artes plásticas
A designação “artes plásticas” veio tentar abarcar as transformações conceptuais, processuais e técnicas que marcaram as artes a partir da década de 60 do séc. XX, em substituição de “belas-artes”, denominação conotada com a tradicional distinção entre pintura, escultura e arquitetura. Na Madeira, após o primeiro modernismo protagonizado pela geração dos irmãos Henrique e Francisco Franco do primeiro quartel do séc. XX, só na segunda metade desse século voltamos a encontrar uma vontade de atualização, que se manifesta na organização de exposições e no aparecimento de galerias de arte atentas à contemporaneidade. A maior dificuldade no levantamento dos principais acontecimentos que marcaram o panorama artístico insular a partir da déc. de 60 do séc. XX é o carácter lacunar da memória dos acontecimentos, tanto no que diz respeito à ausência ou laconismo dos catálogos e notícias remanescentes, como à escassez de textos críticos e de bons registos fotográficos. Para além dos artistas, há que ter em conta a identidade dos promotores de iniciativas e dos curadores das exposições, já que todos os intervenientes concorrem para estruturar o tecido cultural. A viragem que se verificou no país durante a déc. de 60 pautou-se por uma maior consciência sociopolítica, abertura a influências externas, diversificação de meios e linguagens plásticas e dinamização de um mercado artístico. Na Madeira, um primeiro apontamento poderá ir para a criação de uma escola de ensino superior artístico, a Academia de Música e Belas-Artes da Madeira (AMBAM) em 1956, onde eram ministrados, entre outros, cursos superiores de pintura e de escultura, idênticos aos das Escolas de Belas-Artes de Lisboa e do Porto, cujos docentes vinham anualmente examinar os alunos (Ensino das artes visuais). Apesar das condicionantes de um ensino desta natureza, foi-se consolidando, assim, um núcleo de intervenientes e fruidores mais informados e atentos. Em 1962 organizou uma mostra do trabalho dos alunos da Escola Superior de Belas-Artes do Porto e, em 1970, uma primeira mostra que reuniu peças de professores e trabalhos escolares de alunos da AMBAM. Em 1960 a Sociedade de Concertos da Madeira organizou, em colaboração com a Sociedade Nacional de Belas-Artes, a I Exposição Nacional de Pintura que deu a ver, entre muitas outras, obras de Menez, Fernando de Azevedo, Vespeira, João Hogan, Rogério Ribeiro e do madeirense António Aragão. Por sua vez uma exposição itinerante da responsabilidade da Fundação Calouste Gulbenkian trouxe em 1962 uma seleção de gravura, pintura e desenho portugueses contemporâneos. Paralelamente a estas iniciativas institucionais surgem nesta década as primeiras galerias de arte moderna, a Tempo (1964), e depois a Mundus. A primeira trouxe figuras como Jorge Pinheiro, José Rodrigues, Ângelo de Sousa e Júlio Resende. A segunda deu a ver, a partir de 1966, novos valores como António Nelos, Humberto Spínola, Silvestre Pestana, Ara Gouveia ou Danilo Gouveia, na sua maioria com trabalhos de dominante abstrata. Um acontecimento marcante foi a realização da I Exposição de Arte Moderna Portuguesa, em 1966, em que foi atribuído o Prémio Cidade do Funchal a Guarda-Nocturno, de Joaquim Rodrigo, e o prémio de aquisição a Artur Rosa e Nuno Siqueira. Deveu-se à iniciativa da Delegação de Turismo, com patrocínio da Junta Geral do Distrito e da Câmara Municipal do Funchal (CMF), e o júri integrava os mais destacados críticos de arte nacionais de então — José-Augusto França e Fernando Pernes. No ano seguinte, na 2ª edição, o júri, constituído por Rui Mário Gonçalves e Nelson di Maggio, premiou António Areal. Na sequência destes prémios, foram feitas mais algumas aquisições, que acabaram por constituir o núcleo inicial do Museu de Arte Contemporânea do Funchal (MACF). Neste período realizaram-se exposições individuais de António Areal, em 1966 e 1967, no Museu Quinta das Cruzes, e, em 1970, houve a possibilidade de ver, através da coleção Stenersen, obras de Picasso, Miró, Vieira da Silva, Appel, Klee, etc., que intensificaram o contacto com a produção artística nacional e internacional. O panorama cultural foi dinamizado com a criação do Cine-Forum do Funchal, que surge em 1966 como cineclube, e mais tarde diversifica também a sua atuação para o âmbito das artes plásticas. A secção juvenil organizou exposições coletivas em 1970 e 71 com jovens que então iniciavam a sua atividade, entre os quais alguns alunos da AMBAM. O pós 25 de Abril trouxe uma fase de agitação e debate que acompanhou as alterações institucionais. No campo das artes, tomaram nova dinâmica as atividades culturais da CMF e foi criada a Direção Regional dos Assuntos Culturais que, na área da arte contemporânea, apoiou diversas iniciativas e criou o Núcleo de Arte Contemporânea, que viria a dar origem, em 1993, ao Museu de Arte Contemporânea (Museus). Uma das primeiras iniciativas de artistas foi a realização da coletiva ART’ILHA, em 1980, no Salão do Teatro Municipal do Funchal, em cujo catálogo explicitamente se afirmava querer ir além dos meios tradicionais e proporcionar uma animação cultural com debate público dinamizado por professores da Escola de Belas Artes de Lisboa, exibição de filmes e diaporamas, apresentação de obras criadas noutros centros culturais e de novos autores, envolvimentos audiovisuais a um nível experimental e atuação do recém-formado grupo de jazz Oficina. Em 1977 foi criado o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira (ISAPM), que, em parte, deu continuidade à ação da AMBAM, mas reformulou os cursos e abriu um curso de Design. Com a integração na Universidade da Madeira (UMa), em 1992, o ISAPM passou a Instituto Superior de Arte e Design, em 1997 a Secção Autónoma de Arte e Design e, em 2004, a Departamento de Arte e Design. Em 2008, os departamentos são substituídos, na UMa, por Centros de Competência, pelo que o ensino das artes passou a ficar integrado no Centro de Competências de Artes e Humanidades. O ISAPM criou uma dinâmica que se manifestou, sobretudo a partir de meados da déc. de 80, na organização de exposições, de colóquios e na criação da revista Espaço-Arte, publicada entre 1977 e 1995. As Jornadas do ISAPM conseguiram, a partir de 1986 e com continuidade, proporcionar encontros de reflexão em torno de diversos temas da contemporaneidade artística. Adstrito ao ISAPM funcionou, a partir de 1977, um atelier livre, que permitiu interessantes diálogos entre alunos e outros inscritos sem formação académica. Também chegou a ter em funcionamento um atelier infantil, de cuja dinâmica foi possível ver diversas mostras. O Cine-Forum do Funchal organizou algumas exposições relevantes, entre as quais uma retrospetiva da pintura de António Aragão datada de 1957 a 1965, uma mostra de René Bértholo, em 1980, e uma do arquiteto Marcelo Costa na sala de Congressos do Casino Park, em 1981, com desenhos e objetos. Alguns destes objetos eram motorizados, refletindo o papel que teve o convívio do autor com René Bértholo e Lourdes Castro. Numa tentativa de superar as dificuldades inerentes à insularidade e à pequena dimensão do meio insular, foi criada em 1986 a Circul’Arte, Associação de Artistas Plásticos da Madeira, à frente da qual esteve José Júlio Castro Fernandes. A Circul’Arte organizou debates, cursos de curta duração, criou um espaço de atelier e deu a ver o panorama artístico local em algumas mostras importantes, a primeira das quais em 1987, integrada na MARCA/Madeira. O júri foi constituído pelas escultoras Manuela Aranha e Luiza Clode, pelos pintores Filipe Rocha da Silva, António Gorjão e Rita Rodrigues e por Francisco Faria Paulino. O entusiasmo criativo da déc. de 80 reflete-se no aparecimento de galerias, como a Quetzal, em 1981, a Funchália, ativa entre 1989 e 1994 e a Porta 33 a partir de 1990, que, desafiando a fragilidade do mercado de arte local, tiveram papel fundamental, sobretudo na divulgação de artistas nacionais. Um ponto alto deste entusiasmo foi justamente a realização da MARCA/Madeira (1987), da iniciativa de Faria Paulino, que conjugava: uma feira de arte de âmbito nacional com a participação de 31 galerias; uma feira do livro de arte; um leilão de obras; um congresso de arte contemporânea, cujas atas foram publicadas pelo ISAPM. Para além disso decorreram outras exposições de caráter abrangente como a já referida de artistas madeirenses da Circul’Arte, uma de artistas açorianos que trouxe obras dos mais destacados nomes de então, incluindo o histórico Domingos Rebelo, uma mostra do Núcleo de Arte Contemporânea do Funchal, embrião do futuro MACF, e a exposição da obra dos irmãos Henrique e Francisco Franco que assinalou a criação do Museu dedicado a estes dois modernistas. Pensada para ter continuidade, só veio a conhecer uma segunda edição em 2000, menos ampla, mas também complementada por um Colóquio Internacional sobre Arte Contemporânea. Em 1986, uma coletiva, Dezassete Graus Oeste, deu a conhecer um grupo de artistas madeirenses ligados ao ISAPM na Galeria Altamira em Lisboa. Grupo esse que, com algumas variações, expôs também no Funchal, durante o mesmo ano, Sinais Convencionais, na Galeria Secretaria Regional de Turismo e Cultura (SRTC) e na Galeria ISAPM, Colecção de Inverno, na Galeria da SRTC, e, no ano seguinte, Cenas e objectos, também nesta galeria. Em 1989, foi realizada a 2ª Mostra de Artes Plásticas da Circul'Arte/Associação de Artistas Plásticos da Madeira no Teatro Municipal do Funchal, de cujo júri de seleção fizeram parte Sílvia Chicó e os escultores Celso Caires e José Manuel Pimenta. Apresentou pintura, escultura, desenho, serigrafia e também imagem digital. No ano seguinte foi organizada outra coletiva Ideias & argumentos, integrando o júri Isabel Santa Clara, Marcelo Costa e José Júlio Castro Fernandes. A ligação entre literatura e artes plásticas deu origem a várias exposições de poesia ilustrada no Teatro Municipal Baltazar Dias. Este teatro acolheu, aliás, a partir de 1975, numerosas e diversificadas iniciativas apoiadas pelas atividades culturais da CMF. Olhares Atlânticos, em 1991 na Biblioteca Nacional em Lisboa, foi outra mostra de artes e letras organizada pela Circul'Arte e pela Associação de Escritores da Madeira. Ao longo da déc. de 90, a atividade da galeria Porta 33 intensificou-se, estando ligada a um projeto cultural que procurou, para além dar a ver arte contemporânea, promover a reflexão e o contacto com artistas reconhecidos. De entre os naturais ou residentes na Madeira, esta galeria deu particular atenção a Lourdes Castro, Manuel Zimbro, António Aragão, Rigo, António Dantas, Rui Carvalho e Nuno Henrique. Trouxe destacados conferencistas, organizou cursos breves e workshops, proporcionou residências artísticas e produziu obras relacionadas com a Madeira de João Penalva, Lourdes Castro e Alberto Carneiro, entre outros, sendo a galeria com mais visibilidade nacional e internacional, inclusive com algumas participações na ARCO em Madrid. As conferências estão, na sua maioria, disponíveis online na página da galeria. O MACF abriu as portas em 1993 e foi acrescentando novas aquisições ao núcleo inicial, fruto da atividade das galerias e das exposições temporárias dos museus. O seu acervo reflete assim, com as limitações impostas pelas restrições do seu orçamento, os contactos da região com a contemporaneidade artística. À margem de escolas e de galerias e numa atitude mais radicalmente experimental, ganham força práticas de poesia visual e de mail art, potenciadas com o uso da eletrografia. Quando a primeira loja Xerox abre no Funchal, António Aragão, António Dantas e Eduardo Freitas, entre outros, começam a explorar capacidades técnicas da máquina, os novos modos de comunicar, distantes das tecnologias tradicionais de produção de imagens e com a facilidade de produzir múltiplos exemplares a baixo custo e com grande rapidez. Uma das formas de circulação dessas experiências foi feita através da Mail-Art Zine Filigrama, editada entre 1981 e 1983, constituída por folhas soltas e enviada pessoalmente através dos circuitos internacionais da mail art, que passavam muito especialmente pelo Brasil. Cada participante acrescentava o seu contributo, o que ia sucessivamente alterando os conteúdos. O uso do computador abriu também, nesta déc. de 80, um outro campo de experimentação e, em 1 de julho de 1985, foi realizada no edifício do ISAPM uma exposição computer art, das primeiras do género em Portugal. Evangelina Sirgado de Sousa e Jorge Marques da Silva criaram através de códigos por eles programados animações que apresentaram no próprio monitor, fazendo do computador instrumento e suporte de expressão plástica. Este edifício foi ainda lugar de ensaio de múltiplas experiências do domínio da instalação ao longo dos anos 80, que se alargaram depois a outros espaços explorando as potencialidades da site-specificity. Entre estas assinalamos Uma exposição com pintura e tudo, de Isabel Santa Clara (1990, Casa-Museu Frederico de Freitas, espaço da torre); Espaços em Volta (1996, MACF); Atrás do vento (Edicarte, 2000); Escada de Jacob, de Teresa Jardim, Lígia Gontardo, Domingas Pita e Eduardo de Freitas (Casa-Museu Frederico de Freitas, 1993); Peixe Espada Preto, Trindade Vieira, em 1993, na Galeria da Zona Velha, e em 2000, na galeria Inquisição; Ilhas de Babel, em 1996; Galeria em Grande - exposição colectiva de pequeno formato na galeria da SRTC organizada por Teresa Jardim, 2001; no Salão Nobre do Teatro Municipal e na galeria da SRTC várias intervenções de Guilhermina da Luz, Ricardo Barbeito, Carmen Silva, Bruno Côrte (este último realizou instalações com plantas e construções efémeras, numa deriva da land art); no MACF, Afinal eram Pássaros, de Bruno Côrte e Rute Pereira, em 2000; e, na antiga cadeia do Fortaleza de S. Tiago, Juras que me incendeias o coração ou uma difícil decisão cerebral, de Eduardo Freitas, em 2005. Este espaço do museu foi repetidamente dinamizado com instalações. As principais instalações de artistas madeirenses na galeria Porta 33 foram Largo do Canto do Muro, de Rigo (Ricardo Gouveia), em 1994, onde a toponímia local foi ponto de partida para uma transformação do espaço através de pintura mural, inscrições toponímicas urbanas e rurais e incorporação de calçada portuguesa e Impressões de António Dantas, em 1996, com eletrografias de grande formato. O MACF tem dado continuidade, para além das instalações acima referidas, à apresentação regular de autores locais como Duarte Encarnação, Bruno Côrte, Susana Figueira, Filipa Venâncio, Ricardo Barbeito, Ângela Costa, Fagundes Vasconcelos, Carlos Valente, Hugo Olim, Vítor Magalhães e Teresa Jardim. No que diz respeito à estatuária existente no espaço público, a déc. de 60 iniciou uma alteração de linguagem em relação às peças de Francisco Franco ou Leopoldo de Almeida, que então preponderavam. É o caso da alegoria da Justiça, de António Duarte, em 1962; da Família, de Jorge Vieira; e das peças de Lagoa Henriques de c. 1971 no edifício da Caixa de Previdência, obra do arquiteto Chorão Ramalho; e de Helder Baptista para o Hospital do Funchal, em 1972. A abstração está presente nas peças de José Rodrigues e de Fernando Conduto no Casino Park Hotel, de 1976, como em vários trabalhos de Amândio de Sousa, po exemplo, escultura comemorativa do 1º jogo de futebol na Madeira, de 1969, no Largo da Achada, Camacha, e o monumento comemorativo dos 500 anos do município da Ponta do Sol, de 2001. Dentro de um figurativismo depurado e de modelação sintética, são deste escultor o busto do Padre Manuel Álvares, na Ribeira Brava, de 1972, a Trilogia dos Poderes junto à Assembleia Legislativa Regional, de 1991, e a Justiça, no tribunal de Ponta do Sol, de 1994. Da obra pública de António Aragão, na qual o autor opta por uma figuração abstratizante, destaca-se, em 1960, o monumento comemorativo do 5º centenário da morte do Infante D. Henrique, paralelepípedo com desenho inciso, no Porto Santo, os relevos da fachada da Escola Industrial, hoje Escola Secundária de Francisco Franco, e um painel cerâmico no Mercado de Santa Cruz, de 1962. Anjos Teixeira (Anjos Teixeira), professor de escultura, desenho e anatomia artística na AMBAM e depois no ISAPM, criou peças de pendor mais naturalista. Entre muitas outras, destacam-se no Funchal a estátua de Jaime Moniz, no Largo do mesmo nome, 1961; Trabalhador, Parque de Santa Catarina, de 1979; Florista, na Praça de Tenerife do Funchal, de 1980, ; Bordadeira, Rua do Anadia, de 1986; Corsa para transporte de vinho, de 1994, no Largo da Feira; Tristão Vaz Teixeira, em Machico, de 1971. O escultor Ricardo Velosa, que fez a sua formação com Anjos Teixeira, deu continuidade a uma figuração comemorativa com grande aceitação por parte das instâncias oficiais, como se pode ver em monumentos alegóricos e representações de personalidades, como por exemplo: Cristóvão Colombo (Porto Santo, 1982), Autonomia (1987), D. Manuel Ferreira Cabral (Santana, 1988), Turista (1989), Francisco Sá Carneiro (1990), D. Francisco Santana (1991), Revolta da Madeira (1991), Carreiro do Monte (1992), Júlio Dinis (1993), Jorge Brum do Canto (Porto Santo, 1995), 500 anos da Diocese do Funchal, (2014), Cristiano Ronaldo (2014). Em diversas zonas ajardinadas do Funchal, podemos encontrar peças de escultores naturais ou residentes na Madeira como Luiza Clode, Manuela Aranha, Franco Fernandes, Celso Caires (Celso Caires), José Manuel Gomes, Sílvio Cró, Jacinto Rodrigues, Martim Velosa, entre outros. São de salientar alguns painéis cerâmicos, para além do já referido de António Aragão, como sejam o de Guilherme Camarinha na capela do Cemitério das Angústias, de 1958; um painel de Manuela Madureira no átrio do Hospital do Funchal e outra da sua autoria no exterior do mesmo, de 1973; um painel no exterior do edifício do aeroporto de Amândio Sousa; os painéis de Rigo na promenade do Lido, de 2005, bem como o desenho da calçada da mesma promenade. Numa perspetiva de realizações efémeras em espaço público, assinale-se o projeto Lonarte, da Câmara Municipal da Calheta, coordenado por Luís Guilherme Nóbrega e teve início em 2010. Divulgou faseadamente trabalhos de 40 artistas regionais, nacionais e internacionais impressos em lona e colocados em mastros junto à zona balnear. Visou divulgar e levar a arte a locais muito frequentados mas não especificamente vocacionados para atividades culturais e, além disso, angariar verba para a área social da Câmara através da venda dos originais. Destaque-se também, em 2008, o projeto Bilhardice, de Ricardo Barbeito, pela atitude crítica e índole interventiva e pelo recurso à interatividade. Muito diversa foi a atitude patente no projeto Arte das portas abertas, iniciado em 2011 por Jose María Montero (Zyberchema), com apoio da CMF, uma tentativa de animação do espaço urbano da Rua de Santa Maria através de intervenções ecléticas nas portas de habitações e estabelecimentos comerciais, muitas das quais alheias às especificidades do local. A criação de Casas da Cultura e Centros Cívicos e Culturais se, nalgumas situações, não se pautou pela prossecução de projetos culturais apoiados em agentes com formação específica e com meios adequados, noutras deu azo a profícuas iniciativas. É o caso do trabalho levado a efeito pelas Casas da Cultura de Santa Cruz, de Câmara de Lobos e da Calheta. Da primeira, coordenada por José Baptista e pelo escultor António Rodrigues entre 1993 e 1999, destacam-se a exposição de pintura e colagem de António Aragão, em 1996, a de medalhística do escultor Helder Baptista, em 1999, a de Lagoa Henriques e a de Francis Tondeur, em 1997. Num registo diferente, foi relevante a mostra e oficina de construção e restauro de instrumentos de corda de Carlos Jorge Rodrigues, em 1997, e a apresentação de obras de vime inspiradas num catálogo de 1925, ponto de partida uma reflexão acerca da história desta indústria na Madeira e das dificuldades com que se depara à época. A Casa de Cultura de Câmara de Lobos, dinamizada por Paulo Sérgio BEJu entre 2005 e 2010, privilegiou as instalações, sobretudo como forma de criar unidade em coletivas. Nestas, foi muitas vezes colocado o desafio de uma temática comum que permitiu sublinhar a multiplicidade e diversidade das soluções individuais. Podemos destacar: em 2007, Pintura Na Tal Ilha, Desenhar dezembro na orografia de um corpo, de Rita Rodrigues; Semear ainda compensa? de Teresa Jardim e Domingas Pita; Envolvências de Artes Plásticas, de Rute Pereira & Tânia Pereira; em 2008, Conceito estreito, exposição coletiva de David Atouguia, Graça Berimbau, Laura Fèteira, Martinho Mendes & Sílvio Cró, Paulo Sérgio BEJu e Teresa Jardim; de dezembro de 2008 a janeiro de 2009, O Menino da sua Mãe, coletiva com instalação de pinturas em pequeno formato que contou com a participação de Valter Hugo Mãe; em 2009, Correspondência Fora de Formato, de Carla Cabral e Gil Silva, e Viagem ao coração dos pássaros; Conceito Estreito 2, em abril do mesmo ano, de David Atouguia, Graça Berimbau, Laura Fèteira, Martinho Mendes & Sílvio Cró, Paulo Sérgio BEJu e Teresa Jardim (no Centro Cívico do Estreito de Câmara de Lobos). A Casa das Mudas, Casa da Cultura da Calheta, orientada entre 1997 e 2007 por Luís Guilherme Nóbrega procurou criar um polo de descentralização cultural com ligação com o meio, nomeadamente com a comunidade escolar, aberto à contemporaneidade artística, mas sem deixar de dar visibilidade ao trabalho de artistas locais. A continuidade e crescente projeção deste trabalho esteve na origem da criação Centro das Artes, inaugurado em 2004. De entre os artistas madeirenses, foram organizadas exposições de José Manuel Gomes e Lígia Gontardo em 1998, de Helena Sousa, Patrícia Sumares e Élia Pimenta (Élia Pimenta) em 1999, de Luís Paixão 2000, de Rui Soares e de Manuel Rodriguez em 2001, de Ara Gouveia 2002, de Rigo e Rui Carvalho em 2003. Peões e passadeiras, Jam Sessions: Rigo 84-23, em 2006, comissariada por Manray Hsu, foi uma ampla retrospetiva da obra deste artista nascido na Madeira que tem um já longo, diversificado e reconhecido percurso internacional. Foi dada particular atenção à fotografia, expondo William Henry em 2001, António Júlio Duarte em 2002, Paulo Catrica em 2003, Augusto Alves da Silva em 2003 e 2005, fotografia da coleção PLMJ, Thomas Joshua Cooper em 2006, Kimiko Yoshida em 2007. De entre os artistas portugueses destacaram as exposições de Alberto Carneiro em 2002, bom como de Joaquim Bravo Álvaro Lapa, António Palolo, Graça Morais e de José de Guimarães. Foram organizadas exposições a partir do acervo das seguintes coleções: Fundação de Serralves (peças doa anos 60, em 2000); Coleção Berardo (obras de grande escala e Foto-Realismo, em 2002; Arte Povera, em 2005; Fernando Lemos e o Surrealismo, em 2006); Fundação Cupertino de Miranda (Surrealismo, em 2007); Fundação PT (arte contemporânea da coleção, em 2014). O panorama das galerias de arte de iniciativa privada manteve-se num difícil equilíbrio no início do novo séc. XXI. Em 1996, abriu a Edicarte, por iniciativa de Francisco Faria Paulino, que para além das exposições no seu espaço da Rua dos Aranhas e de muitas outras atividades, realizou a 2ª e a 3ª edições do Festival de Arte Contemporânea Marca-Madeira no Centro de Feiras e Congressos do Madeira (Tecnopolo), juntando o Fórum das principais galerias portuguesas com um colóquio internacional de arte contemporânea comissariado por Raquel Henriques da Silva, à data Diretora do Museu do Chiado, que versou problemáticas relacionadas com o ensino artístico e a produção, circulação e comercialização do objeto artístico no final do séc. XX. Nele participaram Vicente Todoli, Jaroslav Andel, Maria Corral, Luís Serpa, Alexandre Melo, Louise Neri, Rui Trindade, António Coutinho Gorjão e Idalina Sardinha. A edição de 2000 seguiu um modelo idêntico e o congresso, subordinado ao tema Arte e Instituições, Arte e Sociologia e Arte e Mercado e comissariado por Alexandre Melo teve a participação de António Pinto Ribeiro, Manuel Gonzalez, Peter Fleissig, Giacinto di Pietrantonio e Barbara Vanderlinden. Em 2001 surgiu a Galeria da Mouraria, dirigida por Ricardo Ferreira que aliou uma vertente mais comercial a um Project Room de cariz mais experimental e aberta aos novos talentos. O encerramento da galeria da SRTC, em 4 de junho de 2006, do Centro Cívico Edmundo Bettencourt a 7 de junho de 2005, aliado ao desinteresse institucional em incentivar as Casas da Cultura, bem como à escassez de galerias de arte, contribuiu, entre outros fatores intrínsecos às opções site-specific, para uma intensificação do recurso a espaços alternativos no dealbar do séc. XXI. Entre estes, assinalam-se a coletiva Casa Azul, na R. da Carreira, em 2002; All Paper, de Fagundes Vasconcelos, no armazém da Rua da Alfândega, em 2005; Representantes de Quarto, de Fagundes Vasconcelos e Filipa Venâncio, na então a Casa Ser Criança, à Rua da Carreira, em 2006; a colectiva, Quartos Vagos, na Rua 5 de Outubro, em 2007, estimulante confronto de linguagens, com a participação de Álvaro Silva, Bridget Jones, Carlos Valente, Cristina Perneta, Filipa Venâncio, Hugo Olim, José Pinho, Luísa Spínola, Martinho Mendes, Merícia Lucas, Nelson Henriques, Phil Shannon, Ricardo Barbeito, Sílvio Cró. Estas iniciativas fazem o contraponto a outras com apoios institucionais como a MIAB, Madeira International Art Biennale, comissariada por Manuel Barata. A instituição do Concurso Regional de Artes Plásticas - Casa das Mudas, depois designado por Prémio Henrique e Francisco Franco, numa parceria do Centro das Artes com a Câmara da Calheta, evento bienal que teve cinco edições entre 1999 e 2007, incentivou e divulgou a produção artística de residentes na Madeira. Integraram sempre o júri de seleção figuras de destaque no panorama artístico nacional. Em 1999, o 1º prémio de escultura foi dado a José Manuel e a Duarte Encarnação; o 1º prémio de pintura, também ex-aequo, Graça Berimbau e Susana Figueira; as menções honrosas para Ara Gouveia, Carla Pereira, Filipa Venâncio, Lígia Gontardo Freitas, Paulo Pingo, Paulo Ladeira, Patrícia Tré, Sílvia Marta e Teresa Jardim. A 2ª edição, de 2001, trouxe o 1º prémio a Bruno Côrte, o 2º a Eduardo Freitas, o 3º a Luísa Spínola e as menções honrosas a Catarina Faia, Dina Pimenta, Patrícia Sumares, Paulo Aguiar, Bruno Pereira, sendo o júri constituído por Alexandre Melo, Alberto Carneiro, Idalina Sardinha, José Sainz-Trueva e Luís Rocha. No 3º concurso, em 2003, Alexandre Melo, José de Guimarães, Carlos Nogueira e Luís Rocha atribuíram o 1º prémio a Desidério Sargo, o 2º a Bruno Côrte, o 3º a Rute Pereira, o prémio revelação a Carlos Jorge Rodrigues e as menções honrosas a Duarte Encarnação, Eduardo Freitas, Hugo Olim, Rui Camacho e Susana Figueira. Em 2005 (4ª edição), o 1º prémio foi para Paulo Sérgio BEJu e o 