., a exploração ficou quase em regime de monopólio, sob o comando das famílias inglesas, com particular destaque para a Casa Leacock & Co. Ainda no período de 1959 a 1961, na Qt. do Bom Sucesso, propriedade da Junta Geral, se faziam ensaios com a plantação de tabaco. A lei de 13 de maio de 1864 havia estabelecido uma situação distinta para as ilhas no referente ao tabaco, dando-lhes a possibilidade de o cultivar, mas com um agravamento no imposto predial. A 15 de março de 1864, os deputados pela Madeira haviam apresentado uma proposta para a promoção da cultura do tabaco, estabelecendo um imposto de 250 a 500 réis por cada are de terra cultivada, de acordo com a sua qualidade. Entre 1865 e 1875, não houve qualquer tentativa de cultivo da planta na Madeira e era voz corrente a reclamação contra o referido decreto, sendo disso porta-voz o Gov. Civil Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro em ofício de 21 de junho de 1876 ao ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda. Por outro lado, tal como o havia indicado D. João da Câmara Leme, o tabaco, como outras culturas, não teria grande rentabilidade na Ilha: “Há plantas que, conquanto sejam cultivadas noutros países com muito proveito, e se deem bem neste clima não podem ser cultivadas aqui com vantagem; porque nos faltam condições importantes que, nesses países, favorecem tais culturas: assim não é para a Madeira a cultura em grande escala do algodão, nem a do tabaco, nem mesmo o chá” (LEME, 1876, 19). A Madeira passará, assim, a importar tabaco, especialmente dos Açores, chegando mesmo a importá-lo de Porto Rico, dos EUA, de Cuba e, na déc. de 60, de Angola. Outras vozes se levantaram contra esta situação considerada ruinosa para a Madeira, pelo que começaram a surgir plantações de tabaco um pouco por todo o lado. Desta forma, em 1877, foi criada a Fábrica de Tabacos Madeirense, seguindo-se outras em 1881 e em julho de 1919. Em 20 de janeiro de 1920, criou-se um imposto municipal de $50 por cada kg de tabaco despachado na Alfândega, que, no ano de 1922, rendeu à Câmara do Funchal 21.837$21. Pelo dec.-lei n.º 39.963, de 13 de dezembro de 1954, este foi aumentado para 8$00 por kg, dos quais 6$00 constituía receita das câmaras municipais, pertencendo o restante às juntas gerais. Assim, ontem como hoje, o tabaco mereceu diversas formas de tributação, assumindo-se como uma importante fonte de receita tributária na Madeira. Faltam, no entanto, dados que permitam entender o volume do seu consumo na Ilha. Os novos dados conhecidos referem-se já à déc. de 50 do séc. XX, em que a cobrança atingiu, mais especificamente em 1958, o valor mais elevado: 105.801$20. Será no séc. XX que este produto será alvo de diversas formas de tributação. Na lei n.º 1657, de 3 de setembro de 1924, ficou estabelecido o imposto de 80 réis ouro por cada quilo de tabaco manufaturado na Ilha ou importado dos Açores, coisa que não acontecia nos Açores, nem no continente. Pelas leis de 10 de julho de 1919 e 22 de janeiro de 1920, surgiu o imposto municipal de tabaco que onerava em $50 cada quilo de tabaco exportado na Alfândega. De acordo com o artigo 1.º do dec.-lei n.º 444/86, de 31 de dezembro, o tabaco manufaturado, destinado ao consumo no continente português e nas regiões autónomas, quer de produção nacional, quer importado, está sujeito ao imposto de consumo sobre o tabaco. O valor de 1 % desta receita está consignado ao Ministério da Saúde para a luta contra o cancro. Pelo artigo 7.º do citado diploma, foram fixadas as taxas do imposto de consumo relativo a cigarros, constituídas por dois elementos: um específico e outro ad valorem. O artigo 8.