arraiais / romarias
Nas sociedades agrárias sempre existiram cultos e praticaram-se ritos, associados às forças mágicas, que o Homem julgava controlarem a natureza e a existência humana. Estes rituais de purificação e de apelo à fertilidade estavam intimamente ligados às diferentes estações do ano, nomeadamente as cerimónias de expulsão do Inverno, as de celebração da chegada da Primavera ou as de comemoração do final do ciclo agrícola.
Os meses de Verão – junho a setembro – época das colheitas, eram meses festivos por excelência. Tratava-se da “recompensa” final pelo árduo trabalho tido ao longo do ciclo agrícola anual sendo, portanto, uma época de plenitude, de alegria, de Festa.
Muitos destes rituais profanos foram absorvidos pelo Cristianismo, que os transformou em solenidades religiosas, embora sagrado e profano continuem a “conviver” no mesmo espaço, misturados numa amálgama de crenças e rituais. As romarias são celebrações religiosas de invocação divina ou em honra de um santo, patrono de uma localidade ou de um santuário. Distinguem-se das outras festas religiosas pelo caráter de “peregrinação”, do percurso efetuado pelo povo até o local do santuário, antigamente a pé, por caminhos íngremes e atalhos.
No arquipélago da Madeira, tal como no resto do país, em todas as paróquias celebram-se estas festas religiosas, as quais são consagradas a Deus, ao Espírito Santo, a Nossa Senhora e aos santos e santas, representados por uma relíquia – fragmento ou objeto – ou por uma imagem.
Estas festas têm usualmente a sua origem na crença do povo em lendas populares ou foram introduzidas pelos primeiros colonizadores, que trouxeram consigo os seus santos detentores de poderes milagrosos, tornando-os protetores de determinadas localidades.
A sua História, no entanto, reporta-se a tempos muito remotos, a cultos ancestrais e a crenças anteriores ao cristianismo, que se mantiveram apesar das normas oficiais religiosas as terem adaptado e transformado. A construção dos primeiros templos religiosos teve lugar, muitas vezes, na proximidade de antigos santuários pagãos e algumas lendas estão associadas implícita ou explicitamente a antigas divindades.
Parece existir efetivamente uma continuidade entre o dinamismo popular que se exprime nas romarias e as formas religiosas que precederam o cristianismo. A localização dos santuários junto dos antigos lugares de culto, as lendas dos santos – e o seu culto – associadas aos elementos naturais (rochedos, mar, fontes, árvores), a permanência de certos itinerários ou gestos rituais, a intensidade do sentimento da natureza que leva o romeiro a ver a sede do sagrado mais na globalidade de um sítio, cuja harmonia aprecia e celebra, do que nos limites estreitos do santuário, a tendência, historicamente atestada pela igreja, para celebrar “junto das árvores” e “no campo”, são elementos que nos obrigam a ler o comportamento dos romeiros em referência a gestos e sem dúvida a complexos rituais abolidos (SANCHIS, Arraial, 325).
As romarias realizam-se usualmente aos fins-de-semana e constituem um período de descanso, uma pausa no trabalho quotidiano. Eram organizadas pelos “festeiros”, “mordomos” ou “cabeças”, às suas custas, ou por uma Comissão de Festeiros com dinheiro seu e esmolas dos fiéis ou, ainda, pelas confrarias. Para ajuda da celebração de algumas festas eram recolhidas durante o ano esmolas espontâneas dos fiéis, em pequenas caixas patentes nas igrejas. Nas dependências de algumas igrejas conservaram-se alguns exemplares dessas antigas caixas, umas de arrecadar e outras de receber esmolas, tendo as primeiras proporções de verdadeiras arcas com ferragens. Quando utilizadas para receção de esmolas, possuíam uma fenda de mealheiro. Algumas serviram também para cofre de confrarias e da fábrica ou administração das igrejas.
Os gastos com as festas incluíam os custos com o pessoal necessário às cerimónias do culto, as ornamentações e iluminação do templo, adro e arredores, o fogo-de-artifício e a música do arraial. Era comum os “festeiros” serem emigrantes que vinham à sua terra natal em cumprimento de promessa ou devoção e que ostentavam a sua riqueza com elevados gastos.
Inicialmente nas mãos do povo, aos poucos e poucos a “mordomia” das festividades foi entregue pela igreja aos párocos, numa tentativa de sobrepor os rituais sagrados aos rituais profanos, tendo em algumas festas desaparecido a figura do chamado “festeiro”.
Para cobrir as despesas da Festa era também montada uma barraca com comes e bebes, a designada “casa de chá”, costume que ainda se mantém. São usualmente as senhoras, que colaboram voluntariamente com a igreja, que ali vendem iguarias confecionadas por si e doadas à igreja para angariar receitas. É também montado um bazar, a designada copa, onde são colocadas as oferendas, cujas receitas do leilão dos produtos reverte a favor da igreja. Antigamente era também habitual venderem-se “sortes” de papel.
Os registos constituem outra fonte de receita. O peregrino compra à igreja a imagem de um santo, em papel, o chamado registo, o qual era costume os homens ostentarem no chapéu, durante a Festa, em sinal de devoção, levando-o depois para casa como proteção.
Nestes dias a igreja está decorada exteriormente com plantas, nomeadamente o louro, a murta, o buxo e a giesta e o seu interior com alegra-campo e flores da época, costume este provavelmente com origem pagã, pois também se oferecia a Ceres - Deusa romana da agricultura – louro, murta, alecrim e rosmaninho, durante as festas das colheitas.
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Na véspera, à noite, o frontispício da igreja é iluminado com cordões de luzes que se desdobram em gambiarras ao longo dos caminhos do local da Festa. Antigamente a eletricidade para estas iluminações era produzida por geradores volantes ou utilizavam-se fogos naturais de azeite em tijelas coloridas, escamas de cebola, valvas e, embora mais raramente, por meio de velas de estearina dentro de balões de papel. (PEREIRA, Ilhas, II, 488-489)
Os rituais religiosos incluem missas, novenas, confissões e a procissão. No dia da Festa, após a missa, sai o cortejo religioso – a procissão – acompanhado da imagem do patrono, no qual participam as confrarias da Paróquia que usualmente trajam opas de seda no Sul (segundo alguns autores, esta tradição seria uma reminiscência dos fidalgos e Senhores) e de lã e baeta no Norte, distinguindo-se, assim, do povo. As crianças, que celebram a “Primeira Comunhão” naquele ano, vão vestidas de anjos, outras com trajes regionais e distribuem pétalas de flores durante o percurso. O adro e as vias públicas por onde passa a procissão são ornamentados com bandeiras, arcos de verdura e flores.
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Em tempos idos entravam neste cortejo religioso representações de caráter profano, nomeadamente de determinados ofícios e mesteres. Segundo descrição de alguns autores, na procissão do Corpo de Deus chegaram a ser introduzidos disfarces, alegorias históricas, folias e danças, rituais que teriam sido reprimidos pela igreja e por isso extinguidos.
Destes rituais profanos ter-se-ia conservado, até mais tarde, a designada “dança das espadas”, com tradição na Festa de S. Pedro, no concelho da Ribeira Brava.
Em algumas freguesias, em especial no concelho do Funchal, as casas do itinerário da procissão desdobravam para a rua, pendentes das janelas e sacadas, colchas de seda e damasco, saídas das arcas especialmente para aquela ocasião, costume que terá sido introduzido pelos nobres na época da colonização (PEREIRA, Ilhas, II, 500-501).
Dentro da igreja é costume os fiéis beijarem o santo festeiro, numa espécie de bênção propiciatória, simbolizando a aceitação do seu poder milagroso. Os romeiros para pagar as promessas feitas em momentos de aflição, fiéis aos seus votos, vão muitas vezes levar junto ao altar as suas preces e as ofertas devidas, à imagem da sua predileção. As dádivas dos fiéis são pagas de diferentes formas: a oferta de ex-votos em cera, com a forma de partes do corpo que foram curadas, as novenas, a queima de círios e a doação de bens ou os sacrifícios.
Segundo alguns autores, as festas onde ocorriam mais romeiros no cumprimento das suas promessas seriam as do Monte, Ponta Delgada, Machico e Loreto. No cumprimento destas promessas, viam-se homens carregando pesadas barras de ferro ou mulheres de joelhos nus arrastando-se pelas pedras da calçada ou subindo íngremes degraus, como era tradição na escadaria de acesso à Igreja de Nossa Senhora do Monte.