2º para Nuno Henrique Santos, não tendo sido atribuído mais nenhum prémio. No júri estiveram Isabel Carlos, Cecília Costa e José Fernandes Pereira. Em 2007, na 5ª e última edição, o júri constituído por Alexandre Melo, Ana Vidigal e Pedro Calapez deu o 1º prémio a Desidério Sargo, o 2º a Pedro Clode, o 3º a Ricardo Barbeito e as menções honrosas a Paulo Sérgio BEJu, Nuno Santos, Rute Pereira, Francisco Clode de Sousa, Dayana Lucas. A criação, em 2008, da Galeria dos Prazeres deve-se a uma iniciativa do P.e Rui de Sousa, integrada no projeto paroquial da Quinta Pedagógica da vila dos Prazeres. Tendo como objetivo estabelecer uma ligação entre os artistas, a natureza e a comunidade local, tornou-se em mais um polo de descentralização com atividade regular e diversificada. Dando oportunidade a residências artísticas, foi coordenada até 2012 por Patrícia Sumares e, a partir de 2013, por Hugo Olim. Para além de peças de Paula Rego, José de Guimarães, Fernando Aguiar, Menez, Rico Sequeira, Cesariny, Francisco Relógio, Manuel Cargaleiro, entre outros, e dos originais do projeto Lonarte, apresentou trabalhos de artistas madeirenses: Rigo23, Sílvia Marta, Helena Sousa, Alexandra Carvalho, Ângela Franco (2009), António Aragão, Paulo Sérgio BEJu, Ângela Costa (2010), Carla Cabral, Guida Ferraz, Lourdes Castro, Sílvio Cró, Ana Luísa Sousa, Alice de Sousa (2011), Filipa Venâncio, Ara Gouveia, Daniel Melim, António Dantas, António Barros, Rui Carvalho (2012), Bruno Côrte (2013), Martinho Mendes e maquetes de arquitetura de Paulo David (2014). Fora dos circuitos estabelecidos surgiu, em 2001, por iniciativa de Silvestre Pestana, António Dantas e António Barros o colectivo What is watt?, de índole interdisciplinar e multigeracional. O nome é esclarecedor daquilo que é o denominador comum entre os participantes, a mediação da energia elétrica na concepção, produção e apresentação da obra, bem como a atitude experimental e o questionamento e das relações entre arte e novas tecnologias. A edição de 2001 realizou-se no Museu de Eletricidade e a edição seguinte dispersou-se por este espaço, o do MACF e a sala de Exposições da UMa, no Colégio dos Jesuítas. As edições de 2005 e 2007 optaram por concentrar-se no MACF. Na 1ª edição participaram, além dos nomes acima referidos, Carlos Marques, Carlos Valente, Catarina Pestana, Celeste Cerqueira, Evangelina Sirgado, Pedro Clode e Vítor Magalhães; nas edições seguintes, e para mencionar apenas os elementos que nasceram ou viveram na Madeira, entram ainda António Aragão, António Nelos, Carlos Caires, Celso Xavier, Fagundes Vasconcelos, Gilberto Gouveia, Hugo Olim, Nídia Freitas, Pedro Pestana e Ricardo Barbeito. Para além das exposições de periodicidade bienal no Funchal, o grupo apresentou-se também, em 2006, no Fórum da Maia e em 2007 foi convidado a participar na XIV Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira. Várias iniciativas propuseram leituras de conjunto, de carácter histórico, acerca da produção artística na Madeira na segunda metade do séc. XX. Passamos a referi-las por ordem cronológica não da sua realização, mas dos seus conteúdos. A exposição Preâmbulo (MACF, 10/07/2009-30/09/2009), organizada por um grupo de antigos alunos da AMBAM em boa parte dinamizado por Irene Lucília, propôs-se homenagear os professores pintor Arnaldo Louro de Almeida e escultor Pedro Augusto dos Anjos Teixeira e deixar um testemunho do que foi o tempo inicial de sementeira que resultou da criação desta escola. Reuniu 40 participantes, alguns dos quais seguiram um percurso artístico, e apresentou trabalhos da época académica em confronto com outros recentes. A exposição Vinte anos de artes plásticas na Madeira (MACF, 19/09/1999-31/01/2000) teve curadoria de Carlos Valente, Isabel Santa Clara e Francisco Clode e foi uma primeira iniciativa de fazer um balanço da atividade artística das duas últimas décadas do séc. XX. Reuniu 44 participantes, escolhidos de entre as presenças mais assíduas e mais marcantes do referido período, e o texto introdutório do catálogo resume esta realidade. Horizonte móvel: Artes Plásticas na Madeira 1960-2008 (MACF, 12/09/2008-31/10/2008) integrada nas comemorações dos 500 anos da cidade do Funchal, com curadoria de Isabel Santa Clara e Vítor Magalhães, foi uma exposição que possibilitou uma panorâmica diversificada do período compreendido entre a déc. de 60 do séc. XX e a primeira década do séc. XXI. Dividida em três núcleos, apostou em dar a ver o que se passou entre o período abrangido pela exposição Preâmbulo e as linhas de pesquisa patentes na exposição Linha de Partida, deixando de fora percursos internacionalmente afirmados e já mais conhecidos como os de Lourdes Castro e de Martha Telles. Para além das peças que fazem parte do acervo do Museu, foram trazidas outras de coleções particulares de modo a enquadrá-las e alargar o sentido mostra. O primeiro núcleo apresentava esculturas-objeto de Amândio de Sousa (mais conhecido pelas suas peças de escultura pública), inéditas e muito próximas das práticas objetualistas e de fusão entre géneros da déc. de 60 em Portugal; desenhos pouco conhecidos de Marcelo Costa; uma peça de Maria do Carmo Ramos Silva, uma das primeiras experiências, a nível local, de escultura em fibra de vidro que marca a viragem para o uso de materiais não tradicionais; e algumas peças de Jorge Marques da Silva, Élia Pimenta, Maurício Fernandes, Celso Caires, Guilhermina da Luz, Evangelina Sirgado e José Manuel Gomes, docentes da AMBAM e depois do ISAPM, e ainda de Alice de Sousa e Ângela Costa que completavam este núcleo. Saliente-se a presença das experiências mais antigas de arte por computador feitas por Evangelina Sirgado de Sousa. Um segundo núcleo incidiu sobre a vertente experimentalista das décs. de 70 e 80. Centrada na ação de António Aragão, incluiu peças deste, de António Nelos, de António Barros, bem como da vertente performativa de Silvestre Pestana e de Ção Pestana. Embora muitas tivessem já conhecido já destaques a nível nacional, inclusive através da Fundação de Serralves, não tinham sido mostradas na Madeira. Incluiu ainda trabalhos de Rigo e de Rui Carvalho marcados pela vivência urbana. Um terceiro núcleo com peças de final do século XX e o início do XXI, apresentou exemplos de afirmação de linguagens pessoais de Ara Gouveia, Eduardo Freitas, Teresa Jardim, Rita Rodrigues, Mafalda Gonçalves, Graça Berimbau, Domingas Pita, Lígia Gontardo, Guida Ferraz, Filipa Venâncio, Francisco Clode de Sousa, Fagundes de Vasconcelos, Teresa Gonçalves Lobo, Susana Figueira, Duarte Encarnação, Emanuel de Sousa, Miguel Ângelo Martins e Ricardo Barbeito. Um outro núcleo foi dedicado especificamente a vídeo-instalações de Carlos Valente e de Hugo Olim, participantes nas sucessivas edições de What is watt? . Preâmbulo, Horizonte Móvel e Linha de partida são três mostras quase coincidentes nas suas datas de realização e complementares nos seus objetivos e conteúdos. Linha de partida (2009, Centro das Artes, Calheta) foi comissariada por Alexandre Melo e reuniu os vencedores das cinco edições dos prémios Henrique e Francisco Franco: Bruno Côrte, Carlos Jorge Rodrigues, Desidério Sargo, Duarte Encarnação, Eduardo de Freitas, Graça Berimbau, José Manuel Gomes, Luísa Spínola, Nuno Henrique, Paulo Sérgio BEju, Pedro Clode, Ricardo Barbeito, Rute Pereira e Susana Figueira. Com obras de pintura, escultura, fotografia, vídeo, na sua maioria integradas em instalações e feitas especificamente para a circunstância e o lugar, esta mostra, como o nome programaticamente indicava, pretendia ser um ponto de viragem para uma maior visibilidade dos seus autores. No entanto, o catálogo não chegou a ser editado, apesar de terem sido elaborados os textos, e só encontramos ecos dela nas páginas web dos participantes. A experiência da forma: um olhar sobre o Museu de Arte Contemporânea foi uma exposição organizada em 2009 por Francisco Clode Sousa no Centro das Artes que deu uma visão ampla sobre a evolução da coleção do MACF, acompanhada por um desenvolvido catálogo. Reuniu 180 obras, na sua grande maioria pertencentes ao referido espólio, complementadas por algumas obras emprestadas pela CMF, Biblioteca Pública Regional, o Instituto de Gestão da Água e Tecnopolo. Potenciando múltiplas reflexões sobre a paisagem e a sua relação com as artes, coincidiram em 2013, no Centro das Artes, duas exposições: a visão tradicional de Max Römer, com vasta mostra da obra deste alemão radicado na Madeira a partir de 1922 que, entre outras temáticas, dedicou particular atenção ao pitoresco da paisagem e aos costumes da ilha; e uma visão contemporânea, intergeracional e transdisciplinar intitulada A2V - a Duas Velocidades, com curadoria de Duarte Santo e Sílvia Escórcio e participação de Bernardo Mendonça & Tiago Miranda, Hugo Olim, Lucília Monteiro, Luísa Cunha, Miguel Palma, Ricardo Barbeito, Rigo e Yonamine, que apontou para a consciência das transformações tanto da paisagem como dos meios processuais e dos olhares sobre ela. Recapitulando esta panorâmica, podemos constatar que na Madeira, no início da déc. de 60, houve oportunidade de contactar com a atualidade artística nacional e internacional e que se verifica uma diversificação de linguagens artísticas, com tendência para o esbatimento de fronteiras entre géneros tradicionais como a pintura e a escultura, artistas que se afastam do tradicional figurativismo de motivos pitorescos para enveredar por experiências abstratas, a par do aparecimento de galerias de arte e de uma instituição de ensino superior artístico. O pós 25 de Abril trouxe, a par das alterações políticas e mudanças institucionais com consequente liberdade de expressão e intensificação dos hábitos de debate, uma reformulação de linguagens e de modos de atuação, que se abriu à vertente performativa e a uma outra atenção à fotografia e à imagem cinemática. Na efervescência dos anos 80 coexistiram com o recurso aos meios tradicionais as práticas experimentalistas mais alternativas e a introdução da imagem digital. Desenvolveram-se práticas de associativismo e debate de ideias reveladoras da consciencialização dos artistas plásticos acerca das dificuldades inerentes ao seu espaço geográfico, procurando traçar estratégias e objetivos comuns. Na década seguinte, assistiu-se ao aprofundamento de percursos anteriormente revelados, aliado a uma multiplicação de novas vozes intervenientes. A nível institucional, destacou-se a abertura do MACF e a criação de infraestruturas como casas de cultura que potenciaram a descentralização cultural. A vitalidade dos autores e a recetividade das galerias e espaços institucionais resultam num aumento da oferta cultural. Com o avançar do séc. XXI, viu-se um certo desinvestimento institucional nas artes plásticas, com abrandamento de atividade ou encerramento de alguns espaços. No domínio da arte pública, a continuidade da escultura comemorativa contrasta com algumas realizações de carácter efémero e interventivo. Quanto aos meios e processos de trabalho, se, para alguns, o fascínio do digital funciona como recusa da fisicidadade das peças, para outros é mais uma oportunidade de diálogo e enriquecimento de linguagens. Bibliog.: CARITA, Rui, “António Aragão: pintura e escultura”, Margem2, nº 28, maio 2011, pp. 114-121; Id. (coord.), Funchal, cidade com arte, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 2010; “Debate sobre exposições de arte”, Espaço-Arte, nº 5, Dez. 1980, p. 20; GORJÃO, Maria Idalina Sardinha, “Reflexão acerca da situação artística madeirense”, Espaço-Arte, nº 16, dez. 1988, pp. 7-9; Id. “Reflexão acerca da situação artística madeirense-2”, Espaço-Arte, nº 20-21, jan. 1992, pp. 38-41; Id. “Reflexões acerca da realidade artística madeirense”, Espaço-Arte, nº 17, jul. 1989, p. 7-9; LUCÍLIA, Irene et al, Preâmbulo, Funchal, Câmara Municipal do Funchal / Museu de Arte Contemporânea, 2009; “Martha Telles, Fotobiografia breve (1930-2001)”, Islenha , nº 48, jan.-jun. 2011, pp. 37-46; RODRIGUES, António, “A linguagem do desenho na obra de António Aragão”, Margem2, nº 28, maio 2011, pp. 122-131; RODRIGUES, Gualter, O catálogo de exposições temporárias de arte, 2007", ensaio apresentado na disciplina de Metodologias de Investigação do Curso de Mestrado em Arte e Património da Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2007; RODRIGUES, José Gualter Nóbrega, Rigo: artista plástico activista, conceptualista, Dissertação de Mestrado em Arte e Património apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2008; SAINZ-TRUEVA, José e VERÍSSIMO, Nelson, Esculturas da Região Autónoma da Madeira. Inventário, Funchal, DRAC, 1996; SANTA CLARA, Isabel, “A pintura de António Aragão”, Margem2, nº 28, maio 2011, pp. 122-131; Id. “Amândio de Sousa, escultor, Islenha nº 49, jul-dez 2011, pp. 133-148; Id. “Caminhos da contemporaneidade artística na Madeira” in BRITO, Orlando e PALAZUELA, Nilo Borges, Horizontes Insulares, Canarias, Acción Cultural Española, 2011, pp. 180-189; Id. e MAGALHÃES, Vítor, Horizonte móvel: Artes Plásticas na Madeira 1960-2008, Funchal, Funchal 500 Anos, 2008; SOBRAL, Luís de Moura, “Martha Telles: Retratos e melancolias”, Islenha , nº 48, jan.-jun. 2011, pp. 23-28; VALENTE, António Carlos Jardim, As Artes Plásticas na Madeira (1910-1990). Conjunturas, factos e protagonistas do panorama artístico regional no século XX, Dissertação de Mestrado em História da Arte Universidade da Madeira apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 1999; VALENTE, Carlos e SOUSA, Francisco Clode de, 20 anos de artes plásticas na Madeira, Funchal, Museu de Arte Contemporânea/Fortaleza de São Tiago, 1998; VASCONCELOS, Marla Lénia Ferreira, "Exposições na Madeira: 1990-1997", ensaio apresentado na disciplina de Arte e Cultura Regionais da Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 1998. Isabel Santa Clara (atualizado a 03.10.2016)
arraiais / romarias
Nas sociedades agrárias sempre existiram cultos e praticaram-se ritos, associados às forças mágicas, que o Homem julgava controlarem a natureza e a existência humana. Estes rituais de purificação e de apelo à fertilidade estavam intimamente ligados às diferentes estações do ano, nomeadamente as cerimónias de expulsão do Inverno, as de celebração da chegada da Primavera ou as de comemoração do final do ciclo agrícola. Os meses de Verão – junho a setembro – época das colheitas, eram meses festivos por excelência. Tratava-se da “recompensa” final pelo árduo trabalho tido ao longo do ciclo agrícola anual sendo, portanto, uma época de plenitude, de alegria, de festa. Muitos destes rituais profanos foram absorvidos pelo Cristianismo, que os transformou em solenidades religiosas, embora sagrado e profano continuem a “conviver” no mesmo espaço, misturados numa amálgama de crenças e rituais. As romarias são celebrações religiosas de invocação divina ou em honra de um santo, patrono de uma localidade ou de um santuário. Distinguem-se das outras festas religiosas pelo caráter de “peregrinação”, do percurso efetuado pelo povo até o local do santuário, antigamente a pé, por caminhos íngremes e atalhos. No arquipélago da Madeira, tal como no resto do país, em todas as paróquias celebram-se estas festas religiosas, as quais são consagradas a Deus, ao Espírito Santo, a Nossa Senhora e aos santos e santas, representados por uma relíquia – fragmento ou objeto – ou por uma imagem. Estas festas têm usualmente a sua origem na crença do povo em lendas populares ou foram introduzidas pelos primeiros colonizadores, que trouxeram consigo os seus santos detentores de poderes milagrosos, tornando-os protetores de determinadas localidades. A sua História, no entanto, reporta-se a tempos muito remotos, a cultos ancestrais e a crenças anteriores ao cristianismo, que se mantiveram apesar das normas oficiais religiosas as terem adaptado e transformado. A construção dos primeiros templos religiosos teve lugar, muitas vezes, na proximidade de antigos santuários pagãos e algumas lendas estão associadas implícita ou explicitamente a antigas divindades. Parece existir efetivamente uma continuidade entre o dinamismo popular que se exprime nas romarias e as formas religiosas que precederam o cristianismo. A localização dos santuários junto dos antigos lugares de culto, as lendas dos santos – e o seu culto – associadas aos elementos naturais (rochedos, mar, fontes, árvores), a permanência de certos itinerários ou gestos rituais, a intensidade do sentimento da natureza que leva o romeiro a ver a sede do sagrado mais na globalidade de um sítio, cuja harmonia aprecia e celebra, do que nos limites estreitos do santuário, a tendência, historicamente atestada pela igreja, para celebrar “junto das árvores” e “no campo”, são elementos que nos obrigam a ler o comportamento dos romeiros em referência a gestos e sem dúvida a complexos rituais abolidos (SANCHIS, Arraial, 325). As romarias realizam-se usualmente aos fins-de-semana e constituem um período de descanso, uma pausa no trabalho quotidiano. Eram organizadas pelos “festeiros”, “mordomos” ou “cabeças”, às suas custas, ou por uma Comissão de Festeiros com dinheiro seu e esmolas dos fiéis ou, ainda, pelas Confrarias. Para ajuda da celebração de algumas festas eram recolhidas durante o ano esmolas espontâneas dos fiéis, em pequenas caixas patentes nas igrejas. Nas dependências de algumas igrejas conservaram-se alguns exemplares dessas antigas caixas, umas de arrecadar e outras de receber esmolas, tendo as primeiras proporções de verdadeiras arcas com ferragens. Quando utilizadas para receção de esmolas, possuíam uma fenda de mealheiro. Algumas serviram também para cofre de confrarias e da fábrica ou administração das igrejas. Os gastos com as festas incluíam os custos com o pessoal necessário às cerimónias do culto, as ornamentações e iluminação do templo, adro e arredores, o fogo-de-artifício e a música do arraial. Era comum os “festeiros” serem emigrantes que vinham à sua terra natal em cumprimento de promessa ou devoção e que ostentavam a sua riqueza com elevados gastos. Inicialmente nas mãos do povo, aos poucos e poucos a “mordomia” das festividades foi entregue pela igreja aos párocos, numa tentativa de sobrepor os rituais sagrados aos rituais profanos, tendo em algumas festas desaparecido a figura do chamado “festeiro”. Para cobrir as despesas da festa era também montada uma barraca com comes e bebes, a designada “casa de chá”, costume que ainda se mantém. São usualmente as senhoras, que colaboram voluntariamente com a igreja, que ali vendem iguarias confecionadas por si e doadas à igreja para angariar receitas. É também montado um bazar, a designada copa, onde são colocadas as oferendas, cujas receitas do leilão dos produtos reverte a favor da igreja. Antigamente era também habitual venderem-se “sortes” de papel. Os registos constituem outra fonte de receita. O peregrino compra à igreja a imagem de um santo, em papel, o chamado registo, o qual era costume os homens ostentarem no chapéu, durante a festa, em sinal de devoção, levando-o depois para casa como proteção. Nestes dias a igreja está decorada exteriormente com plantas, nomeadamente o louro, a murta, o buxo e a giesta e o seu interior com alegra-campo e flores da época, costume este provavelmente com origem pagã, pois também se oferecia a Ceres - Deusa romana da agricultura – louro, murta, alecrim e rosmaninho, durante as festas das colheitas. [caption id="attachment_2810" align="alignleft" width="367"] Cortejo de Oferendas 1, Festa de S. Pedro, Ribeira Brava, Fotografia Perestrellos, Col. particular de Florencio Pereira.[/caption] Na véspera, à noite, o frontispício da igreja é iluminado com cordões de luzes que se desdobram em gambiarras ao longo dos caminhos do local da festa. Antigamente a eletricidade para estas iluminações era produzida por geradores volantes ou utilizavam-se fogos naturais de azeite em tijelas coloridas, escamas de cebola, valvas e, embora mais raramente, por meio de velas de estearina dentro de balões de papel. (PEREIRA, Ilhas, II, 488-489) Os rituais religiosos incluem missas, novenas, confissões e a procissão. No dia da festa, após a missa, sai o cortejo religioso – a procissão – acompanhado da imagem do patrono, no qual participam as confrarias da Paróquia que usualmente trajam opas de seda no Sul (segundo alguns autores, esta tradição seria uma reminiscência dos fidalgos e Senhores) e de lã e baeta no Norte, distinguindo-se, assim, do povo. As crianças, que celebram a “Primeira Comunhão” naquele ano, vão vestidas de anjos, outras com trajes regionais e distribuem pétalas de flores durante o percurso. O adro e as vias públicas por onde passa a procissão são ornamentados com bandeiras, arcos de verdura e flores. [caption id="attachment_2825" align="alignright" width="333"] Os Portões (arcos ornamentados com murta, Festas de S. Pedro, Ribeira Brava, Fotografia Perestrellos, Col. particular de Florencio Pereira.[/caption] Em tempos idos entravam neste cortejo religioso representações de caráter profano, nomeadamente de determinados ofícios e mesteres. Segundo descrição de alguns autores, na procissão do Corpo de Deus chegaram a ser introduzidos disfarces, alegorias históricas, folias e danças, rituais que teriam sido reprimidos pela igreja e por isso extinguidos. Destes rituais profanos ter-se-ia conservado, até mais tarde, a designada “dança das espadas”, com tradição na festa de S. Pedro, no concelho da Ribeira Brava. Em algumas freguesias, em especial no concelho do Funchal, as casas do itinerário da procissão desdobravam para a rua, pendentes das janelas e sacadas, colchas de seda e damasco, saídas das arcas especialmente para aquela ocasião, costume que terá sido introduzido pelos nobres na época da colonização (PEREIRA, Ilhas, II, 500-501). Dentro da igreja é costume os fiéis beijarem o santo festeiro, numa espécie de bênção propiciatória, simbolizando a aceitação do seu poder milagroso. Os romeiros para pagar as promessas feitas em momentos de aflição, fiéis aos seus votos, vão muitas vezes levar junto ao altar as suas preces e as ofertas devidas, à imagem da sua predileção. As dádivas dos fiéis são pagas de diferentes formas: a oferta de ex-votos em cera, com a forma de partes do corpo que foram curadas, as novenas, a queima de círios e a doação de bens ou os sacrifícios. Segundo alguns autores, as festas onde ocorriam mais romeiros no cumprimento das suas promessas seriam as do Monte, Ponta Delgada, Machico e Loreto. No cumprimento destas promessas, viam-se homens carregando pesadas barras de ferro ou mulheres de joelhos nus arrastando-se pelas pedras da calçada ou subindo íngremes degraus, como era tradição na escadaria de acesso à Igreja de Nossa Senhora do Monte. Para além da parte espiritual, traduzida na devoção do povo, as romarias foram sempre ocasiões e pontos de encontro das populações da freguesia com as outras que acorriam aos locais da romagem, proporcionando momentos de convívio, troca de notícias, estabelecimento de laços comerciais e de amizade e, muitas vezes, compromissos de casamento. As raparigas aproveitavam as festas para estrear os vestidos e sapatos novos e os rapazes para exibirem os seus dotes físicos, em jogos, rituais, lutas ou outras proezas, estreitando-se os laços afetivos. Lugar de uma socialização intensa mas fugaz, dominada pela liberdade relativamente às regras, o arraial permitia encontros cuja significação erótica era com frequência particularmente marcada. A par da estrutura familiar e social e da estrutura económica, com as suas tecnologias e atividades profissionais, as festas ocupam um lugar fundamental, pelo papel que desempenham e pela enorme diversidade de aspetos que as caraterizam. Embora todas as freguesias tenham as suas festividades religiosas e possuam caraterísticas semelhantes, inerentes às celebrações religiosas comuns, a identidade de cada comunidade é revelada na ornamentação do espaço e nas diferenças que assumem os rituais religiosos e profanos em cada localidade e que constituem motivo específico de atração para os romeiros. De entre as romarias mais concorridas do arquipélago, procurámos descrever aquelas que consideramos possuir traços específicos interessantes e por vezes únicos, relacionados com os rituais de caráter religioso (promessas, oferendas ou procissão) ou com os rituais profanos, nomeadamente o arraial: a festa de Nossa Senhora do Monte no Funchal, a festa dos Milagres em Machico, a festa de Nossa Senhora da Piedade no Caniçal, a festa de Nossa Senhora do Livramento no Curral das Freiras, a festa da Ascensão do Senhor na Ponta do Sol, as festas do Santíssimo Sacramento em diferentes localidades, a festa de S. Pedro na Ribeira Brava e a festa do Senhor do Bom Jesus na Ponta Delgada. Entre as romarias madeirenses a mais antiga parece ser a de Nossa Senhora do Faial, fundada, segundo consta, na crença da aparição de Nossa Senhora no local onde foi erguida a igreja. No entanto a mais concorrida é talvez a do culto de Nossa Senhora do Monte, que celebra-se a 15 de agosto e tem origem na lenda que refere a aparição de uma Menina, Nossa Senhora, a uma pastorinha, no sítio do Terreiro da Luta, localizado a cerca de 1 quilómetro acima da atual igreja. Desde então foi instituída toda uma devoção, alimentada por diversos milagres, estendendo-se o culto por toda a ilha. O culto a Nossa Senhora do Monte parece vir desde tempos imemoriais, quando Adão Gonçalves Ferreira mandou construir a primitiva ermida de Nossa Senhora da Incarnação, tendo ali nascido, em 1470, o culto mariano em honra e louvor àquela que noventa e cinco anos depois teria o título de Nossa Senhora do Monte. Este culto foi reforçado com a criação da “Confraria dos Escravos de Nossa Senhora do Monte” e espalhou-se por toda a ilha e pelas comunidades de madeirenses emigrados, até atingir a dimensão atual. De entre todas as romarias esta é uma das mais concorridas por ser a da Padroeira do Funchal e dos madeirenses, sendo muitas vezes invocada em casos de “aflições públicas”. O povo considera-a sua protetora e a ela atribui a sua salvação aquando de muitas calamidades como aluviões, naufrágios, fomes e doenças, sendo disso testemunho muitos documentos escritos. O maior motivo de atração desta festa são as inúmeras promessas em cera, dinheiro e penitências públicas, que todos os anos são cumpridas no seu santuário. As velas ou círios, símbolos de fé e objetos das promessas dos romeiros, são feitas de cera e possuem vários formatos. É comum retratarem-se partes do corpo humano ou utilizar-se uma vara de cera da mesma altura do peregrino. Antigamente estas eram colocadas no interior de canas de roca, para chegarem à altura dos peregrinos e eram ornamentadas com fitilhos de papel azul e vermelho, colocados em espiral e era comum, à porta da igreja, ouvirem-se pregões de