º fixou as taxas do imposto de consumo relativo aos restantes produtos de tabaco manufaturado. A administração do imposto de consumo compete à Inspeção-Geral de Finanças, no que diz respeito ao tabaco saído das áreas fiscalizadas referidas no artigo 19.º, situadas no continente, e à Direção-Geral das Alfândegas, nos restantes casos. Depois, destaca-se o imposto especial de consumo sobre o tabaco que se encontra regulamentado pelo Código do Imposto Especial de Consumo (CIEC), publicado pelo dec.-lei n.º 566/99, de 22 de dezembro. O imposto especial de consumo, ou IEC, é, na verdade, o conjunto de três impostos que incidem sobre certos produtos (tabaco, produtos petrolíferos e bebidas alcoólicas) fabricados ou colocados no território português. Em 2005, a taxa do imposto do tabaco era de 8,69 %, enquanto no continente era 6,6 %, ficando a percentagem ad-valorem em 35 %. As estampilhas fiscais eram usadas em diversas formas de pagamento, nomeadamente taxas e emolumentos, casos em que a receita não pertencia ao imposto do selo. Por lei n.º 150/99, de 11 de setembro, que estabeleceu o regulamento do imposto de selo, as estampilhas fiscais foram abolidas. Parte do imposto sobre o tabaco produzido no distrito do Funchal ou importado das ilhas dos Açores era uma receita repartida entre as câmaras municipais e a Junta Geral. A receita do imposto do tabaco fora atribuída por lei de 10 de julho de 1914 às obras da Junta Autónoma dos Portos da Madeira (JAPAM). Entre 1972 e 1981, entraram na contabilidade da JAPAM 46.400 contos de impostos aduaneiros (entre estes, o imposto sobre o tabaco), 532.980 contos de taxas portuárias e 350 contos de multas. A batalha pela reivindicação de mais receitas para a Junta Geral, que é o mesmo que dizer o retorno das receitas dos madeirenses, continuou. Assim, na sessão de 20 de setembro de 1920, reclamava-se que revertesse para a Junta Geral a totalidade dos impostos lançados pelo Governo central sobre produtos como o tabaco e estabelecimentos bancários, que na Madeira perfaziam cerca de 400 contos e que estavam destinados à assistência pública. O tabaco, por ser um produto sujeito a contrato exclusivo de venda, foi muito cobiçado e apetecido em termos do contrabando. Tal contrabando perdura no séc. XX, sendo uma das atividades ilícitas mais assinaladas e regulamentadas. Neste processo, até o clero intervinha, havendo referência a uma iniciativa nesse sentido por parte de Fr. António de S. Guilherme, em 1768. Recorde-se que, em 12 de novembro de 1768, o Gov. João António Sá Pereira refere que um guardião do convento, o P.e Manuel Joaquim de Oliveira, que contrabandeava tabaco, foi enviado para Lisboa, sob prisão. No séc. XIX, muito deste contrabando de tabaco era feito por Ingleses, nomeadamente a partir da possessão inglesa de Gibraltar. A 1 de fevereiro de 1876, regressava ao Funchal Leland Cossart, deixando o despacho das suas malas a cargo de um seu criado, como era costume. Pelo facto de se ter encontrado tabaco na bagagem, foi o empregado preso. Por força disto, movimentou-se o cônsul britânico em diligências, no continente e junto de autoridades britânicas, conseguindo-se a entrega das malas e, depois, a libertação do prisioneiro. O grande incentivo à cultura do tabaco aconteceu a partir da déc. de 70 do séc. XIX, altura em que surgiu a primeira fábrica, da responsabilidade do visconde de Monte Belo, a que se seguiu, em 1888, outra de João Sales Caldeira, que viria a tornar-se propriedade de Joe Berardo e Horácio Roque. Nos inícios do séc. XXI, a Madeira continua a ter um regime diferenciado no que respeita ao tabaco, existindo uma fábrica, a Empresa Madeirense de Tabaco S.A., que assegura o abastecimento local. Esta empresa, fundada em 1913 a partir da Companhia de Tabacos da Madeira, viu-se obrigada, em 1930, face à concorrência das empresas de tabaco açorianas, a comprar a fábrica Estrela, em São Miguel. Legislação: dec.