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sebastianismo

Tal como acontecia no Reino, também na Madeira, no rescaldo da derrota de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, surgiram lendas que evocavam a possibilidade do regresso do Rei para resgatar Portugal do domínio castelhano. Essas lendas, que, na Madeira, se misturam com o imaginário do ciclo arturiano, começaram por se manifestar logo nos inícios do século XVI, mas mantiveram-se presentes na imaginação popular de forma tão duradoura que ainda no século XX são objeto de referência por parte de autores madeirenses. Palavras-chave: D. Sebastião, a Ilha Encoberta, a Espada, Arguim, Rei Artur. O sebastianismo foi um sentimento de cariz messiânico que se divulgou em Portugal na sequência do desaparecimento do Rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir (1578), espalhando-se por todo o território nacional nos fins do séc. XVI e princípios do século seguinte. As razões da sua rápida propagação no todo nacional terão de ser procuradas na própria história de um país que se formou na luta contra os mouros e os Castelhanos, a quem habitualmente levou de vencida, ainda que com um ou outro contratempo traduzido em derrotas momentâneas, suplantadas, depois, por vitórias que permitiram não só a sua autonomia, mas até a sua dilatação sob a forma de grande império ultramarino. Lutadores convictos da sua independência, habituados a porfiar contra os inimigos, os Portugueses não conseguiam aceitar a ideia de que a sua pátria, forjada com tanto sacrifício, tivesse sido, de um só golpe, vencida pelos inimigos tradicionais – os mouros, que desfizeram o seu exército, e os Castelhanos, para quem sobrou o trono – e, para melhor enfrentar o infortúnio, socorreram-se da ideia de um inevitável regresso de D. Sebastião, estratégia messiânica que se inscreve numa tradição que, vinda do judaísmo, não deixara completamente de circular por entre os povos cristãos. Assim, ainda que se questionasse a impreparação e a irresponsabilidade do Monarca desaparecido, a nação ansiava pelo seu regresso, visto como condição sine qua non para a libertação do domínio castelhano; e o Rei, que já nascera com o cognome de “o Desejado”, tornava-se ainda mais desejado depois do seu desaparecimento no Norte de África. A força desse desejo nacional será, pois, o suporte do messiânico desígnio do sebastianismo. Esta crença é, em si mesma, indicativa da força da comunidade judaica em Portugal, no seio da qual nasceu Gonçalo Anes Bandarra, autor de umas trovas proféticas e dedicadas às dificuldades, mas também ao destino imperial de Portugal, nas quais se vem a inspirar o movimento sebástico. A comunidade cristã-nova, perseguida pela recém-criada Inquisição, encontrou na Madeira, num primeiro momento, um porto de abrigo onde se refugiou, julgando-se protegida pela inexistência local de uma delegação permanente do Santo Ofício, e seria ela, talvez, o veículo de divulgação regional das trovas de Bandarra. O acolhimento que, na Madeira, se dispensará à divulgação da mítica sebastianista radica, por sua vez, numa propensão para acolher o mito como elemento fundador da identidade insular, uma vez que algumas explicações para a origem da Ilha repousam em lendas que povoam o imaginário popular. Com efeito, a ilha da Madeira constituía, aos olhos dos seus habitantes, um espaço encantado que teria tido origem num momento em que, estando Nossa Senhora a chorar pelos pecados do mundo, deixara cair uma lágrima sobre o oceano. Dessa gota sagrada nascera uma pérola que se transformara em ilha – a da Madeira, que assim se assumia como território afortunado, bafejado por um clima ideal, águas abundantes, vegetação luxuriante, terra fértil e acolhedora. Esta lenda está, por sua vez, associada a uma outra – a da desaparecida Atlântida, continente afundado pela ira divina e do qual a Madeira teria ficado como memória (Lendas e mitos fundadores). Esta ideia de ilha encantada é, precisamente, recuperada por uma das lendas do sebastianismo insular, que reporta a existência de uma terra mítica que, em determinados dias, aparece no horizonte e onde se conta que vive um Rei que, um dia, de lá há de sair para vir libertar o seu povo, muito à semelhança do que aconteceu com o Rei Artur, que se refugiou na ilha de Avalon, de onde regressará para libertar os Bretões. As semelhanças entre o sebastianismo madeirense e o ciclo arturiano não se ficam por aqui, pois outras lendas madeirenses falam de uma espada – a versão insular de Excalibur –, enterrada pelo Rei desaparecido em vários locais da costa: uma fala da Penha de Águia, outra do cabo Girão, outra, ainda, da ponta da Galéria ou Galé, na Calheta, admitindo-se aí ter sido colocada por D. Sebastião, quando, a caminho de Arguim, teria passado pela Madeira. Esta suposta passagem do Monarca derrotado pela Ilha não tem, de facto, nenhum suporte efetivo, mas como o território da lenda não atende a estas circunstâncias, não é estranho que se afirme, a respeito da referida espada: “braço de rei a meteu e só braço de rei a pode tirar” (FREITAS, 1984, 69). Tornou-se, ainda, voz corrente que, em momentos especiais, com tempo claro, os pescadores a conseguem ver. A ilha de Arguim, local do exílio temporário do Rei, é um território que se situa no golfo da Guiné e pertenceu, inclusivamente, à Diocese do Funchal, tendo sido, para efeitos do mito, transformada também numa espécie de terra encantada, que tanto emerge como submerge, e onde a imaginação popular entrevê um Rei, ora novo e garboso, ora velho e desalentado, que recebe no seu pequeno reino missionários a quem promete regressar para ocupar o trono português, o que acontecerá depois de resgatar a espada que enterrou em solo madeirense. Segundo uma versão desta lenda, a retirada da espada implicará o afundamento total da Madeira; segundo outra, apenas se verificará uma submersão parcial, devendo o futuro cais ficar pela altura da igreja de N.ª Sr.ª do Monte. A sobreposição, um tanto surpreendente, entre os romances de cavalaria onde se inscreve a lenda do Rei Artur, e as versões insulares das lendas de D. Sebastião, tem, ainda, validação na capitania de Machico, entregue a um muito medieval Tristão Teixeira, que aí organizava justas e torneios, e onde se fundou uma povoação de nome Gaula, habitada por Lancelotes, Grismundas, Isoas e Galaazes. Na tradição oral madeirense encontram-se, também, narrativas de histórias multisseculares, onde se cruzam personagens oriundas de um universo medieval – reis, condes, princesas e donzelas –, que não poderão deixar de ter sido bebidas na tradição dos romances de cavalaria tão bem ilustrada pelas histórias arturianas. A retoma da independência nacional operada por D. João IV continua a inscrever-se no universo do messianismo sebástico que, confrontado com o não retorno de D. Sebastião, transfere para a figura do novo Monarca todo o capital de esperança que era património da lenda. Na Madeira, o anseio pela devolução de Portugal à qualidade de estado independente manifestou-se na