Para além da parte espiritual, traduzida na devoção do povo, as romarias foram sempre ocasiões e pontos de encontro das populações da freguesia com as outras que acorriam aos locais da romagem, proporcionando momentos de convívio, troca de notícias, estabelecimento de laços comerciais e de amizade e, muitas vezes, compromissos de casamento. As raparigas aproveitavam as festas para estrear os vestidos e sapatos novos e os rapazes para exibirem os seus dotes físicos, em jogos, rituais, lutas ou outras proezas, estreitando-se os laços afetivos. Lugar de uma socialização intensa mas fugaz, dominada pela liberdade relativamente às regras, o arraial permitia encontros cuja significação erótica era com frequência particularmente marcada.
A par da estrutura familiar e social e da estrutura económica, com as suas tecnologias e atividades profissionais, as festas ocupam um lugar fundamental, pelo papel que desempenham e pela enorme diversidade de aspetos que as caraterizam. Embora todas as freguesias tenham as suas festividades religiosas e possuam caraterísticas semelhantes, inerentes às celebrações religiosas comuns, a identidade de cada comunidade é revelada na ornamentação do espaço e nas diferenças que assumem os rituais religiosos e profanos em cada localidade e que constituem motivo específico de atração para os romeiros.
De entre as romarias mais concorridas do arquipélago, procurámos descrever aquelas que consideramos possuir traços específicos interessantes e por vezes únicos, relacionados com os rituais de caráter religioso (promessas, oferendas ou procissão) ou com os rituais profanos, nomeadamente o arraial: a Festa de Nossa Senhora do Monte no Funchal, a Festa dos Milagres em Machico, a Festa de Nossa Senhora da Piedade no Caniçal, a Festa de Nossa Senhora do Livramento no curral das Freiras, a Festa da Ascensão do Senhor na Ponta do Sol, as festas do Santíssimo Sacramento em diferentes localidades, a Festa de S. Pedro na Ribeira Brava e a Festa do Senhor do Bom Jesus na Ponta Delgada. Entre as romarias madeirenses a mais antiga parece ser a de Nossa Senhora do Faial, fundada, segundo consta, na crença da aparição de Nossa Senhora no local onde foi erguida a igreja.
No entanto a mais concorrida é talvez a do culto de Nossa Senhora do Monte, que celebra-se a 15 de agosto e tem origem na lenda que refere a aparição de uma Menina, Nossa Senhora, a uma pastorinha, no sítio do Terreiro da Luta, localizado a cerca de 1 quilómetro acima da atual igreja. Desde então foi instituída toda uma devoção, alimentada por diversos milagres, estendendo-se o culto por toda a ilha.
O culto a Nossa Senhora do Monte parece vir desde tempos imemoriais, quando Adão Gonçalves Ferreira mandou construir a primitiva ermida de Nossa Senhora da Incarnação, tendo ali nascido, em 1470, o culto mariano em honra e louvor àquela que noventa e cinco anos depois teria o título de Nossa Senhora do Monte. Este culto foi reforçado com a criação da “Confraria dos Escravos de Nossa Senhora do Monte” e espalhou-se por toda a ilha e pelas comunidades de madeirenses emigrados, até atingir a dimensão atual.
De entre todas as romarias esta é uma das mais concorridas por ser a da Padroeira do Funchal e dos madeirenses, sendo muitas vezes invocada em casos de “aflições públicas”. O povo considera-a sua protetora e a ela atribui a sua salvação aquando de muitas calamidades como aluviões, naufrágios, fomes e doenças, sendo disso testemunho muitos documentos escritos. O maior motivo de atração desta Festa são as inúmeras promessas em cera, dinheiro e penitências públicas, que todos os anos são cumpridas no seu santuário.
As velas ou círios, símbolos de fé e objetos das promessas dos romeiros, são feitas de cera e possuem vários formatos. É comum retratarem-se partes do corpo humano ou utilizar-se uma vara de cera da mesma altura do peregrino. Antigamente estas eram colocadas no interior de canas de roca, para chegarem à altura dos peregrinos e eram ornamentadas com fitilhos de papel azul e vermelho, colocados em espiral e era comum, à porta da igreja, ouvirem-se pregões de velas.
A Festa de Nossa Senhora do Livramento, festejada a 8 de Setembro no Arco da Calheta é também uma romaria que atrai muitos fiéis para cumprimento de promessas. Trata-se de uma Festa muito antiga, tendo sido o seu culto introduzido por Dona Joana de Eça, donatária de todas as terras do Loreto, no reinado de D. João III.
Sendo o seu arraial muito concorrido, esta é uma das festas nas quais a tradição do “fogo preso” ainda se mantém viva, sendo as despesas destes festejos muitas vezes assumidas por emigrantes em cumprimento de promessas. No dia 7 celebra-se a novena e durante a noite decorre o arraial. À meia-noite é lançado o fogo-de-artifício e depois tem lugar o espetáculo com o tradicional “fogo preso”, sendo comum a exibição da “velha e o velho” e da “roda manhosa” e, no dia seguinte, a tradicional “girândola”, ao meio-dia, antes da missa e da procissão. ” Esta é montada num muro, próximo da igreja, em local seguro. É formada por um conjunto de “salvas”, uns paus compridos com pequenos orifícios, onde são introduzidos 21 foguetes.
A “velha e o velho” são dois bonecos repletos de artefactos pirotécnicos, que giram à medida que são consumidos pelo fogo. Estas figuras parecem estar relacionadas com antigos rituais associados aos ciclos agrícolas e à renovação da natureza, praticados no nosso país. Era comum o povo fazer um boneco, com feixes de trigo, que constituía a personificação da força ativa da vegetação, o qual era lançado à água, de forma a garantirem a chuva, ou era queimado e as cinzas espalhadas pelos campos de modo a garantirem a fertilidade. Estas figuras representavam também a morte do ano velho e expulsão do inverno, com o consequente renascimento do ano novo e chegada do verão.
A “roda manhosa” é um artefacto com a forma de uma roda, na qual estão dispostos vários foguetes, que à medida que são lançados a fazem girar. (FERREIRA, Festas)
A Festa dos Milagres, em Machico, tem como caraterística distintiva os fachos (fogueiras), que antigamente eram dispostos ao longo das encostas sobranceiras, em figuras alegóricas e motivos alusivos à Festa e os archotes que figuram na procissão.
Segundo os historiadores, foi em Machico, no sítio da Banda d’Além, que se celebrou a primeira missa na Madeira, por padres franciscanos. Como agradecimento pela nova descoberta João Gonçalves Zarco mandou construir uma capela, à qual foi dado o nome de capela de Cristo. Anos mais tarde a capela passou a designar-se capela da Misericórdia, em virtude de ter sido a sede da Santa Casa da Misericórdia.
A 9 de Outubro de 1803 o leito da ribeira transbordou, inundando a vila de Machico e as águas invadiram a capela, destruindo-a parcialmente e arrastando para o mar a imagem de Nosso Senhor na Cruz. Segundo a lenda, três dias depois uma embarcação americana que vinha do Funchal recolheu a imagem que milagrosamente boiava, a qual foi levada para a sé do funchal.
Em 1813 a capela foi reconstruída e a imagem foi transportada para a capela, num escaler, durante a noite, acompanhada por barcos de pesca e recebida pelos pescadores, que transportavam archotes e cantavam hinos ao Senhor. Ainda segundo a lenda, quando os barcos entraram na baía, os sinos tocaram a rebate sem que ninguém lhes tivesse tocado. Após este acontecimento a capela passou a designar-se capela dos Milagres.
Em memória do dia em que Nosso Senhor dos Milagres protegeu aquela zona do grande aluvião e pelo facto de a imagem ter sido recuperada intata celebra-se a 8 e 9 de Outubro a Festa em sua honra.
O ponto mais alto desta Festa é a procissão que tem lugar no dia 8. A imagem sai da capela, percorre algumas ruas e é levada para a Igreja Matriz. Duas filas de pescadores, transportando archotes, desfilam em silêncio. Segue-se o andor com a imagem, transportado numa embarcação, seguido pelo Bispo, os padres e a banda. Atrás destes vão os fiéis, com sírios ou votos (partes do corpo humano feitas em cera), alguns descalços, que se integram na procissão em cumprimento de promessas.
Durante este ritual a iluminação pública é desligada, ficando a vila apenas iluminada pelos archotes e pelas velas dos fiéis que percorrem as ruas da vila de Machico, em silêncio, com devoção. Na chegada à igreja matriz, ouvem-se os sinos e a imagem é recebida pelo povo, com uma salva de palmas.