-lei n.º 444/86, de 31 de dezembro: aprova o novo regime fiscal dos tabacos e revoga os decs.-lei n.º 149-A/78, de 19 de junho, 93/91, de 29 de abril, 196/83, de 18 de maio, 34/84 de 24 de janeiro, 115-A/85, de 18 de abril, e 172-D/86, de 30 de junho; dec.-lei n.º 49/90, de 10 de fevereiro; dec.-lei n.º 231/91, de 26 de junho; dec.-lei n.º 75/92, de 4 de maio; dec.-lei n.º 55/93, de 1 de março; dec.-lei n.º 325/93, de 25 de setembro; decs.-lei n.º 75/94, de 7 de março, n.º 221/94, de 23 de agosto, n.º 197/97, de 2 de agosto, pela lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro, e pela lei n.º 10-B/96, de 23 de março; dec.-lei n.º 103/96, de 31 de julho; dec.-lei n.º 197/97, de 2 de agosto; lei n.º 127-B/97, de 20 de dezembro; dec.-lei n.º 566/99, de 22 de dezembro; dec.-lei n.º 170/2002, de 25 de julho; diretiva n.º 2002/10/CE, do Conselho, de 12 de fevereiro; desp. normativo n.º 14/2005, de 24 de fevereiro; desp. normativo n.º 2/2004, de 10 de janeiro; dec.-lei n.º 155/2005, de 8 de setembro. Alberto Vieira (atualizado a 30.01.2017)
praias
Na Madeira, praia é muitas vezes sinónimo de calhau; a maioria é pedregosa, sendo muito raras as de areia: a Prainha, na freguesia do Caniçal, perto da Ponta de São Lourenço, de areia preta, e as do Porto Santo, de areia fina e amarela. Fernando Augusto da Silva atesta que “já disse alguém que na Madeira não havia praias, talvez pela circunstância de não serem de areia e terem uma limitada extensão. Com efeito as desta ilha, excetuando a da Prainha no Caniçal, são formadas de pequenas pedras ou calhaus rolados e de escuro basalto, tendo todas elas um aspeto sombrio e um piso difícil e incómodo” (SILVA, 1984, II,300). As principais praias da Madeira são as seguintes: Prainha, Caniçal, Machico, Seixo, Santa Cruz, Porto Novo, Reis Magos, Funchal, Formosa, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Lugar de Baixo, Madalena do Mar, Calheta e Paul do Mar, Porto do Moniz, São Vicente, Fajã da Areia, Ponta Delgada, São Jorge e Porto da Cruz. No Porto Santo, onde as praias são todas de areia amarela, temos as praias do Penedo, do Cabeço, da Calheta, da Fontinha e das Pedras Pretas. No Funchal, devemos referir a existência de uma extensa praia de calhau entre as três ribeiras aí existentes, que deixou de estar visível em toda a extensão da baía devido à construção da Av. do Mar, de iniciativa do então presidente da Câmara, Fernão de Ornelas. Em memória dessa praia, ficou na toponímia da cidade a R. da Praia. A ideia que os insulares fazem do mar e das suas praias e enseadas abertas mudou no séc. XX, pois estas foram durante muito tempo pensadas de acordo com a facilidade no embarque e desembarque para os locais e forasteiros, mas também como ameaça, por causa da possibilidade de intrusos externos, nomeadamente piratas e corsários. Neste último caso, revelam-se um obstáculo às condições de defesa e segurança das populações, havendo necessidade de as prover de fortificações e de meios de vigilância. Esta imagem das praias madeirenses é veiculada por Paulo Dias de Almeida. Assim, ao referir-se à praia Formosa, observa: “Ao Oeste da cidade a pouco mais de meia légua, há a magnífica Praia Formosa, muito favorável a um desembarque” (CARITA, 1982, 59). Desta, já em finais do séc. XVI, dissera Gaspar Frutuoso: “Dobrando esta ponta, foram dar em uma formosa praia que, pela formosura e assento dela, lhe pôs nome a Praia Formosa.” E assim se chama “por não haver outra semelhante em toda a ilha, que terá como um quarto de légua de areia” (FRUTUOSO, 1979, 48, 117). Quanto à Ribeira Brava, “o porto