figura do cónego Henrique Calaça que prometera edificar um mosteiro feminino caso esse desígnio se cumprisse. Este é, pois, o quadro em que se regista a fundação do Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação nos anos imediatos à Restauração, cumprindo-se, assim, a materialização do sonho sebástico. Outro indicador da identificação da figura de D. João IV como novo messias surgido para resgatar Portugal do domínio castelhano surge com a publicação, em 1643, de uma obra da autoria do padre madeirense António Veloso de Lira, intitulada Espelho de Lusitanos em o Cristal do Psalmo Quarenta e Três, Cuja Vista Representa este Reino em Três Estados. O Primeiro, desde os Seus Princípios, com todas as Felicidades e Grandezas até D. João o Terceiro. O Segundo, as Calamidades e Infortúnios Começados com El Rey D. Sebastião, e Continuados por todo o Governo Castelhano. O Terceiro Estado, as Maravilhas Obradas por Deus em a Feliz Aclamação e Restauração de El Rey Nosso Senhor D. João o Quarto, com os mais Raros Casos nella sucedidos, assim neste Reino como no de Castela. Nesta obra, o sacerdote, nascido na Calheta em 1516, considera os Portugueses como povo escolhido por Deus que, depois de um passado glorioso, se vira ignominiosamente sujeito a um domínio estrangeiro terminado em 1640, o que justifica, então, a exaltação nacionalista que subjaz à narrativa. A apresentação da figura do restaurador como responsável pelo concretizar da aspiração nacional latente desde o desaparecimento de D. Sebastião é, pois, um elemento mais a juntar ao processo que coroa a eclosão do movimento messiânico inaugurado com Alcácer Quibir, cujas repercussões ecoaram no país e também na Madeira, traduzidas tanto em narrativas do foro da lenda como em ações concretas de congratulação pelo seu ansiado fim. O anseio permanente que acompanha os Portugueses em geral, e os madeirenses em particular, de ver resgatada a antiga fortuna nacional, e de que a lenda sebástica é tradução, não desapareceu com o tempo, manifestando-se ainda no decorrer do séc. XX. A prová-lo pode citar-se uma obra vinda a público em 1954 e da autoria de Amadeu Mimozo, na qual o autor intercala capítulos de índole autobiográfica com outros em que aflora aspetos da vida e da história da Madeira. Incluídos nesta narrativa intermitente que mistura a história pessoal, por um lado, e a história do descobrimento da Ilha, por outro, com episódios ligados a Cristóvão Colombo, surgem, ainda, espaços narrativos consagrados à ilha encoberta e às lendas que a sustentam. De acordo com Mimozo, radica em Platão a ideia de que a Atlântida “pegava com a Península Ibérica”, tendo sido em parte submersa por um grande terramoto que isolou a Europa da América (MIMOZO, 1954, 113). Dessa catástrofe sobreviveu uma ilha na qual se refugiou Rodrigo, o último Rei godo, em fuga da invasão moura da península. Prosseguindo a fundamentação autoral em que ancora a descrição, Mimozo evoca D. Francisco Manuel de Melo, segundo o qual, em 1444, uma embarcação genovesa abordou a referida ilha, onde encontrou falantes de português. A ilha tinha sete cidades, cada uma com seu bispo, e mais de 300 vilas cujos habitantes teriam tido origem na cidade do Porto, que abandonaram quando o Rei Rodrigo foi derrotado pelos mouros. O mesmo território encantado teria sido visitado por dois religiosos que se dirigiam do Brasil para Lisboa, numa nau capitaneada por António de Sousa, em viagem interrompida por uma enorme tempestade. Quando os ventos amainaram, a tripulação vislumbrou, a sul, uma terra misteriosa que supôs ser a Madeira. Inseguros em relação ao que viam, pediram os tripulantes licença para desembarcar, e ao fazê-lo depararam com um palácio de onde saíram sete homens que falavam um vago português e trajavam à moda da Nazaré, que os conduziram ao interior do palácio onde lhes apresentaram um Rei idoso que lhes perguntou se eram portugueses. Certificado da origem dos visitantes, levou-os a uma sala onde se encontrava um quadro representando uma cena de batalha na qual figurava um exército quase derrotado ao lado de um outro, vitorioso, cujas tropas vestiam trajes mouros. Terminada a visita, os tripulantes regressaram a bordo e relataram vividamente a experiência. Atemorizado, o mestre da embarcação não arriscou viajar nessa noite, só o fazendo na manhã seguinte. Depois de quatro dias de navegação, os homens encontraram, então, de facto, a ilha da Madeira, na qual se demoraram quatro dias, contando o autor que “alguns habitantes madeirenses garantiam que esta ilha aparecia de tempos a tempos, o que juraram” (Id., Ibid., 126). Não chegando a afirmar que o Rei misterioso era D. Sebastião, Amadeu Mimozo atribui, no entanto, essa convicção ao povo madeirense, que, segundo ele “dá como encantado El-Rei D. Sebastião na Ilha Encantada”, embora acrescente que este facto se não pode afirmar historicamente. Segundo o autor, o destino do Monarca seria mais credivelmente rastreado em batalhas na Europa, onde teria defrontado infiéis, acabando por ser martirizado em Itália e Espanha, às ordens de um Filipe II de Espanha atemorizado pela perspetiva de perder o trono de Portugal caso se demonstrasse que D. Sebastião vivia ainda. Em abono desta tese, aponta as opiniões do P.e António Vieira que atestavam o martírio do soberano, confirmado pelo corpo diplomático espanhol, nomeadamente pelo duque de Medina Sidónia e sua mulher, que conseguiram identificar o Rei português pela descrição que este fizera de uma espada e de um anel que anteriormente lhes oferecera (Id., Ibid., 137-139). Os dados que enformam a parte mitificada desta narrativa, e as fontes nas quais se inspira, já tinham sido abordados por outro escritor madeirense, Abel Tiago de Sousa Vasconcelos, que em 1924, e sob o pseudónimo de “Lusitanus”, fizera publicar uma obra intitulada Sinais dos Tempos, onde consagrava vários capítulos à Ilha Encantada e ao possível destino de D. Sebastião, também aqui considerado como desenrolado na Europa. A obra em questão, integralmente consagrada ao Quinto Império e ao papel central que Portugal nele desempenha, não poderia deixar de abordar a figura do Rei como encarnação do renascer do reino, objetivo pelo qual teria dado a vida, sacrificado à vontade e às manobras políticas do Rei de Espanha. Ainda que, no caso presente, a narrativa seja muito mais pormenorizada, as semelhanças com o texto de Amadeu Mimozo podem autorizar a suposição de que Mimozo teria lido a prosa de Vasconcelos, nela se inspirando para a recolha da informação que depois utilizou em Ilha dos Sonhos. O facto de estas duas obras terem sido publicadas na primeira metade do séc. XX e de consagrarem uma parte dos seus textos à evocação de territórios misteriosos e à provação sebástica é, pois, demonstrativo de que a crença no mito perdurou, mantendo-se parte do imaginário insular quase 400 anos depois da suposta ocorrência dos factos.   Cristina Trindade

História Económica e Social História Política e Institucional

rocha, vitúrio lopes