velas. A festa de Nossa Senhora do Livramento, festejada a 8 de Setembro no Arco da Calheta é também uma romaria que atrai muitos fiéis para cumprimento de promessas. Trata-se de uma festa muito antiga, tendo sido o seu culto introduzido por Dona Joana de Eça, donatária de todas as terras do Loreto, no reinado de D. João III. Sendo o seu arraial muito concorrido, esta é uma das festas nas quais a tradição do “fogo preso” ainda se mantém viva, sendo as despesas destes festejos muitas vezes assumidas por emigrantes em cumprimento de promessas. No dia 7 celebra-se a novena e durante a noite decorre o arraial. À meia-noite é lançado o fogo-de-artifício e depois tem lugar o espetáculo com o tradicional “fogo preso”, sendo comum a exibição da “velha e o velho” e da “roda manhosa” e, no dia seguinte, a tradicional “girândola”, ao meio-dia, antes da missa e da procissão. ” Esta é montada num muro, próximo da igreja, em local seguro. É formada por um conjunto de “salvas”, uns paus compridos com pequenos orifícios, onde são introduzidos 21 foguetes. A “velha e o velho” são dois bonecos repletos de artefactos pirotécnicos, que giram à medida que são consumidos pelo fogo. Estas figuras parecem estar relacionadas com antigos rituais associados aos ciclos agrícolas e à renovação da natureza, praticados no nosso país. Era comum o povo fazer um boneco, com feixes de trigo, que constituía a personificação da força ativa da vegetação, o qual era lançado à água, de forma a garantirem a chuva, ou era queimado e as cinzas espalhadas pelos campos de modo a garantirem a fertilidade. Estas figuras representavam também a morte do ano velho e expulsão do inverno, com o consequente renascimento do ano novo e chegada do verão. A “roda manhosa” é um artefacto com a forma de uma roda, na qual estão dispostos vários foguetes, que à medida que são lançados a fazem girar. (FERREIRA, Festas) A Festa dos Milagres, em Machico, tem como caraterística distintiva os fachos (fogueiras), que antigamente eram dispostos ao longo das encostas sobranceiras, em figuras alegóricas e motivos alusivos à festa e os archotes que figuram na procissão. Segundo os historiadores, foi em Machico, no sítio da Banda d’Além, que se celebrou a primeira missa na Madeira, por padres franciscanos. Como agradecimento pela nova descoberta João Gonçalves Zarco mandou construir uma capela, à qual foi dado o nome de Capela de Cristo. Anos mais tarde a capela passou a designar-se Capela da Misericórdia, em virtude de ter sido a sede da Santa Casa da Misericórdia. A 9 de Outubro de 1803 o leito da ribeira transbordou, inundando a vila de Machico e as águas invadiram a capela, destruindo-a parcialmente e arrastando para o mar a imagem de Nosso Senhor na Cruz. Segundo a lenda, três dias depois uma embarcação americana que vinha do Funchal recolheu a imagem que milagrosamente boiava, a qual foi levada para a Sé do Funchal. Em 1813 a capela foi reconstruída e a imagem foi transportada para a capela, num escaler, durante a noite, acompanhada por barcos de pesca e recebida pelos pescadores, que transportavam archotes e cantavam hinos ao Senhor. Ainda segundo a lenda, quando os barcos entraram na baía, os sinos tocaram a rebate sem que ninguém lhes tivesse tocado. Após este acontecimento a capela passou a designar-se Capela dos Milagres. Em memória do dia em que Nosso Senhor dos Milagres protegeu aquela zona do grande aluvião e pelo facto de a imagem ter sido recuperada intata celebra-se a 8 e 9 de Outubro a festa em sua honra. O ponto mais alto desta festa é a procissão que tem lugar no dia 8. A imagem sai da capela, percorre algumas ruas e é levada para a Igreja Matriz. Duas filas de pescadores, transportando archotes, desfilam em silêncio. Segue-se o andor com a imagem, transportado numa embarcação, seguido pelo Bispo, os padres e a banda. Atrás destes vão os fiéis, com sírios ou votos (partes do corpo humano feitas em cera), alguns descalços, que se integram na procissão em cumprimento de promessas. Durante este ritual a iluminação pública é desligada, ficando a vila apenas iluminada pelos archotes e pelas velas dos fiéis que percorrem as ruas da vila de Machico, em silêncio, com devoção. Na chegada à igreja matriz, ouvem-se os sinos e a imagem é recebida pelo povo, com uma salva de palmas. Um dos rituais que caracterizava esta festa, os chamados “fachos”, extinguiu-se. Tratavam-se de fogueiras, que o povo fazia nos sítios onde morava ou nas serras vizinhas, queimando pinhas e toros, regados de petróleo, que iam buscar à serra dias antes da festa. Eduardo C. N. Pereira deixou-nos uma descrição pormenorizada deste ritual profano: “Para isso reúne-se ao toque de búzios, partindo de noite em romaria e regressando numa enorme bicha, ao som de toques e descantes, as pinhas dentro de sacos, toros velhos às costas e feixes de ramagens secas à cabeça. A queima faz-se na véspera, ao anoitecer, nas encostas sobranceiras à vila, dispostos os fogachos em figuras alegóricas, letras, nomes e desenhos alusivos à festa. É um espectáculo típico e de grande atractivo para milhares de forasteiros". (PEREIRA, Ilhas, II, 489-490) A disposição dos fachos formava diversas figuras, elaboradas ao sabor da criatividade e espiritualidade do povo: “ Na concha formada pelo vale de Machico, ficavam semeados esses fachos, formando místicos desenhos como cruzes, cálices, corações, custódias e ainda peixes, barcos, ziguezagues, etc.” (CRISTOVÃO, Elucidário, 30) O traço que distingue a Festa de Nossa Senhora da Piedade, no Caniçal, freguesia igualmente pertencente ao concelho de Machico, é também a procissão, que é feita pelo mar, atendendo à devoção e empenho dos pescadores. Os portugueses prestam culto a Nossa Senhora da Piedade, em muitas localidades, desde tempos remotos. A imagem é usualmente apresentada junto à Cruz, com Jesus morto no seu regaço, ilustrando a dor de uma mãe, perante a perda de um filho. Na Madeira a devoção à N. Senhora da Piedade remonta ao início da colonização. A capela construída no século XVII encontra-se localizada no alto do Monte Gordo ou da Piedade, localizada a cerca de quatro quilómetros da Igreja paroquial. A autoria da sua construção é incerta, embora alguns historiadores atribuam a sua fundação a Garcia Moniz, primeiro administrador do morgado do Caniçal, ou a algum dos seus sucessores. A lenda atribui a sua construção a uma promessa de um grupo de marinheiros. Segunda reza essa tradição, os marinheiros ao ver o seu navio quase a despedaçar-se contra a costa teriam prometido construir uma ermida dedicada a Nossa Senhora. Quando a tempestade acalmou a dissipou-se o nevoeiro, teriam avistado terra, o Monte Gordo, e ali decidido construir a dita capela em honra a Nossa Senhora da Piedade. Apesar de não ser padroeira desta freguesia, a festa em sua homenagem, no terceiro fim- de-semana de Setembro, atrai mais fiéis a esta localidade do que a festa de São Sebastião, o seu padroeiro. A festa é suportada pelos pescadores, que vão pondo de parte, ao longo do ano, verbas provenientes da venda do pescado. No dia anterior é realizado um sorteio, entre os arrais dos barcos de maiores dimensões, sendo efetuada a seleção do barco que irá transportar a imagem: o “barco bento”. A partir das 15h00 realiza-se a procissão, que sai da Igreja paroquial e dirige-se para o cais, onde estão os barcos ancorados. No barco sorteado, que conduz a procissão, vão os homens que transportam o andor, os Irmãos da Confraria, o Padre, a banda e o arrais e um elemento da Confraria que transporta a caixa, que contém o ouro com o qual a imagem será ornamentada. Os restantes barcos, enfeitados com bandeiras e folhas de palmeiras, apinhados de fiéis, seguem-no enfileirados, em direção ao Monte Gordo ou Monte da Piedade. A procissão desembarca no cais da Quinta do Lorde e segue a pé, por um caminho íngreme, até à capela. À entrada do templo a banda toca o hino a Nossa Senhora da Piedade, acompanhando depois os cânticos religiosos entoados pelos devotos. Algumas pessoas permanecem nos barcos, aproveitando para dar um passeio até à Ponta de S. Lourenço. São servidos pão com atum ou gaiado e bebidas. Passado algum tempo o barco volta, para levar a imagem de Nossa Senhora da Piedade já ornamentada com o ouro proveniente de graças obtidas e inicia o trajeto de regresso à vila. O andor é sempre transportado por homens em cumprimento de promessas. Estes transportam, ainda, uma pintura sobre madeira, representando Nossa Senhora da Piedade, encerrada numa espécie de vitrina. Após o desembarque, a procissão dirige-se para a Igreja Matriz, onde tem lugar a Missa. Depois da celebração formam-se filas de crentes, que beijam a imagem e fazem as suas promessas. [caption id="attachment_2834" align="alignleft" width="180"] O despique madeirense, Curral das Freiras.[/caption] No início da tarde do dia seguinte, ao terminar a Missa, é realizada de novo a procissão marítima, fazendo-se o percurso inverso, para devolver a imagem à sua capela. Neste percurso a imagem fica com o rosto virado para a vila, abençoando a terra e os fiéis. O renascimento simbólico do sol, triunfo sobre o inverno, sempre presidiu a todos os ritos de fecundidade das festas de Verão, pois esta estação representa a plenitude dos ciclos da terra, a alegria das colheitas, a recompensa, a qual era agradecida oferecendo-se produtos agrícolas aos Deuses. Muitos destes rituais foram absorvidos pelo Cristianismo, motivo pelo qual muitas festas religiosas mantêm, embora por vezes noutros moldes, rituais idênticos aos pagãos, nomeadamente as oferendas. As oferendas constituem, pois, uma das características tradicionais das romarias, com um misto de profano e religioso. O povo faz ofertas à Igreja, em dinheiro ou géneros, para ajudar nas despesas da festa, que constituem uma espécie de dádivas. [caption id="attachment_2837" align="alignright" width="300"] Arraial do Curral das Freiras.[/caption] Este ritual adquire traços curiosos na festa de Nossa Senhora do Livramento, no Curral das Freiras, concelho de Câmara de Lobos pelo tipo de percurso e pela forma como é efetuada a recolha, a qual mantém características que não foram alteradas ao longo dos tempos. [caption id="attachment_2831" align="alignleft" width="199"] Instrumento Tradicional Madeirense, o Brinquinho, Arraial do Curral.[/caption] Durante muito tempo a freguesia do Curral das Freiras, rodeada de montanhas, encontrava-se praticamente isolada, sendo o acesso a esta localidade efetuado por veredas e caminhos muito íngremes. Este percurso, desde a Eira do Serrado até à Igreja, ficou conhecido como as “Voltinhas do Curral” e era comum os idosos, os doentes e mesmo alguns forasteiros, percorrerem estes caminhos em redes, transportadas por dois homens às costas. Devido à orografia do terreno era também frequente a população ficar isolada, quando se davam as quebradas, durante as intempéries. Talvez por todas estas condicionantes, a devoção a Nossa Senhora do Livramento, protetora de todos os males e perigos, ficou enraizada na alma dos curraleiros, sendo a padroeira desta freguesia. A Capela em sua honra foi construída no reinado de D. Maria I e a sua festa celebra-se no último fim-de-semana do mês de agosto. As romagens nesta festa adquirem uma feição ainda muito tradicional, juntando dezenas de pessoas. Na parte da tarde de Sábado o padre e a banda dirigem-se aos diversos sítios para recolherem as oferendas. Percorrem os Sítios do Pico Furão, Fajã dos Cardos, Colmeal, Ribeira do Cidrão, Fajã Escura, Casas Próximas e Achada. Os romeiros cantam algumas rimas populares alusivas às oferendas e dançam e lançam foguetes para animar a festa, enquanto aguardam a chegada do Pároco, gerando-se um alegre convívio. À chegada do Pároco a banda toca o hino. Este percurso é efetuado por todos os sítios, repetindo-se os mesmos rituais desfilando, ao fim de um certo tempo, dezenas de pessoas neste cortejo processional, cantando ao som da banda. De vez em quando param em frente dos estabelecimentos e das residências de antigos festeiros e há um convívio, no qual todos bebem, comem, tocam e cantam. As paragens nas residências de antigos festeiros são, usualmente, mais demoradas. As oferendas em dinheiro são transportadas em diferentes suportes, sendo a sua ornamentação resultado da criatividade dos habitantes de cada sítio. Antigamente eram oferecidos muitos animais, os quais eram ornamentados com tiras de papel coloridas, sendo adquiridos, durante o percurso, pelos rapazes que iam casar. Quando chegam à Igreja, as oferendas são depositadas no bazar, e são depois leiloadas. Na festa da Ascensão do Senhor, no concelho da Ponta do Sol, durante a celebração religiosa pode-se assistir a dois rituais curiosos: uma “chuva” de “flores de maio” e pétalas de rosa, que caem de todos os recantos do templo e que o povo utiliza, mais tarde, numa espécie de apelo à fertilidade e a nomeação do festeiro, numa cerimónia aparatosa. “De véspera, crianças de todos os sítios se encaminham para a igreja com açafates de flores destinadas à ornamentação do templo. Antes de principiar a solenidade, uma filarmónica acompanha o festeiro e família da sua casa à igreja, em ar de cortejo ao som de uma marcha. Os festejados atravessam os caminhos e entram na Igreja em triunfo (…). Dentro do templo tomam assento reservado junto ao altar-mor, onde assistem a todas as cerimónias de tocha acesa na mão. A meio da missa, honra-os o ajudante da cerimónia com três ductos de incenso. Antes de principiar o sermão, o pregador nomeia o festeiro do ano seguinte o que constitui um sucesso na freguesia porque ser festeiro da Ascensão, na Ponta do Sol, é atingir o apogeu da glória. É um título que se junta ao nome (…) uma espécie de entrada na aristocracia. Fazer a festa da Ascensão é atestar para sempre riqueza e honorabilidade. Depois da festa canta-se a hora de Noa do Ofício Divino; enquanto ressoam as harmonias do cantochão, uma chuva de flores de maia e pétalas de rosa irrompe de todos os recantos e bocas interiores do templo. O povo, ao findar esta cerimónia, atropela-se para subir os degraus do altar-mor e recolher as flores ali caídas, guardando-as para atirar às árvores com a supersticiosa intenção de as fazer frutificar.” (PEREIRA, Ilhas, II, 521) O ritual complexo de nomeação do festeiro nesta festa parece revelar outro elemento: o da intervenção do sagrado na esfera do social, “regulamentando-o”, enquanto que o ritual da “chuva de flores” é comum noutros locais e está associado a ritos vegetativos. Este tipo de ritos vegetativos é praticado, aliás, em diferentes países da Europa, associados à comemoração da chegada da primavera e à renovação da Natureza. Estes rituais mágicos, de profilaxia e esconjuro, associados às estações do ano e aos ciclos agrícolas, parecem estar ligados a práticas extintas, que sobreviveram ao longo dos séculos, inseridas em novos cultos. [caption id="attachment_2843" align="aligncenter" width="457"] As Saloias, Rituais florais, Colecção Particular.[/caption] Já os povos pré-cristãos acreditavam nos poderes mágicos das flores, utilizando-as em diferentes cultos, associados por exemplo à mortalidade, à fertilidade ou à abundância, em determinadas curas ou para afugentar os maus espíritos. As flores, que parecem ter ocupado desde tempos imemoriais um lugar especial na vida dos homens, são até os dias de hoje usadas em diversos rituais, nomeadamente em todos os ritos de passagem, desde o nascimento até à morte. Este tipo de consagrações florais, que possuem raízes ancestrais, estão também presentes em muitos rituais, profanos e religiosos, associados a diferentes festividades: os cestos das chamadas “saloias do Espírito Santo”, ornamentados com flores e repletos de pétalas para serem lançadas durante o percurso das visitas pascais, as pétalas lançadas nas Igrejas, nas procissões ou nos campos de cultivo, como referimos anteriormente, os cortejos de flores para ornamentação de algumas capelas e igrejas ou os tapetes de flores, são alguns exemplos. [caption id="attachment_2846" align="alignleft" width="256"] Rituais florais - As Saloias 1 (Colecção Particular).[/caption] O tapete de flores, ou o “tapete do Senhor” como é popularmente designado, com formas geométricas preenchidas com musgo, folhagem e flores variadas, é a grande atração das festas do Santíssimo Sacramento. A origem da solenidade do Corpo e Sangue de Cristo remonta à Última Ceia, onde Jesus e os Apóstolos comeram pão e beberam vinho, símbolos da “Sua carne e do Seu sangue”. No século XII a adoração da hóstia desenvolve-se fora da missa e aumenta a afluência popular ao Santíssimo Sacramento. Na Madeira, este culto, praticado em todas as freguesias, remonta aos tempos da colonização. Uns dias antes da festa, as verduras e flores mais resistentes são recolhidas por homens e mulheres dos diferentes sítios, para a confeção do “tapete do Santíssimo”, sendo as mais frágeis e menos duradouras colhidas no próprio dia. Cada sítio confeciona uma parte do tapete, existindo uma rivalidade entre os vários locais. A festa de Nossa Senhora do Livramento, na Ponta do Sol, na primeira quinzena de Outubro, possui também uma característica especial: um cortejo de flores, conhecidas por “beladonas” (Amaryllis bella-dona L.). [caption id="attachment_2849" align="alignright" width="255"] Rituais florais - As Saloias 2 (Colecção Particular)[/caption] Na sexta-feira anterior à festa, homens e mulheres partem em romaria para o sítio do Rochão, na freguesia do Arco da Calheta, percorrendo a pé, durante horas, íngremes caminhos, para colher aquelas flores para a ornamentação da capela do Livramento, mandada construir em 1662 por Diogo Ferreira Mesquita. Durante o percurso comem, bebem e cantam, num alegre convívio. Só regressam no Sábado ao meio-dia, juntando-se a população nas bermas da estrada para ver passar aquela grande fila de romeiros que, transportando aquelas flores rosa, dirige-se até à capela, formando um cortejo colorido e muito animado. Uma idêntica consagração floral é realizada pelo povo madeirense, no mês de Setembro, para a ornamentação da capela de Nossa Senhora do Bom Despacho, na freguesia do Campanário, concelho da Ribeira Brava, deslocando-se à serra, de madrugada, para apanhar açucenas com as quais decoram a capela. Os autores do Elucidário Madeirense fazem também referência a uma curiosa romagem, para celebração das colheitas, na freguesia de Santo António da Serra, com características peculiares, que parece também constituir um ritual vegetativo, associado às estações do ano e aos ciclos agrícolas: Há 40 para 50 anos, realizava-se no primeiro domingo de Outubro uma romagem à freguesia de Santo António da Serra afim de celebrar a conclusão das colheitas(…) Os romeiros enquanto se demoravam naquela localidade praticavam os maiores desatinos, e, no regresso, percorriam as ruas da cidade, levando ramos de árvores e bandeiras, sendo precedidos de alguns homens batendo em tambores e tocando instrumentos de corda. (SILVA; MENEZES, Elucidário, III, 221) Dois rituais, de caráter religioso e profano caraterizavam a festa de S. Pedro, comemorada nos dias 28 e 29 de Junho, na freguesia da Ribeira Brava: a “dança das espadas”, que era única em todo o arquipélago e a “barquinha”, que saía na procissão, uma homenagem a S. Pedro, santo protetor dos pescadores. Após o seu desaparecimento, estes rituais foram recuperados pelo povo, embora se tenham introduzido, ao longo do tempo, algumas alterações. Foi o caso da “dança das espadas” que depois de um grande interregno, voltou a surgir no adro da igreja matriz, numa reconstituição da responsabilidade do Grupo de Folclore e Etnográfico da Boa Nova e de alguns elementos do Grupo de Folclore da Casa do Povo da Ribeira Brava. [caption id="attachment_2813" align="alignright" width="300"] Cortejo de Oferendas 3, Festa de S. Pedro, Ribeira Brava, Fotografia Perestrellos, Col. particular de Florencio Pereira.[/caption] No dia 28, ao meio dia, uma grande girândola de fogo anunciava o início desta festa e no começo da tarde a banda de música partia para os diferentes sítios, de onde viriam as “romagens”: oferendas com produtos da terra, doces, pão, vinho e as tradicionais charolas. As charolas são uma espécie de padiolas esféricas feita em madeira e arame, suportadas por varas paralelas, destinadas ao transporte de produtos da terra e são conduzidas aos ombros, por homens. Terminado o “cortejo das oferendas”, como era popularmente designado, aquelas eram transportadas até à “copa” ou “bazar”, junto à igreja, para serem “arrematadas” ou colocadas a sorteio, no dia seguinte. A “ Missa da festa ” era celebrada no dia 29, ao meio dia, saindo depois a tradicional procissão com a imagem de São Pedro. Neste cortejo processional era incorporada uma “barquinha”, símbolo dos pescadores, que no seu interior levava uma bandeira vermelha, com a designação daquele Santo, em letras douradas, crianças trajadas de marinheiros e algumas ofertas para a Igreja. A procissão era ainda acompanhada pela banda de música, tal como nas outras localidades, mas aqui fazia parte da procissão um elemento único: “a dança das espadas”. [caption id="attachment_2816" align="alignleft" width="300"] Cortejo Religioso, Procissão, Festa de S. Pedro, Ribeira Brava, Fotografia Perestrellos, Col. particular de Florêncio Pereira.[/caption] O Elucidário Madeirense fornece-nos uma descrição pormenorizada deste ritual: “a procissão com a sua barquinha e a dança das espadas, constituía o principal atractivo das festas daquela freguesia, mas já há muitos anos se retirou da procissão aquela dança (...) A barquinha guarnecida de flores e tendo dentro alguns apetrechos da pesca, símbolo desta indústria, apareceu no cortejo, visto São Pedro, cuja imagem também aí figura, ter sido pescador, ao passo que a dança das espadas era ao que parece, o último vestígio das muitas folias que apareciam outrora em certas procissões, particularmente na do Corpo de Deus.” (SILVA; MENEZES, Elucidário, III, 203) Levada em mãos pelos homens do mar, esta embarcação antigamente conduzia o cortejo de oferendas de pães, frutos e outros produtos da terra. A “barquinha” chegou a figurar também na procissão de Câmara de Lobos, na festa em honra do mesmo santo. Segundo alguns investigadores, a “dança das espadas”, era conhecida por matachins, designação atribuída a bailarinos gregos que, no século XVI, executavam uma dança guerreira, pelo que a sua origem mais recuada estaria relacionada com essa dança grega a qual, posteriormente, teria sido difundida pelos romanos, que a teriam levado para Itália onde ter-se-ia tornado burlesca. Outros defendem que a designação atribuída seria machatim, uma espécie de palhaço bailarino, que simulava um combate com outros. Outros estudiosos fazem referência à origem árabe da palavra matanachihin que significava mascarado ou disfarçado. João Adriano Ribeiro, historiador madeirense, defende a origem italiana da palavra, e a provável introdução desta dança em Portugal no século XV ou princípios do século XVI. [caption id="attachment_2819" align="alignleft" width="360"] Dança das Espadas 1, Festa de S. Pedro, Ribeira Brava, Fotografia Perestrellos, Col. particular de Florêncio Pereira.[/caption] Na Madeira a dança das espadas teria começado a fazer parte de um desfile profano, na procissão do Corpo de Deus, realizada na Vila da Ponta do Sol, próxima da freguesia da Ribeira Brava, organizada inicialmente pelos ferreiros, a qual era acompanhada por alguns instrumentos musicais, nomeadamente gaita, tamboril e pandeiros. Posteriormente, a sua organização foi da responsabilidade do “Rendeiro do Verde” e, mais tarde, do “rendeiro da imposição do vinho”, havendo notícia que teria sido notificado pela Câmara da Ponta do Sol para “deitar a dança das espadas”. [caption id="attachment_2822" align="alignright" width="342"] Dança das Espadas 2, Festa de S. Pedro, Ribeira Brava, Fotografia Perestrellos, Col. particular de Florêncio Pereira.