Um dos rituais que caracterizava esta Festa, os chamados “fachos”, extinguiu-se. Tratavam-se de fogueiras, que o povo fazia nos sítios onde morava ou nas serras vizinhas, queimando pinhas e toros, regados de petróleo, que iam buscar à serra dias antes da Festa. Eduardo C. N. Pereira deixou-nos uma descrição pormenorizada deste ritual profano: “Para isso reúne-se ao toque de búzios, partindo de noite em romaria e regressando numa enorme bicha, ao som de toques e descantes, as pinhas dentro de sacos, toros velhos às costas e feixes de ramagens secas à cabeça. A queima faz-se na véspera, ao anoitecer, nas encostas sobranceiras à vila, dispostos os fogachos em figuras alegóricas, letras, nomes e desenhos alusivos à Festa. É um espectáculo típico e de grande atractivo para milhares de forasteiros". (PEREIRA, Ilhas, II, 489-490)
A disposição dos fachos formava diversas figuras, elaboradas ao sabor da criatividade e espiritualidade do povo: “ Na concha formada pelo vale de Machico, ficavam semeados esses fachos, formando místicos desenhos como cruzes, cálices, corações, custódias e ainda peixes, barcos, ziguezagues, etc.” (CRISTOVÃO, Elucidário, 30)
O traço que distingue a Festa de Nossa Senhora da Piedade, no Caniçal, freguesia igualmente pertencente ao concelho de Machico, é também a procissão, que é feita pelo mar, atendendo à devoção e empenho dos pescadores.
Os portugueses prestam culto a Nossa Senhora da Piedade, em muitas localidades, desde tempos remotos. A imagem é usualmente apresentada junto à Cruz, com Jesus morto no seu regaço, ilustrando a dor de uma mãe, perante a perda de um filho. Na Madeira a devoção à N. Senhora da Piedade remonta ao início da colonização.
A capela construída no século XVII encontra-se localizada no alto do Monte Gordo ou da Piedade, localizada a cerca de quatro quilómetros da Igreja paroquial. A autoria da sua construção é incerta, embora alguns historiadores atribuam a sua fundação a Garcia moniz, primeiro administrador do morgado do Caniçal, ou a algum dos seus sucessores.
A lenda atribui a sua construção a uma promessa de um grupo de marinheiros. Segunda reza essa tradição, os marinheiros ao ver o seu navio quase a despedaçar-se contra a costa teriam prometido construir uma ermida dedicada a Nossa Senhora. Quando a tempestade acalmou a dissipou-se o nevoeiro, teriam avistado terra, o Monte Gordo, e ali decidido construir a dita capela em honra a Nossa Senhora da Piedade.
Apesar de não ser padroeira desta freguesia, a Festa em sua homenagem, no terceiro fim- de-semana de Setembro, atrai mais fiéis a esta localidade do que a Festa de São Sebastião, o seu padroeiro. A Festa é suportada pelos pescadores, que vão pondo de parte, ao longo do ano, verbas provenientes da venda do pescado.
No dia anterior é realizado um sorteio, entre os arrais dos barcos de maiores dimensões, sendo efetuada a seleção do barco que irá transportar a imagem: o “barco bento”.
A partir das 15h00 realiza-se a procissão, que sai da Igreja paroquial e dirige-se para o cais, onde estão os barcos ancorados. No barco sorteado, que conduz a procissão, vão os homens que transportam o andor, os Irmãos da Confraria, o Padre, a banda e o arrais e um elemento da Confraria que transporta a caixa, que contém o ouro com o qual a imagem será ornamentada.
Os restantes barcos, enfeitados com bandeiras e folhas de palmeiras, apinhados de fiéis, seguem-no enfileirados, em direção ao Monte Gordo ou Monte da Piedade.
A procissão desembarca no cais da Quinta do Lorde e segue a pé, por um caminho íngreme, até à capela. À entrada do templo a banda toca o hino a Nossa Senhora da Piedade, acompanhando depois os cânticos religiosos entoados pelos devotos.
Algumas pessoas permanecem nos barcos, aproveitando para dar um passeio até à Ponta de S. Lourenço. São servidos pão com atum ou gaiado e bebidas.
Passado algum tempo o barco volta, para levar a imagem de Nossa Senhora da Piedade já ornamentada com o ouro proveniente de graças obtidas e inicia o trajeto de regresso à vila. O andor é sempre transportado por homens em cumprimento de promessas. Estes transportam, ainda, uma pintura sobre madeira, representando Nossa Senhora da Piedade, encerrada numa espécie de vitrina.
Após o desembarque, a procissão dirige-se para a Igreja Matriz, onde tem lugar a Missa. Depois da celebração formam-se filas de crentes, que beijam a imagem e fazem as suas promessas.
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No início da tarde do dia seguinte, ao terminar a Missa, é realizada de novo a procissão marítima, fazendo-se o percurso inverso, para devolver a imagem à sua capela. Neste percurso a imagem fica com o rosto virado para a vila, abençoando a terra e os fiéis.
O renascimento simbólico do sol, triunfo sobre o inverno, sempre presidiu a todos os ritos de fecundidade das festas de Verão, pois esta estação representa a plenitude dos ciclos da terra, a alegria das colheitas, a recompensa, a qual era agradecida oferecendo-se produtos agrícolas aos Deuses. Muitos destes rituais foram absorvidos pelo Cristianismo, motivo pelo qual muitas festas religiosas mantêm, embora por vezes noutros moldes, rituais idênticos aos pagãos, nomeadamente as oferendas.
As oferendas constituem, pois, uma das características tradicionais das romarias, com um misto de profano e religioso. O povo faz ofertas à Igreja, em dinheiro ou géneros, para ajudar nas despesas da Festa, que constituem uma espécie de dádivas.
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Este ritual adquire traços curiosos na Festa de Nossa Senhora do Livramento, no curral das Freiras, concelho de câmara de lobos pelo tipo de percurso e pela forma como é efetuada a recolha, a qual mantém características que não foram alteradas ao longo dos tempos.
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Durante muito tempo a freguesia do curral das Freiras, rodeada de montanhas, encontrava-se praticamente isolada, sendo o acesso a esta localidade efetuado por veredas e caminhos muito íngremes. Este percurso, desde a Eira do Serrado até à Igreja, ficou conhecido como as “Voltinhas do curral” e era comum os idosos, os doentes e mesmo alguns forasteiros, percorrerem estes caminhos em redes, transportadas por dois homens às costas. Devido à orografia do terreno era também frequente a população ficar isolada, quando se davam as quebradas, durante as intempéries. Talvez por todas estas condicionantes, a devoção a Nossa Senhora do Livramento, protetora de todos os males e perigos, ficou enraizada na alma dos curraleiros, sendo a padroeira desta freguesia. A capela em sua honra foi construída no reinado de D. Maria I e a sua Festa celebra-se no último fim-de-semana do mês de agosto.
As romagens nesta Festa adquirem uma feição ainda muito tradicional, juntando dezenas de pessoas. Na parte da tarde de Sábado o padre e a banda dirigem-se aos diversos sítios para recolherem as oferendas. Percorrem os Sítios do Pico Furão, Fajã dos Cardos, Colmeal, Ribeira do Cidrão, Fajã Escura, Casas Próximas e Achada. Os romeiros cantam algumas rimas populares alusivas às oferendas e dançam e lançam foguetes para animar a Festa, enquanto aguardam a chegada do pároco, gerando-se um alegre convívio. À chegada do pároco a banda toca o hino. Este percurso é efetuado por todos os sítios, repetindo-se os mesmos rituais desfilando, ao fim de um certo tempo, dezenas de pessoas neste cortejo processional, cantando ao som da banda. De vez em quando param em frente dos estabelecimentos e das residências de antigos festeiros e há um convívio, no qual todos bebem, comem, tocam e cantam. As paragens nas residências de antigos festeiros são, usualmente, mais demoradas.
As oferendas em dinheiro são transportadas em diferentes suportes, sendo a sua ornamentação resultado da criatividade dos habitantes de cada sítio. Antigamente eram oferecidos muitos animais, os quais eram ornamentados com tiras de papel coloridas, sendo adquiridos, durante o percurso, pelos rapazes que iam casar. Quando chegam à Igreja, as oferendas são depositadas no bazar, e são depois leiloadas.
Na Festa da Ascensão do Senhor, no concelho da Ponta do Sol, durante a celebração religiosa pode-se assistir a dois rituais curiosos: uma “chuva” de “flores de maio” e pétalas de rosa, que caem de todos os recantos do templo e que o povo utiliza, mais tarde, numa espécie de apelo à fertilidade e a nomeação do festeiro, numa cerimónia aparatosa.