Vitúrio Lopes Rocha nasceu no Funchal a 5 de setembro de 1752, doutorou-se em matemática no dia 24 de dezembro de 1777 e foi lente de geometria na Universidade de Coimbra. Lecionou as cadeiras de álgebra, em 1779, enquanto substituto extraordinário, e de cálculo, entre os anos de 1780 e 1783, na função de substituto, tornando-se, posteriormente, lente de geometria, função que exerceu entre 1783 e 1795, ano da sua jubilação (a 27 de março). Ocupou o cargo de vereador do Corpo da Universidade (a 27 de março de 1792), o de comissário delegado e visitador das escolas menores da ilha da Madeira (em 1800) e o de comissário da Junta da Diretoria-Geral dos Estudos e Escolas Menores do Reino. Entre os seus escritos, contam-se a sua tese e o manuscrito Sobre os Serviços Prestados pela Astronomia. Obras de Vitúrio Lopes Rocha: Theses ex mathesi universi quas confecto quinquennali studiorum curriculo publice intra diei spatium ad Doctoris Lauream in Conimbricensi Gymnasio obtinendam praeside Josepho Monteiro da Rocha ... proponit Victurius Lopes Rocha (1777); Sobre os Serviços Prestados pela Astronomia (1777).   Rui Gonçalo Maia Rego (atualizado a 17.12.2017)

História da Educação Matemática

região autónoma

A divisão fundamental das formas de Estado, de há muito formulada pela doutrina, dá‑se entre Estados simples ou unitários e Estados compostos ou complexos. Critérios de distinção são: unidade ou pluralidade de poderes políticos (ou de poderes soberanos na ordem interna); unidade ou pluralidade de ordenamentos jurídicos originários ou de constituições; unidade ou pluralidade dos sistemas de funções e órgãos do Estado; unidade ou pluralidade de centros de decisão política a se. Apesar das diferenças de perspetivas, coincide‑se nos resultados. O Estado unitário tanto pode ser Estado unitário centralizado como Estado unitário descentralizado ou regional. Se todos ou quase todos os Estados do mundo admitem descentralização administrativa, quer de âmbito territorial – através de municípios ou comunas e através de circunscrições mais vastas –, quer de âmbito institucional ou funcional – através de associações, fundações, institutos ou outras entidades públicas –, só alguns Estados comportam descentralização política. E não é a descentralização administrativa, mas sim a política que aqui importa. Esta descentralização política é sempre a nível territorial: são províncias ou regiões que se tornam politicamente autónomas por os seus órgãos desempenharem funções políticas e participarem, ao lado dos órgãos estatais, no exercício de alguns poderes ou competências de carácter legislativo e governativo. Daí que se fale em Estado regional. A conceção constitucional específica e a elaboração teórica do regionalismo político são relativamente recentes, sem embargo de certas notas características se encontrarem antes. Aquelas remontam à Constituição espanhola de 1931 e à Constituição italiana de 1947. A doutrina dominante parece inclinar‑se para a sua inserção dentro do Estado unitário. Mas há também quem pense tratar‑se de um tertium genus e quem entenda que, por causa dele, fica posta em causa a distinção clássica entre Estados unitários e Estados federais. Podem ser apontadas várias categorias de Estados descentralizados. No Estado regional integral, todo o território se divide em regiões autónomas. No Estado regional parcial, encontram‑se regiões politicamente autónomas e regiões ou circunscrições só com descentralização administrativa, verificando‑se, pois, diversidade de condições jurídico‑políticas de região para região. Esta é também uma diferença clara em relação ao Estado federal, sempre integral por natureza (sempre formado, inteiramente, por um maior ou menor número de Estados federados). No Estado regional homogéneo, seja integral ou parcial, a organização das regiões é, senão uniforme, idêntica (a mesma no essencial para todos). No Estado regional heterogéneo, ela pode ser diferenciada ou haver regiões de estatuto comum e regiões de estatuto especial. Em geral, as regiões são criadas pela Constituição, mas conhecem‑se casos – ainda que de necessária relevância a nível de Constituição material – de regiões instituídas por lei (caso da Gronelândia) e até pelo direito internacional (caso do Alândia). Como exemplos de Estados regionais integrais apontem‑se o Brasil (no Império, após a revisão da Constituição em 1834), a Áustria (antes de 1918), a Itália, a Espanha (na vigência da Constituição de 1978) ou a África do Sul (com a Constituição de 1996). Como exemplos de Estados regionais parciais indiquem‑se a Finlândia (por causa da Alândia), a Espanha (aquando da Constituição de 1931), a Dinamarca (quanto às ilhas Feroé e à Gronelândia), Portugal (desde 1976, em virtude das regiões autónomas dos Açores e da Madeira), a Rússia, a Ucrânia (por causa da Crimeia), a China (sobretudo por causa de Hong Kong e de Macau), o Reino Unido (com a Irlanda do Norte, a Escócia e Gales, a partir de 1998 e de 1999) a Geórgia (com a Ajária e a Ossétia do Sul), ou São Tomé e Príncipe (em relação à ilha do Príncipe). Como exemplos de Estados regionais heterogéneos refiram‑se a Itália, com regiões de estatuto especial (Sicília, Sardenha, Vale de Aosta, Trentino-Alto Ádige e Friul-Veneza Júlia) e regiões de estatuto comum (as restantes), e a Espanha atual (com comunidades autónomas de regimes diversos). O grau de descentralização varia muitíssimo; compreende regiões que pouco mais parecem que coletividades administrativas e regiões que parecem Estados‑membros de uma federação. Geralmente, os estatutos são‑lhes outorgados pelo poder central, mas há casos (as regiões italianas, as regiões autónomas portuguesas) em que elas chegam a participar na elaboração e na revisão desses estatutos. A maior semelhança possível entre Estado regional e Estado federal dá‑se quando aquele é integral e as regiões, além de faculdades legislativas, possuem faculdades de auto‑organização. Mesmo assim, porém, cabe distinguir: porque o ato final, a vontade última na elaboração ou na alteração dos estatutos regionais pertence ao poder central (ou seja, as regiões não têm poder constituinte); porque as regiões tão-pouco participam na elaboração e na revisão da constituição do Estado, como unidades políticas distintas dele (ou seja, o poder constituinte do Estado é delas independente). Juridicamente, o Estado federal dir‑se‑ia criado pelos Estados componentes. Pelo contrário, as regiões são criadas pelo poder central e as atribuições políticas que têm tanto podem vir a ser alargadas como extintas por este. Mais ainda: se o Estado federal desaparecer, em princípio os Estados federados adquirem ou readquirem plena soberania de direito internacional; não assim as regiões autónomas, as quais, como quaisquer outras coletividades descentralizadas, ou desaparecem com o Estado ou carecem de um ato específico para obterem a soberania. Os desmembramentosno final do séc. XX, da União Soviética, da Jugoslávia e da Checoslováquia, com o acesso à plena soberania dos Estados que as compunham, mostra bem que, mesmo em federações