[/caption] Não há dados concretos quanto à data e às circunstâncias em que os pescadores terão começado a realizar esta dança. Contudo, desde finais do século XIX, que há notícias da sua existência nas festas de S. Pedro, na Ribeira Brava, tradição que se terá mantido, segundo testemunhos orais, pelo menos até os anos sessenta do século XX. (RIBEIRO, Ribeira Brava, 117-121) A “dança das espadas” era executada por “sete homens que (…) vestiam calções brancos e véstias vermelhas, e tinham na cabeça barretes verdes em forma de mitra, guarnecidos de plumas e fitas longas, segurando cada um deles com uma das mãos uma espada pelos copos, e com a outra a ponta da espada empunhada pelo companheiro mais próximo. Ao som dum pandeiro, faziam eles diferentes movimentos compassados, passando de vez em quando sob espadas.” (SILVA; MENEZES, Elucidário, III, 203) Um outro costume caracterizava esta festa e atraia muitos romeiros: os grupos de tocadores castanholas. Tocadas na época natalícia a caminho das missas do parto e do galo, e por altura das festas e romarias nos meses de verão, é na Tabua, freguesia pertencente ao concelho da Ribeira Brava, e em algumas zonas próximas, que estes instrumentos musicais possuem maior tradição. Era habitual naquela freguesia juntarem-se grupos de homens, aos domingos ou à noite, para construírem castanholas com diferentes formas e dimensões, procurando inovar na forma de tocar e nos resultados acústicos obtidos, rivalizando entre si. Esta rivalidade terá incentivado a construção destes instrumentos, e estará provavelmente na origem do aparecimento de uma maior variedade morfológica, na Ribeira Brava e na Ponta do Sol, concelhos onde estes idiofones de percussão direta adquiriram caraterísticas muito peculiares, como é o caso das castanholas com grandes dimensões, quadrangulares, rectangulares e ovais as ou com formas zoomórficas (galinhas ou cabeças de cão) ou mesmo artefactos originais, como um “avião de castanholas”, da autoria de Alfredo Rodrigues Luzirão, que terá feito sucesso nos anos quarenta do século passado. O autor fez uma réplica deste instrumento que foi doada pelo Escultor António Rodrigues ao Museu Etnográfico da Madeira. Existiram dois grupos de tocadores rivais, que embora constituídos por elementos de diversas localidades, eram conhecidos popularmente por Grupo da Ribeira e Grupo dos Zimbreiros, sendo muitas vezes o adro da igreja palco destes “despiques”. Na década de 40 do século passado, formou-se um grupo, a chamada “Requestra da Tábua”, que atuou em diferentes festividades, fazendo parte do cartaz de animação de alguns eventos, nomeadamente do Arraial de S. Pedro na Ribeira Brava. Outros rituais profanos, ligados á superstição do povo, faziam ainda parte dos festejos deste Santo protetor: sortes, rezas e adivinhações, os banhos sagrados (era costume na véspera do S. Pedro o povo lavar os pés no mar) ou os rituais de purificação, nos quais o povo utilizava “ervas bentas” (murta, louro, buxo ou alecrim). De todas as festas de São Pedro realizadas na Madeira, a da Ribeira Brava é provavelmente a mais concorrida também pela dimensão e animação do seu arraial. Antigamente os transportes faziam-se muitas vezes por mar. A cabotagem, com ligações a quase todo o litoral, desempenhou um papel fundamental na comunicação entre alguns concelhos. De toda a ilha vinham romeiros de barco para as festas do S. Pedro, na Ribeira Brava. O “Gavião”, o “bútio”, o “Vitória” ou o “Dekade II” foram alguns dos barcos de cabotagem que chegaram a realizar carreiras extraordinárias, para transportar os romeiros que chegavam durante a tarde, aumentando de número pela noite dentro. As bandas de música convidadas também utilizavam este transporte e eram esperadas no cais pela banda da localidade que as conduzia, em cortejo, até à igreja. Na chamada “oitava da festa” - no terceiro dia - era costume os pescadores do concelho de Câmara de Lobos deslocarem-se, em dezenas de barcos, para uma visita à vila da Ribeira Brava, ritual que se mantém até a atualidade. O culto do Senhor do Bom Jesus na Ponta Delgada é muito antigo. Segundo consta, foi introduzido por um dos primeiros povoadores, Manuel Afonso Senha, que terá construído a capela. Um dia, depois de uma tempestade, um pescador que andava no calhau, encontrou um caixão que continha a imagem de Jesus Crucificado, a qual foi colocada na capela então existente. Durante a noite a imagem desapareceu, tendo sido encontrada mais tarde à beira mar. Voltaram a colocá-la na capela, tendo desaparecido pela segunda vez e encontrada novamente no mesmo local. Reza a lenda que Manuel Afonso Senha, que estaria indeciso sobre o local onde deveria edificar a capela, considerou que o Senhor queria que se construísse um templo naquele local, tendo satisfeito assim a sua vontade. Ao longo dos tempos a igreja passou por várias modificações e reparações, tendo sido reconstruída em 1910, após um incêndio que a reduziu a escombros. Devido aos inúmeros milagres e à fé do povo, o culto estendeu-se a toda a ilha, convergindo todos os anos milhares de peregrinos a esta freguesia do Norte da ilha, pertencente ao concelho de S. Vicente. É comum, por esta altura, os emigrantes visitarem as famílias, aproveitando para cumprir as suas promessas. Antigamente, os romeiros oriundos de diversos pontos da ilha deslocavam-se até à Ponta Delgada, percorrendo grandes distâncias a pé. Hoje já são poucos os grupos que fazem este percurso pedestre, pelos velhos caminhos, para participar na festa do Senhor Bom Jesus. As romagens, termo que se reporta à designação destas festas, são as peregrinações populares ao lugar onde se festeja a santidade, tradição naturalmente introduzida pelos primeiros colonizadores e que, segundo alguns autores, terão grandes semelhanças com as do Norte de Portugal. Os romeiros realizavam grandes percursos a pé, em grupos, constituídos por familiares e vizinhos. Munidos do bordão, símbolo que os identificava, calcorreavam os caminhos íngremes, cantando e dançando ao som dos instrumentos tradicionais, ao longo de todo o percurso, para aliviar o cansaço. Era comum os homens transportarem uma cabaça, que depois de seca e despojada das sementes servia para transportar os líquidos. Mais tarde, o chifre de bovino - “corno”, como é designado pelo povo - terá substituído a cabaça. Foi também comum o uso de uma bexiga de porco, a tiracolo, cheia de vinho novo ou aguardente. Este recipiente terá origem provavelmente em terras alentejanas, onde é conhecido por “borracha” e possui grande tradição. Tratava-se de uma bexiga de suíno, na qual era colocado um entrenó de cana vieira ou cana roca que servia de gargalo. As mulheres transportavam os farnéis em cestas de vime, forradas com toalhas brancas bordadas: “ o pão escuro de trigo regional, a rosquilha de farinha açucarada e erva-doce, o peixe seco em molho apimentado, inhame e batatas”. Estes farnéis eram consumidos durante a viagem mas também no espaço do arraial, numa espécie de piqueniques, montados à sombra das árvores e das latadas de vinha, nos campos ou nas soleiras das portas. A primeira obrigação do romeiro consistia na visita ao templo para pagar a promessa, beijar a imagem do santo e deixar uma contribuição pecuniária ou oferendas para a festa. “Alguns votos são cumpridos pela simples oferta duma vela da altura do oferente, determinada medida de azeite, jóia de uso próprio, dinheiro ou modelações de toda a anatomia humana, em cera, símbolos de fé e de amor, materializações de desespero ou de esperança, de dor ou de alegria; outros condicionados pelo transporte pessoal das oferendas, de joelhos, arrastam os devotos como penitentes pela igreja dentro, obrigam-se a subir ou a descer escadarias até 68 degraus como as do Monte e rampas de torturantes empedramentos.” (PEREIRA, Ilhas, II, 494-504). Devido a esta tradição, foi construída ao lado da igreja uma hospedaria para acolher os peregrinos, a “Casa do Romeiro”, espaço que foi transformado, recentemente, numa Casa de Cultura. Atualmente ainda são muitos os peregrinos que dormem debaixo das latadas (parreiras de uvas) ou dentro da igreja. Procurando-se manter viva esta tradição, na segunda- feira que se segue ao arraial realiza-se na igreja matriz da Ponta Delgada uma Missa de Acção de Graças, após a qual muitos fiéis deslocam-se até o Sítio do Chão dos Louros para fazer um piquenique, no local onde antigamente os romeiros paravam para comer e descansar. À noite a festa animava-se com o tradicional arraial. Quando a fadiga os impedia de continuar a folia, os romeiros dormiam nas bermas dos caminhos, no interior da igreja, debaixo das latadas ou nas “Casas dos Romeiros”. Este costume de pernoitar no local da festa conduziu à construção destas casas, junto de algumas igrejas, em locais de grandes romarias, nomeadamente em Câmara de Lobos, Monte, Santo António da Serra, Porto do Moniz, Caniçal (Piedade) e Ponta Delgada. Estes edifícios foram transformados ao longo do tempo, adquirindo outro uso, ou simplesmente desapareceram. A casa dos romeiros, no Monte, já existia no final do século XVIII e foi declarada propriedade do Concelho em sessão camarária a 31 de Maio de 1822. Cerca de vinte anos mais tarde, há notícia de que terá sido decidido em sessão camarária erguer um edifício junto à igreja do Monte “para asilo dos viandantes e para recolher as bestas”, o qual não se sabe ao certo se foi construído. (MENESES, Elucidário, Terceiro, 222). Após a festa religiosa, ou desde a manhã desse dia, os romeiros regressavam às suas freguesias de origem, a pé. Eduardo C. N. Pereira faz uma descrição pormenorizada dos romeiros, em tempos idos: os homens levam “enfeitadas as copas dos chapéus com rosários de peras secas, registos bentos, ramalhetes de manjerico e outras típicas lembranças; transportam os cestos dos farnéis ao ombro suspensos da asa pelo bordão; amarradas à tampa dos cestos, por vezes, as botas e, por cima, o xaile da mulher, a tiracolo uma enfiada de bonecos de massa de milho açafroada. As mulheres o lenço descaído sobre a nuca, rosários de peras ou bonecos a tiracolo, arrecadas, cruzes, cordões de ouro e filigrana enrolados no pescoço e alongando-se sobre o tronco, vestido arregaçado em suspensão da cintura a mostrar folhos e arrendados da sobressaia, xaile dobrado ao ombro e haste na mão. (…) As flores e registos da romaria conservam-nos como bentas ou sacramentais todo o ano. Atribuem-lhes a virtude de aplacar tempestades, livrar de maleitas homens e animais, enriquecer os campos de colheitas e searas, atrair ao mundo paz, fortuna e alegria.” (PEREIRA, Ilhas de Zargo, II, 503). A festa litúrgica do Bom Jesus, padroeiro da Ponta Delgada, é celebrada com uma Missa e procissão no dia 1 de Janeiro. No entanto, devido ao facto de essa época do ano não ser propícia à realização do arraial, este foi transferido para o 1º fim de semana de Setembro, em simultâneo com a Festas do Santíssimo Sacramento. O que distingue esta romaria é, precisamente a componente profana, ou seja, a dimensão e animação do arraial. Segundo Pierre Sanchis, “esta palavra portuguesa que, na origem, designava um acampamento militar, tornou-se hoje em dia, em Portugal, a concretização e o símbolo privilegiado da festa popular e singularmente da festa de romaria”. A romaria é vivida como “festa” e o “arraial” confunde-se com a “romaria”, tornando-se ténue a distinção entre “sagrado” e “profano”. Como refere o autor, “ir ao arraial ou fazer um arraial, é equivalente a ir à festa ou realizá-la de repente. Mas acentuando o aspecto a que chamaremos – já que é necessário dar-lhe um nome – profano.” A festa apodera-se do “espaço sagrado” à volta do santuário e “o espaço de sociabilidade trivial – praça, rua principal, passeio – é transfigurado por um dia, proporcionando um encontro dos homens fora das condições habituais. O arraial-espaço é assim lugar de uma socialização intensa mas fugaz, dominada pela liberdade relativamente às regras, a ausência de trabalho, a gratuidade”. Reportando-se à realidade em diferentes zonas do nosso país o autor refere que “por vezes - cada vez menos - toda a ornamentação será fruto de um trabalho comum das famílias ou simplesmente da juventude, trabalho que ocupará os serões durante largas semanas, prolongando assim, mas na gratuitidade de uma preparação festiva, a antiga tradição das reuniões familiares em que se fiava o linho ou desfolhava o milho, tradição hoje desaparecida e que, por ser ocasião de encontros e de jogos eróticos entre jovens dos dois sexos, era frequentemente considerada como suspeita pela igreja. Pode mesmo não faltar o aspeto agonístico, com o concurso das ruas ou de bairros”. (SANCHIS, Arraial, 141-143) Todo este ritual de preparação do arraial está ainda muito presente na festa da Ponta Delgada, na ilha da Madeira, iniciando-se na última semana de agosto, quando o povo dos onze sítios da freguesia sobe à serra para apanhar buxo, louro, verduras e flores, para a decoração dos “arcos de triunfo” e dos mastros das bandeiras. Desde tempos imemoriais que as plantas têm um lugar especial na vida dos homens. Já os povos pré-cristãos utilizavam-nas nos cultos, pois consideravam que possuíam poderes mágicos. Simbolizavam a imortalidade, a fertilidade, a abundância e a morte. Eram também utilizadas para curar, afugentar os maus espíritos e nos ritos de passagem, do nascimento à morte. O trajeto até à igreja é dividido em “cantões” e cada sítio ornamenta o seu espaço na rua, rivalizando uns com os outros. A zona junto à igreja é ornamentada uniformemente, enquanto os diferentes cantões, que são da responsabilidade dos naturais de cada sítio, apresentam uma variedade de formas e cores. A preparação do arraial na Ponta Delgada começa, assim, muito tempo antes da sua realização, com a apanha do louro para, como diz o povo, “vestir” os mastros das bandeiras e os travessões, nos quais são depois colocados cordões de flores. Nos sítios localizados na parte mais alta da freguesia, o louro é apanhado na própria zona, num local e os mastros são ali forrados. Os residentes dos outros sítios vão ao Chão dos Louros fazer o corte dos galhos e fazem a ornamentação dos mastros depois de colocados na vila. Os homens, munidos de uma podoa, trepam os loureiros, cortam os galhos, amarram-nos em molhos, os chamados “maranhos”, os quais são seguidamente transportados às costas pela vereda. Após o corte, homens e mulheres “vestem” os mastros e travessões. Os ramos de loureiro são amarrados em volta dos mastros de madeira, com o auxílio de fios de espadana, uma planta resistente. Enquanto trabalham, homens e mulheres cantam e dançam, para aliviar o esforço despendido. A festa ali já começou. Dezenas de pessoas reúnem-se também nas casas, confecionando as flores de plástico que vieram substituir as de papel de seda que se utilizavam antes. Antigamente, estes serões eram aproveitados pelos mais jovens para namorar, pois eram poucas as ocasiões em que as raparigas saíam de casa. Atualmente são as senhoras mais velhas que mantêm a tradição. Todos os anos renovam a morfologia e escolhem diferentes cores, dando aso à sua criatividade. A despesa com a confeção destas flores é suportada pelos residentes e a das bandeiras fica a cargo das costureiras do sítio. Antigamente a ornamentação das ruas com as chamadas “verduras” era muito bem preparada. Além dos mastros forrados com louro e murta, em diversas localidades confecionavam-se arcos de murta, designados popularmente por “portões”, nas entradas principais das vilas, tradição que se perdeu no tempo. A ornamentação do adro da igreja e vias públicas com bandeiras, os arcos de verduras e flores e os cordões de iluminação multicolor são uma constante dos arraiais em todas as localidades madeirenses. Os rituais considerados profanos têm o seu auge no arraial: ali se troca, compra, vende, come, bebe, dança, canta e luta, estabelecendo-se laços sociais, comerciais e afetivos. Nas bermas da estrada e junto ao adro da igreja montam-se as denominadas "barracas". Estes caramanchões de louro fornecem o vinho "seco" ou "barato", o pão e a carne para as tradicionais "espetadas", ou seja, a carne de vaca cortada aos cubos, espetados num pau de louro, temperada com louro, alho e sal e assada em braseiros ao ar livre. Nesta altura são abatidas muitas de cabeças de gado. [caption id="attachment_2828" align="alignleft" width="225"] As Bonecas de Massa de Salomé Teixeira 1, Fotografia da autoria de Florêncio Pereira.[/caption] A carne é acompanhada com o “pão de casa” ou o “bolo do caco”. O primeiro, também designado de “pão de trigo da terra”, tratava-se do pão de fabrico caseiro, confecionado com farinha de trigo, que antigamente era moída nos moinhos de mão, nas unidades domésticas, ou nos moinhos de água e que variava de forma, de localidade para localidade: fechado no Norte e nas costas a Oeste, arredondado no concelho da Ponta do Sol ou alongado, noutras localidades. Em algumas freguesias da ilha da Madeira e do Porto Santo, amassava-se também o pão com uma mistura de farinha de trigo e de cevada. Na preparação do “bolo do caco”, a massa era preparada de forma a ficar mais mole e menos lêveda que o pão, era-lhe dada uma forma redonda e achatada e era cozido num “caco” ou numa frigideira de barro, abafado com cinza ou em lume vivo, ou em cima de uma pedra de tufo, aquecida no forno. No final tostavam-se as bordas na cinza quente ou nas brasas. Para acompanhar o vinho, era comum ser servido o chamado "dentinho": cebolas miúdas de escabeche (curtidas em vinagre, pimenta e sal e usualmente golpeadas em cruz), tremoços, iscas de peixe ou de fígado de vaca e o atum salgado ou fresco, em molho de azeite, vinagre de vinho, alho e pimenta (o chamado "molho de vilão"). Além das barracas de comes e bebes ali encontravam-se também os vendedores com as frutas da época, arrumadas em cestos de vime ou de cana de roca - os chamados "balaios" - e variados tipos de doçaria de confeção caseira, expostos nos cestos ou em tabuleiros: cavacas, bolos e rebuçados, embrulhados em papel branco, vendidos avulsos ou envolvidos em papéis coloridos e dispostos em colares, que os romeiros ostentavam ao pescoço. [caption id="attachment_2852" align="alignright" width="225"] As Bonecas de Massa de Salomé Teixeira 2, Fotografia da autoria de Florêncio Pereira.[/caption] As figuras de maçapão ou bonecas de massa, como eram designadas pelo povo, faziam parte deste leque de doces. Presenças obrigatórias nos arraiais, estas figuras eram exibidas pelos romeiros, sendo colocadas nos chapéus, penduradas nos colares de rebuçados ou transportadas na mão por crianças e adultos. O uso de figuras rituais modeladas em massa de pão remonta à Antiguidade. Usualmente associadas a rituais de fertilidade, ao culto dos mortos ou a rituais agrícolas, relacionados com a regeneração e proteção das sementeiras, estes “bonecos comestíveis” ocupam um lugar muito específico entre a doçaria e os pães figurativos, tendo sido o seu fabrico muito comum na Idade Média. [caption id="attachment_2855" align="alignleft" width="225"] As Bonecas de Massa de Salomé Teixeira 3, Fotografia da autoria de Florêncio Pereira.[/caption] Em Portugal a par da doçaria conventual, amplamente difundida a partir do século XVI, surgiu também uma outra, de caráter profano, comercializada nas romarias pelos vendedores ambulantes, na qual se incluía vários tipos de doces e pão, cuja morfologia variava de região para região. As suas formas iam desde figuras antropomórficas, a figuras relacionadas com a flora e a fauna ou inspiradas em motivos populares, nomeadamente o coração, símbolo muito enraizado na cultura popular portuguesa. Desconhece-se ao certo a origem deste figurado de maçapão vendido no nosso arquipélago, por altura das Romarias, nos chamados arraiais. É no entanto provável que tenha sido introduzido pelos primeiros colonos e se tenha transformado, ao longo do tempo, pelas mãos e criatividade das nossas artífices, distinguindo-se pelas suas originais formas e cores. As figuras produzidas são morfologicamente variadas e possuem diferentes dimensões: o casal, inspirado na figura humana feminina e masculina, símbolo de fertilidade e fecundidade, o galo, que simboliza a vigilância e o trabalho e relaciona-se com cultos ancestrais de proteção na doença, as pulseiras ou argolas, símbolos do eterno retorno e da eternidade e os cestinhos encanastrados. Salomé Teixeira, natural do Sítio da Mãe de Deus, freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, dedicou toda a sua vida à produção destes artefactos, tendo aprendido o ofício com a sua mãe. Esta atividade artesanal sobreviveu, nesta família, ao longo de várias gerações. A D. Ludovina, uma prima desta artífice, e as suas três filhas, Felicidade, Glória e Trindade, naturais do Sítio dos Barreiros, na mesma freguesia, também se dedicaram durante muitos anos a este ofício. Todas as fases de fabrico exigiam muita habilidade, adquirida ao longo de muitos anos de aprendizagem no seio familiar: havia que preparar a massa, tendê-la, modelar as figuras, ornamentá-las e cozê-las. As matérias-primas utilizadas nestes artefactos eram farinha, água e fermento para fazer a massa, corante de ovo para lhes dar cor, papel de seda azul e vermelho para ornamentar as figuras e sementes de bananeira de jardim e de cebolinho para colocar nos olhos dos bonecos e passarinhos. Estes elementos permaneceram até os dias de hoje, afirmando-se quase como um “símbolo” destas festividades e ocupando um lugar de destaque no nosso artesanato tradicional, podendo esta ser considerada uma das utilizações mais interessantes dos cereais na produção artesanal madeirense. Os cereais foram, aliás, uma matéria-prima muito utilizada na produção artesanal. Além da farinha (de trigo) usada na confeção destas “bonecas”, aproveitava-se também a palha para a produção de cestaria e confeção de chapéus. Mais recentemente a artífice Conceição Ornelas, natural do concelho de Santana, introduziu também a palha de milho na produção artesanal madeirense, confecionando figuras inspiradas em profissões tradicionais, figuras de presépio e outros artefactos. Além dos vendedores de produtos da terra e de doces existiam ainda nos arraiais os bazares de comércio dos vendilhões, que comercializavam variados artefactos: alfaias agrícolas de fabrico local (enxadas, podões e foices da autoria dos ferreiros da ilha), utensílios domésticos de fabrico artesanal, usualmente de madeira ou folha-de-flandres (estes últimos concebidos pelos picheleiros locais), cestaria em vime, palha de trigo ou cana de roca e ainda brinquedos, à semelhança das populares feiras de Portugal Continental. Os mercados e feiras existentes em todo o país têm frequentemente a sua origem ligada a estes vendilhões das romarias. A música é outra componente da animação deste “espaço”. Para além da banda filarmónica - elemento sempre presente - existiam os “brincos”, ou seja, as danças e cantigas ao som dos instrumentos tradicionais, nomeadamente a harmónica, os pandeiros e as castanholas e os instrumentos de corda como a viola, a “braguinha” ou o “rajão”, tendo estes três cordofones desempenhado um importante papel na música de tradição popular madeirense. “Abrem-se pequenas rodas no meio das quais um ou dois pares executam danças de coreografia regional, enquanto os tocadores entre si ou alternadamente com algum dos circundantes do seu grupo glosam um mote, cantando ao desafio” (PEREIRA, Ilhas, 498). A estas cantigas ao desafio dá o povo o nome de despiques. O “brinquinho” ou “bailinho”, designações populares utilizadas na Madeira, é um idiofone misto de concussão direta, composto por um conjunto de bonecos em pano (usualmente sete figuras, masculinas e femininas), trajando indumentária tradicional, portadores de castanholas nas costas e fitilhos, dispostos na extremidade de uma cana de roca, em duas ou mais séries circulares, de diâmetro desigual e encimado por uma destas figuras. É ornamentado, ainda, com tampas de garrafas (caricas), que também funcionam como castanholas. O tocador segura no cabo imprimindo movimentos verticais (através do arame no interior da cana), que fazem tocar as castanholas. É utilizado, usualmente, para marcar compasso, sendo o seu uso mais comum entre os grupos de folclore da Região. No entanto, também apareciam isolados, pelas mãos do povo, nos arraiais. O termo “brinco”, atribuído ao costume do povo de formar rodas nos arraiais (para tocar, cantar e dançar), estará provavelmente relacionado com a designação deste instrumento. Embora a sua origem seja incerta, este instrumento poderá ter sido trazido para o arquipélago, pelos primeiros colonizadores, estando provavelmente relacionado com um instrumento utilizado nas Regiões do Minho e do Douro: a “charola” ou “cana de bonecos”. Os instrumentos musicais utilizados no arquipélago foram, aliás, na sua maior parte, introduzidos pelos primeiros colonos. É o caso da “viola de arame”, da “braguinha” ou “machete”, da rabeca ou violino, da harmónica, do bombo, do reque-reque, do pandeiro ou das “tréculas”. Segundo alguns autores existem, no entanto, instrumentos populares que podemos considerar como caraterísticos do arquipélago da Madeira: o “rajão”, umas castanholas peculiares conhecidas como “castanholas da Tabua” e o “brinquinho”. O “rajão”, designação utilizada no arquipélago desde o século XIX, trata-se de um cordofone de cordas dedilhadas e pertence à família das “violas de mão”. Em relação a todo o território português parece só ser na Madeira que é utilizado este tipo de instrumento, embora segundo alguns autores já tenha existido no continente português um instrumento com caraterísticas semelhantes. O “rajão” e a “braguinha” eram utilizados individualmente por tocadores populares espontâneos nas festas e arraiais da Madeira e Porto Santo, grupos de folclore, com a função de acompanhar todas as danças e cantigas tradicionais, no despique em ritmo de “bailinho” e no “charamba”, assim como, recentemente, por grupos de adaptação musical tradicional (Xarabanda, Banda d’Além, Encontros da Eira, Si que Brade e tunas universitárias). (CAMACHO; TORRES, Instrumentos, 2006) A música, os repiques do sino e os estampidos de morteiros são os sons que identificam estas festas. Ao longo do dia o povo visita o templo, reúne-se no adro da igreja ou percorre as ruas circunvizinhas, visitando os bazares, comendo, bebendo e gozando de toda esta animação. À noite é lançado fogo-de-artifício e o arraial mantém-se animado, até de madrugada, com as pessoas a percorrerem as ruas da freguesia, engalanadas de flores e luzes multicolores. O chamado “fogo preso” muito apreciado em toda a ilha era igualmente presença obrigatória nos arraiais. Antigamente e Em certas ocasiões, era comum antigamente expor o fogo num local público, organizando o povo um cortejo, acompanhado pela banda, para transportá-lo até o local do arraial. Ocupando um lugar de destaque nos festejos, a sua queima tinha início na véspera da festa, ao meio-dia, com as “girândolas” de morteiros. À noite, a queima do fogo preso constituía um verdadeiro espetáculo de luz e de cor. Os pirotécnicos, usando a sua imaginação, apresentavam diversas figuras, intervaladas de peças de música, para alegria dos locais e dos milhares de forasteiros das povoações circunvizinhas: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jactos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas”. Naves artilhadas, o soba Gungunhana com suas sete favoritas, castelos de ameias roqueiros e outras recordações históricas completam o elenco pirotécnico. Termina o espetáculo por uma apoteose de luz ao patrono da festa, resplandecendo a sua imagem dentro de um nicho emoldurado em arabescos duma policromia deslumbrante.” (PEREIRA, Ilhas, II, 490) [caption id="attachment_2840" align="alignleft" width="199"] Uma salva de fogo, Arraial madeirense.[/caption] Existiram muitas fábricas, espalhadas pelos diferentes concelhos da ilha, que fabricavam o fogo artesanalmente. Atualmente apenas permanece uma em funcionamento, a fábrica de fogo da empresa “Pirotecnia Batalhense”, sediada no Sítio do Lombo do Doutor, no concelho da Calheta. Segundo o “fogueteiro” e único trabalhador que permanece naquela unidade de fabrico artesanal, embora ainda sejam encomendadas figuras como o “velho” ou a “velha”, a “roda manhosa” ou a “girândola”, o fogo preso mais utilizado são as “salvas” de foguetes. O “fogueteiro” continua, no entanto, a ter um papel preponderante no arraial. A cadeia operatória do processo de fabrico artesanal dos foguetes é, como descreveu resumidamente José António Martins, pirotécnico daquela fábrica, muito minuciosa e exige um trabalho árduo, atento e especializado: “há que endireitar as canas, por ação do calor, preparar o fio com alcatrão e a guia com pólvora, confecionar os diferentes tipos de pólvora na oficina de têmperas, carregar os canudos na máquina ou no toco de carregamento e furá-los, preparar o chamado pó de vela, cuja receita se mantém em absoluto sigilo, fazer os canudos e a caixa para a bomba com o auxílio de fôrmas e da antiga guilhotina e amarrar a caixa e o canudo à cana”. A expressão popular de que “as vésperas são melhores que as festas” traduz a importância deste ritual profano – o “arraial” – intimamente associado a estas festas em honra de uma divindade, e que a par da sua fé e devoção, o povo manteve, durante séculos, quase inalterado na sua essência. No “espaço da festa” convivem, lado a lado, o profano e o religioso, numa amálgama de rituais que o povo teima em preservar e que é vivida também pelos jovens, que fizeram “deles” a tradição dos mais velhos. Apesar das alterações introduzidas no tempo e no espaço, nomeadamente o envelhecimento da população, o abandono dos campos ou a proliferação das novas tecnologias e dos novos estabelecimentos de diversão noturna, que vieram banalizar o conceito de festa, as romarias e os arraiais subsistem. As festas da Senhora do Loreto, no concelho da Calheta, a de Nossa Senhora do Livramento, na freguesia do Caniço e do Curral das Freiras, e a de Nossa Senhora dos Remédios na Quinta Grande são festas referidas também por alguns autores como sendo motivo de “concorridas romarias”. Na obra de referência Elucidário Madeirense, para além das romarias que descrevemos, os seus autores enumeram ainda outras festas religiosas: Todas as freguesias têm as suas festividades religiosas, revestindo particular brilhantismo as do orago e as do Santíssimo Sacramento, mas destas festividades as que dão motivo a concorridas romarias são as seguintes: a de Nossa Senhora do Monte, a 15 de agosto, a do Senhor Jesus da Ponta Delgada, no primeiro domingo de setembro, a da Senhora do Loreto a 8 de setembro, a do Senhor dos Milagres, em Machico, a 8 e 9 de outubro, a da Piedade, no Caniçal, no terceiro domingo de setembro, a de Nossa Senhora do Faial, a 8 de setembro, a de Nossa Senhora do Livramento, no Caniço, no segundo domingo de setembro, a de Nossa Senhora do Livramento, no Curral, no último domingo de agosto, a de Nossa Senhora dos Remédios, na Quinta Grande, no segundo domingo de setembro, a da Camacha, na primeira Oitava do Espírito Santo, a de Santa Maria Madalena, no Porto Moniz, a 22 de julho, a de S. Pedro, na Ribeira Brava, a 29 de junho, a de S. João, no Funchal, a 24 de junho, a de Santo Amaro, em Santa Cruz, a 15 de janeiro, e a de Santo António da Serra, a 13 de junho. (SILVA; MENEZES, Elucidário, III, 221) Bibliog.: impressa:CÂMARA, Teresa Brazão, Bonecos Comestíveis de “Maçapão", Revista Atlântico, Nº 7, Outono de 1986, pp.218-226; CRISTOVÃO, Carlos, Elucidário de Machico, 2ª ed., Câmara Municipal de Machico, 1981; MONIZ, Roberto, Cordofones Tradicionais Madeirenses: Braguinha, Rajão e Viola de Arame, Col. Cadernos de Folclore, nº1, AFERAM – Associação de Folclore e Etnografia da Madeira, Funchal, 2011; PEREIRA, Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, 4ª edição, 2 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1989; RIBEIRO, João Adriano, Ribeira Brava. Subsídios para a História do Concelho, Câmara Municipal da Ribeira Brava, 1998; SANCHIS, Pierre, Arraial: Festa de um Povo, as romarias portuguesas, Publicações D. Quixote, Col. Portugal de Perto, Lisboa, 1983; SILVA, Padre Fernando Augusto da Silva e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, Fac-símile da Edição de 1940-1946, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, Direção Regional dos Assuntos Culturais, 1998; VISCONDE DO PORTO DA CRUZ, Crendices e Superstições do Arquipélago da Madeira, 1954; Não publicada: CAMACHO, Rui; TORRES, Jorge, Instrumentos Musicais da Tradição Popular Madeirense, Associação Cultural e Musical Xarabanda, 2006 (texto policopiado); FERREIRA, César; Catálogo da Exposição Festas e Romarias da Madeira, Museu Etnográfico da Madeira, 2006 (texto policopiado); 1º Mostra Instrumentos Musicais Populares: Recolha, Restauro, Construção [catálogo da exposição]. Funchal: Direcção Regional dos Assuntos Culturais/Câmara Municipal do Funchal – Serviços Culturais, 1982. Lídia Góes Ferreira (atualizado a 13.07.2016)