“De véspera, crianças de todos os sítios se encaminham para a igreja com açafates de flores destinadas à ornamentação do templo. Antes de principiar a solenidade, uma filarmónica acompanha o festeiro e família da sua casa à igreja, em ar de cortejo ao som de uma marcha. Os festejados atravessam os caminhos e entram na Igreja em triunfo (…). Dentro do templo tomam assento reservado junto ao altar-mor, onde assistem a todas as cerimónias de tocha acesa na mão. A meio da missa, honra-os o ajudante da cerimónia com três ductos de incenso. Antes de principiar o sermão, o pregador nomeia o festeiro do ano seguinte o que constitui um sucesso na freguesia porque ser festeiro da Ascensão, na Ponta do Sol, é atingir o apogeu da glória. É um título que se junta ao nome (…) uma espécie de entrada na aristocracia. Fazer a Festa da Ascensão é atestar para sempre riqueza e honorabilidade.
Depois da Festa canta-se a hora de Noa do Ofício Divino; enquanto ressoam as harmonias do cantochão, uma chuva de flores de maia e pétalas de rosa irrompe de todos os recantos e bocas interiores do templo. O povo, ao findar esta cerimónia, atropela-se para subir os degraus do altar-mor e recolher as flores ali caídas, guardando-as para atirar às árvores com a supersticiosa intenção de as fazer frutificar.” (PEREIRA, Ilhas, II, 521)
O ritual complexo de nomeação do festeiro nesta Festa parece revelar outro elemento: o da intervenção do sagrado na esfera do social, “regulamentando-o”, enquanto que o ritual da “chuva de flores” é comum noutros locais e está associado a ritos vegetativos.
Este tipo de ritos vegetativos é praticado, aliás, em diferentes países da Europa, associados à comemoração da chegada da primavera e à renovação da natureza. Estes rituais mágicos, de profilaxia e esconjuro, associados às estações do ano e aos ciclos agrícolas, parecem estar ligados a práticas extintas, que sobreviveram ao longo dos séculos, inseridas em novos cultos.
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Já os povos pré-cristãos acreditavam nos poderes mágicos das flores, utilizando-as em diferentes cultos, associados por exemplo à mortalidade, à fertilidade ou à abundância, em determinadas curas ou para afugentar os maus espíritos. As flores, que parecem ter ocupado desde tempos imemoriais um lugar especial na vida dos homens, são até os dias de hoje usadas em diversos rituais, nomeadamente em todos os ritos de passagem, desde o nascimento até à morte.
Este tipo de consagrações florais, que possuem raízes ancestrais, estão também presentes em muitos rituais, profanos e religiosos, associados a diferentes festividades: os cestos das chamadas “saloias do Espírito Santo”, ornamentados com flores e repletos de pétalas para serem lançadas durante o percurso das visitas pascais, as pétalas lançadas nas Igrejas, nas procissões ou nos campos de cultivo, como referimos anteriormente, os cortejos de flores para ornamentação de algumas capelas e igrejas ou os tapetes de flores, são alguns exemplos.
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O tapete de flores, ou o “tapete do Senhor” como é popularmente designado, com formas geométricas preenchidas com musgo, folhagem e flores variadas, é a grande atração das festas do Santíssimo Sacramento. A origem da solenidade do Corpo e Sangue de Cristo remonta à Última Ceia, onde Jesus e os Apóstolos comeram pão e beberam vinho, símbolos da “Sua carne e do Seu sangue”. No século XII a adoração da hóstia desenvolve-se fora da missa e aumenta a afluência popular ao Santíssimo Sacramento. Na Madeira, este culto, praticado em todas as freguesias, remonta aos tempos da colonização.
Uns dias antes da Festa, as verduras e flores mais resistentes são recolhidas por homens e mulheres dos diferentes sítios, para a confeção do “tapete do Santíssimo”, sendo as mais frágeis e menos duradouras colhidas no próprio dia. Cada sítio confeciona uma parte do tapete, existindo uma rivalidade entre os vários locais.
A Festa de Nossa Senhora do Livramento, na Ponta do Sol, na primeira quinzena de Outubro, possui também uma característica especial: um cortejo de flores, conhecidas por “beladonas” (Amaryllis bella-dona L.).
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Na sexta-feira anterior à Festa, homens e mulheres partem em romaria para o sítio do Rochão, na freguesia do Arco da Calheta, percorrendo a pé, durante horas, íngremes caminhos, para colher aquelas flores para a ornamentação da capela do Livramento, mandada construir em 1662 por Diogo Ferreira Mesquita.
Durante o percurso comem, bebem e cantam, num alegre convívio. Só regressam no Sábado ao meio-dia, juntando-se a população nas bermas da estrada para ver passar aquela grande fila de romeiros que, transportando aquelas flores rosa, dirige-se até à capela, formando um cortejo colorido e muito animado.
Uma idêntica consagração floral é realizada pelo povo madeirense, no mês de Setembro, para a ornamentação da capela de Nossa Senhora do Bom Despacho, na freguesia do Campanário, concelho da Ribeira Brava, deslocando-se à serra, de madrugada, para apanhar açucenas com as quais decoram a capela.
Os autores do Elucidário Madeirense fazem também referência a uma curiosa romagem, para celebração das colheitas, na freguesia de Santo António da Serra, com características peculiares, que parece também constituir um ritual vegetativo, associado às estações do ano e aos ciclos agrícolas: Há 40 para 50 anos, realizava-se no primeiro domingo de Outubro uma romagem à freguesia de Santo António da Serra afim de celebrar a conclusão das colheitas(…) Os romeiros enquanto se demoravam naquela localidade praticavam os maiores desatinos, e, no regresso, percorriam as ruas da cidade, levando ramos de árvores e bandeiras, sendo precedidos de alguns homens batendo em tambores e tocando instrumentos de corda. (SILVA; MENEZES, Elucidário, III, 221)
Dois rituais, de caráter religioso e profano caraterizavam a Festa de S. Pedro, comemorada nos dias 28 e 29 de Junho, na freguesia da Ribeira Brava: a “dança das espadas”, que era única em todo o arquipélago e a “barquinha”, que saía na procissão, uma homenagem a S. Pedro, santo protetor dos pescadores.
Após o seu desaparecimento, estes rituais foram recuperados pelo povo, embora se tenham introduzido, ao longo do tempo, algumas alterações. Foi o caso da “dança das espadas” que depois de um grande interregno, voltou a surgir no adro da igreja matriz, numa reconstituição da responsabilidade do Grupo de Folclore e Etnográfico da Boa Nova e de alguns elementos do Grupo de Folclore da Casa do Povo da Ribeira Brava.
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No dia 28, ao meio dia, uma grande girândola de fogo anunciava o início desta Festa e no começo da tarde a banda de música partia para os diferentes sítios, de onde viriam as “romagens”: oferendas com produtos da terra, doces, pão, vinho e as tradicionais charolas. As charolas são uma espécie de padiolas esféricas feita em madeira e arame, suportadas por varas paralelas, destinadas ao transporte de produtos da terra e são conduzidas aos ombros, por homens.
Terminado o “cortejo das oferendas”, como era popularmente designado, aquelas eram transportadas até à “copa” ou “bazar”, junto à igreja, para serem “arrematadas” ou colocadas a sorteio, no dia seguinte.
A “ Missa da Festa ” era celebrada no dia 29, ao meio dia, saindo depois a tradicional procissão com a imagem de São Pedro. Neste cortejo processional era incorporada uma “barquinha”, símbolo dos pescadores, que no seu interior levava uma bandeira vermelha, com a designação daquele Santo, em letras douradas, crianças trajadas de marinheiros e algumas ofertas para a Igreja. A procissão era ainda acompanhada pela banda de música, tal como nas outras localidades, mas aqui fazia parte da procissão um elemento único: “a dança das espadas”.
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O Elucidário Madeirense fornece-nos uma descrição pormenorizada deste ritual: “a procissão com a sua barquinha e a dança das espadas, constituía o principal atractivo das festas daquela freguesia, mas já há muitos anos se retirou da procissão aquela dança (...) A barquinha guarnecida de flores e tendo dentro alguns apetrechos da pesca, símbolo desta indústria, apareceu no cortejo, visto São Pedro, cuja imagem também aí figura, ter sido pescador, ao passo que a dança das espadas era ao que parece, o último vestígio das muitas folias que apareciam outrora em certas procissões, particularmente na do Corpo de Deus.” (SILVA; MENEZES, Elucidário, III, 203)
Levada em mãos pelos homens do mar, esta embarcação antigamente conduzia o cortejo de oferendas de pães, frutos e outros produtos da terra. A “barquinha” chegou a figurar também na procissão de câmara de lobos, na Festa em honra do mesmo santo.