politicamente fictícias, perdura um resíduo de “estatalidade” pronto a revivescer se as condições assim o permitem. Com a descentralização política regional não se confunde a regionalização, traduzida em desconcentração regional e, sobretudo, na criação de autarquias supramunicipais. Se a dimensão e alguns dos objetivos das regiões que assim se apresentam em alguns países podem ser semelhantes aos das regiões autónomas, os meios orgânicos e funcionais oferecem‑se bem diversos. Só as regiões autónomas possuem órgãos e funções de natureza política e, portanto, apenas estas afetam a forma do Estado. A par da autonomia regional, que é efeito da descentralização política ou político‑administrativa, conhece‑se a autonomia (ou talvez melhor, uma gama algo diversificada de formas de autonomia) de que são dotadas certas comunidades territoriais dependentes de outros Estados ou em regimes especiais. Trata‑se aqui de um conceito empírico destinado a descrever algo de situado entre a não autonomia territorial e o estatuto de Estado independente ou entre a não autonomia territorial e a integração em Estado independente, em igualdade com quaisquer outras comunidades que deste façam parte. São, designadamente, quatro os tipos de estatutos de autonomia de comunidades territoriais: autonomia derivada de antigos laços feudais (a ilha de Man e as ilhas Anglo‑Normandas em relação à Coroa britânica); autonomia ligada a vínculos coloniais, semicoloniais ou pós‑coloniais (as colónias autónomas e semiautónomas britânicas, como é o caso de quase todos os países da Commonwealth of Nations antes de acederem à independência e das Bermudas, de Gibraltar ou das ilhas Caimão, entre outros territórios; de certo modo, dos territórios ultramarinos franceses, como a Nova Caledónia ou a Polinésia; de Guame, das ilhas Marianas do Norte e da Samoa Americana, em relação aos Estados Unidos); autonomia com associação a outros Estados (as Antilhas Holandesas e Aruba em face da Holanda, Porto Rico perante os Estados Unidos, as ilhas Cook e Niue em relação à Nova Zelândia); autonomia ligada a situações internacionais especiais (Fiume entre 1919 e 1924, o Sarre entre 1919 e 1935 e entre 1945 e 1955, Danzig entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, Trieste entre 1947 e 1954, Berlim entre 1949 e 1990, Macau entre 1976 e 1999; numa fase de preparação para a autodeterminação, alguns territórios sob mandato ou sob tutela). A estrutura da autonomia das regiões autónomas e a das comunidades territoriais dependentes acabadas de enunciar dir‑se‑iam prima facie similares. Há autonomias mais extensas ou menos extensas num lado e noutro e também são variáveis os poderes de controlo e de intervenção das autoridades estatais. Mas a natureza e o sentido da autonomia são completamente diversos, consoante se trate da autonomia com integração ou sem integração. A autonomia própria das regiões autónomas é uma autonomia com integração. É a autonomia – sejam quais forem as razões em que se funde – de comunidades que compõem, com outras, um povo, ao qual corresponde um certo e determinado Estado e que, por essa via, têm pleno acesso à soberania desse mesmo Estado. Pelo contrário, a autonomia sem integração – resulte ela de laços feudais, coloniais, associativos, internacionais ou outros – implica uma separação e, ao mesmo tempo, uma subordinação. A comunidade que dela goza não se considera constitutiva do povo do Estado soberano a que se encontra vinculada e está, portanto, numa espécie de capitis deminutio perante ele; o seu território não é parte integrante do território desse Estado soberano (ou se, porventura, é declarado parte integrante, encontra‑se numa condição particular frente à metrópole); em virtude desta diferenciação, avulta a imperfeição do respetivo estatuto constitucional. É uma constante do direito constitucional português a unidade ou unicidade do poder político, com maior ou menor grau de descentralização e desconcentração (embora a locução “Estado unitário” só apareça desde a Constituição de 1911). Apenas a Constituição de 1822 esboçara algo diferente: uma união real com o Brasil – aliás, bastante imperfeita, por faltar uma assembleia própria do Brasil, e logo ultrapassada, por, ainda antes da aprovação final do texto constitucional, o Brasil se ter declarado independente. Para além disso, não houve senão a aplicação tendencial dos princípios da especialização e da descentralização legislativas aos territórios ultramarinos pelas Constituições de 1838, 1911 e 1933 e pelo Ato Adicional à Carta de 1852. O art. 6.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), em contrapartida, vem converter os Açores e a Madeira em regiões autónomas dotadas de estatutos político‑administrativos e de órgãos de governo próprio (CRP, art. 6.º, n.º 2). Esta é uma fortíssima alteração qualitativa, introduzida não somente na situação dos arquipélagos – cujos distritos, desde 1895, gozavam de maior autonomia administrativa do que os distritos continentais –, mas também na própria estrutura do Estado português – correspondente à nação portuguesa, no seu espaço europeu e atlântico –, que, pela primeira vez na história, confere assim poderes substancialmente políticos a órgãos regionais com titulares não designados pelo poder central. Não se adotou uma regionalização política integral: as regiões administrativas previstas para o continente – a existirem – constituirão meras autarquias locais (CRP, arts. 236.º, n.º 1, 255.º-262.º). Portugal não deixa, por isso, de ser um Estado unitário regional (apesar de esta designação não estar expressamente consagrada no texto constitucional). Se bem que situada no contexto de 1975‑1976 (com o país saindo do processo revolucionário, com o poder central enfraquecido e perante certos receios de separatismos), a decisão constituinte correspondeu a algo de muito profundo. Foi uma resposta adequada tanto às reivindicações de desenvolvimento e de autonomia das populações insulares como aos próprios princípios constitucionais proclamados (descentralização e participação). Três dos projetos de Constituição apresentados à Assembleia Constituinte já contemplavam um regime político‑administrativo, mas o impulso para a sua definição viria das “juntas regionais” (entretanto constituídas nos dois arquipélagos pelo Governo provisório) e, sobretudo, da 8.ª Comissão e dos debates travados no plenário da Assembleia Constituinte quase no termo dos seus trabalhos. Entrada em vigor a CRP, logo o Governo provisório publicou – em obediência ao seu art. 302.º – estatutos provisórios e leis eleitorais para as primeiras eleições regionais. Estes estatutos vigorariam até serem elaborados os estatutos definitivos (CRP, art. 302.º, n.º 3), o que aconteceria, quanto aos Açores, com a lei n.º 39/80, de 5 de agosto (depois alterada pela lei n.º 9/87, de 20 de março, pela lei n.º 61/98, de 27 de agosto, e pela lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro), e, quanto à Madeira, com a lei n.