alcoolismo, prevenção e seu tratamento na madeira
Desde os anos 70 do séc. XX que a expressão “problemas ligados ao álcool” quase destronou o termo “alcoolismo”. Com efeito, o termo tem recebido vários sentidos, desde vício e hábito moral até doença – não doença enquanto simples condição orgânica, mas também desordem de comportamento. O termo “alcoolismo” foi introduzido por Magnus Huss em 1849 para designar o abuso, a síndroma ou o conjunto de doenças do álcool. Durante algum tempo, manteve-se a dúvida sobre se a doença era a desordem do abuso ou as consequências daí derivadas. Por meados do séc. XX, com E. M. Jellinek, começou a distinguir-se a propensão para abusar do álcool e as doenças de dependência de repetição de consumo. Cerca de 1950, entre os peritos da OMS, questionava-se se o alcoolismo seria uma desordem patológica distinta e anterior ao consumo. Em 1976, a Sociedade de Médicos Americanos considerou-o uma perturbação em si e não um sintoma de distúrbio de personalidade, incluindo-o no modelo médico. A OMS, em 1977, porém, objetou que há duas condições a distinguir: a dependência e a síndroma, por um lado, e o problema do consumo, por outro; nem sempre os que consomem em excesso são afetados pela doença ou síndroma, e nem sempre se distingue a dependência do simples consumo excessivo. Há consumidores que prejudicam a saúde e desenvolvem problemas de álcool sem serem dependentes. Esta posição foi conduzindo ao modelo biopsicossocial em que se concebem graus variáveis de consumo de risco e de danos do consumo, mesmo sem uma hipotética personalidade alcoólica. O termo “abuso do álcool” deu lugar ao conceito de uso de risco, em referência ao consumo que causa problemas e danos à saúde mental e física, bem como ao bem-estar social, aceitando-se as evidências de que os danos do álcool e os seus custos estão em proporção com o consumo global de um país e não com o número dos hipotéticos alcoólicos. Numa palavra, o consumidor pode beber em excesso porque aprende esse comportamento e o mantém, e não por falta de controlo. Não parece provado que haja duas condições totalmente distintas: alcoólicos e não alcoólicos, nem que haja uma progressiva perda irreversível e total ausência de controlo. É mais adequado dizer que há uma graduação entre consumo opcional e consumo dependente e que se pode passar de graus iniciais de consumo controlado para graus de dependência progressiva, i.e., de um fenómeno assente num modelo moral (de vício), em que os bebedores são responsáveis pelo seu consumo de risco, passando por fenómenos assentes nos modelos médico (doença) e biopsicossocial (misto), até chegar ao fenómeno da síndroma alcoólico de maior dependência e doenças associadas. Os centros de recuperação funcionam à base do modelo psicossocial focado no uso da responsabilidade para reduzir a dependência e aumentar o controlo; e no uso dos recursos espirituais para sair do círculo vicioso da dependência, independentemente do seu grau. Os modelos de autoajuda, como o dos 12 Passos dos Alcoólicos Anónimos, estimulam as motivações espirituais para a reabilitação sem recorrer às ajudas do modelo médico, mas sem as excluir para os que as desejem ou delas precisem. Aspetos históricos da produção de álcool na Madeira O alcoolismo na Madeira está ligado a duas produções agrícolas de primeiro plano: cana do açúcar e vinha. Estas culturas ocupam um lugar cimeiro na sua economia desde o povoamento no séc. XV, em que as primeiras plantas da cana, originárias da Ásia, terão sido trazidas por genoveses do sul da Itália para o Algarve e daqui para a Madeira; com efeito, o açúcar já seria importado do Oriente cerca do séc. XIII. A cana desenvolveu-se bem no clima da Ilha e a sua cultura ocupou rapidamente os terrenos disponíveis em detrimento da produção de cereais, devido ao facto de o açúcar ter mais exportação e haver muitos interesses envolvidos no exterior. Cerca do ano 1500, a Madeira chegou a ser a maior exportadora de açúcar, em especial para o Norte da Europa. A cana de açúcar tornou-se muito apreciada para produzir caldo ou suco, e, a partir deste, o açúcar e o melaço ou mel de cana (ou produto residual do suco não cristalizável, usado na pastelaria). Tanto do suco fermentado como do melaço residual, também fermentado e destilado, produz-se álcool e aguardente. Do caldo de cana, após fermentação, resulta uma bebida alcoólica, o vinho de cana ou garapa, a qual, se for destilada, produz álcool e cachaça ou aguardente de cana. Os resíduos podem ainda ser destilados para produzir etanol de baixa qualidade, com risco de ter metanol, que por vezes se usa para fabricar rum. O caldo de cana, além de água, sacarose e outras substâncias, é rico em minerais, ferro, cálcio, potássio, magnésio, cloro e vitaminas dos grupos B e C. Após um século de expansão, a produção da cana de açúcar na Madeira entrou em crise no séc. XVI, com a concorrência da sua produção no Brasil com mão de obra escrava, que tornou a produção de açúcar mais económica do que na Madeira. Esta crise fez aumentar o cultivo da vinha e da produção de vinhos e de aguardentes de uva, mantendo a Ilha com níveis altos de bebidas alcoólicas para exportar e consumir internamente. Com efeito, tanto a produção de cana de açúcar como a do vinho foram dando razões para a Madeira, no séc. XIX, se vir a chamar “a ilha da aguardente”, no sentido de grande produtora e exportadora, mas também de grande consumidora, com todas as consequências daí derivadas para a saúde dos consumidores. Houve mesmo como que um casamento entre a aguardente de cana e a do vinho, em que parte da aguardente de cana era usada para fortalecer o vinho. Após a redução da cultura da cana foi preciso importar aguardente para tratar o vinho e este ser exportado; importava-se dos Açores e do estrangeiro, em forma de melaço ou de ponche, termo a que são atribuídas duas etimologias, e que deu origem à bebida poncha, muito popularizada na Madeira em quase todos os bares. O nome teria vindo do inglês punch por via hindi (pãch), por este licor ser feito com cinco ingredientes: chá, açúcar, aguardente (vinho ou cerveja), canela e limão; e por via do sânscrito pãnca, e do grego penta (cinco). Outros, porém, defendem que o termo venha dos barris cheios de ponche ou melaço da América Central, os quais eram marcados com furos (punchs ou pegas) para os manusear. Há uma vastíssima investigação e documentação histórica disponível sobre estas duas produções, a da cana de açúcar e a da vinha, suas exportações, comercialização, valor económico, emprego de mão de obra escrava na produção e laboração dos engenhos e alambiques, mas não deixa de ser, contudo, uma investigação incompleta, não global, como veremos. Os consumos internos dos derivados da cana de açúcar e da vinha entram menos nas estatísticas económicas que as exportações. A partir do séc. XVI, e mais ainda nos séculos seguintes, a Madeira começou a ter visitantes de toda a Europa; esse fluxo turístico concorreu para aumentar a exportação e o consumo interno de bebidas alcoólicas. No séc. XIX, veio juntar-se a este fluxo de visitantes o turismo da saúde para a cura da tuberculose e, posteriormente, no séc. XX, o turismo de massas. Estes fatores concorreram duma maneira ou doutra para multiplicar a produção e os locais de consumo. Na segunda metade do séc. XIX, as vinhas foram dizimadas pela filoxera e deu-se o recurso à produção do chamado vinho americano, morangueiro ou de cheiro, de produtores diretos resistentes às pragas. Este vinho, porém, de baixo teor alcoólico e altas percentagens de tóxicos (pectidina, malvina e metanol), terá concorrido para aumentar os danos infligidos aos consumidores (incluindo aos nascituros), como sejam as deficiências mentais. O facto de muitos produtores disporem dos seus engenhos e alambiques caseiros facilitou os consumos de bebidas alcoólicas em tempos em que os hábitos de beber em excesso eram considerados apenas vícios morais e não graves atentados à saúde. A pouco e pouco, os problemas ligados ao consumo de bebidas alcoólicas adquiriram mais visibilidade e preocupação. Dados históricos do alcoolismo na Madeira Em meados do séc. XIX, a Madeira passou por uma situação de carestia e pobreza agravada por problemas de álcool associados aos excessos de consumo. As condições sociais de carestia e miséria degradaram-se com o aumento dos expostos, da prostituição, da criminalidade, bem como com o aumento dos miseráveis e dos afetados pela fome. O Elucidário Madeirense, no artigo ou entrada “Junta Agrícola”, apresenta uma síntese do problema alcoólico na história da Madeira em que aponta aquele como causa do grande número de pessoas com perturbações mentais. Apesar da visibilidade do problema e da preocupação de alguns, não tem sido investigada suficientemente a relação entre a história económica da Madeira, a produção da cana de açúcar e da vinha, e os danos e custos do consumo de álcool. As investigações das relações entre estas duas produções, cana e vinha, enquanto relacionadas e enquanto causas do aumento excessivo do consumo alcoólico, ficaram quase sempre na sombra até aos anos 30-50 do séc. XX. Houve algumas tentativas de controlo de produção e comercialização internas motivadas pela preocupação com a saúde das populações; foi então sublinhado “que a loucura, a tuberculose e outras doenças tomavam incremento alarmante por ingestão abusiva de aguardente, não só dentro da quantidade estabelecida por Lei, em rateios a todas as fábricas, mas por excesso clandestino daquele produto” (PEREIRA, 1989, I, 547-548). Mantiveram-se, contudo, conhecimentos vulgares e fragmentados na população sobre esta relação, apesar da constante histórica de doenças associadas ao álcool. Começaram a multiplicar-se os colóquios especializados sobre o consumo alcoólico, mas só mais tarde se descobriram evidências de que o consumo, mesmo em pequeníssimas quantidades, nomeadamente durante a gravidez e a amamentação, acarreta danos irreversíveis para o desenvolvimento dos nascituros e concorre para as deficiências mentais. A fome e a miséria, por outro lado, estiveram sempre ligadas ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas como foi evidenciado já no séc. XIX. Em tal clima de crise, pobreza e miséria, terão aumentado o número de pessoas com distúrbios psíquicos, problemas e doenças mentais ligadas ao álcool, apesar de alguns alertas e preocupações sobre a falta de respostas para reduzir as consequências. O aumento dos problemas de saúde e doenças mentais no séc. XIX, segundo o Elucidário Madeirense, era atribuído ao excesso de álcool, proveniente das 50 fábricas que inundavam o mercado e levavam ao “definhamento da raça”, relativamente à “estatura, constituição orgânica e forças musculares” (SILVA e MENESES, 1921-1922, II, 26), numa decadência que os médicos verificavam na seleção para o serviço militar. Estas observações quase antecipam os estudos sobre sintomas e perturbações dos nascituros atribuídos ao consumo de álcool pelas mães grávidas, a que nos referimos e sobre as quais se foram a acumular evidências na União Europeia de que as crianças e os adultos com estas sequelas ascendem no séc. XXI a cerca de cinco milhões. Logo que a Casa de Saúde do Trapiche começou a funcionar, em 1924, foi objeto de uma reportagem em quatro artigos no Jornal da Madeira que terá sido levada a cabo por Vieira de Castro, Armando Pinto Correia e Eduardo Pereira. A reportagem de 12 de agosto de 1924 apresenta um quadro deprimente relativo ao alcoolismo dos doentes observados. Transcrevemos algumas frases: “grandes vítimas do alcoolismo que bestializa, desequilibra e escavaca a população da Madeira. Corpos sem alma, cabeças deformadas, risos sem razão, gestos autómatos e línguas de trapos – a maior parte dos internados do Trapiche é feita de labrostes das aldeias, analfabetos devastados pelas bebedeiras de aguardente [...] e põe-nos ao nível dos animais” (GAMEIRO, 2014, 147-148). O grogue comera-lhes a memória. Esta não é a única voz, por esta altura, a levantar-se contra um dos maiores problemas de saúde da população da Madeira. A revista Vida Diocesana (21 de maio de 1922) confirma os problemas associados ao álcool existentes na Madeira em 1922, dando a notícia de ter sido criada a Liga Anti-Alcoólica, cujo “único artigo” do regulamento estabelece “abster-se de vinho e aguardente fora das refeições”, e refere a existência da Associação de S. José, cujo presidente era o P.e Casimiro d’Abreu e o vice-presidente o P.e António d’Aquino de Sousa. O regulamento estabelece que por cada infração o associado paga a multa de 5$000. Mais significativa é a carta de D. António Manuel Pereira Ribeiro de 25 de março de 1922, intitulada “Contra o alcoolismo” e dirigida ao clero. O bispo começa por referir o pedido do vice-presidente da comissão administrativa da Junta Geral a pedir a cooperação dos padres “na campanha contra o uso da aguardente, causa do alcoolismo, que é sem dúvida uma das maiores calamidades que de há muito vem afligindo a Madeira”. O bispo recorda e cita a sua “Exortação Pastoral para a Quaresma de 1922”, onde abordara “os quadros de miséria e os males que o alcoolismo acarreta à saúde de cada um” (RIBEIRO, Vida Diocesana, 21 maio 1922, 4) e os males de ordem doméstica. Passa, a seguir, a motivar a ação dos sacerdotes contra esses males, recorrendo a razões morais de temperança, para evitar excessos da comida e da bebida. Após apresentar a eficácia das associações de temperança de índole religiosa nos EUA, pede aos párocos que façam uma palestra por trimestre para animar tais associações. Apesar de, em meados do séc. XX, se começarem a multiplicar as advertências de especialistas sobre os danos do consumo de bebidas alcoólicas, os seus alertas raramente chegaram aos governantes e menos ainda ao público em geral, nem tão pouco levaram à adoção de medidas legais de fiscalização para uma redução do consumo. Pelos anos 70 do séc. XX, os dependentes alcoólicos que já eram tratados na Casa de Saúde do Trapiche desde o início, muitos deles em fases precoces que lhes permitiam colaborar na recuperação, começaram a ter tratamento específico e em regime semiaberto, distinto dos tratamentos psiquiátricos, como se verá mais abaixo. Um problema de economia de ganhos e custos As investigações põem em relevo o valor económico das bebidas alcoólicas como fonte de rendimentos pelo consumo interno e pela exportação, mas não as complementam com uma investigação sobre os danos do álcool agravados pelos consumos sem controlo de excedentes de produção a baixos preços e pelo consumo de vinhos e destilados de baixa qualidade em que os tóxicos metanol, pectidina e malvina podem estar presentes. As redes de fábricas clandestinas e toleradas de aguardentes, vinhos e outras bebidas não declaradas, que chegarão a centena e meia, promovem os consumos sem controlo a crianças, jovens e adultos. Também não se tem tomado em devida conta o número exagerado de tabernas e bares, talvez com a maior densidade no mundo, e horários alongados de abertura em que se servem continuamente qualquer tipo de bebidas a clientes de qualquer idade, não raro tentando justificar esta situação com a promoção do turismo. Num artigo de 1983, Armindo Saturnino registava na Madeira 1867 bares ou tabernas, ou seja, um para cada 138 habitantes, detendo o concelho do Funchal, em 1981, meio milhar, que em dois anos aumentaram para 717. Numa zona suburbana desta cidade, num raio de cerca de 500 m, Aires Gameiro contou oito bares em 2014. A norma da idade legal de consumo é permissiva, ambígua e sem controlo; permite-se o consumo a crianças a partir dos 10 anos ou antes; e aos jovens de 16-17 anos só estão proibidos os licores e destilados. Com efeito, verificou-se que os alcoólicos da Madeira consomem mais vinho e que, em 2013, o consumo da cerveja estava em aumento. Nestes anos, o chamado binge drinking dos jovens e adolescentes, que consiste em beber quatro ou mais bebidas numa só ocasião, tornou-se bastante frequente, como se verifica pelos registos anónimos dos recuperados nas reuniões no Centro de Alcoologia S. Ricardo Pampuri da Casa de Saúde do Trapiche; destes, cerca de 20 % começaram a embriagar-se antes dos 15 anos e cerca de 40 % antes dos 20 anos. Já em 1996, a média de idade de consumo para os homens era 16,21 anos (sem distinção do tipo de consumo), valor sucessivamente confirmado. O maior obstáculo a uma política efetiva de prevenção e de redução dos danos do álcool continua a ser a “atitude de avestruz”. Os políticos e governantes focam a sua atenção na investigação económica e alimentam a ilusão de que a produção, a comercialização e o consumo livre de bebidas alcoólicas só traz vantagens, lucros, empregos e turismo. As investigações continuam a não contabilizar os danos do álcool e os seus custos: doenças e seus tratamentos, perdas de emprego e despesas por baixas médicas, os anos de incapacidade que provocam, as mortes prematuras, a violência familiar, e as perturbações causadas pelo consumo de bebidas alcoólicas durante a gravidez e amamentação, como sejam as desordens do espectro alcoólico fetal (que abrangem anomalias estruturais, comportamentais e neurocognitivas), das quais a síndroma alcoólica fetal é a forma mais grave; e ainda os ferimentos e as mortes nas estradas. Em países onde já se fizeram investigações sobre estes custos, os cientistas puderam concluir que os lucros quase não chegam para cobrir os custos visíveis. E ficam ainda por contabilizar os custos invisíveis de sofrimentos, lutos, perdas de familiares, e outras consequências. Os problemas causados pelo álcool poderiam ser contrariados com uma política global de medidas eficazes que reduzisse significativamente os danos causados pelo excesso de publicidade, a fácil acessibilidade, o preço e os impostos baixos, o número dos locais de consumo e o seu período alargado de funcionamento. Não basta tratar os doentes do álcool com as medidas avançadas na Região. Nem bastam as medidas educativas e de sensibilização, embora necessárias, as únicas com que a indústria e o marketing tendem a concordar pondo obstáculos às de controlo e fiscalização. Muitos doentes que recorrem aos tratamentos já o fazem demasiado tarde. No recurso tardio à recuperação, as ajudas quase se limitam a cuidados continuados, quando não quase paliativos. Por falta de uma política global sobre os consumos alcoólicos, continua a verificar-se o panorama deprimente que é descrito por Manuel Gama: “o madeirense bebeu e continua a beber muita aguardente, muito vinho. O vinho seco ainda faz parte de certos contratos de trabalho praticados nos campos. O garrafão tem de estar ali presente. Ainda há quem pense que o vinho dá força para manobrar a enxada, a podoa ou a foice. Há quem se dedique à poncha, à cerveja, ao whisky, até perder o uso da razão” (GAMA, 2015, 12). Trapiche: nome simbólico para o alcoolismo e seu tratamento Trapiche é um sítio a cerca de 450 m de altitude sobre a baía do Funchal, pertencente à freguesia de Santo António, e distando 7,5 km da sede da mesma freguesia. Fernando Augusto da Silva diz que o nome significa armazém; mas em obras antigas da história da Madeira significa engenho, lagar, azenha ou moinho. Os dicionários de grego, latim, espanhol e italiano coincidem e não deixam dúvidas. O termo grego “trapeo” significa pisar uvas, e “trapetós”, moinho de moer azeitona; em latim, “trapetus” é uma mó de lagar de azeite, que na Itália se diz trapetto e na Sicília trappitu poara (para extrair outros sumos de frutos e da cana de açúcar). Em português temos os étimos: trapaça, trapacice, trapalhada, trepidar, tremer, em que está subjacente a ideia de esmagar e enganar; ao passo que trapicheiro tem o sentido de administrador de trapiche/armazém. O sítio do Trapiche está ligado aos engenhos e à produção de bebidas alcoólicas a partir da cana do açúcar e da vinha. Indiretamente, relaciona-se com os consumos, eventualmente excessivos, e por isso com as doenças do álcool. Com a implantação da Casa de Saúde, onde se continuou a cultivar cana de açúcar e vinha, o sítio e o nome como que mudaram de significação, tornando-se Trapiche um lugar de saúde para tratamento de pessoas com perturbações mentais e também pessoas vítimas do consumo de bebidas alcoólicas. Além de centro de tratamento, a própria Casa de Saúde Mental constitui um alerta permanente à população da Madeira para reduzir os danos do álcool. Prevenção e tratamento do alcoolismo na Madeira Nos começos do séc. XXI, a Europa continuava a ser o continente com maior consumo de álcool per capita, embora este estivesse a crescer nos países em desenvolvimento. Existem fatores individuais e sociais que condicionam o consumo excessivo de álcool, levando, ou não, à dependência ao fim de algum tempo. Para A. A. Carvalho, após a déc. de 1970, a subida do poder de compra e a liberalização dos costumes contribuíram para a progressiva agressividade das cervejeiras e das empresas de comercialização de bebidas destiladas, criando novos hábitos. O aumento da sociedade de consumo e a globalização fizeram aumentar o leque de bebidas disponíveis e acessíveis concomitantemente com o discurso antiálcool, mal aceite por alguns sectores da sociedade. Expostos ao marketing, os jovens e as crianças, ainda sem maturação biológica, psicológica, social e cognitiva, são especialmente afetados no seu desenvolvimento pelo consumo de álcool. Apesar de o alcoolismo continuar a afetar sobretudo os homens entre os 20 e os 35 anos, nos primeiros anos do séc. XXI era cada vez maior o número de mulheres e de jovens com problemas de dependência. A maioria dos indivíduos tinha o seu primeiro contacto com o álcool na adolescência, antes dos 15 anos, e o pico de consumos ocorria normalmente aos 35 anos. Na Região Autónoma da Madeira, por razões de ordem geográfica, histórica, cultural, social e económica, como ficou exposto atrás, o consumo de álcool era nesta altura muito elevado. Em 1987, oito anos após a inauguração do Centro de Alcoologia S. Ricardo Pampuri, os níveis de consumo eram “da ordem dos 10 litros per capita/ano, sendo o vinho a bebida alcoólica de eleição” (SATURNINO, 1987, 69), níveis mantidos nos primeiros anos do séc. XXI sem mudança muito significativa. Com efeito, a OMS regista para Portugal, em 2010, cerca de 11 l de álcool puro per capita, álcool declarado para maiores de 15 anos, acrescidos de 1,9 l de álcool não declarado. Se, porém, considerarmos o consumo só dos consumidores, excluindo os que não bebem, atinge no mesmo ano 22,6 l per capita, para maiores de 15 anos, sendo 27,1 l nos homens e 16,4 l nas mulheres. Para esse ano de 2010, o vinho continua a ser a bebida mais consumida, seguido da cerveja, enquanto as de menor consumo são as destiladas e outras. Os binge drinkers, que consomem mais de quatro ou cinco bebidas (60 g de álcool puro) pelo menos uma vez ao mês, de entre apenas os consumidores maiores de 15 anos, totalizam 43,6 % de homens e 35,8 % de mulheres. As mesmas estatísticas da OMS em 2010 registam 5,8 afetados por perturbações resultantes do consumo de álcool e 3,1 dependentes. [table id=90 /] Podemos dizer que desde os inícios de funcionamento do Centro de Alcoologia da Casa de Saúde S. João de Deus, em 1980-1982, os elevados consumos de álcool pelos madeirenses têm-se mantido à volta de valores bastante próximos. Convém ter em conta que se trata apenas do álcool declarado, não se conhecendo os consumos de bebidas destiladas e de vinho produzidas clandestina ou privadamente. [table id=91 /] Consumos desta ordem de grandeza afetam a saúde do indivíduo, o bem estar das famílias e das comunidades. Estamos perante graves problemas e danos de saúde pública, sociais e económicos. O consumo está associado a doenças cardiovasculares, oncológicas, neurológicas, mentais e do aparelho digestivo, entre outras. Está ainda associado a cerca de 1/3 dos acidentes rodoviários, a crimes de violência doméstica e social, suicídios, a comportamentos de risco, em particular a doenças sexualmente transmissíveis e a consumos de outras substâncias psicoativas. Os danos referidos têm impactos importantes para os custos dos Serviços Regionais de Saúde, Segurança Social, Emprego, Juventude, Segurança Rodoviária e Ordem Pública. Por tudo isto, as repercussões negativas para a economia da Região, como já expusemos acima, são graves e ainda esperam por investigação adequada e por medidas políticas eficazes que reduzam os problemas de danos e custos. [caption id="attachment_14578" align="aligncenter" width="589"] Fig. 3 – Gráfico do movimento do total de doentes entrados na Casa de Saúde SJD e de doentes do álcool tratados no Centro de Alcoologia da mesma.Fonte: Registos da Casa de Saúde SJD[/caption] Analisando o movimento de doentes entrados para tratamento psiquiátrico na Casa de Saúde S. João de Deus, podemos constatar o número significativamente elevado de doentes com patologia alcoólica diagnosticada, admitidos para tratamento e reabilitação das suas perturbações alcoólicas de saúde e de dependência. Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri A Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri constitui um serviço de prevenção, tratamento, recuperação e reabilitação de homens e mulheres com problemas ligados ao álcool, a funcionar desde a sua criação, em 1980, em edifício próprio, na Casa de Saúde S. João de Deus dos Irmãos de S. João de Deus (presentes na ilha da Madeira desde 1922), localizada no Funchal, sempre tratou alcoólicos desde a sua abertura em 1924. A partir dos anos 70 do séc. xx sentiu-se a necessidade de tratar os alcoólicos separadamente dos outros doentes mentais em instalações para esse objetivo, as quais começaram a ser planeadas pelas autoridades regionais de saúde e pela comunidade dos Irmãos da Casa em 3 de janeiro de 1975. Na ata da reunião da comunidade dessa data refere-se que ia ser construído o novo pavilhão de S. João de Deus para doentes agudos entre o pavilhão de S.to António e o estendal; foi apresentada a proposta de acrescentar mais um piso aos três já existentes desse edifício para a unidade de alcoólicos, a qual foi aprovada por nove votos a favor e um contra; na reunião de 15 de outubro de 1975, já se referia que a máquina escavadora ia começar a preparar o terreno desse edifício, o novo pavilhão de S. João de Deus, o qual foi concluído em 1979. O secretário regional da Saúde, o médico Nélio Mendonça, conhecedor das muitas doenças e problemas familiares, sociais e económicos causados pelo consumo de álcool na Região, apoiou esta iniciativa, e a unidade de alcoólicos foi inaugurada a 5 de novembro de 1979 pelo então presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Cardoso Jardim. Era superior/diretor da Instituição Henrique Alminhas e diretor clínico Armindo Saturnino Figueira da Silva, médico psiquiatra e grande investigador na área da alcoologia e doença mental. Foi designado como primeiro coordenador da unidade o enfermeiro Feliciano Gaita que desenvolveu importante trabalho de ligação com outras coletividades locais. Após quatro anos de funcionamento deu-se o contratempo de ter que fechar o Centro em 31 de março de 1984 por falta de pagamentos das diárias dos doentes pelo Governo regional, conforme contratualizado. Resolvidas as dificuldades, realizou-se a sua reabertura a doentes a 5 de novembro desse mesmo ano, e a reabertura oficial a 25 de novembro de 1985, com a presença do presidente do Governo regional, Alberto João Cardoso Gonçalves Jardim, e vários membros do Governo regional. O presidente do Governo destacou a ação dos Irmãos de S. João de Deus na Região para o funcionamento desta obra e assegurou o seu apoio. Nos 35 anos de funcionamento passaram pelo Centro cerca de dez mil pacientes, homens e mulheres. O Centro estabeleceu inúmeras parcerias com outras instituições, entre as quais o Governo regional da Madeira (entidade financeira responsável), a Universidade da Madeira, a Escola Superior de Enfermagem S. José de Cluny, a Associação Antialcoólica da Madeira, o Serviço Regional de Saúde, a Associação Protetora dos Pobres, a Direção Geral de Reinserção Social, o Centro de Segurança Social da Madeira e a Câmara Municipal do Funchal. Estas parcerias contribuíram para facilitar e multiplicar os serviços oferecidos pelo Centro. As estatísticas do Centro vieram mostrar que o número de entrados por alcoolismo quase iguala o número dos entrados por doença mental. Por exemplo, em 2001 foram respetivamente 279 de psiquiatria para 302 de álcool e 99 toxicodependentes. Como mostra a fig. 4, referente a 2014, a população que mais recorre aos serviços do Centro provém dos principais aglomerados urbanos, Funchal, Câmara de Lobos, Machico e Santa Cruz, que são também os que detêm mais elevado número de estabelecimentos de venda de bebidas alcoólicas. [caption id="attachment_14582" align="aligncenter" width="567"] Fig. 4 – Gráfico de distribuição das pessoas tratadas na Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri segundo a área de residência, no ano 2014d.Fonte: Registos da Unidade de Alccologia SRP[/caption] O Centro dispõe de uma equipa multidisciplinar e funciona em três vertentes: 1. medicamentos de desintoxicação, desabituação física e terapêuticas das doenças associadas ao consumo prolongado; 2. psicoterapias individuais e de grupo com quatro reuniões de grupo diárias de relaxamento, etiologia, psicoterapia de grupo, dimensões espirituais, psicoeducação, autoajuda, desenvolvimento pessoal, sexualidade e alcoolismo e vários tipos de ocupação, em que algumas das sessões são extensivas às famílias; 3. sessões de preparação para pós-alta. A Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri obteve em 2014 a certificação de qualidade pelo referencial internacional EQUAAS, nível ASSURANCE, o que constituiu um estímulo para continuar a responder às necessidades das pessoas com problemas ligados ao álcool e das suas famílias. Em estudo feito nessa data, verificaram-se os seguintes dados: a média de idade dos tratados é de 47 anos (bastante tardia), 17 anos de idade para o início do consumo, e uma média de 28 dias de internamento; desses, 78 % permanecem abstinentes nos 6 meses após a alta, e a taxa de satisfação com os serviços é de 98 %. [caption id="attachment_14586" align="aligncenter" width="589"] Fig. 5 – Gráfico de distribuição das pessoas internadas na Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri de 2000 a 2014.Fonte: Registos da Unidade de Alccologia SRP[/caption] Da análise da fig. 5 observamos grande adesão de homens e mulheres ao tratamento oferecido pelo CRA S. Ricardo Pampuri. O primeiro efeito é deixar de “esconder o problema”, tornando o consumo de álcool uma questão socialmente mais explícita, aberta e manuseável para a enfrentar do ponto de vista terapêutico. Prevenção dos problemas e danos do consumo do álcool A ação da Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri não se tem limitado a tratamentos e reabilitação. Tem organizado por sua iniciativa dezenas de ações de prevenção e educação para a Saúde, reuniões, jornadas, encontros, colóquios e congressos em que se aborda a problemática abrangente dos problemas ligados ao álcool, incluindo a prevenção. Tem igualmente participado e colaborado em numerosas iniciativas doutras instituições. Desde 1979, por exemplo, que os seus técnicos têm participado numa dezena de Congressos de Psiquiatria S. João de Deus, realizados pelo Instituto S. João de Deus e pelas Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, na Madeira e nos Açores, em que um dos temas tem sido sempre os vários problemas ligados ao álcool. Um dos congressos foi comemorativo dos 75 anos da Casa de Saúde S. João de Deus e da Casa de Saúde Câmara Pestana no ano 2000. De entre outros, e de iniciativa do Centro em parceria com a Associação Anti-Alcoólica da Madeira, referimos a festa da Saúde, em 1 de maio de 2002, “inserida numa estratégia de Prevenção Primária do Álcool e das Toxicodependências para crianças, jovens e adultos, em que foi distribuída a Carta Europeia do Álcool da OMS, 1995; o I Encontro de Alcoologia do Centro de Alcoologia Ricardo Pampuri, que teve lugar em 18 e 19 de outubro de 2002; o II Encontro de Alcoologia do Centro de Alcoologia Ricardo Pampuri, comemorativo dos 25 anos do Centro, que teve lugar de 15 a 17 de abril de 2004 e versou sobre os temas: recuperação de alcoólicos e redução de danos em crianças e adolescentes, e durante o qual foi distribuída História Humorística da Carreira do Alcoolismo. Em 16 de novembro de 2007, em parceria com a Comissão Regional Antialcoólica, o Centro colaborou no 1.º Encontro de Alcoologia da Madeira, que pôs em evidência a vulnerabilidade dos jovens perante as bebidas como refúgio, procura de identidade e normalização da imagem. A integração em grupos dos pares consumidores leva a fugir aos problemas familiares, escolares e laborais. Esta vulnerabilidade é agravada pela permissividade e tolerância aos consumos de álcool em que os jovens estão indefesos perante o risco por falta de medidas políticas dissuasoras e de fiscalização. Neste encontro, com efeito, o psiquiatra Luís Filipe Fernandes, recordando os rituais de iniciação dos jovens através de consumo de álcool, apelou à responsabilização da sociedade no seu papel fiscalizador, deplorando que não se faça respeitar a idade legal de consumo de álcool por menores nem as limitações legais para pessoas notoriamente embriagadas. Em 4 e 5 de abril de 2014 realizou-se a 1.ª Convenção de Comportamentos Aditivos e Dependências da Madeira, evento organizado pela Casa de Saúde S. João de Deus, pelo Centro de Alcoologia S. Ricardo Pampuri e pela Associação Antialcoólica da Madeira, com a participação do diretor do Instituto Português da Droga e Toxicodependência e presidente do Observatório Europeu da Droga, João Goulão, e do diretor da Unidade Operacional de Intervenção em Comportamentos Aditivos e Dependências (UCAD) da Madeira, Nelson Carvalho, bem como de representantes do poder autárquico e da comunidade educativa, entre outros. O Centro também tem participado em parceria e colaboração com outras organizações em inúmeras ações sobre os temas da saúde e do álcool. De entre as organizações com que tem mantido parceria em ações pontuais conta-se a EUROCARE (European Alcohol Policy Aliance), a GAPA (Global Alcohol Policy Aliance), a SAAP (Sociedade Anti-Alcoólica Portuguesa), a AAAM (Associação Anti-Alcoólica da Madeira), e a Associação Mão Amiga, entre outras. A Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri mantém ainda uma parceira com o Fórum Nacional Álcool e Saúde, colaborando na investigação, educação, prevenção, tratamento e reabilitação de pessoas residentes na Madeira, promovendo a saúde sem condescender com os interesses de marketing da indústria. Em termos de saúde pública, a Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri abrange políticas de responsabilidade nas áreas de prevenção, tratamento e acompanhamento e estabilização da recuperação. Participa e anima eventos de natureza formativa em escolas, associações, casas do povo, centros de saúde. Tem também produzido algum material educativo para a saúde, e publicou durante cerca de 10 anos o Boletim O Joandeíno, impresso com a mesma finalidade de educação para a saúde, tendo mantido parcerias com outras organizações envolvidas em iniciativas de saúde pública e ações sobre os temas da saúde e do álcool. Uma das iniciativas e a parceria de maior relevo mantida com a Associação Anti-Alcoólica da Madeira é a reunião mensal das primeiras quartas-feiras, de acompanhamento pós alta dos recuperados no Centro e suas famílias. Até ao ano 2000 reunia cerca de 100 participantes, e a partir daí o seu número cresceu, obrigando a mudar de sala para o auditório Bento Menni, centro de encontros da Casa com capacidade para 200 participantes. A média de participantes da primeira quarta-feira do mês anda à volta de 180, vindos de todos os concelhos aos quais se associam grupos de técnicos de toda a Região. Durante estas reuniões, que funcionam com técnicas de autoajuda e testemunhos livres, são atribuídos diplomas de abstinência nos aniversários de reabilitação dos presentes. Os diplomas são, em geral, entregues por familiares e por técnicos presentes na assembleia. Os aniversários de abstinência reforçados pela entrega de diplomas vão desde um ano a 5, 10, 20 e 35 anos sem consumir bebidas alcoólicas. Comissão Regional Antialcoólica Em conformidade com o decreto regulamentar regional n.º 4/2003/M, de 1 de fevereiro, o Governo regional da Madeira, através do secretário regional dos Assuntos Sociais, criou a comissão regional antialcoólica para promover a saúde pública e a saúde do indivíduo e da comunidade em relação ao consumo de álcool. Destinava-se a alargar o espaço de intervenção multiplicando as estratégias e conferindo-lhes um formato interdisciplinar e multissectorial, ao mesmo tempo inovador de estratégias preventivas dirigidas aos jovens e jovens adultos para detetar e motivar os afetados pelo álcool a aceitarem tratar-se mais cedo; e acompanhá-los a eles e às suas famílias para estabilizar a recuperação mediante a reinserção familiar, laboral e social. A carência de recursos humanos e financeiros esteve na base da criação desta comissão, de forma a implementar, desenvolver e acompanhar o programa específico de combate ao alcoolismo, conforme previsto no Plano Regional de Saúde da RAM; tinha uma unidade coordenadora executiva das medidas e políticas relativas ao alcoolismo para integrar esforços coletivos e individuais de investigação e de formação de profissionais e voluntários, e otimizar os recursos em respostas de informação e educação dos cidadãos articuladas entre os serviços de saúde e as instituições de prevenção, tratamento e reinserção. Dispunha de 11 equipas concelhias de proximidade, com médico, enfermeiro de saúde mental, psicólogo, técnico de serviço social e técnico administrativo na dependência da unidade coordenadora assessorada por uma comissão consultiva. Os resultados foram muito fragmentários por falta de medidas políticas eficazes de controlo do marketing, da publicidade, da subida da idade legal de consumo, da redução de locais de venda e horários de abertura, e principalmente de medidas de controlo e de fiscalização. Independentemente dessa comissão, houve alguma redução dos danos causado pelo álcool devido a um maior controlo e uma maior fiscalização no terreno, que levaram à diminuição de acidentes, feridos e mortes nas estradas. A Associação Antialcoólica da Madeira A Associação Antialcoólica da Madeira foi fundada a 18 de dezembro de 1981, por Armindo Saturnino Pinto Figueira da Silva, Maria Juliana Dória Gomes Soares do Espírito Santo, Virgília de São Pedro Teixeira, Eleutério Gomes de Aguiar, Feliciano José Gaita, Paulo Romualdo Gouveia e Silva e Jaime de Jesus Abreu Vasconcelos. Os seus objetivos constam do art. 3.º dos seus estatutos: combater o alcoolismo; recuperar alcoólicos, interessando-se no seu tratamento; acompanhar e apoiar os alcoólicos recuperados ou em recuperação, promovendo a sua integração no ambiente familiar, profissional e social; estimular a colaboração dos recuperados nas ações de apoio a outros carentes e na defesa e expansão dos princípios de combate ao alcoolismo; e colaborar com outras entidades oficiais e particulares que se ocupem do alcoolismo tanto no seu aspeto profilático como terapêutico. De 1981 a 1999, esta Associação encaminhou para consultas especializadas 2446 pessoas, o que corresponde a cerca de um em cada 100 habitantes da Região, numa média de 12 por mês ou 3 por semana. Desde o ano de 1985, o presidente da Associação Antialcoólica da Madeira, Jaime de Jesus Abreu Vasconcelos, desenvolveu importante ação junto das pessoas com problemas de álcool na Madeira. A sua significativa experiência contribuiu para que as pessoas reconhecessem o seu problema com o álcool, o impacto destrutivo que tem na vida e a necessidade de aceitação da responsabilidade de fazer alguma coisa para ultrapassá-lo, sendo esta ação muitas vezes o primeiro passo para o tratamento e a recuperação. A Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri mantém desde o início parceria muito estreita com esta Associação através dos seus associados e em especial de Jaime Vasconcelos. No âmbito do programa de reabilitação das pessoas, antes ou após o tratamento, são realizados encontros mensais em diversos concelhos da Região, envolvendo a Associação Antialcoólica da Madeira, técnicos dos centros de saúde, médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais e a participação pontual do coordenador da Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri da Casa de Saúde S. João de Deus. Nesta unidade e nos centros de saúde realizam-se vários encontros de prevenção da recaída e de sensibilização à necessidade de tratamento. [table id=92 /] Além das reuniões indicadas na fig. 6, são realizadas as reuniões da 1.ª quarta-feira de cada mês na Casa de Saúde S. João de Deus em parceria com a Unidade de Alcoologia S. Ricardo Pampuri, como referimos acima. Associação Mão Amiga A Associação Mão Amiga / Associação de Alcoologia Camaralobense foi fundada a 10 de março de 1997 com a finalidade de combater o alcoolismo, recuperar alcoólicos interessados no seu tratamento, acompanhar e apoiar os alcoólicos recuperados ou em recuperação, promovendo, nomeadamente, a sua integração no ambiente familiar, profissional e social, e ainda de estimular a colaboração dos recuperados nas ações de apoio a outros carenciados; e na defesa e expansão dos princípios do combate ao alcoolismo, colaborando com outras entidades oficiais e particulares que se ocupam do alcoolismo tanto no seu aspeto profilático como terapêutico. Teve a sua primitiva sede na R. da Fundação D. Jacinta de Ornelas, na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, e foram seus sócios fundadores: João Delfino da Silva Brites; João Pinto Figueira; António Figueira Ornelas; Amélia Pedro Alexandre Ribeiro Nóbrega; Hélder Pestana Barros e Maria Ferdinanda Pereira Maçal. No dia 11 de maio de 2000, inaugurou a sua sede no Funchal, à R. Latino Coelho, 45. Desenvolveu trabalhos em toda a Madeira, nomeadamente nos concelhos do Funchal, Porto Santo, Câmara de Lobos, Machico e Ribeira Brava. Teve intervenções significativas de apoio aos dependentes do álcool e respetivas famílias, e na promoção de ações de prevenção e esclarecimento, nomeadamente junto das camadas mais jovens e nas escolas. Colaborou também nalgumas ações com o Centro S. Ricardo Pampuri e nos encontros que este organizou. Desde 2010 que se tornou inativa, não se conhecendo qualquer ação ou intervenção pública desde então. Bibliog.: ALVES, Emanuel Raul Borges et al., “Análise da eficácia terapêutica do Centro de Recuperação de Alcoólicos S. Ricardo Pampuri, no Funchal, e estudo dos parâmetros passíveis de influenciar e serem influenciados pela abstinência”, Atas do VI Congresso Internacional de Psiquiatria S. João de Deus, Lisboa, Editorial Hospitalidade, 1996, pp. 273-287; CARVALHO, A. A., As Bebidas Alcoólicas em Portugal, Relatório de Primavera 2002 do OPSS (Observatório Português dos Sistemas de Saúde), s.l., Escola Nacional de Saúde Pública, 2002; GAMA, Manuel da Encarnação Nóbrega da, Reabilitação Alcoólica na Madeira, Associação Antialcoólica/Centro de Recuperação da Casa de S. João de Deus, 2016; GAMEIRO, Aires, Alcoolismo nos Açores e na Madeira, Lisboa, Editorial Hospitalidade, 2000; Id., oh, e GONÇALVES, Manuel Maria, oh, História da Casa de Saúde S. João de Deus na Madeira. Os Irmãos de S. João de Deus e os Alienados. Dos Antecedentes a 1960, vol. i, Lisboa, Esfera do Caos, 2014; MARTINS, Alexandre Tavares, Boletim Informativo e Familiar, Província Portuguesa da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, maio 1984, dez. 1985; NEPOMUCENO, Rui, Uma Perspectiva Histórica da Madeira, Câmara de Lobos, Editora o Liberal, 1910; PEREIRA, Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, vol. I, 4.ª ed., Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1989; RIBEIRO, António Manuel Pereira, “Contra o alcoolismo”, Vida Diocesana, 21 maio 1922, p. 4; SATURNINO, Armindo et al., “O alcoolismo na Região Autónoma da Madeira. Uma proposta de combate à doença”, Hospitalidade, 47, n.º 182, jan.-mar. 1983, pp. 13-32; Id., “Alguns aspectos evolutivos do alcoolismo na R.A.M.”, in GAMEIRO, A. et al., Liberdade de Beber e de Não Beber, Lisboa, Editora Hospitalidade, 1987, pp. 58-75; SILVA, Fernando Augusto da, e MENEZES, Carlos Azevedo, Elucidário Madeirense, 4.ª ed., Funchal, Typographia “Esperança”, 1921-1922; SILVA, Fernando Augusto da, Paróquia Santo António da Ilha da Madeira. Alguns Subsídios para a Sua História, Funchal, ed. do Autor, 1929; SPRANGER, Ana Isabel et al., Antologia de textos. História da Madeira, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1984; VIEIRA, Alberto, A Vinha e o Vinho na História da Madeira, Séculos XV a XX, Funchal, CEHA, 2003; Id. (coord.), História do Açúcar. Rotas e Mercados, Funchal, CEHA 2002; SANTOS, Filipe dos, Açúcar, Melaço, Álcool e Aguardente. Notas e Experiências de João Higino Ferraz (1884-1946), Funchal, CEHA, 2005; digital: JAFFE, Jerome H., MEYER, Roger E., “Disease concept of alcoholism and drug abuse”, Encyclopedia of Drugs, Alcohol, and Addictive Behavior, 2001: http://www.encyclopedia. com/doc/1G2-3403100158.html (acedido a 8 mar. 2015); OMS, “Portugal. Alcohol consumption: levels and patterns”, 2014 (acedido a 26 mar. 2015). Aires Gameiro João Eduardo Freitas Lemos (atualizado a 23.01.2017)
antroponimia primitiva da madeira (séculos xv e xvi)
O estudo da antroponímia primitiva da Madeira (sécs. XV e XVI) fundamenta-se no inventário dos nomes dos primeiros povoadores da Ilha, desabitada no momento do seu descobrimento e cujo povoamento se fez a partir de Portugal continental, nele participando igualmente, devido ao desenvolvimento da produção açucareira, muitos estrangeiros, comerciantes de toda a Europa, e escravos das Canárias e de África. Da documentação mais antiga produzida na Madeira, utilizaram-se cinco fontes documentais diretas: o “Livro dos Estimos do Ano de 1494” (RAU e MACEDO, 1962), as Vereações da Câmara Municipal do Funchal (COSTA, 1995), o Tombo Primeiro da Câmara Municipal do Funchal: Documentos dos Séculos XV e XVI, os Livros de Contas da Ilha da Madeira (COSTA, 1985 e 1989) e os Livros de Matrícula do Cabido da Sé do Funchal (COSTA, 1994). Utilizou-se ainda uma fonte indireta para o estudo da antroponímia dos escravos: o inventário dos nomes de escravos do arquipélago da Madeira, a partir de documentos inéditos, apresentado por Alberto Vieira (VIEIRA, 1991). As fontes utilizadas são constituídas por documentos de natureza notarial, eclesiástica, alfandegária e administrativa. Esta documentação permite obter uma amostragem representativa e fiel, do ponto de vista linguístico, da antroponomástica primitiva da ilha da Madeira. Tal abordagem contribui para um melhor conhecimento da antroponomástica portuguesa, bem como da história da língua portuguesa, nomeadamente do português da época da Expansão, que foi transplantado para a ilha da Madeira. O material antroponímico dá-nos informações sobre unidades lexicais comuns, que apresentam, muitas vezes, as primeiras atestações na onomástica antiga ou medieval e moderna, e sobre traços linguísticos e dialetais. Os antropónimos podem, assim, fornecer informações linguísticas e culturais importantes sobre a época a que pertencem. As ocorrências dos antropónimos dependem de critérios geolinguísticos, de fatores históricos e culturais, da tradição cristã (nomes de inspiração religiosa) e pagã e da tendência inovadora (resultante da moda ou do gosto dominante na época). Terminologia antroponomástica Não se utilizará a terminologia tradicional de Leite de Vasconcelos (VASCONCELOS, 1928). Optou-se por uma terminologia posterior, que se julga mais adequada para melhor descrever e classificar as diferentes unidades antroponímicas: a terminologia proposta, a nível internacional, pelo projeto Patronímica Românica (PatRom) e pelo seu coordenador, o Prof. Doutor Dieter Kremer (KREMER, 1997). Segundo esta nova proposta terminológica, o termo “prenome” designa o primeiro nome, uma vez que o termo “nome próprio” não é o mais adequado, por não ser um termo específico, podendo apresentar um valor genérico não apelativo. O termo “prenome também não é o mais adequado para designar os títulos honoríficos, eclesiásticos e académicos, visto que não se trata de unidades antroponímicas propriamente ditas, que por isso podem ser denominadas simplesmente por títulos. Em vez do termo “sobrenome, usa-se o termo “prenome composto, por oposição a “prenome simples, para designar dois elementos antroponímicos que fazem parte do primeiro nome ou prenome, e.g., João Baptista, que, neste caso, é uma unidade fixa de origem religiosa. Os prenomes compostos podem ainda ser formados por um prenome seguido de um complemento onomástico, e.g., os nomes que parecem ser motivados por evocações marianas, do tipo Maria das Neves. Os prenomes têm um uso estritamente onomástico, embora esporadicamente possam ser de origem lexical (delexicais), pois podem formar-se a partir de lexemas comuns (e.g., o prenome feminino Branca), tal como alguns lexemas podem ser formados a partir de prenomes (deonomástica), e.g., manuelino, de Manuel. A adoção do termo “prenome” para o primeiro nome leva a utilizar o termo “segundo nome”, em vez de “apelido, para designar a unidade antroponímica que segue o prenome. O termo “segundo nome” parece mais adequado, por ser simultaneamente mais específico e mais abrangente. O segundo nome tem a função de identificar o indivíduo no seu contexto social e está na base dos nomes de família posteriores, pois pode-se constatar que os segundos nomes individuais se tornaram nomes hereditários ou de família. Ao segundo nome podem seguir-se outros elementos apelativos ou identificativos do indivíduo, um terceiro nome e um quarto nome, que por vezes também se transformam em apelidos de família. Estas unidades constituem, inicialmente, elementos de identificação individual, pois ainda não se tinham fixado como nomes de família, daí