Segundo alguns investigadores, a “dança das espadas”, era conhecida por matachins, designação atribuída a bailarinos gregos que, no século XVI, executavam uma dança guerreira, pelo que a sua origem mais recuada estaria relacionada com essa dança grega a qual, posteriormente, teria sido difundida pelos romanos, que a teriam levado para Itália onde ter-se-ia tornado burlesca. Outros defendem que a designação atribuída seria machatim, uma espécie de palhaço bailarino, que simulava um combate com outros. Outros estudiosos fazem referência à origem árabe da palavra matanachihin que significava mascarado ou disfarçado. João Adriano Ribeiro, historiador madeirense, defende a origem italiana da palavra, e a provável introdução desta dança em Portugal no século XV ou princípios do século XVI.
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Na Madeira a dança das espadas teria começado a fazer parte de um desfile profano, na procissão do Corpo de Deus, realizada na Vila da Ponta do Sol, próxima da freguesia da Ribeira Brava, organizada inicialmente pelos ferreiros, a qual era acompanhada por alguns instrumentos musicais, nomeadamente gaita, tamboril e pandeiros. Posteriormente, a sua organização foi da responsabilidade do “Rendeiro do Verde” e, mais tarde, do “rendeiro da imposição do vinho”, havendo notícia que teria sido notificado pela Câmara da Ponta do Sol para “deitar a dança das espadas”.
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Não há dados concretos quanto à data e às circunstâncias em que os pescadores terão começado a realizar esta dança. Contudo, desde finais do século XIX, que há notícias da sua existência nas festas de S. Pedro, na Ribeira Brava, tradição que se terá mantido, segundo testemunhos orais, pelo menos até os anos sessenta do século XX. (RIBEIRO, Ribeira Brava, 117-121)
A “dança das espadas” era executada por “sete homens que (…) vestiam calções brancos e véstias vermelhas, e tinham na cabeça barretes verdes em forma de mitra, guarnecidos de plumas e fitas longas, segurando cada um deles com uma das mãos uma espada pelos copos, e com a outra a ponta da espada empunhada pelo companheiro mais próximo. Ao som dum pandeiro, faziam eles diferentes movimentos compassados, passando de vez em quando sob espadas.” (SILVA; MENEZES, Elucidário, III, 203)
Um outro costume caracterizava esta Festa e atraia muitos romeiros: os grupos de tocadores castanholas. Tocadas na época natalícia a caminho das missas do parto e do galo, e por altura das festas e romarias nos meses de verão, é na Tabua, freguesia pertencente ao concelho da Ribeira Brava, e em algumas zonas próximas, que estes instrumentos musicais possuem maior tradição.
Era habitual naquela freguesia juntarem-se grupos de homens, aos domingos ou à noite, para construírem castanholas com diferentes formas e dimensões, procurando inovar na forma de tocar e nos resultados acústicos obtidos, rivalizando entre si.
Esta rivalidade terá incentivado a construção destes instrumentos, e estará provavelmente na origem do aparecimento de uma maior variedade morfológica, na Ribeira Brava e na Ponta do Sol, concelhos onde estes idiofones de percussão direta adquiriram caraterísticas muito peculiares, como é o caso das castanholas com grandes dimensões, quadrangulares, rectangulares e ovais as ou com formas zoomórficas (galinhas ou cabeças de cão) ou mesmo artefactos originais, como um “avião de castanholas”, da autoria de Alfredo Rodrigues Luzirão, que terá feito sucesso nos anos quarenta do século passado. O autor fez uma réplica deste instrumento que foi doada pelo Escultor António Rodrigues ao museu Etnográfico da Madeira.
Existiram dois grupos de tocadores rivais, que embora constituídos por elementos de diversas localidades, eram conhecidos popularmente por Grupo da Ribeira e Grupo dos Zimbreiros, sendo muitas vezes o adro da igreja palco destes “despiques”.
Na década de 40 do século passado, formou-se um grupo, a chamada “Requestra da Tábua”, que atuou em diferentes festividades, fazendo parte do cartaz de animação de alguns eventos, nomeadamente do Arraial de S. Pedro na Ribeira Brava.
Outros rituais profanos, ligados á superstição do povo, faziam ainda parte dos festejos deste Santo protetor: sortes, rezas e adivinhações, os banhos sagrados (era costume na véspera do S. Pedro o povo lavar os pés no mar) ou os rituais de purificação, nos quais o povo utilizava “ervas bentas” (murta, louro, buxo ou alecrim).
De todas as festas de São Pedro realizadas na Madeira, a da Ribeira Brava é provavelmente a mais concorrida também pela dimensão e animação do seu arraial. Antigamente os transportes faziam-se muitas vezes por mar. A cabotagem, com ligações a quase todo o litoral, desempenhou um papel fundamental na comunicação entre alguns concelhos. De toda a ilha vinham romeiros de barco para as festas do S. Pedro, na Ribeira Brava. O “Gavião”, o “bútio”, o “Vitória” ou o “Dekade II” foram alguns dos barcos de cabotagem que chegaram a realizar carreiras extraordinárias, para transportar os romeiros que chegavam durante a tarde, aumentando de número pela noite dentro. As bandas de música convidadas também utilizavam este transporte e eram esperadas no cais pela banda da localidade que as conduzia, em cortejo, até à igreja.
Na chamada “oitava da Festa” - no terceiro dia - era costume os pescadores do concelho de câmara de lobos deslocarem-se, em dezenas de barcos, para uma visita à vila da Ribeira Brava, ritual que se mantém até a atualidade.
O culto do Senhor do Bom Jesus na Ponta Delgada é muito antigo. Segundo consta, foi introduzido por um dos primeiros povoadores, Manuel Afonso Senha, que terá construído a capela. Um dia, depois de uma tempestade, um pescador que andava no calhau, encontrou um caixão que continha a imagem de Jesus Crucificado, a qual foi colocada na capela então existente. Durante a noite a imagem desapareceu, tendo sido encontrada mais tarde à beira mar. Voltaram a colocá-la na capela, tendo desaparecido pela segunda vez e encontrada novamente no mesmo local. Reza a lenda que Manuel Afonso Senha, que estaria indeciso sobre o local onde deveria edificar a capela, considerou que o Senhor queria que se construísse um templo naquele local, tendo satisfeito assim a sua vontade. Ao longo dos tempos a igreja passou por várias modificações e reparações, tendo sido reconstruída em 1910, após um incêndio que a reduziu a escombros.
Devido aos inúmeros milagres e à fé do povo, o culto estendeu-se a toda a ilha, convergindo todos os anos milhares de peregrinos a esta freguesia do Norte da ilha, pertencente ao concelho de S. Vicente. É comum, por esta altura, os emigrantes visitarem as famílias, aproveitando para cumprir as suas promessas.
Antigamente, os romeiros oriundos de diversos pontos da ilha deslocavam-se até à Ponta Delgada, percorrendo grandes distâncias a pé. Hoje já são poucos os grupos que fazem este percurso pedestre, pelos velhos caminhos, para participar na Festa do Senhor Bom Jesus.
As romagens, termo que se reporta à designação destas festas, são as peregrinações populares ao lugar onde se festeja a santidade, tradição naturalmente introduzida pelos primeiros colonizadores e que, segundo alguns autores, terão grandes semelhanças com as do Norte de Portugal. Os romeiros realizavam grandes percursos a pé, em grupos, constituídos por familiares e vizinhos. Munidos do bordão, símbolo que os identificava, calcorreavam os caminhos íngremes, cantando e dançando ao som dos instrumentos tradicionais, ao longo de todo o percurso, para aliviar o cansaço.
Era comum os homens transportarem uma cabaça, que depois de seca e despojada das sementes servia para transportar os líquidos. Mais tarde, o chifre de bovino - “corno”, como é designado pelo povo - terá substituído a cabaça. Foi também comum o uso de uma bexiga de porco, a tiracolo, cheia de vinho novo ou aguardente. Este recipiente terá origem provavelmente em terras alentejanas, onde é conhecido por “borracha” e possui grande tradição. Tratava-se de uma bexiga de suíno, na qual era colocado um entrenó de cana vieira ou cana roca que servia de gargalo. As mulheres transportavam os farnéis em cestas de vime, forradas com toalhas brancas bordadas: “ o pão escuro de trigo regional, a rosquilha de farinha açucarada e erva-doce, o peixe seco em molho apimentado, inhame e batatas”. Estes farnéis eram consumidos durante a viagem mas também no espaço do arraial, numa espécie de piqueniques, montados à sombra das árvores e das latadas de vinha, nos campos ou nas soleiras das portas.