º 13/91, de 5 de junho. As revisões constitucionais – sobretudo a de 1997 e, muito mais ainda, a de 2004 – introduziram clarificações e modificações importantes, sempre no sentido de um aumento da autonomia. Em 1982, as regiões autónomas receberam poder tributário próprio, o poder de definir atos ilícitos de mera ordenação social, o poder de criar e extinguir autarquias locais e o poder de participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos (CRP, art. 229.º, posteriormente 227.º). Foram aperfeiçoadas as regras sobre a reserva de competência da Assembleia Regional e sobre o veto do ministro da República (CRP, arts. 234.º e 235.º, depois 232.º e 233.º). Desapareceu a possibilidade de suspensão dos órgãos regionais pelo Presidente da República (CRP, art. 234.º inicial). Foi extinta a comissão consultiva para os assuntos das regiões autónomas (CRP, art. 236.º inicial). Assimilou‑se o contencioso de legalidade de normas regionais ou perante os estatutos regionais ao contencioso de constitucionalidade (CRP, arts. 280.º e 281.º). Em 1989, reconheceu‑se às assembleias, posteriormente chamadas Assembleias Legislativas Regionais, o poder de desenvolver Leis de Bases. Admitiram‑se autorizações legislativas da Assembleia da República a essas Assembleias para efeito de derrogação de leis gerais da República em matérias não reservadas aos órgãos de soberania. Foram concedidos às regiões os poderes de estabelecer cooperação com entidades regionais estrangeiras e de participar em organizações que tenham por objeto fomentar o diálogo e a cooperação inter‑regionais (CRP, art. 229.º, posteriormente 227.º). Garantiram‑se direitos de informação à oposição nessas Assembleias (assim como, aliás, às oposições do poder local) (CRP, art. 117.º, depois 114.º, n.º 3). Em 1992 e em 2001, nenhum preceito sobre regiões autónomas foi modificado. A revisão constitucional de 1997 reforçou o poder legislativo das regiões, pela subordinação de respetivos decretos aos princípios fundamentais das leis gerais da República, e não simplesmente às leis gerais da República (quer dizer, aos preceitos, um a um, destas leis), e pela enunciação, a título exemplificativo, de matérias de interesse específico (CRP, arts. 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º). Abriu caminho a um regime estável de finanças regionais, objeto de lei orgânica (CRP, arts. 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3). Consagrou a participação das regiões no processo de construção europeia (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas v) e x)). Eliminou a cláusula de vedações do art. 230.º inicial. Reduziu o conteúdo funcional do estatuto dos ministros da República, que deixaram de representar a soberania da República, de ter assento em Conselho de Ministros e de exercer funções administrativas, salvo, mediante delegação do Governo, poderes de superintendência nos serviços regionais do Estado, e cujos mandatos ficaram a coincidir com o do Presidente da República (CRP, art. 230.º). Atribuiu ao Governo regional um poder de auto‑organização (CRP, art. 231.º, n.º 5). Criou o referendo regional (CRP, art. 232.º, n.º 2). E passou a admitir a dissolução das Assembleias Legislativas apenas por prática de atos graves contrários à Constituição (CRP, art. 234.º). A revisão de 2004 iria muito mais longe, assimilando, para vários efeitos, o regime das Assembleias Legislativas das regiões autónomas (e não mais Assembleias Legislativas Regionais) ao regime da Assembleia da República (CRP, arts. 52.°, n.º 2 e 232.°, n.° 4); permitindo a delegação de competências do Governo da República aos Governos regionais, com a correspondente transferência de meios financeiros e os mecanismos de fiscalização aplicáveis (CRP, art. 229.°, n.° 4); substituindo os ministros da República para as regiões autónomas por representantes da República, nomeados e exonerados pelo Presidente da República, apenas ouvido o Governo (e não sob proposta do Governo) e sem poderem receber, por delegação do Governo, competências de superintendência nos serviços do Estado nas regiões (CRP, arts. 230.°; 134.°, alínea i) e 145.°, alínea c)); suprimindo o poder do Presidente da República de dissolver os órgãos de governo próprios das regiões por prática de atos graves contrários à Constituição (CRP, art. 234.°, n.° 1), passando a admitir-se, porém, a dissolução das Assembleias Legislativas em termos análogos aos da dissolução da Assembleia da República (CRP, arts. 234.°, n.os 1 e 3, e 133.°, alínea j)) e ficando, em caso de dissolução, os Governos regionais demitidos, mas com as funções de Governo de gestão (CRP, art. 234.°, n.° 2). Por outro lado, esta revisão constitucional: eliminou o interesse específico como critério definidor dos poderes legislativos regionais (CRP, arts. 112.°, n.° 4, e 227.°, n.° 1, alínea a)), bem como a referência a leis gerais da República (mesmos preceitos), embora estas não desapareçam, obviamente, porque continua a haver leis aplicáveis a todo o território nacional, quer no âmbito da reserva dos órgãos de soberania, quer quando falte legislação regional própria não reservada a estes órgãos (CRP, art. 228.°, n.° 2) – simplesmente, nesta segunda hipótese, novos decretos legislativos regionais prevalecem sempre no âmbito regional; remeteu para os estatutos político-administrativos as matérias não reservadas aos órgãos de soberania em que consiste a autonomia legislativa regional (CRP, art. 228.°, n.° 1), mas devendo os correspondentes preceitos estatutários ser aprovados, na Assembleia da República, por dois terços dos deputados presentes, desde que o seu número seja superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções (CRP, art. 168.º, n.º 6, alínea f)); reiterou o poder (perdido em 1997) de transposição de atos jurídicos da União Europeia que versem sobre matérias de autonomia legislativa (CRP, arts. 112.°, n.° 8, e 227.°, n.° 2, alínea x)); em vez da possibilidade de autorizações legislativas para derrogação de princípios fundamentais de leis gerais da República, previu a possibilidade de autorizações legislativas sobre a maior parte das matérias de reserva relativa da Assembleia da República, se bem que não das mais importantes no plano dos direitos fundamentais e dos órgãos de poder (CRP, art. 227.°, n.° 1, alínea b)); possibilitou o desenvolvimento por decreto legislativo regional, para o âmbito regional, dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam – de quaisquer leis, sem exceção, incluindo em matérias reservadas à Assembleia da República (CRP, art. 227.°, n.° 2, alínea d), em confronto com o anteriormente estipulado). O art. 225.º da CRP aponta os fundamentos, as finalidades e os limites da autonomia regional (parecendo, em parte, uma exposição de motivos): “1. O regime político‑administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira fundamenta‑se nas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares. – 2. A autonomia das regiões visa a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico‑social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses. – 3. A autonomia político‑administrativa regional não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce‑se no quadro da Constituição”. A despeito de ser muito denso, este artigo deve ser lido em conexão com os arts. 9.