ser mais adequada a designação de “segundo”, “terceiro” e “quarto nomes”. Trata-se de termos que permitem dar conta da posição e sequência das unidades antroponímicas na cadeia onomástica. Os segundos, terceiros e quartos nomes podem ser nomes constituídos por patronímicos (formados a partir dos prenomes), nomes geográficos ou nomes de origem, nomes étnicos, alcunhas e nomes de profissão. Estes últimos três tipos antroponímicos são nomes delexicais, ou seja, nomes retirados do léxico geral. Os nomes Podemos distinguir três tipos fundamentais de antropónimos: os prenomes e os patronímicos, os nomes geográficos e os nomes delexicais. Os patronímicos têm um interesse morfológico específico, pois prolongam os prenomes, indicando a filiação paterna ou materna (matronímicos). Os nomes de origem representam uma outra categoria de nome, pois são nomes de lugares – macrotoponímica (lugares identificados e habitados) e microtoponímia (designações toponímicas muito circunscritas). Os nomes delexicais integram lexemas étnicos, alcunhas e lexemas de profissões ou ofícios. Ao contrário dos prenomes, que têm a sua origem, geralmente, na tradição e que identificam uma pessoa na família, os nomes delexicais, retirados do vocabulário corrente, identificam e qualificam uma pessoa socialmente. Os nomes delexicais participam dos mesmos processos de formação do léxico comum, estabelecendo uma estreita ligação com ele. O grande grupo dos nomes próprios delexicais é um testemunho precioso da língua falada ou popular da respetiva época e frequentemente permite datar pela primeira vez esse elemento lexical, tendo grande interesse para a história da língua. No entanto, nem sempre é fácil definir o significado concreto de uma alcunha, pois, na maior parte das vezes, não conhecemos a motivação real da denominação e uma interpretação correta apenas pode indicar significações possíveis. Deste modo, um nome de pessoa ou antropónimo pode ser constituído por várias unidades: nomes (prenomes e patronímicos), nomes de origem (topónimos) e nomes delexicais (nomes étnicos, alcunhas e nomes de profissão), formando uma cadeia onomástica complexa. Os nomes delexicais, por vezes, substituem os prenomes, o que mostra a grande importância sócio-onomástica destes nomes na identificação dos indivíduos, e.g., Galeguo, Framca, Bigode, Ouelheyro. Procuraremos conhecer, através dos antropónimos dos primeiros povoadores portugueses, dos estrangeiros e dos escravos, as unidades antroponímicas mais frequentes que ocorrem nas diferentes fontes consultadas como primeiro, segundo, terceiro e quarto nomes. Neste sentido, classificaremos estas unidades antroponímicas tendo em conta a sua posição, origem, função, motivação e o seu significado em patronímicos, nomes geográficos, nomes étnicos, alcunhas e nomes de profissão. Procederemos ainda à descrição da estrutura fonética, morfológica, sintática, semântica e lexical das unidades antroponímicas estudadas. Homónimos e variantes A recolha dos antropónimos nas fontes documentais foi feita com a citação completa da identificação do indivíduo e com a grafia original, procurando eliminar os antropónimos repetidos nos documentos para não falsear os resultados estatísticos; no entanto, conservamos as formas que parecem corresponder a homónimos. Nem sempre é fácil identificar os homónimos. O problema surge em relação a antropónimos como Joam Anes juiz e Joam Anes vereador. É difícil saber se se trata de um mesmo indivíduo que ora surge designado com um cargo ora com outro, ou se se trata de indivíduos diferentes. Como este nome era muito frequente na época, optamos pela segunda hipótese. O mesmo problema surge em relação aos antropónimos Fernam Gonçaluez e Fernando Gonçalvez, Bastiam Fernandez e Sebastiam Fernandez. No caso de Fernam/Fernando, pode tratar-se de variantes de um mesmo nome; mais delicado é o caso de Bastiam/Sebastiam. Coloca-se ainda o mesmo problema em relação aos antropónimos Gomez Vinagre, Gomez Vinagre procurador e Gomez Vinagre procurador do concelho, Joam Annes e Joam Annes barqueiro, em que temos antropónimos constituídos apenas pelo primeiro e segundo nomes, e surge um terceiro nome, que geralmente é um nome de profissão, para melhor identificar o indivíduo ou para o distinguir de outro indivíduo com o mesmo nome. Consideramos, nestes casos, tratar-se de homónimos, ou seja, de pessoas distintas, dada a pobreza antroponomástica dos prenomes masculinos e dos patronímicos correspondentes na época, donde a necessidade de identificação social dos indivíduos, neste caso, através do nome de profissão. Interviemos em algumas formas linguísticas recolhidas nas fontes documentais para melhor descrever as unidades antroponímicas. Assim, passamos letras minúsculas para maiúsculas em formas que ocorrem como terceiros e quartos nomes, geralmente nomes étnicos e nomes de profissão, embora sabendo que estes nomes delexicais constituem uma identificação suplementar, não sendo antropónimos propriamente ditos, e separamos formas aglutinadas, e.g., dholiueira em d’Holiueira, detayde em de Tayde, Rodrujanes em Rodrigu’Janes, martimnhannes em Martimnh’Annes. No que se refere à representação gráfica, conservamos todas as variantes gráficas, incluindo as grafias j longo e u por v, que não têm valor fonético distintivo, e conservamos também a alternância entre grafias simples e duplas na representação de algumas consoantes. Prenomes A atribuição dos prenomes realiza-se com base em fatores extralinguísticos: tradição religiosa, tradição literária e tradição histórica. A preferência de determinado prenome em detrimento de outro varia com o tempo, segundo a moda e a popularidade dos nomes, fazendo com que alguns prenomes sejam muito frequentes, enquanto outros se tornam raros, podendo ser recuperados mais tarde. Nos documentos consultados, predominam os prenomes de influência religiosa latino-cristãos, como João, Pedro, António, Manuel, Catarina, Isabel, Beatriz e Maria; seguidos dos prenomes de origem germânica, e.g., Rodrigo/Rui, Afonso, Álvaro, Fernando e Gonçalo, e dos prenomes de influência literária, nomeadamente Briolânia (variante gráfica de Briolanjia), Galláz, Rolam, Artur, Tristão, Policenas, Polinarda, Heitor, Helena, Iseu. Alguns destes nomes são prenomes correntes nos sécs. XV e XVI, devido aos romances de cavalaria. Muitos prenomes de origem literária ou erudita surgem da moda renascentista de recuperar nomes da Antiguidade Clássica. Encontramos prenomes que parecem corresponder a segundos nomes, nomeadamente a forma Lyam, que tanto pode ser um prenome como um segundo nome que surge em vez do prenome. As formas Capellam e Cento surgem em posição de prenome seguidas de outra unidade antroponímica, mas parecem corresponder a segundos nomes de família italiana. A forma Angriote poderá também ser um segundo nome, significando “pequeno inglês”, designação atribuída a um estrangeiro e que surge em substituição do prenome. A forma Mousen parece ser um título, como Mice, e não um prenome, enquanto a forma Senhorinha não é um título, como pode parecer, mas um prenome feminino muito antigo, típico de Portugal. Temos também um grupo de prenomes de origem e formação obscuras, nomeadamente a forma Anquesa, que parece apresentar o sufixo -esa com um radical de origem obscura. O sufixo -esa parece ser frequente na formação dos prenomes femininos da época. Outros prenomes de origem obscura são, e.g., Meliganda e Briones, formas que não sabemos interpretar, assim como a forma Belizarda (provavelmente com a mesma formação do lexema felizarda) – seriam prenomes medievais típicos da literatura popular já em extinção? No entanto, não encontramos referência a estas formas no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado. Quanto ao prenome feminino Mair, parece ser um nome judeu. A forma Alda parece ser uma forma breve do prenome feminino Aldonça, enquanto o prenome masculino Lopo é uma forma parcialmente latinizada. É importante referir a evolução separada do lexema lobo e da forma antroponímica Lopo > Lopes. Os prenomes Adão e Eva, que raramente ocorrem na antroponímia desta época, surgem na antroponímia primitiva da Madeira, provavelmente motivados pela colonização do arquipélago, pois estes prenomes parecem ter sido atribuídos às primeiras crianças dos dois sexos nascidas na Ilha, no início do povoamento. Formas masculinas e femininas Das três grandes categorias antroponímicas, os prenomes oferecem um grande interesse morfológico, nomeadamente as formas masculinas e femininas. Estas resultam, geralmente, da adaptação morfológica dos prenomes masculinos ao género feminino. Consideram-se assim os prenomes masculinos terminados em -o que correspondem a prenome femininos com o morfema flexional -a, e.g., Francisco/Francisca, Justo/Justa, António/Antónia, Lourenço/Lourença, Ambrósio/Ambrósia, Bernardo/Bernarda, Jeronimo/Jeronima, Jacinto/Jacinta, Leonardo/Leonarda. No caso de Barbaro, a forma masculina é formada a partir do prenome feminino Barbara. Consideram-se também os prenomes masculinos que não terminam em -o e que correspondem a formas femininas com morfema flexional de género feminino -a, e.g., Felipe/Felipa, Andre/Andresa (a forma feminina é formada a partir da antiga forma masculina Andres), Luis/Luisa, Pascoal/Pascoala. O prenome feminino Bartolesa, correspondente à forma masculina Bartolomeu, parece surgir por analogia com formas como Andresa. As formas femininas Brasia e Tomasia parecem ser formadas a partir dos prenomes masculinos Bras e Tomas, respetivamente; quanto às formas Marcos e Marquesa, são dois nomes absolutamente distintos. E consideram-se, finalmente, os prenomes masculinos terminados em -ão que correspondem a formas femininas terminadas em -ana ou em -oa, e.g., Bastião/Bastiana, João/Joana, Julião/Juliana, Simão/Simoa. Formas proclíticas Os prenomes apresentam diferentes formas conforme surgem isolados ou em determinadas ligações sintáticas. A fonética sintática faz com que determinados prenomes, quando seguidos de patronímicos começados por consoante, se tornem formas proclíticas, isto é, formas tão estreitamente associadas à forma seguinte que perdem o seu acento próprio, sofrendo reduções. Assim, as formas proclíticas são formas reduzidas dos prenomes na sua forma plena, resultantes de fenómenos fonéticos de apócope ou síncope da palavra em próclise. Registamos as formas proclíticas Mem de Mendo, Fernam de Fernando, João de Joane, Rui de Rodrigo e Pero de Pedro. Um dos fenómenos de fonética sintática que ocorrem em posição proclítica é a queda da vogal final do prenome, quando seguido de um patronímico começado por vogal, e.g., Rodrigueannes de Rodrigu’Eannes. Observamos que a aglutinação ou contração do prenome com o segundo nome começado por vogal ocorre geralmente com a forma plena do prenome. Embora, em Pereannes e Perealuarez, tenhamos a forma proclítica Per’ em elisão com as formas patronímicas Eannes ou Annes e Aluarez, a par com a forma não aglutinada Pero Annes. Formas divergentes As formas divergentes dos prenomes são formas que, embora apresentando a mesma origem etimológica, sofreram evoluções diferentes, originando formas distintas. As formas divergentes são geralmente formas duplas, com uma forma arcaica por via popular e uma forma restaurada por via erudita. Assim, as formas Mor e Maior são formas divergentes: Mor é a forma popular, enquanto Maior é a forma latinizada ou erudita. É interessante constatar que, nos documentos consultados, registamos apenas a forma popular Mor. As formas Tome/Thomas parecem ser formas divergentes, que vieram a corresponder a nomes diferentes. Tal como as formas Antam/Antonio que, embora tenham a mesma origem etimológica, são formas que sofreram evoluções distintas e passaram a existir como nomes independentes, que correspondem a santos diferentes. As formas Bastiam e Sebastião também parecem ser formas divergentes, sendo que Bastiam é a forma mais frequente; a forma Bastiana deriva seguramente da forma masculina Bastiam. Encontramos ainda as formas Adriano/Adrião, em que a forma Adriano parece ser a forma restaurada por influência erudita da forma popular Adrião, forma antiga do galego-português com síncope do -n- intervocálico e, consequentemente, nasalização da vogal anterior. A forma Romão surge como prenome no antropónimo Romão de Frias. Esta forma parece ser uma forma divergente de Romano, que registamos como segundo nome nos antropónimos Cristiano Romano e Julyam Romano, e que também surge com a forma Romão, como terceiro nome, em Pero de Marne Romão. Este poderá ser um segundo nome étnico-geográfico, que indica a proveniência estrangeira do indivíduo (de Roma), pois pode tratar-se de um segundo nome que surge como prenome, mas também poderá ser um prenome independente que não corresponde ao segundo e terceiro nome referidos. Consideramos também formas divergentes e não independentes os prenomes masculinos que apresentam duas formas: uma terminada pelo morfema flexional de género masculino -o e outra terminada pela desinência -s do caso nominativo latino. As formas que apresentam o -s parecem ser formas restauradas por influência culta ou literária, por oposição às formas vulgares ou populares sem -s, que são as mais frequentes, e.g., Allexo/Alexos, Aparicio/Aparicios, Domingo/Domingos, Giraldo/Giraldos, Gonçalo/Gonçalos, Joane/Joanes, Marco/Marcos, Mathia/Matias, Mateu/Mateus, Rodrigo/Rodrigos, Pallo/Pallos. As formas terminadas pela desinência -s, como Pallos, que parece ser a forma antiga de Paulo, tornaram-se arcaicas e acabaram por desaparecer, com a exceção da forma Domingos, que se generalizou, superando a forma Domingo. A forma do prenome feminino Domingas apresenta a terminação -s por analogia com a forma masculina, e a forma do prenome masculino Amados pode ser explicada a partir da forma Amado, por analogia com outras formas terminadas em -s. Os modelos das formas em -os não etimológicas parecem ser Domingos e Pa(u)llos. Existem três outras formas divergentes dos prenomes: as formas terminadas em -im, por tradição culta de importação francesa ou espanhola (e.g., Martim, Agostim e as formas estrangeiras Janim, Anequim, Valentim), as formas em -ino de influência latina (e.g., Bernardino) e as formas em -inho de origem popular ou espontânea (e.g., Agostinho e Martinho). Deste modo, destaca-se a ocorrência das formas divergentes Martim/Martinho e Agostim/Agostinho. Como já se referiu, as formas terminadas em -im serão formas eruditas de importação francesa ou de origem espanhola, por oposição às formas populares portuguesas, terminadas em -inho (do sufixo latino -ino). As formas Belchior e Melchior são formas divergentes, pois Belchior é a forma portuguesa da forma primitiva Melchior, que pertence ao grupo dos prenomes Gaspar e Baltazar, os três reis magos; estes prenomes são muitos frequentes naquela época, alternando a sua predominância. Estamos perante variantes em que a alternância entre os fonemas iniciais /m/ e /b/ está possivelmente relacionada com o facto de estes fonemas terem em comum o mesmo ponto e modo de articulação, pois são consoantes oclusivas bilabiais, embora a primeira seja nasal e a segunda oral. A forma Melchior apresenta ainda a variante fonética Melchioll, em que o /r/ final passa a l. Prenomes compostos e duplos Na antroponímia primitiva da Madeira, os prenomes compostos e duplos começam a desenvolver-se a partir de fins do séc. XVI e inícios do séc. XVII. Os prenomes compostos são formados por um prenome associado a um complemento onomástico, que é geralmente um nome religioso. Predominam os prenomes compostos femininos que parecem ser evocações marianas, em que o prenome Maria apresenta uma grande flexibilidade combinatória. Assim, os prenomes femininos Esperança e Vitoria parecem corresponder a formas reduzidas dos nomes marianos Maria Vitoria e Maria Esperança, respetivamente de Maria da Vitoria e Maria da Esperança, que são prenomes compostos. Registamos ainda o prenome composto feminino Catarina da Paz, que não é um nome mariano. Quanto aos prenomes compostos masculinos, constatamos a predominância do nome Joam como elemento de composição, talvez por ser o prenome mais frequente na época. Registamos as seguintes formas: Joam dos Santos, Guabriel de Santo Antonio, Jorge de Sam Bernardino, Amador de Sam Francisco, Marcos de Sam Joam, Joam de Santiago, Joam de Santo Esteuom, Joam de Fe, Joam de Deus. Encontramos apenas dois prenomes duplos femininos atribuídos a escravas, nomeadamente Barbara Francisca e Breitis Ines. Os prenomes duplos distinguem-se dos compostos por serem constituídos por duas unidades independentes. Quanto aos prenomes duplos masculinos que são menos frequentes, verificamos que não temos um elemento predominante na sua composição, embora o primeiro elemento do prenome duplo seja geralmente muito frequente. Apenas registamos como primeiro duplo masculino a forma Joam Bautista. Este prenome duplo de influência religiosa surge por vezes reduzido à forma Baptista, com elisão do primeiro elemento. Frequência e caracterização das unidades antroponímicas em fontes documentais dos séculos XV e XVI da ilha da Madeira Prenomes No tratamento estatístico dos prenomes, no conjunto das fontes documentais estudadas, registamos 270 unidades antroponímicas diferentes, sendo 152 prenomes masculinos simples, 33 prenomes femininos simples, 64 segundos nomes que surgem como prenomes masculinos, 19 prenomes compostos masculinos, 1 prenome composto feminino e 1 prenome duplo masculino. Verificamos que o prenome masculino mais frequente é Joam, com 648 ocorrências (19,44 %), seguido do prenome Pero, com 336 ocorrências (10,08 %), e de Antonio, com 189 ocorrências (5,67 %); seguem-se os prenomes Diogo, com 187 ocorrências (5,61 %), Francisco, com 186 ocorrências (5,58 %), Gonçalo, com 163 ocorrências (4,89 %), Manuel, com 135 ocorrências (4,05 %), e Rodrigo, com 126 ocorrências (3,78 %). Na origem da grande divulgação do prenome masculino Joam (com as variantes Johanne e Joham) parece estar o nome do santo e o nome do rei de Portugal. No entanto, a partir da segunda metade do séc. XVI, o prenome João apresenta um grande decréscimo. O estudo comparativo do uso dos prenomes por ordem cronológica mostra-nos que os prenomes Antonio, Francisco e Manuel se tornam cada vez mais frequentes, enquanto o prenome Afonso é pouco frequente a partir de meados do séc. XVI. Os prenomes femininos mais frequentes, por ordem decrescente, são: Catarina, com 26 ocorrências (0,78 %), Isabel, com 20 ocorrências (0,60 %), Briatiz, com 17 ocorrências (0,51 %), Maria, com 13 ocorrências (0,39 %), Joana, com 9 ocorrências (0,27 %), Lianor, com 8 ocorrências (0,24 %), Ines, com 7 ocorrências (0,21 %), Mor e Ana, com 5 ocorrências cada (0,15 %), Fellypa, com 4 ocorrências (0,12 %), Crara, Francisca, Margarida, Branca, Meçia e Barbora, com 3 ocorrências cada (0,08 %). A predominância do prenome Catarina, juntamente com os prenomes Isabel e Briatiz, que parecem apresentar grande popularidade, poderá explicar-se certamente pela divulgação do nome de santas. Também é patente o elevado número de ocorrências do prenome feminino Maria, o que explica o desenvolvimento dos nomes marianos a partir do séc. XVI, tornando-se cada vez mais frequente e sendo atribuído a muitas escravas, ao contrário dos prenomes Constança e Viollamte, que são pouco frequentes, e Mor, que tende a desaparecer. As percentagens indicadas para os prenomes femininos foram calculadas a partir do total de ocorrências na categoria prenomes (270 unidades antroponímicas diferentes). Na documentação da época, os nomes femininos ocorrem sempre em baixas percentagens, relativamente aos nomes masculinos de povoadores portugueses e estrangeiros, dado que as mulheres não tinham cargos administrativos e só aparecem nos registos históricos como proprietárias quando são viúvas. Apesar disso, esta recolha parece ser uma amostra representativa da onomástica feminina dos sécs. XV e XVI, no arquipélago da Madeira. Segundos nomes Os segundos nomes podem ser classificados em patronímicos, nomes geográficos, nomes étnicos, alcunhas e nomes de profissão, segundo a sua origem, função, motivação e significado. Apesar da grande variedade de nomes geográficos, nomes étnicos e nomes de profissão, predominam claramente, em número de frequência, os segundos nomes que são formas patronímicas. Patronímicos – As formas patronímicas são formas derivadas dos prenomes, por isso são elementos com origem e função puramente antroponímicas. Os patronímicos apresentam as três formas seguintes: Primeiro, formas patronímicas por sufixação, geralmente com o sufixo -ici > -izi > -iz > -ez > -es. Muito se tem discutido sobre a origem do sufixo patronímico -ici. Leite de Vasconcelos refere a origem pré-latina deste elemento morfológico, que substitui a tradicional forma genitiva latina de indicar a filiação. O sufixo -ici é característico das formas patronímicas desde a mais antiga tradição. Trata-se de uma forma que se tornou átona -ici > -iz(i), surgindo correntemente como -ez e ocasionalmente com a variante -az (Garcia > Garciaz e Garces) e -oz (Muñoz). Não há muitas formas em -az e cada uma tem a sua explicação: Dias (átono) < Didaci (genitivo); Vaz (< eventualmente do genitivo Vaasqui < Vaasco, não de Velasqui); Forjaz (< provavelmente do genitivo Froilanis). Leite de Vasconcelos defende ainda a existência de formas patronímicas que recebiam inicialmente os sufixos -uz e -oz, e.g., Domingoz do prenome latino Dominicus e Nunoz do prenome latino Nunnus, que foram substituídas por formas com o sufixo -ici, tendo dado as formas Nunes de Nun-ici e Domingues de Dominic-ici. No entanto, parece pouco provável que tenham existido formas patronímicas do tipo *Dominguz e *Nunoz, porque o sufixo -ici era de facto o mais usado para indicar a filiação, tanto nas formas resultantes de prenomes pré-latinos como nas resultantes de prenomes latinos e germânicos latinizados. Leite de Vasconcelos afirma que o sufixo -ici tende a introduzir-se mesmo nos casos em que a vogal final do prenome não o favorece, como em Guma > Gum-ici > Gum-izi > Gum-iz > Gum-ez > Gom-es. Contudo, parece pouco provável que esta seja uma forma derivada de Guma (que seria *Gumão, *Gumaz). Gomes é uma forma que surge simultaneamente como prenome e como patronímico e, por isso, não parece ser uma forma derivada com o sufixo patronímico -ici. A forma Aires (de Arias) é também uma forma não derivada que surge como prenome e como patronímico. Esta forma, ao contrário de Gomes, ainda no séc. XXI ocorre como prenome masculino. Segundo, formas patronímicas, por posição, iguais aos prenomes. No caso do antropónimo Joham Afonso Moleiro, a forma Afonso parece ser uma forma patronímica por posição, mas também pode ser o segundo elemento de um prenome duplo Joham Afonso. Nos antropónimos femininos: Mor Lourença, Margarida Antonia, Catherina Simoa e Catherina Francisca, o segundo elemento destes nomes pode corresponder a formas patronímicas por posição feminizadas, que concordam em género com o prenome feminino. Mas trata-se, certamente, de prenomes duplos femininos, porque não nos parece usual, na época, a ocorrência de feminizações de formas patronímicas, e sabemos que na altura se desenvolvem as formas dos prenomes duplos. As formas Afonso, Duarte, Luis, Manuel, Vicente são formas patronímicas por posição, uma vez que não apresentam formas patronímicas correspondentes com o sufixo -ez. Registamos ainda as formas Garcia e Antonio, que também são formas patronímicas por posição, apresentando, no entanto, formas patronímicas correspondentes com o sufixo -es: Garces e Antunes, embora estas sejam formas pouco frequentes. Terceiro, excecionalmente, uma forma patronímica constituída pelo prenome do pai com o sufixo diminutivo -inho, na forma Gonçaluinho, que parece indicar a filiação paterna, significando “filho de Gonçalo”. Encontramos formas patronímicas duplas, nomeadamente Vaz/Vasques, Rodriguez/Ruiz, Eanes/Anes, Pires/Peres. A forma Vaz pode ser simplesmente a forma proclítica de Vasco que passa a apelido. A existência da forma patronímica Ruiz parece resultar da agregação da desinência patronímica à forma proclítica Rui (tratada como se fosse uma forma plena), enquanto as formas patronímicas duplas Eanes/Anes (que apresentam ainda a variante Enes) e Pires/Peres parecem resultar de alterações fonéticas de uma mesma unidade antroponímica. De acordo com Leite de Vasconcelos, até ao séc. XII, o patronímico era suficiente para identificar os indivíduos, juntamente com o prenome. A partir de fins do séc. XII e inícios do séc. XIV, teria começado a desenvolver-se o recurso a nomes geográficos (nomes de origem), alcunhas (sobrenomes) e nomes de profissão para identificar os indivíduos, evitando a homonímia. A existência da homonímia devia-se, principalmente, à pobreza onomástica dos prenomes masculinos, que originava patronímicos comuns a diferentes indivíduos sem relação de parentesco entre si. A necessidade de recorrer a novos elementos identificativos surgiu, provavelmente, nos grandes centros populacionais. Em finais do séc. XV e inícios do séc. XVI, os patronímicos teriam já perdido o seu valor indicativo de filiação, passando a meros apelidos de família. Para melhor identificar um indivíduo, passou-se a juntar ao nome a indicação da sua terra ou proveniência, uma alcunha ou um nome de profissão, que com o tempo também se fixaram como apelidos ou nomes de família. Na antroponímia primitiva da Madeira, predominam claramente os segundos nomes que correspondem a formas patronímicas. Estas apresentam um elevado número de ocorrências em comparação com a frequência das restantes formas, apesar de apenas se terem registado, no conjunto das fontes documentais, 46 unidades patronímicas diferentes, o que representa um número muito reduzido em relação à diversidade dos nomes geográficos, nomes étnicos, nomes de profissão e alcunhas. Assim, as ocorrências mais frequentes dos segundos nomes são todas formas patronímicas. Em primeiro lugar, temos o segundo nome Gonçaluez, com 196 ocorrências (9,80 %); em segundo lugar, o segundo nome Eannes, com 184 ocorrências (9,20 %); em terceiro, o segundo nome Fernandez, com 174 ocorrências (8,70 %); seguem-se as formas Afonso, com 152 ocorrências (7,60 %), Rodriguez, com 149 ocorrências (7,45 %), Aluarez, com 127 ocorrências (6,35 %), e Vaaz, com 107 ocorrências (5,35 %). Verifica-se que o segundo nome patronímico Eanes, muito frequente em finais do séc. XV, praticamente não ocorre nas fontes documentais a partir da segunda metade do séc. XVI. Este decréscimo do segundo nome Eanes parece acompanhar a redução da frequência do prenome João. Deste modo, os segundos nomes patronímicos Fernandez e Gonçaluez tornam-se mais frequentes do que a forma patronímica Eannes, nas fontes documentais da