A primeira obrigação do romeiro consistia na visita ao templo para pagar a promessa, beijar a imagem do santo e deixar uma contribuição pecuniária ou oferendas para a Festa. “Alguns votos são cumpridos pela simples oferta duma vela da altura do oferente, determinada medida de azeite, jóia de uso próprio, dinheiro ou modelações de toda a anatomia humana, em cera, símbolos de fé e de amor, materializações de desespero ou de esperança, de dor ou de alegria; outros condicionados pelo transporte pessoal das oferendas, de joelhos, arrastam os devotos como penitentes pela igreja dentro, obrigam-se a subir ou a descer escadarias até 68 degraus como as do Monte e rampas de torturantes empedramentos.” (PEREIRA, Ilhas, II, 494-504).
Devido a esta tradição, foi construída ao lado da igreja uma hospedaria para acolher os peregrinos, a “Casa do Romeiro”, espaço que foi transformado, recentemente, numa Casa de Cultura. Atualmente ainda são muitos os peregrinos que dormem debaixo das latadas (parreiras de uvas) ou dentro da igreja. Procurando-se manter viva esta tradição, na segunda- feira que se segue ao arraial realiza-se na igreja matriz da Ponta Delgada uma Missa de Acção de Graças, após a qual muitos fiéis deslocam-se até o Sítio do Chão dos louros para fazer um piquenique, no local onde antigamente os romeiros paravam para comer e descansar.
À noite a Festa animava-se com o tradicional arraial. Quando a fadiga os impedia de continuar a folia, os romeiros dormiam nas bermas dos caminhos, no interior da igreja, debaixo das latadas ou nas “Casas dos Romeiros”.
Este costume de pernoitar no local da Festa conduziu à construção destas casas, junto de algumas igrejas, em locais de grandes romarias, nomeadamente em câmara de lobos, Monte, Santo António da Serra, Porto do moniz, Caniçal (Piedade) e Ponta Delgada. Estes edifícios foram transformados ao longo do tempo, adquirindo outro uso, ou simplesmente desapareceram.
A casa dos romeiros, no Monte, já existia no final do século XVIII e foi declarada propriedade do Concelho em sessão camarária a 31 de Maio de 1822. Cerca de vinte anos mais tarde, há notícia de que terá sido decidido em sessão camarária erguer um edifício junto à igreja do Monte “para asilo dos viandantes e para recolher as bestas”, o qual não se sabe ao certo se foi construído. (MENESES, Elucidário, Terceiro, 222).
Após a Festa religiosa, ou desde a manhã desse dia, os romeiros regressavam às suas freguesias de origem, a pé. Eduardo C. N. Pereira faz uma descrição pormenorizada dos romeiros, em tempos idos: os homens levam “enfeitadas as copas dos chapéus com rosários de peras secas, registos bentos, ramalhetes de manjerico e outras típicas lembranças; transportam os cestos dos farnéis ao ombro suspensos da asa pelo bordão; amarradas à tampa dos cestos, por vezes, as botas e, por cima, o xaile da mulher, a tiracolo uma enfiada de bonecos de massa de milho açafroada. As mulheres o lenço descaído sobre a nuca, rosários de peras ou bonecos a tiracolo, arrecadas, cruzes, cordões de ouro e filigrana enrolados no pescoço e alongando-se sobre o tronco, vestido arregaçado em suspensão da cintura a mostrar folhos e arrendados da sobressaia, xaile dobrado ao ombro e haste na mão. (…) As flores e registos da romaria conservam-nos como bentas ou sacramentais todo o ano. Atribuem-lhes a virtude de aplacar tempestades, livrar de maleitas homens e animais, enriquecer os campos de colheitas e searas, atrair ao mundo paz, fortuna e alegria.” (PEREIRA, Ilhas de Zargo, II, 503).
A Festa litúrgica do Bom Jesus, padroeiro da Ponta Delgada, é celebrada com uma Missa e procissão no dia 1 de Janeiro. No entanto, devido ao facto de essa época do ano não ser propícia à realização do arraial, este foi transferido para o 1º fim de semana de Setembro, em simultâneo com a Festas do Santíssimo Sacramento. O que distingue esta romaria é, precisamente a componente profana, ou seja, a dimensão e animação do arraial.
Segundo Pierre Sanchis, “esta palavra portuguesa que, na origem, designava um acampamento militar, tornou-se hoje em dia, em Portugal, a concretização e o símbolo privilegiado da Festa popular e singularmente da Festa de romaria”. A romaria é vivida como “Festa” e o “arraial” confunde-se com a “romaria”, tornando-se ténue a distinção entre “sagrado” e “profano”. Como refere o autor, “ir ao arraial ou fazer um arraial, é equivalente a ir à Festa ou realizá-la de repente. Mas acentuando o aspecto a que chamaremos – já que é necessário dar-lhe um nome – profano.”
A Festa apodera-se do “espaço sagrado” à volta do santuário e “o espaço de sociabilidade trivial – praça, rua principal, passeio – é transfigurado por um dia, proporcionando um encontro dos homens fora das condições habituais. O arraial-espaço é assim lugar de uma socialização intensa mas fugaz, dominada pela liberdade relativamente às regras, a ausência de trabalho, a gratuidade”.
Reportando-se à realidade em diferentes zonas do nosso país o autor refere que “por vezes - cada vez menos - toda a ornamentação será fruto de um trabalho comum das famílias ou simplesmente da juventude, trabalho que ocupará os serões durante largas semanas, prolongando assim, mas na gratuitidade de uma preparação festiva, a antiga tradição das reuniões familiares em que se fiava o linho ou desfolhava o milho, tradição hoje desaparecida e que, por ser ocasião de encontros e de jogos eróticos entre jovens dos dois sexos, era frequentemente considerada como suspeita pela igreja. Pode mesmo não faltar o aspeto agonístico, com o concurso das ruas ou de bairros”. (SANCHIS, Arraial, 141-143)
Todo este ritual de preparação do arraial está ainda muito presente na Festa da Ponta Delgada, na ilha da Madeira, iniciando-se na última semana de agosto, quando o povo dos onze sítios da freguesia sobe à serra para apanhar buxo, louro, verduras e flores, para a decoração dos “arcos de triunfo” e dos mastros das bandeiras.
Desde tempos imemoriais que as plantas têm um lugar especial na vida dos homens. Já os povos pré-cristãos utilizavam-nas nos cultos, pois consideravam que possuíam poderes mágicos. Simbolizavam a imortalidade, a fertilidade, a abundância e a morte. Eram também utilizadas para curar, afugentar os maus espíritos e nos ritos de passagem, do nascimento à morte.
O trajeto até à igreja é dividido em “cantões” e cada sítio ornamenta o seu espaço na rua, rivalizando uns com os outros. A zona junto à igreja é ornamentada uniformemente, enquanto os diferentes cantões, que são da responsabilidade dos naturais de cada sítio, apresentam uma variedade de formas e cores.
A preparação do arraial na Ponta Delgada começa, assim, muito tempo antes da sua realização, com a apanha do louro para, como diz o povo, “vestir” os mastros das bandeiras e os travessões, nos quais são depois colocados cordões de flores. Nos sítios localizados na parte mais alta da freguesia, o louro é apanhado na própria zona, num local e os mastros são ali forrados. Os residentes dos outros sítios vão ao Chão dos louros fazer o corte dos galhos e fazem a ornamentação dos mastros depois de colocados na vila. Os homens, munidos de uma podoa, trepam os loureiros, cortam os galhos, amarram-nos em molhos, os chamados “maranhos”, os quais são seguidamente transportados às costas pela vereda. Após o corte, homens e mulheres “vestem” os mastros e travessões. Os ramos de loureiro são amarrados em volta dos mastros de madeira, com o auxílio de fios de espadana, uma planta resistente. Enquanto trabalham, homens e mulheres cantam e dançam, para aliviar o esforço despendido. A Festa ali já começou.
Dezenas de pessoas reúnem-se também nas casas, confecionando as flores de plástico que vieram substituir as de papel de seda que se utilizavam antes. Antigamente, estes serões eram aproveitados pelos mais jovens para namorar, pois eram poucas as ocasiões em que as raparigas saíam de casa. Atualmente são as senhoras mais velhas que mantêm a tradição. Todos os anos renovam a morfologia e escolhem diferentes cores, dando aso à sua criatividade. A despesa com a confeção destas flores é suportada pelos residentes e a das bandeiras fica a cargo das costureiras do sítio.
Antigamente a ornamentação das ruas com as chamadas “verduras” era muito bem preparada. Além dos mastros forrados com louro e murta, em diversas localidades confecionavam-se arcos de murta, designados popularmente por “portões”, nas entradas principais das vilas, tradição que se perdeu no tempo. A ornamentação do adro da igreja e vias públicas com bandeiras, os arcos de verduras e flores e os cordões de iluminação multicolor são uma constante dos arraiais em todas as localidades madeirenses.