º, alínea g), 81.º, alínea d), 90.º e 229.º, n.º 1: é tarefa fundamental do Estado promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o “carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira” (CRP, art. 9.º, alínea g)); os órgãos de soberania asseguram, em cooperação com os órgãos do Governo regional, o desenvolvimento económico e social das regiões autónomas, “visando, em especial, a correção das desigualdades derivadas da insularidade” (CRP, art. 229.º, n.º 1). A par dos elementos estritamente políticos, põem‑se, assim, em foco elementos económicos e sociais. Para além da autonomia como valor em si e da maior e mais direta participação dos cidadãos na gestão dos assuntos que lhes dizem respeito, pretende‑se realizar a igualdade efetiva entre os Portugueses (CRP, art. 9.º, alínea d)). Porque a vida nas ilhas, mormente nas menores e mais afastadas, arrasta carências e obstáculos à plena fruição de direitos económicos, sociais e culturais, incumbe ao Estado e às regiões, em diálogo e obra comum, procurar remover tais carências e obstáculos através do desenvolvimento e da solidariedade. No essencial, o regime político‑administrativo da Madeira e dos Açores consiste em: atribuição de poderes atinentes ao tratamento das matérias de âmbito regional, designadamente poderes legislativos (CRP, arts. 227.º, n.º 1, alíneas a), b), c), i), l), m), p), 1.ª parte, e q), 112.º, n.º 8, e 228.º), regulamentares (CRP, art. 227.º, n.º 1, alínea d)) e executivos (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas g), h), m) e o)); atribuição também de poderes de participação em atos de órgãos do Estado que afetem especificamente as regiões (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas e), f), p), 2.ª parte, r), s), t), v) e x)); atribuição ainda de poderes adjetivos ou de garantia (CRP, arts. 281.º, n.º 2, alínea g), e 283.º, n.º 1); criação de uma assembleia representativa e de um governo perante ela responsável como órgãos de governo próprio (CRP, arts. 231.º e 232.º); reserva de iniciativa das Assembleias Legislativas Regionais quanto aos estatutos das respetivas regiões e quanto à eleição dos seus deputados (CRP, art. 226.º); articulação dos órgãos de soberania e dos órgãos de autonomia, através de vários poderes do Presidente da República (CRP, arts. 133.º, alíneas b), d), j) e l), e 234.º), dos poderes de participação das regiões, do Conselho de Estado (CRP, art. 242.º, alínea e)) e do representante da República (CRP, arts. 230.º, 231.º, nos 3 e 4, e 233.º); integração da produção legislativa regional no sistema legislativo nacional (CRP, arts. 112.º, 227.º, 228.º e 278.ºss.), bem como das finanças regionais no sistema financeiro nacional (CRP, arts. 106.º, n.º 3, alínea e), 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3). Em confronto com os sistemas regionais mais próximos (o italiano e o espanhol) depara‑se, como notas individualizadoras do sistema português, além do seu carácter parcial: a aprovação do estatuto de cada região por lei ordinária (CRP, art. 166.º, n.º 3) e não por lei constitucional, ainda que o seu processo ofereça significativas particularidades (CRP, art. 226.º); o valor reforçado do estatuto (CRP, arts. 280.º, n.º 2, alíneas b), c) e d), e 281.º, n.º 1, alíneas c) e d)); a explícita consagração constitucional de poderes de incidência internacional (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas s) a x)); a atribuição às regiões não só de poder tributário próprio mas também de todas as receitas tributárias nelas cobradas (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas i) e j)); o sistema de governo regional (CRP, art. 231.º), diferente do sistema de governo a nível nacional; a proibição de partidos regionais (CRP, art. 311.º, n.º 2, no texto inicial; 51.º, n.º 4, posteriormente). Até à revisão constitucional de 2004, também poderia ser referida a definição da autonomia legislativa com base em conceitos relativamente indeterminados – “interesse específico e leis gerais da República” (CRP, arts. 112.º, n.os 4 e 5, e 227.º, n.º 1, alíneas a), b) e c)). Ponto importante a dilucidar vem a ser o atinente ao sentido dos estatutos das regiões. A função de cada estatuto (note‑se, político‑administrativo) consiste em definir as atribuições regionais e os meios correspondentes (CRP, art. 227.º), bem como o sistema de órgãos de governo próprio da região, incluindo os estatutos dos respetivos titulares (CRP, art. 231.º); ou, em geral, em desenvolver, explicitar ou concretizar as normas do título vi da parte iii da Lei Fundamental, adequando‑as às especificidades e às circunstâncias mutáveis dessa região; não consiste em estabelecer os princípios de toda a vida política, económica, social e cultural que aí se desenrola, porque isso cabe à Constituição – que é a Constituição da República, e não só do continente. Há uma reserva de estatuto, com a necessária densificação (voltamos a dizer). Em contrapartida, ela define, concomitantemente, o objeto possível de cada estatuto em concreto. O estatuto não é uma constituição com amplitude potencialmente ilimitada. Cabe‑lhe definir o interesse específico, cerne da autonomia, mas não regular matérias de interesse específico. Cabe‑lhe assegurar um sistema político regional, mas não substituir‑se‑lhe ou substituir‑se aos órgãos de soberania. Por outro lado, competindo a iniciativa originária do estatuto ou das suas alterações à Assembleia Legislativa (CRP, art. 226.º), se o estatuto pudesse abarcar qualquer matéria, ficaria, por esse modo, limitado o poder de iniciativa dos deputados, dos grupos parlamentares, de grupos de cidadãos ou do Governo da República relativamente a essa matéria (CRP, art. 167.º). A Assembleia pode, certamente, apresentar propostas de lei, “no respeitante” à região, sobre qualquer objeto (CRP, art. 167.º, n.º 1, 2.ª parte), o que não justifica transformar essa matéria em matéria estatutária. Se um dos estatutos contiver normas sobre outras matérias que não as respeitantes às atribuições e aos órgãos e aos titulares dos órgãos regionais, essas normas não adquirirão a força jurídica específica das normas estatutárias. Por conseguinte, poderão ser modificadas ou revogadas, observadas as pertinentes regras gerais da Constituição; ou poderão, desde logo, ser inconstitucionais por invadirem domínios próprios de outras leis. Não custa pensar em exemplos de inconstitucionalidade de eventuais normas estatutárias por preterição da distribuição constitucional de formas e procedimentos legislativos. Seria o caso de normas sobre eleições dos titulares dos órgãos de governo próprio ou dos titulares dos órgãos do poder local na região (afetando o art. 164.º, alíneas j) e l), e o art. 166.º, n.º 2 da CRP), sobre criação, extinção ou modificação territorial de autarquias locais (infringindo o art. 164.º, alínea n) da CRP), ou sobre direitos, liberdades e garantias (contra o art. 