é muito mau e raras vezes se encontra bom mar para desembarcar. A praia é de um calhau muito grosso, com algumas pedras e só os barcos ali costumados encalham sem risco pois a sua construção é própria para essa qualidade de praias. É costume ali carregar os barcos encalhados e depois de carregados, deitá-los ao mar, esperando a vaga, e isto muitas vezes com o risco de se alagarem” (CARITA, 1982, 61). A Madalena, por sua vez, que foi “estabelecida ao lado da Ribeira da Madalena em um plano à borda do mar, tem uma excelente praia e uma magnífica fonte à borda da maré, onde as embarcações fazem aguada” (Id., Ibid., 64). Paulo Dias de Almeida refere que “toda a Ilha da Madeira é cortada de imensas ribeiras e ribeiros, a maior parte delas só muito caudalosas no Inverno, formada de altas montanhas precipitadas e enormes rochedos descobertos. Todas as praias são de calhau miúdo, algumas de calhau muito grosso e só quando se acabam as grandes levadias, aparecem pequenas praias de areia preta, que com as enchentes e vazantes das marés, se desfazem, tomando a primeira forma de calhau” (Id., Ibid., 51). Não devemos esquecer que a tradição dos banhos de mar e a valorização da época balnear recentes começou em meados do séc. XX. Durante muito tempo, os interditos feitos pela Igreja Católica à revelação do corpo e os interditos previstos nas posturas municipais sobre os banhos na praia e nas ribeiras do Funchal, Machico e Porto Santo não permitiram a sua vulgarização. Assim, de acordo com a postura da Câmara Municipal do Funchal de 26 de julho de 1839, “estava proibido aos funchalenses o banho de mar nus”, só se permitindo em calças ou camisa, “até abaixo do joelho”, sujeitando-se os seus infratores a uma pesada coima de mil réis. Mesmo em épocas anteriores, referem-se banhos no calhau da cidade em corpo nu, mas as medidas iam no sentido da sua proibição, pois já em 1609 há notícias de que “no calhau fronteiro desta cidade de dia se despiam muita gente e nadavam e depois disto saíam do mar nus e despidos o que davam muito escândalo a muita gente e mulheres que vissem da banda do mar em seus balcões. Acordaram os ditos oficiais se lançasse pregão por esta cidade que nenhuma pessoa de qualquer qualidade de dez anos para cima se dispa a nadar de dia, de São Lázaro até ao Corpo Santo” (RIBEIRO, s.d. , 20). Por diversas vezes, na primeira metade do séc. XIX, chegam à Câmara reclamações sobre os banhos que se faziam no Calhau. Além disso, em 1850, o administrador do concelho do Funchal avisava João Hollway, proprietário de uma hospedaria, para informar os seus clientes da postura camarária que proibia os banhos nus, entre as 06.00 h e o anoitecer, pois qualquer banho deveria ser feito com o corpo vestido “desde os ombros até aos joelhos” (Id., Ibid., 21). Já nas Posturas do Funchal de 1912, o título 6.º é dedicado aos banhos, apresentando a postura proibitiva dos banhos em corpo nu; permitidos eram apenas os banhos em que “a camisola ou vestimenta que se deve usar abrangerá o corpo desde o pescoço até acima dos joelhos”. Consta, porém, que os primeiros que se banharam nas águas límpidas da Ilha foram João Gonçalves Zarco e seus companheiros, quando, em 1420, foram obrigados a procurar refúgio nas águas refrescantes do mar, de maneira a escapar ao calor infernal do incêndio que deflagrou na floresta da Ilha. Segundo Cadamosto, estiveram no mar “mergulhados até à garganta dois dias e duas noites, sem comer nem beber, pois que de outra maneira teriam morrido” (ARAGÃO, 1981, 36). Mas este banho foi em conformidade com a lei, com todas as vestes que traziam no corpo. Em 1850 referia-se nos anais do município da ilha do Porto Santo que as suas praias eram favoráveis aos banhos