Os rituais considerados profanos têm o seu auge no arraial: ali se troca, compra, vende, come, bebe, dança, canta e luta, estabelecendo-se laços sociais, comerciais e afetivos.
Nas bermas da estrada e junto ao adro da igreja montam-se as denominadas "barracas". Estes caramanchões de louro fornecem o vinho "seco" ou "barato", o pão e a carne para as tradicionais "espetadas", ou seja, a carne de vaca cortada aos cubos, espetados num pau de louro, temperada com louro, alho e sal e assada em braseiros ao ar livre. Nesta altura são abatidas muitas de cabeças de gado.
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A carne é acompanhada com o “pão de casa” ou o “bolo do caco”. O primeiro, também designado de “pão de trigo da terra”, tratava-se do pão de fabrico caseiro, confecionado com farinha de trigo, que antigamente era moída nos moinhos de mão, nas unidades domésticas, ou nos moinhos de água e que variava de forma, de localidade para localidade: fechado no Norte e nas costas a Oeste, arredondado no concelho da Ponta do Sol ou alongado, noutras localidades. Em algumas freguesias da ilha da Madeira e do porto santo, amassava-se também o pão com uma mistura de farinha de trigo e de cevada. Na preparação do “bolo do caco”, a massa era preparada de forma a ficar mais mole e menos lêveda que o pão, era-lhe dada uma forma redonda e achatada e era cozido num “caco” ou numa frigideira de barro, abafado com cinza ou em lume vivo, ou em cima de uma pedra de tufo, aquecida no forno. No final tostavam-se as bordas na cinza quente ou nas brasas.
Para acompanhar o vinho, era comum ser servido o chamado "dentinho": cebolas miúdas de escabeche (curtidas em vinagre, pimenta e sal e usualmente golpeadas em cruz), tremoços, iscas de peixe ou de fígado de vaca e o atum salgado ou fresco, em molho de azeite, vinagre de vinho, alho e pimenta (o chamado "molho de vilão").
Além das barracas de comes e bebes ali encontravam-se também os vendedores com as frutas da época, arrumadas em cestos de vime ou de cana de roca - os chamados "balaios" - e variados tipos de doçaria de confeção caseira, expostos nos cestos ou em tabuleiros: cavacas, bolos e rebuçados, embrulhados em papel branco, vendidos avulsos ou envolvidos em papéis coloridos e dispostos em colares, que os romeiros ostentavam ao pescoço.
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As figuras de maçapão ou bonecas de massa, como eram designadas pelo povo, faziam parte deste leque de doces. Presenças obrigatórias nos arraiais, estas figuras eram exibidas pelos romeiros, sendo colocadas nos chapéus, penduradas nos colares de rebuçados ou transportadas na mão por crianças e adultos. O uso de figuras rituais modeladas em massa de pão remonta à Antiguidade. Usualmente associadas a rituais de fertilidade, ao culto dos mortos ou a rituais agrícolas, relacionados com a regeneração e proteção das sementeiras, estes “bonecos comestíveis” ocupam um lugar muito específico entre a doçaria e os pães figurativos, tendo sido o seu fabrico muito comum na Idade Média.
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Em Portugal a par da doçaria conventual, amplamente difundida a partir do século XVI, surgiu também uma outra, de caráter profano, comercializada nas romarias pelos vendedores ambulantes, na qual se incluía vários tipos de doces e pão, cuja morfologia variava de região para região. As suas formas iam desde figuras antropomórficas, a figuras relacionadas com a flora e a fauna ou inspiradas em motivos populares, nomeadamente o coração, símbolo muito enraizado na Cultura popular portuguesa.
Desconhece-se ao certo a origem deste figurado de maçapão vendido no nosso arquipélago, por altura das Romarias, nos chamados arraiais. É no entanto provável que tenha sido introduzido pelos primeiros colonos e se tenha transformado, ao longo do tempo, pelas mãos e criatividade das nossas artífices, distinguindo-se pelas suas originais formas e cores.
As figuras produzidas são morfologicamente variadas e possuem diferentes dimensões: o casal, inspirado na figura humana feminina e masculina, símbolo de fertilidade e fecundidade, o galo, que simboliza a vigilância e o trabalho e relaciona-se com cultos ancestrais de proteção na doença, as pulseiras ou argolas, símbolos do eterno retorno e da eternidade e os cestinhos encanastrados.
Salomé Teixeira, natural do Sítio da Mãe de Deus, freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, dedicou toda a sua vida à produção destes artefactos, tendo aprendido o ofício com a sua mãe. Esta atividade artesanal sobreviveu, nesta família, ao longo de várias gerações. A D. Ludovina, uma prima desta artífice, e as suas três filhas, Felicidade, Glória e Trindade, naturais do Sítio dos Barreiros, na mesma freguesia, também se dedicaram durante muitos anos a este ofício.
Todas as fases de fabrico exigiam muita habilidade, adquirida ao longo de muitos anos de aprendizagem no seio familiar: havia que preparar a massa, tendê-la, modelar as figuras, ornamentá-las e cozê-las. As matérias-primas utilizadas nestes artefactos eram farinha, água e fermento para fazer a massa, corante de ovo para lhes dar cor, papel de seda azul e vermelho para ornamentar as figuras e sementes de bananeira de jardim e de cebolinho para colocar nos olhos dos bonecos e passarinhos.
Estes elementos permaneceram até os dias de hoje, afirmando-se quase como um “símbolo” destas festividades e ocupando um lugar de destaque no nosso artesanato tradicional, podendo esta ser considerada uma das utilizações mais interessantes dos cereais na produção artesanal madeirense.
Os cereais foram, aliás, uma matéria-prima muito utilizada na produção artesanal. Além da farinha (de trigo) usada na confeção destas “bonecas”, aproveitava-se também a palha para a produção de cestaria e confeção de chapéus. Mais recentemente a artífice Conceição Ornelas, natural do concelho de santana, introduziu também a palha de milho na produção artesanal madeirense, confecionando figuras inspiradas em profissões tradicionais, figuras de presépio e outros artefactos.
Além dos vendedores de produtos da terra e de doces existiam ainda nos arraiais os bazares de comércio dos vendilhões, que comercializavam variados artefactos: alfaias agrícolas de fabrico local (enxadas, podões e foices da autoria dos ferreiros da ilha), utensílios domésticos de fabrico artesanal, usualmente de madeira ou folha-de-flandres (estes últimos concebidos pelos picheleiros locais), cestaria em vime, palha de trigo ou cana de roca e ainda brinquedos, à semelhança das populares feiras de Portugal Continental. Os mercados e feiras existentes em todo o país têm frequentemente a sua origem ligada a estes vendilhões das romarias.
A música é outra componente da animação deste “espaço”. Para além da banda filarmónica - elemento sempre presente - existiam os “brincos”, ou seja, as danças e cantigas ao som dos instrumentos tradicionais, nomeadamente a harmónica, os pandeiros e as castanholas e os instrumentos de corda como a viola, a “braguinha” ou o “rajão”, tendo estes três cordofones desempenhado um importante papel na música de tradição popular madeirense.
“Abrem-se pequenas rodas no meio das quais um ou dois pares executam danças de coreografia regional, enquanto os tocadores entre si ou alternadamente com algum dos circundantes do seu grupo glosam um mote, cantando ao desafio” (PEREIRA, Ilhas, 498). A estas cantigas ao desafio dá o povo o nome de despiques.O “brinquinho” ou “bailinho”, designações populares utilizadas na Madeira, é um idiofone misto de concussão direta, composto por um conjunto de bonecos em pano (usualmente sete figuras, masculinas e femininas), trajando indumentária tradicional, portadores de castanholas nas costas e fitilhos, dispostos na extremidade de uma cana de roca, em duas ou mais séries circulares, de diâmetro desigual e encimado por uma destas figuras. É ornamentado, ainda, com tampas de garrafas (caricas), que também funcionam como castanholas. O tocador segura no cabo imprimindo movimentos verticais (através do arame no interior da cana), que fazem tocar as castanholas. É utilizado, usualmente, para marcar compasso, sendo o seu uso mais comum entre os grupos de folclore da Região. No entanto, também apareciam isolados, pelas mãos do povo, nos arraiais.
O termo “brinco”, atribuído ao costume do povo de formar rodas nos arraiais (para tocar, cantar e dançar), estará provavelmente relacionado com a designação deste instrumento.
Embora a sua origem seja incerta, este instrumento poderá ter sido trazido para o arquipélago, pelos primeiros colonizadores, estando provavelmente relacionado com um instrumento utilizado nas Regiões do Minho e do Douro: a “charola” ou “cana de bonecos”.