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP), ou sobre reprivatizações (CRP, art. 296.º). Quanto às eleições, em especial, não se esqueça o tratamento homogéneo que recebem da Constituição, quer no plano dos grandes princípios substantivos (CRP, arts. 10.º, 49.º; e 113.º), quer no da regulamentação legislativa (CRP, arts. 164.º, alíneas a), j) e l), e 136.º, n.º 3, alínea c)), quer no da competência do Presidente da República (CRP, art. 133.º, alínea b)), quer ainda no plano dos limites materiais da revisão constitucional (CRP, art. 288.º, alínea h)). Esse tratamento unitário e reforçado – compreensível por causa da importância fulcral das eleições em democracia representativa (CRP, art. 10,º, n,º 1) – ficaria afetado se o regime das eleições regionais fosse repartido pelas leis eleitorais e pelos estatutos. Em escritos de há vários anos, tendíamos a reconduzir as situações a inconstitucionalidade formal por excesso de forma. Revendo a nossa posição, desdobrámo‑las agora em geral, em mera irrelevância e, em hipóteses como as acabadas de enunciar, em inconstitucionalidade – por insuficiência de forma, no caso das eleições, quando se não respeitem as regras próprias das leis orgânicas (CRP, arts. 136.º, n.º 3, 168.º, n.º 5, e 278.º, n.º 5); e, nos demais casos por desvio de forma (por se utilizar uma forma para fim diferente daquele para o qual está instituída). Por outro lado, sustentávamos que se a Assembleia da República viesse, subsequentemente, a legislar sobre matérias que não deviam constar dos estatutos, ocorreria um conflito entre constitucionalidade e legalidade: as normas estatutárias seriam inconstitucionais, as normas não estatutárias ilegais; e, solicitada a apreciação da legalidade em tribunal, poderia este suscitar ex officio a questão da constitucionalidade daquelas, visto que, para serem padrão de validade de outras normas, teriam de ser conformes com a Constituição. Mas hoje estimamos desnecessário raciocinar assim, porque só as normas sobre objeto próprio dos estatutos poderão determinar ilegalidade, não quaisquer outras, e, portanto, não se põe o problema. Contra a consideração de mera irrelevância, há quem pretenda que não seria razoável dar ao legislador comum a possibilidade de destacar as normas que entenda a seu bel‑prazer serem estatutárias e não estatutárias “por natureza”; e, contra a qualificação de certas normas estatutárias como inconstitucionais pelo próprio órgão legislativo, quem invoque o sistema de fiscalização, que não consente à Assembleia da República nenhuma decisão autónoma de constitucionalidade. Mas julgamos que as críticas não atingem o alvo, pois que não preconizamos que o legislador declare, explícita ou implicitamente, inconstitucional qualquer norma; o Parlamento agirá como tal, simplesmente legislando, por sua conta e risco – sobre eleições, como sobre qualquer outra matéria – e quem irá decidir, em última análise, da constitucionalidade e da legalidade de todas as normas será o Tribunal Constitucional.   Jorge Miranda (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Política e Institucional

juiz de fora

O juiz de fora esteve presente na orgânica administrativa insular entre 1645 e 1834, na qualidade de presidente da Câmara Municipal do Funchal. Era um funcionário integrado na administração periférica da Coroa; a sua ida para a Ilha ter-se-ia justificado com a necessidade de implementar uma melhor administração da justiça e de presidir ao município sediado no mais importante centro urbano do arquipélago da Madeira. O juiz de fora teria de ser, necessariamente, um indivíduo letrado, com título de bacharel em Direito romano pela Universidade de Coimbra, e era designado pelo Rei para exercer um mandato com a duração de três anos, o qual poderia ser prorrogado por vontade régia. Por norma, essa nomeação ocorria na sequência da aprovação num exame promovido pelo Desembargo do Paço, destinado a aferir as capacidades dos candidatos para o exercício de uma determinada função no âmbito da magistratura régia. Chegado ao Funchal, o juiz de fora deveria apresentar, junto da Câmara Municipal, o documento de que constava a sua nomeação, para que deste ficasse registo no tombo adequado. De seguida, comparecia perante a vereação funchalense e demais autoridades, para o protocolar ato de juramento e posse que se realizava nas instalações camarárias. O juiz de fora auferia de um ordenado, com os respetivos próis e percalços, e de uma aposentadoria, no valor de 20$000 réis, paga pelos rendimentos do município do Funchal. Tinha, de igual modo, a faculdade de cobrar 4$000 réis pela realização das eleições municipais. A jurisdição do juiz de fora compreendia, de acordo com o “Título LXV” do “Livro I” das Ordenações Filipinas: o despacho, em audiência, de casos de injúrias verbais ou de agressões entre moradores; o despacho, em audiência, de contendas relativas a bens móveis ou de raiz; a aplicação de penas aos réus; a realização de devassas sobre os crimes cometidos; a defesa da jurisdição do Rei contra eventuais abusos perpetrados por eclesiásticos ou leigos; a fiscalização da atuação dos oficiais municipais. O juiz de fora não estava sujeito à inquirição do corregedor da comarca, contrariamente ao que sucedia com os demais membros do município. Como juiz de primeira instância nas causas cíveis e crimes, cabia-lhe zelar pela aplicação do direito oficial e régio. Servia o cargo de provedor da Fazenda dos defuntos e ausentes e tinha poder para agir no âmbito do juízo dos órfãos, em caso de suspeita de atuação irregular por parte dos seus titulares. Para além deste vasto conjunto de atribuições, desempenhava o cargo de juiz conservador da Companhia Geral do Comércio do Brasil, em virtude de muitas embarcações fazerem escala no Funchal para se abastecerem de vinho, e o de auditor da gente da guerra. Na sequência da expulsão da Companhia de Jesus, em 1760, o juiz de fora ficou encarregue da administração de todos os bens e rendas, confiscados em nome do Rei pelas autoridades insulares, que aquela ordem possuía na Madeira. A atuação do juiz de fora foi visível sobretudo no contexto da presidência da Câmara do Funchal. Foi uma presença regular nas reuniões da vereação e destacou-se por ser o responsável pela realização das eleições municipais, pela elaboração da pauta eleitoral e pelo respetivo envio para o Desembargo do Paço. De igual modo, foi a entidade portadora do conhecimento sobre o direito oficial e letrado e a responsável pela sua divulgação junto da vereação funchalense. A necessidade da presença deste magistrado era sentida pelos próprios membros da Câmara do Funchal, conscientes das suas limitações no exercício adequado da justiça, em virtude das relações de parentesco e amizade existentes entre os habitantes, uma realidade suscitadora de inúmeras queixas das partes litigantes. Em 1762, nomeadamente, estando o lugar de juiz de fora sem provimento, a vereação apelou ao Monarca para que mandasse para o Funchal um magistrado versado e douto na prática forense, em razão dos muitos e intrincados pleitos que existiam naquela cidade. Auxiliar jurídico de importância reconhecida pela vereação funchalense, o juiz de fora só saiu da orgânica administrativa municipal em 1834. Com efeito, a cerimónia de juramento da Rainha D. Maria I e da Carta Constitucional, numa reunião extraordinária do município funchalense em 6 de junho de 1834, representou o último ato institucional do juiz de fora. Com a implantação definitiva do Liberalismo, o município deixou de ter qualquer competência no âmbito da administração da justiça em primeira instância, conforme tivera até então. O estabelecimento de uma nova organização judicial, programado pelo poder central logo em 1834, seria uma das importantes consequências da nova divisão territorial implementada em 1835. [table id=100 /]   Ana Madalena Trigo de Sousa (atualizado a 26.12.2015)