de mar, mas que não atraíam forasteiros por falta de condições, estando os naturais limitados pelas posturas. Na verdade, a sua revelação como estância balnear é do séc. XX. Desta forma, a indicação de Giulio Landi, cerca de 1530, deverá ser entendida de acordo com a época. Assim, ao referir-se ao norte da Ilha, realça: “E esta parte não é menos deleitosa do que útil pois as praias e os lugares cobertos de bosques, muitas vezes, dão enormíssimo prazer. Aqui costumam os habitantes descansar em qualquer momento quando lhes apetece, ir à praia ou alimentar-se de laticínios. [...] No meio da Ilha, onde os madeirenses costumam ter as suas vivendas e propriedades, gozam-se, em qualquer época, ares muito temperados” (Id., Ibid., 84). Em meados do séc. XX, assistimos a uma valorização da área costeira da Ilha como estância balnear, com piscinas e praias artificiais de areia, como no caso da praia em Machico, inaugurada a 29 de setembro de 2010, e na Calheta, em que a praia feita com areia importada de Marrocos foi inaugurada em 2004 e as suas areias repostas em 2008. Por outro lado, a oferta em termos de serviço balnear na ilha da Madeira contempla uma diversidade de piscinas públicas e privadas. Os hotéis e pousadas, maioritariamente junto à costa, são servidos por piscinas com água salgada; nos demais também encontramos piscinas de água doce. Um dos mais antigos complexos balneários adscritos aos hotéis é o do Hotel Reid’s com espaço apropriado a banhos de mar desde 1908. A par disso, há que considerar a oferta camarária de serviços balneários na Barreirinha e no Lido. Os primeiros acessos à Barreirinha foram construídos em 1939, enquanto as piscinas do Lido são de 1932. Estes tradicionais espaços balneários são complementados, depois, por intervenções do Governo regional, no Gorgulho, na Ponta Gorda, na Ribeira Brava, na Ribeira do Faial, no Caniçal, na Baía dos Juncos e em São Vicente, em 2004. A Madeira oferece um complexo vasto de praias e complexos balneários que se estende a toda a costa da Ilha, de norte a sul. São Martinho é o espaço mais importante da estância balnear madeirense, associada aos forasteiros ou aos locais. No passado, existiram vários projetos de valorização da orla marítima, surgindo, em 1921, um plano de ideias para a praia Formosa que a pretendia transformar numa praia de banhos e diversões. Primeiro, surgiram as piscinas do Lido, um marco do verão madeirense. Em 1932, foi desenhado o projeto de uma piscina pública para banhos e exercícios de natação na zona do Gorgulho. A construção hoteleira das últimas décadas do séc. XX incidiu nesta área, transformando-a numa zona privilegiada da cidade. Em 1982, o complexo balnear do Lido foi melhorado, e, em 1993, aberto o passeio público marítimo, mas o Lido foi destruído em 2010 e o complexo fechado ao público, sendo reaberto em março de 2016. A área ganhou então maior dimensão, graças à política municipal de valorização da orla marítima com diversos espaços balneares e uma promenade, a que se juntaram clubes privados como o Clube Naval do Funchal e o Clube de Turismo. No Porto Santo manifesta-se, de forma imponente, o extenso areal dourado, que fez desta ilha um lugar aprazível para os banhos de mar, tornando-se por isso na estância balnear dos madeirenses. Note-se que nos Anais do Município, datados de 1862, é já referida a atração dos estrangeiros pelas praias e seus efeitos terapêuticos. Nas primeiras décadas do séc. XXI, a frente mar do arquipélago mereceu uma valorização pouco comum no quotidiano madeirense, com a construção de diversas infraestruturas de apoio ao acesso ao mar, que permitiram o prolongamento da época balnear durante o ano inteiro. Alberto Vieira (atualizado a 03.02.2017)