Os instrumentos musicais utilizados no arquipélago foram, aliás, na sua maior parte, introduzidos pelos primeiros colonos. É o caso da “viola de arame”, da “braguinha” ou “machete”, da rabeca ou violino, da harmónica, do bombo, do reque-reque, do pandeiro ou das “tréculas”. Segundo alguns autores existem, no entanto, instrumentos populares que podemos considerar como caraterísticos do arquipélago da Madeira: o “rajão”, umas castanholas peculiares conhecidas como “castanholas da Tabua” e o “brinquinho”.
O “rajão”, designação utilizada no arquipélago desde o século XIX, trata-se de um cordofone de cordas dedilhadas e pertence à família das “violas de mão”. Em relação a todo o território português parece só ser na Madeira que é utilizado este tipo de instrumento, embora segundo alguns autores já tenha existido no continente português um instrumento com caraterísticas semelhantes.
O “rajão” e a “braguinha” eram utilizados individualmente por tocadores populares espontâneos nas festas e arraiais da Madeira e porto santo, grupos de folclore, com a função de acompanhar todas as danças e cantigas tradicionais, no despique em ritmo de “bailinho” e no “charamba”, assim como, recentemente, por grupos de adaptação musical tradicional (Xarabanda, Banda d’Além, Encontros da Eira, Si que Brade e tunas universitárias). (CAMACHO; TORRES, Instrumentos, 2006) A música, os repiques do sino e os estampidos de morteiros são os sons que identificam estas festas.
Ao longo do dia o povo visita o templo, reúne-se no adro da igreja ou percorre as ruas circunvizinhas, visitando os bazares, comendo, bebendo e gozando de toda esta animação.
À noite é lançado fogo-de-artifício e o arraial mantém-se animado, até de madrugada, com as pessoas a percorrerem as ruas da freguesia, engalanadas de flores e luzes multicolores.
O chamado “fogo preso” muito apreciado em toda a ilha era igualmente presença obrigatória nos arraiais. Antigamente e Em certas ocasiões, era comum antigamente expor o fogo num local público, organizando o povo um cortejo, acompanhado pela banda, para transportá-lo até o local do arraial. Ocupando um lugar de destaque nos festejos, a sua queima tinha início na véspera da Festa, ao meio-dia, com as “girândolas” de morteiros.
À noite, a queima do fogo preso constituía um verdadeiro espetáculo de luz e de cor. Os pirotécnicos, usando a sua imaginação, apresentavam diversas figuras, intervaladas de peças de música, para alegria dos locais e dos milhares de forasteiros das povoações circunvizinhas: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jactos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas”. Naves artilhadas, o soba Gungunhana com suas sete favoritas, castelos de ameias roqueiros e outras recordações históricas completam o elenco pirotécnico. Termina o espetáculo por uma apoteose de luz ao patrono da Festa, resplandecendo a sua imagem dentro de um nicho emoldurado em arabescos duma policromia deslumbrante.” (PEREIRA, Ilhas, II, 490)
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Existiram muitas fábricas, espalhadas pelos diferentes concelhos da ilha, que fabricavam o fogo artesanalmente. Atualmente apenas permanece uma em funcionamento, a fábrica de fogo da empresa “Pirotecnia Batalhense”, sediada no Sítio do Lombo do Doutor, no concelho da Calheta. Segundo o “fogueteiro” e único trabalhador que permanece naquela unidade de fabrico artesanal, embora ainda sejam encomendadas figuras como o “velho” ou a “velha”, a “roda manhosa” ou a “girândola”, o fogo preso mais utilizado são as “salvas” de foguetes. O “fogueteiro” continua, no entanto, a ter um papel preponderante no arraial.
A cadeia operatória do processo de fabrico artesanal dos foguetes é, como descreveu resumidamente José António Martins, pirotécnico daquela fábrica, muito minuciosa e exige um trabalho árduo, atento e especializado: “há que endireitar as canas, por ação do calor, preparar o fio com alcatrão e a guia com pólvora, confecionar os diferentes tipos de pólvora na oficina de têmperas, carregar os canudos na máquina ou no toco de carregamento e furá-los, preparar o chamado pó de vela, cuja receita se mantém em absoluto sigilo, fazer os canudos e a caixa para a bomba com o auxílio de fôrmas e da antiga guilhotina e amarrar a caixa e o canudo à cana”.
A expressão popular de que “as vésperas são melhores que as festas” traduz a importância deste ritual profano – o “arraial” – intimamente associado a estas festas em honra de uma divindade, e que a par da sua fé e devoção, o povo manteve, durante séculos, quase inalterado na sua essência.
No “espaço da Festa” convivem, lado a lado, o profano e o religioso, numa amálgama de rituais que o povo teima em preservar e que é vivida também pelos jovens, que fizeram “deles” a tradição dos mais velhos.
Apesar das alterações introduzidas no tempo e no espaço, nomeadamente o envelhecimento da população, o abandono dos campos ou a proliferação das novas tecnologias e dos novos estabelecimentos de diversão noturna, que vieram banalizar o conceito de Festa, as romarias e os arraiais subsistem.
As festas da Senhora do Loreto, no concelho da Calheta, a de Nossa Senhora do Livramento, na freguesia do Caniço e do curral das Freiras, e a de Nossa Senhora dos Remédios na Quinta Grande são festas referidas também por alguns autores como sendo motivo de “concorridas romarias”.
Na obra de referência Elucidário Madeirense, para além das romarias que descrevemos, os seus autores enumeram ainda outras festas religiosas: Todas as freguesias têm as suas festividades religiosas, revestindo particular brilhantismo as do orago e as do Santíssimo Sacramento, mas destas festividades as que dão motivo a concorridas romarias são as seguintes: a de Nossa Senhora do Monte, a 15 de agosto, a do Senhor Jesus da Ponta Delgada, no primeiro domingo de setembro, a da Senhora do Loreto a 8 de setembro, a do Senhor dos Milagres, em Machico, a 8 e 9 de outubro, a da Piedade, no Caniçal, no terceiro domingo de setembro, a de Nossa Senhora do Faial, a 8 de setembro, a de Nossa Senhora do Livramento, no Caniço, no segundo domingo de setembro, a de Nossa Senhora do Livramento, no curral, no último domingo de agosto, a de Nossa Senhora dos Remédios, na Quinta Grande, no segundo domingo de setembro, a da Camacha, na primeira Oitava do Espírito Santo, a de Santa Maria Madalena, no porto moniz, a 22 de julho, a de S. Pedro, na Ribeira Brava, a 29 de junho, a de S. João, no Funchal, a 24 de junho, a de Santo Amaro, em Santa Cruz, a 15 de janeiro, e a de Santo António da Serra, a 13 de junho. (SILVA; MENEZES, Elucidário, III, 221)
Bibliog.: impressa:CÂMARA, Teresa Brazão, Bonecos Comestíveis de “Maçapão", Revista Atlântico, Nº 7, Outono de 1986, pp.218-226; CRISTOVÃO, Carlos, Elucidário de Machico, 2ª ed., Câmara Municipal de Machico, 1981; moniz, Roberto, Cordofones Tradicionais Madeirenses: Braguinha, Rajão e Viola de Arame, Col. Cadernos de Folclore, nº1, AFERAM – Associação de Folclore e Etnografia da Madeira, Funchal, 2011; PEREIRA, Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, 4ª edição, 2 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1989; RIBEIRO, João Adriano, Ribeira Brava. Subsídios para a História do Concelho, Câmara Municipal da Ribeira Brava, 1998; SANCHIS, Pierre, Arraial: Festa de um Povo, as romarias portuguesas, Publicações D. Quixote, Col. Portugal de Perto, Lisboa, 1983; SILVA, Padre Fernando Augusto da Silva e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, Fac-símile da Edição de 1940-1946, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional de turismo e Cultura, Direção Regional dos Assuntos Culturais, 1998; VISCONDE DO PORTO DA CRUZ, Crendices e superstições do Arquipélago da Madeira, 1954; Não publicada: CAMACHO, Rui; TORRES, Jorge, Instrumentos Musicais da tradição popular Madeirense, Associação Cultural e Musical Xarabanda, 2006 (texto policopiado); FERREIRA, César; Catálogo da Exposição Festas e Romarias da Madeira, museu Etnográfico da Madeira, 2006 (texto policopiado); 1º Mostra Instrumentos Musicais Populares: Recolha, Restauro, Construção [catálogo da exposição]. Funchal: Direcção Regional dos Assuntos Culturais/Câmara Municipal do Funchal – Serviços Culturais, 1982.
Lídia Góes Ferreira
(atualizado a 13.07.2016)