segunda metade do séc. XVI. Outros segundos nomes patronímicos registados como mais frequentes são: Diaz, Gomez, Lopez, Martjnz e Pirez. Das 541 unidades antroponímicas diferentes que ocorrem como segundos nomes, em que, como se mostrou, predominam largamente as formas patronímicas, os segundos nomes não patronímicos mais frequentes são os nomes geográficos Ferreira e Porto, entre outros, e o nome étnico-geográfico Frances. Nomes geográficos – Os nomes de origem geográfica ou toponímica indicam a naturalidade ou residência dos indivíduos. Na segunda metade do séc. XV, muitos nomes geográficos, que inicialmente indicavam a proveniência geográfica, teriam já sido fixados como nomes de família. Os nomes geográficos eram associados, frequentemente, aos nomes nobres, indicando posse de terra, e quando associados a nomes que não pertenciam à nobreza designavam naturalidade ou residência originária, permitindo identificar os indivíduos deslocados para novas povoações ou regiões, como é o caso do povoamento da ilha da Madeira. Podemos classificar os nomes geográficos ou nomes de origem quanto à sua proveniência em três tipos: Primeiro, nomes geográficos de proveniência estrangeira que indicam a naturalidade dos estrangeiros, e.g., Cremona, França, Florença, Castela. Segundo, nomes geográficos de proveniência portuguesa que correspondem a topónimos do território continental português, fornecendo informações sobre a origem regional dos primeiros povoadores portugueses, e.g., Moura, Almada, Abrantes, Barcelos, Porto, Beja, Vila Viçosa, Braga, Vila Real. Terceiro, nomes geográficos correspondentes a topónimos da ilha da Madeira, que parecem indicar a residência dos primeiros povoadores no arquipélago, e.g., Calheta, Funchal, Caniço, Machico, Camara de Lobos, Ribeira Brava, Fajãa d’Houelha, Ponta do Sol. Os nomes geográficos são formas simples ou compostas que são geralmente precedidas da preposição de, porque, inicialmente, ocorriam como complementos locativos introduzidos por preposição, indicando a posse de terras dos nobres e a proveniência ou residência dos indivíduos. Mas, à medida que se vão fixando como nomes hereditários, os nomes geográficos têm tendência a perder a preposição. A omissão das preposições parece indicar a perda da noção de proveniência geográfica destes nomes, embora, em certos casos, a preposição tenha sido conservada até ao séc. XXI. Assim, um nome geográfico pode ocorrer sem preposição porque surge desde o início sem preposição ou porque a preposição desaparece em época muito antiga. Na antroponímia primitiva da Madeira, predominam os nomes de origem geográfica antecedidos de preposição, e.g., do Porto, de Moura, de Florença. Alguns nomes geográficos apresentam alternância entre ausência e presença de preposição, e.g., de Viveiros e Viveiros. Outros nomes de origem ocorrem sempre sem preposição, e.g., Carvalho, Pereira, Nogueira, Loredo, Tavares, estes são, geralmente, nomes de origem botânica, ou seja, nomes botânico-geográficos. Nomes étnicos – Os nomes étnicos têm a mesma função que os nomes geográficos, ou seja, indicam geralmente a naturalidade dos indivíduos, mas distinguem-se morfologicamente, uma vez que eram primitivamente adjetivos étnico-geográficos. Leite de Vasconcelos classifica estes adjetivos como alcunhas geográficas, dado que morfologicamente os nomes étnicos se aproximam das alcunhas, pois recebem flexão em género e número e podem ser antecedidos de um artigo definido com valor individualizante. Optou-se por considerar os nomes étnicos como um grupo à parte, independente do grupo dos nomes geográficos e das alcunhas. Nas fontes documentais consultadas, predominam os nomes étnico-geográficos atribuídos a estrangeiros que indicam a nacionalidade destes, substituindo muitos nomes próprios estrangeiros, e.g., Allemam, Bretam, Caluino, Castelhano/Castilhanha, Carmones, Escorcio/Escorcia, Framengo, Frolemtym, Frances, Galego/Gallega, Genoes, Lombardo, Imgres, Marcheno, Pisano, Romano, Toscana, Valenciano. Encontrou-se apenas um nome étnico-geográfico atribuído a um povoador português, que indica a sua proveniência regional dentro do território continental português: Algaruio. Aparecem alguns nomes étnicos atribuídos, principalmente, a escravos, que indicam a sua cor e a sua raça, e.g., Mourisquo, Mouro, Mulata/Mulato, Negro, Preta/Preto. Regista-se ainda o nome étnico Judeu, possivelmente atribuído a um estrangeiro. Os nomes étnico-geográficos podem substituir o nome completo dos indivíduos, e.g., o Galego em vez de Joam Anes Galego. Nestes casos, o artigo definido individualizante antecede o nome, concordando com este em género. Temos também o caso do nome étnico-geográfico o Castelhano, que surge como terceiro nome, depois de um segundo nome, antecedido do artigo definido também com valor individualizante ou distintivo: Joam Afonso o Castelhano. Os nomes étnicos-geográficos, tal como as alcunhas, aceitam alteração morfológica em género, conforme o sexo dos indivíduos, e.g., nas formas: Galego/Galega, Mulato/Mulata, Preto/Preta. Os nomes étnico-geográficos constituem uma categoria especial, pois possibilitam pesquisas sócio-históricas como a proveniência regional dos povoadores portugueses, as diferentes etnias dos escravos e a nacionalidade dos estrangeiros residentes e estantes na ilha da Madeira. Alcunhas – As alcunhas ou sobrenomes são, inicialmente, atributos individuais com pleno sentido, que identificam socialmente os indivíduos (Gentílicos e Alcunhas coletivas) Estes elementos identificativos de origem popular podem ser efémeros (apodos) ou tornar-se fixos e hereditários, perdendo o seu significado inicial. As alcunhas apresentam uma grande riqueza e diversidade, surgindo como segundos, terceiros e quartos nomes. Nem sempre é fácil determinar, com rigor, qual o real significado das alcunhas, o que, por vezes, dificulta a sua classificação semântica. Não obstante, optou-se por classificar as alcunhas em cinco grupos: Primeiro, as alcunhas propriamente ditas, alusivas a características físicas e morais dos indivíduos e a qualidades expressas indiretamente através de metáforas com animais e plantas, e.g., Barba, Belo, Bexigoso, Bicudo, Bigode, Delgado/Delgada, Feo/Fea, Manco, Matoso, Penteado, Pestana, Rosado, Casto, Folgado, Forrão, Leal, Mansinho, Maosinho, Camelo/Camela, Cordeiro/Cordeira, Leytam/Leytoa, Lobo, Pinto/Pinta, Raposo, Sardinha, Barbuzano, Botelho/Botelha, Castanheiro, Farinha, Leite, Nabo, Pimenta. Segundo, as alcunhas alusivas aos hábitos de vestuário, origem social e outras particularidades individuais, e.g., Barreto, Calçado, Fidalgo/Fidalga, Agosto, Borralho, Caiado/Caiada, Gago, Homem, Riquo. Terceiro, as alcunhas indicativas de relações de parentesco, estado civil e outras situações familiares, e.g., Bastardo, Colaço/Colaça, Furtado/Furtada, Neto, Sobrinho, Casado, Orfoom. Quarto, as alcunhas provenientes de cognomes ou epítetos com valor distintivo, distinguindo geralmente dois membros de uma família com o mesmo nome, e.g., Grande, Moço, Novo, Pequeno, Velho. Quinto, as alcunhas de significado obscuro, e.g., Abrea, Anrulho/Anrulha, Baldaia, Balmeidão, Barzuegas, Basantes, Borio, Cotiço, Cree, Cambalacho, Escoreio, Masa, Mayuto, Pigarro, Tyrytyro, Zuzuegues. Poder-se-ia ter optado por registar estas formas de classificação difícil numa lista à parte, mas elas foram incluídas no grupo das alcunhas por parecer provável que sejam formas que surgem originariamente como alcunhas. As alcunhas são nomes delexicais, ou seja, nomes formados a partir do vocabulário comum. Sabemos que determinado nome pode ter, consoante o contexto linguístico, valor corrente ou valor antroponímico. Quanto ao valor semântico ou motivacional das alcunhas, apenas se podem levantar algumas hipóteses explicativas para a atribuição de certos nomes a determinados indivíduos. Assim, a alcunha proveniente do nome delexical Cabelo pode ter uma aplicação metafórica com o significado de delgado ou magro, mas pode também ter a ver com o aspeto do cabelo. No caso do nome Velho, a motivação parece ser mais simples e imediata, pois este nome apresenta o significado do lexema comum, podendo fazer referência à idade, ao aspeto físico e à sabedoria do portador, ou ainda à sua posição na genealogia familiar, quando dois indivíduos (e.g., pai e filho) são portadores do mesmo nome, opondo-se o Velho ao Moço ou Novo. Em relação à sua estrutura morfológica e sintática, as alcunhas sofrem os mesmos processos de composição e derivação que o léxico geral (nomes e adjetivos), originando a formação de novas palavras. Assim, as alcunhas apresentam cinco estruturas morfossintáticas: A primeira é concernente às alcunhas frásicas que são formas compostas, geralmente formadas por verbo mais objeto, e.g., Buscarroido, Brita Calçadas, Matassete. A segunda, às alcunhas que são formas compostas, formadas por nome mais adjetivo, adjetivo mais nome ou nome mais complemento determinativo, e.g., Boom Viagem e Byco de Bulhefre. A terceira, às alcunhas correspondentes a lexemas básicos, nominais ou adjetivais, e.g., Barba, Coxo, Velho, Neta, Furtada, Amo, Grande, Pequeno, Moço. Trata-se de cognomes ou epítetos que geralmente distinguem homónimos, sendo por isso originalmente antecedidos por um artigo definido com valor individualizante. Estas alcunhas também ocorrem em substituição do nome completo do individuo, e.g., o Coxo por João Rodrigues Coxo. A presença do artigo definido parece indicar que a alcunha ainda ocorre como atributo com significado pleno, enquanto a sua ausência pode ser um indicativo de que a alcunha já se tornou um segundo nome hereditário, pois os artigos tendem a ser suprimidos quando as designações deixam de ser individualizantes. A quarta, às alcunhas com formas derivadas por sufixação, e.g., Barboso, Cochinho, Paginho, Bocarro, Peixoto, Chamiço. Trata-se de lexemas comuns, com o sufixo diminutivo -inho em Cochinho (forma derivada de Coxo), Paginho (que parece ser a forma diminutiva de Pagem), Mansinho (forma derivada de Manso) e Maosinho (forma derivada de Mau); o sufixo aumentativo -arro na forma Bocarro (que parece ser uma forma derivada de Boca); o sufixo -oto em Peixoto (que parece ser uma forma derivada de Peixe); o sufixo -iço em Chamiço (que parece ser uma forma derivada de Chama); e o sufixo -oso em Barboso, forma derivada de Barba, embora a sua classificação possa ser duvidosa. A quinta, às alcunhas provenientes de construções sintáticas elípticas, geralmente introduzidas por uma preposição, e.g., dos Vinhos, dos Bois, das Vacas, dos Banhos, do Trauto. Contudo, é necessário distinguir expressões como da Mulata, da Rosa, da Neta, da Furtada, onde parece estar subentendida a palavra “filho”, indicando filiação materna. As alcunhas sofrem adaptação morfológica segundo o sexo dos indivíduos aos quais são atribuídas. As formas femininas das alcunhas são geralmente nomes feminizados, que resultam da adaptação das alcunhas dos maridos que são atribuídas às mulheres. Assim, a Coelha é a mulher do Coelho; por isso, ainda no séc. XXI, o nome hereditário de família é a forma masculina e a forma feminina desapareceu. Ao morfema flexional de género masculino -o corresponde, normalmente, o morfema flexional de género feminino -a, e.g. nas formas: Camelo/Camela, Botelho/Botelha, Coelho/Coelha, Mourato/Mourata. Nomes de profissão – Os nomes de profissão, tal como as alcunhas, são nomes delexicais que estabelecem uma íntima relação entre o léxico comum e os antropónimos. Assim, temos nomes de profissão ou ofício e de cargos que surgem como segundos, terceiros e quartos nomes, e.g., Adargueiro, Afilador, Alealdador, Alfaiate, Almotace, Almoxarife, Amo, Barbeiro, Boticairo, Calceteiro, Malheiro, Doceiro, Porqueiro, Sapateiro; e temos ainda, excecionalmente, nomes de objetos relacionados com o trabalho, ou seja, nomes associados a profissões, e.g., Caldeira, Machado/Machada. Os nomes de profissão apresentam geralmente o sufixo -eiro, e.g., Albardeiro/Albardeira, Burziguieiro, Calceteiro, Canavieiro, Carcereiro, Carniceiro, Carpinteiro, Caldeireiro, Caixeiro, Carreiro, Carreteiro, Cerieiro, Columbreiro, Confeiteiro, Escumeiro, Ferreiro, Malheiro, Pedreiro, Picheleiro, Porqueiro, Quadrilheiro, Sapateiro, Serralheiro, Tanoeiro, Vinhateiro. As formas dos nomes de profissão com o sufixo -ador são menos frequentes, e.g., Ferrador e Serrador. Regista-se um caso de alternância entre os sufixos -eiro e -ador, nas formas Alealdadeiro e Alealdador. Terceiros nomes As ocorrências dos terceiros nomes são muito reduzidas em relação às ocorrências dos segundos nomes. Em terceira posição na cadeia antroponímica, predominam os nomes de profissão ou ofício e de cargos. Seguem-se as alcunhas, os nomes geográficos e os nomes étnicos. Ao contrário dos segundos nomes, em que predominam as formas patronímicas, apenas se encontraram três formas patronímicas que são terceiros nomes, com uma ocorrência cada: Diaz, Gonçalves e Soares. Trata-se de um número muito reduzido, quando comparado com o número de frequências das outras formas antroponímicas que surgem como terceiros nomes. No tratamento estatístico dos terceiros nomes, no conjunto das fontes documentais, registam-se 371 unidades antroponímicas diferentes. Em primeiro lugar, por ordem de frequência, temos o terceiro nome Mercador, com 61 ocorrências (3,05 %); em segundo lugar, a forma Espriuam, com 51 ocorrências (2,55 %); em terceiro, a forma Alfaiate, com 27 ocorrências (1,35 %) e a forma Vendedeira, com o mesmo número de ocorrências; seguem-se as formas Sapateiro, com 26 ocorrências (1,30 %), Tabaliam, com 25 ocorrências (1,25 %), Vereador, com 22 ocorrências (1,10 %), Jujz, com 21 ocorrências (1,05 %), Moleiro e Barqueiro, com 19 ocorrências cada (0,95 %). Como se pode constatar, predominam claramente os terceiros nomes que correspondem a nomes de profissão ou ofício e a cargos. Quartos nomes Nas fontes documentais consultadas, apenas se encontram 36 unidades antroponímicas que ocorrem como quartos nomes, o que representa um número muito pequeno relativamente aos segundos e terceiros nomes. Trata-se de um resultado normal, uma vez que é pouco frequente, nos sécs. XV e XVI, a ocorrência de quartos nomes na cadeia antroponímica. Em primeiro lugar, em número de frequência, temos como quarto nome a forma Espriuam, com 8 ocorrências (11,95 %); em segundo lugar, a forma Mercador, com 6 ocorrências (8,96 %); em terceiro lugar, Allealdador, com 4 ocorrências (5,97 %). Verifica-se que os quartos nomes, quando ocorrem, correspondem geralmente a nomes de profissão ou ofício e de cargos, tal como os terceiros nomes. No entanto, é interessante constatar que o nome geográfico do Porto ocupa uma posição predominante, com 4 ocorrências, a par com o nome de profissão Allealdador. Temos ainda, como quarto nome mais frequente, o nome étnico-geográfico Genoves e a alcunha Velho, com duas ocorrências cada (2,99 %). Procedeu-se, pois, à segmentação das cadeias antroponomásticas dos nomes dos primeiros povoadores portugueses, dos estrangeiros e dos escravos, em prenomes, segundos nomes, terceiros nomes e quartos nomes, apresentando as estatísticas por ordem decrescente de frequências das unidades antroponímicas predominantes. O tratamento estatístico dos prenomes masculinos e femininos nas diferentes fontes documentais permite observar que, em fins do séc. XV, predominam os prenomes masculinos Joam e Pero e os prenomes femininos Catarina e Isabell. A partir de meados do séc. XVI, Antonio e Francisco tornam-se os prenomes masculinos mais frequentes, sendo Maria o prenome feminino predominante, enquanto o prenome Mor parece cair em desuso. No tratamento estatístico dos segundos nomes dos povoadores portugueses predominam claramente as formas patronímicas, sendo que os escravos apresentam geralmente os segundos nomes patronímicos dos seus proprietários. Seguem-se, em número de frequência, os nomes geográficos ou de origem, os nomes étnico-geográficos, sobretudo atribuídos aos estrangeiros, e as alcunhas. Quanto aos terceiros e quartos nomes, predominam os nomes de profissão, ofício ou cargo. Trata-se de nomes delexicais que identificam socialmente os indivíduos e que, muitas vezes, se fixam na cadeia antroponímica como nomes hereditários ou nomes de família. Os nomes geográficos dos primeiros povoadores portugueses apresentam grande interesse linguístico, pois permitem identificar a proveniência regional e dialetal dos colonizadores do arquipélago da Madeira. Assim, verifica-se que no povoamento da ilha da Madeira participaram povoadores de todas as regiões de Portugal, mas principalmente do Norte, da região de Entre Douro e Minho. Esta constatação tem importantes implicações no estudo dos dialetos, da etnografia e da história madeirenses. Os segundos nomes dos estrangeiros que se fixaram na Ilha, sobretudo italianos (genoveses e florentinos), franceses, castelhanos e flamengos, mas também ingleses e alemães, atraídos pela riqueza do comércio açucareiro, também apresentam grande importância e interesse histórico e cultural, na medida em se tornaram nomes característicos de famílias da ilha da Madeira, nomeadamente Betencourt, Doria e Drumond. A antroponomástica do arquipélago da Madeira começa a ser fixada definitivamente a partir do séc. XVI, com a criação dos primeiros registos paroquiais, que datam de 1539. Apesar de não haver registos paroquiais dos primórdios do povoamento da ilha da Madeira, verifica-se que a maior parte dos prenomes e nomes de família presentes no começo do séc. XXI já surge nos documentos mais antigos redigidos na Ilha, nos sécs. XV e XVI, fontes documentais que permitem conhecer a antroponímia primitiva da Madeira. 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Leite de, Antroponímia Portuguesa: Tratado Comparativo da Origem, Significação, Classificação, e Vida do Conjunto dos Nomes Próprios, Sobrenomes, e Apelidos, Usados por Nós desde a Idade-Média até Hoje, Lisboa, Imprensa Nacional, 1928; VIEIRA, Alberto, Os Escravos no Arquipélago da Madeira: Séculos XV a XVII, Funchal, CEHA, 1991. Naidea Nunes Nunes (atualizado a 06.07.2016)
gomes, álvaro reis
Diretor do Diário da Madeira e da Escola Industrial e Comercial do Funchal, dividiu-se pela advocacia, depois de cursar direito em Coimbra e Lisboa, pelo jornalismo e pela docência, empenhando-se desde a juventude no projeto que lhe trouxe maior reconhecimento: o ingresso do Club Sport Marítimo, enquanto campeão de futebol da Madeira, no campeonato nacional, que arrancara na época de 1921-1922. Nesse sentido, a missiva que inseriu n’O Sport de Lisboa (1 de abril de 1922) fez dele, em 1923, delegado da Associação de Futebol do Funchal para convencer a União Portuguesa de Futebol da justeza daquela pretensão. Só vinte anos depois, residindo em Lisboa, o relutante delegado conseguia junto da agora Federação Portuguesa de Futebol que um dos dois jogos da eliminatória da Taça de Portugal fosse no Funchal. Houve justiça, por isso, na atribuição do Leão de Ouro (1953), o mais alto galardão do clube, a quem, desde 1917, já exercia funções diretivas e foi presidente da Assembleia Geral em 17 mandatos, entre outros cargos. A sua bibliografia é a de um conferencista e descansa nas páginas ou informações de jornais; exemplo disso é a conferência, proferida em 14 de setembro de 1925 no Salão Nobre do Teatro Municipal, sobre o tenor madeirense Lomelino Silva. A colaboração impressa, sucinta (máximo de 30 páginas) e vária, não muito aprofundada, reduz-se a poucos títulos: “O Comércio: sua Origem e Evolução Histórica”; “Mutualismo” (edição do autor), palestra proferida no Montepio Madeirense, com elogio de Ferreira de Castro, o animador da “Semana do Mutualismo”, no lisboeta O Século: “o escritor ilustre e profundamente humano – o mais profundamente humano de todos os nossos escritores” (1933, 9). O elogio, diametralmente oposto, de um situacionista cai em 1938: “A Lição de Salazar: Dez Anos no Ministério das Finanças a Bem da Nação”; consensual, celebra o “Almirante Gago Coutinho: a sua figura e méritos”, em curto artigo da revista Independência (Lisboa, 1959), da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, aonde regressa, também com separata, para festejar “Portugal e Brasil na Celebração do ‘Dia da Comunidade Luso-Brasileira’” (1967). No salão nobre da Casa da Madeira em Lisboa (Palácio Pombal), curou de “António Feliciano Rodrigues (Dr. Castilho): o Grande Poeta Madeirense”. E na Revista Municipal alfacinha (n.º 112/113, 1967, 16-25) insere, com separata, “Madeira e Madeirenses na Toponímia de Lisboa”, onde nomeia, topografa e historia ou biografa: Av. Ilha da Madeira; R. Gonçalves Zarco; R. Tristão Vaz; R. Bartolomeu Perestrelo; R. do Funchal; praceta Aires de Ornellas; R. Augusto José Vieira; R. Dr. Câmara Pestana; R. Francisco Franco; R. Francisco Luís Pereira de Sousa; R. Comandante Freitas da Silva; Lg. de D. João da Câmara; R. Quirino da Fonseca; R. Reis Gomes; Pç. do General Vicente de Freitas. Rastreamos um derradeiro artigo, “A Ilha da Madeira Vista por Grandes Nomes das Letras Nacionais e Estrangeiras”, em Das Artes e da História da Madeira: Revista de Cultura da Sociedade de Concertos da Madeira (Funchal, vol. VIII, n.º 38, 1968, 27-29). Obras de Álvaro Reis Gomes: “O Comércio: sua Origem e Evolução Histórica” (1929); “Mutualismo” (1933); “A Lição de Salazar: Dez Anos no Ministério das Finanças a Bem da Nação” (1938); “Almirante Gago Coutinho: a sua Figura e Méritos”, Independência (1959); “António Feliciano Rodrigues (Dr. Castilho): o Grande Poeta Madeirense” (1965); “Portugal e Brasil na Celebração do ‘Dia da Comunidade Luso-Brasileira’” (1967); “Madeira e Madeirenses na Toponímia de Lisboa” Revista municipal (1967);“A Ilha da Madeira Vista por Grandes Nomes das Letras Nacionais e Estrangeiras”, Das Artes e da História da Madeira (1968). Ernesto Rodrigues (atualizado a 24.09.2015)
gazetilha em verso
A palavra “gazetilha” (do cast., gacetilla: “periódico”) tem várias aceções em português. Na sua origem, correspondia à secção que coligia as notícias mais importantes do dia. Nela se destacavam notícias de interesse geral, notas teatrais e um ou outro caso de polícia. Em periódicos destinados a um público mais popular, a gazetilha reportava muitas vezes dramas quotidianos, crimes passionais e tragédias diárias. Rivalizava, na sua função de cativar e entreter os leitores, com o “folhetim”. Sendo um espaço flexível de géneros textuais multiformes e híbridos, passou a designar ora a rubrica de breves sobre curiosidades do quotidiano, ora uma modalidade simultaneamente literária e jornalística, composta normalmente em verso, mas com formas estróficas variáveis, que trata, num modo jocoso, de assuntos ligeiros. É sobre este último conceito que vamos ensaiar uma abordagem. Vazado na tradição do epigrama crítico e humorístico, este género textual, muito em voga na imprensa portuguesa desde a segunda metade do séc. XIX até à primeira metade do séc. XX e caído entretanto em desuso, reaparece por vezes, como exercício de estilo revivalista, na imprensa regional ou local. Trata-se de uma forma poética geralmente cultivada por um homem – a uma mulher não ficaria bem essa prática discursiva, o que não quer dizer que não houvesse alguma a escrever sob identidade encoberta – com predicados de moralista que costuma optar, atendendo a um princípio de cautela, por assinar com pseudónimo ou com enigmáticos monogramas. Na imprensa madeirense (Imprensa), tanto quanto nos é dado saber, praticou-se a “gazetilha” em verso até à déc. de 60 do séc. XX , nomeadamente com uma rubrica de Jaime Vieira dos Santos, sob o pseudónimo de Observador, no Jornal da Madeira (Jornal da Madeira). Do ponto de vista de sua intenção e conteúdo, a gazetilha visa comentar com humorismo factos da atualidade e costumes locais, esboçar um tipo de perfil típico, reconhecível, ou dar conta de um evento social ou de hábitos domésticos (p. ex., um baile, uma quadra festiva, uma ida a banhos, cenas caseiras). Na prática, trata-se de fazer troça de um alvo (indivíduo, situação ou assunto jornalístico) e de fazer rir o público leitor, dando-lhe por vezes a entender mais do que realmente está sendo dito. Ao certo, com este tipo de composição em verso, pretende-se rir da sociedade e da vida, despreocupadamente. Por entre a sátira, a ironia, a rábula e a anedota, os temas e o registo estilístico cruzam-se no processo de sua estruturação estética e significativa. Este tipo de composição de sabor chistoso costuma comportar as seguintes características: versos ligeiros com expressões do quotidiano, despretensiosos e aparentemente espontâneos; tom leve e engraçado, cheio de bom humor e oportunidade. A título de exemplo da forma e do espírito da “gazetilha”, reproduzimos um excerto da composição “Há Males…”, de Daniel da Costa (1897-1971) (Costa, Daniel da): Ninguém me anime ou conforte, / julgando isto uma desgraça, / pois acho até imensa graça, / que na mais bela das ilhas, / por escrever gazetilhas, / a um poeta se dê caça. (COSTA, 1988, 190). Esta escrita tende a articular o saber popular e a cultura erudita, a cultivar o arejado das ideias e o apropriado das observações; atende a um certo rigor da métrica e ao conceituoso da frase. Não raro, apresenta no final da composição um remate espirituoso. Tida pela tradição académica como uma forma poética de inspiração vulgar, considerada por outros uma “difícil modalidade literária”, segundo a expressão do visconde do Porto da Cruz (1953, p. 66), este comentário jocoso exibido em versos foi praticado na Madeira por alguns gazetilhistas reputados, designadamente Francisco António Ferreira (1870-1912), Daniel da Costa, Jaime Vieira dos Santos (1903-1981), Gonçalves Preto (1907-1971) (Preto, Pedro Gonçalves) e João França (1908-1996). A este elenco poderíamos acrescentar, na perspetiva de um jornal falado, poetas populares, designadamente Manuel Gonçalves (c. 1858-1927), mais conhecido como o “Feiticeiro do Norte”, a julgar pelo seu folheto “As Raparigas dos Bordados”, e o “Pedrada”, esse músico excêntrico do Funchal do primeiro quartel do séc. XX, a que faz referência o visconde do Porto da Cruz no seu estudo sobre a História Literária da Madeira, sem, todavia, apresentar uma amostra de versos desse autor. Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses: Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; COSTA, Daniel da, Asas Quebradas, Funchal, SRTCE-DRAC, 1988 [1.ª ed., Lisboa, 1950]; FRANÇA, João, Cântico da Terra Ilhoa, pref. de Fátima Pita Dionísio, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 2008; MARINO, Luís, A Musa Insular, Funchal, Editorial Eco do Funchal, 1959; PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. III, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1953. Thierry Proença dos Santos (atualizado a 07.07.2016)