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ribeiro real, visconde do

Visconde do Ribeiro Real. 1885. Arquivo Rui Carita João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo. Casando-se, a 24 de junho de 1882, já com mais de 40 anos, com Teresa da Câmara Carvalhal, filha do 2.º conde de Carvalhal, recebeu o título de visconde do Ribeiro Real. Passara, entretanto, pela Junta Geral e depois pela presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia. Na sua vereação camarária ainda se fundou o corpo de bombeiros voluntários e procedeu-se a reformas urbanas na área do cemitério britânico, tendo hoje o seu nome o largo que fica mais a sul. Foi ainda cônsul de França e elevado a conde do Ribeiro Real, título que parece não ter usado. Faleceu em 1902. Palavras-chave: bombeiros voluntários; Câmara Municipal do Funchal; cemitério britânico; caminho de ferro do Monte; Teatro Municipal.     João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo, de São Pedro, no Funchal, e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo, de Ponta Delgada. Casando-se, a 24 de junho de 1882, com Teresa da Câmara Carvalhal (1857-c. 1925), filha do 2.º conde de Carvalhal (1831-1888), recebeu o título de visconde do Ribeiro Real por decreto de 23 de março desse ano, sendo depois elevado a 1.º conde, por decreto de 16 de fevereiro de 1899, após a sua passagem pelo governo civil do Funchal, em 1897, como interino. Para além do cargo que ocupou na Junta Geral e da presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia (Teatro Municipal), ocupou também o lugar de cônsul de França. O futuro visconde do Ribeiro Real deveria ser uma figura muito discreta e reservada, não sendo fácil recuperar o seu percurso político e social. Casou-se bastante tarde para a época, já passando dos 40 anos, não havendo descendência do seu casamento. A primeira referência política a seu respeito é como procurador da Junta Geral, quando se pronuncia sobre a lei de 13 de maio de 1872, que criara as bases da nova regulamentação. Como vogal, João Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo esteve na reunião de 11 de março de 1874 e na de 11 de abril seguinte, aprovando as alterações que o vogal do conselho de distrito, visconde de S. João, Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875) mandou imprimir a 14 de abril desse ano. A sua ação mais relevante foi à frente da Câmara Municipal do Funchal, onde sucedeu ao sogro, 2.º conde de Carvalhal, que somente ocupara o lugar no quadriénio de 1882-1885 por ser, ainda, o maior proprietário latifundiário do Funchal, mas cujas funções tinham sido desempenhadas pelo vice-presidente, morgado João Sauvaire da Câmara e Vasconcelos (1828-1890). A partir de 1886, a Câmara do Funchal teve uma interessante atividade, entre outras coisas, acabando as obras do Teatro Municipal, apresentado aos funchalenses a 29 de julho de 1887, e inaugurado oficialmente a 11 de março de 1888. Nessa altura, teve o visconde de se defrontar com o primo, João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), conde de Canavial e então governador civil, que queria ocupar o camarote da presidência, o que veio a acontecer, mas como convidado, pois o Teatro era propriedade da Câmara. A questão do camarote do Teatro ocupou então as primeiras páginas da imprensa da cidade. Foi durante a presidência do visconde do Ribeiro Real, quando tinha o pelouro dos incêndios o Dr. José Joaquim de Freitas (1847-1936), então também médico do hospital da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, que se fundaram os bombeiros voluntários do Funchal, serviço inaugurado oficialmente a 24 de setembro de 1888. A apresentação pública do inúmero material adquirido para esse serviço, de que existe abundante documentação fotográfica, foi feita junto à fachada do referido hospital, a 7 de abril de 1889. O primeiro quartel foi construído na antiga R. do Príncipe (assim designada em homenagem ao príncipe, depois D. João VI (1767-1826)), posteriormente R. 31 de Janeiro, passando, duas décadas depois, para a R. da Princesa (em referência a D. Carlota Joaquina (1775- 1830)), posteriormente R. 5 de Outubro. José Joaquim de Freitas era um republicano de arreigadas convicções (República), mas tal não obstou ao apoio que sempre lhe foi dado pelo visconde do Ribeiro Real, tendo-se registado, inclusivamente, um forte apoio das mais destacadas famílias funchalenses à criação dos bombeiros voluntários, existindo fotografias destes anos de inúmeros dos seus elementos fardados de bombeiros, independentemente da sua filiação partidária e, inclusivamente, nacionalidade; há mesmo fotografias de comerciantes britânicos, o que só se explica pelo apoio dado à iniciativa pelo visconde. João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo foi igualmente um dos principais impulsionadores do projeto do caminho de ferro do Monte, numa altura em que o projeto poderia ter sucumbido ao conflito de interesses entre os comerciantes britânicos radicados na Ilha e os financeiros alemães, que o apoiavam. Ao nível do Governo central, o apoio ao projeto não foi muito evidente, exceto na isenção de impostos que concedeu à Companhia do Caminho-de-Ferro do Monte, aquando da entrada na Alfândega do Funchal do material fixo e circulante para a via-férrea. O grande apoio partiu da Junta Geral, que adquiriu algumas ações, e, especialmente, da Câmara do Funchal, através do vereador João Luís Henriques e do presidente, o visconde do Ribeiro Real, tendo a Câmara adquirido 250 obrigações. As transformações ocorridas na malha urbana da cidade permaneceram e decorrem da urbanização envolvente do traçado da via-férrea e da montagem de uma série de instalações turísticas de apoio, como o Hotel do Bello Monte, e depois das instalações do Terreiro da Luta, consolidando a estruturação da freguesia de Santa Luzia e a ligação da cidade à freguesia do Monte, e contribuindo para a visão geral de anfiteatro que da encosta do Funchal. Foi também a vereação do visconde de Ribeiro Real que permitiu e apoiou a ampliação do cemitério britânico (Cemitério britânico), como contrapartida pela expropriação de uma faixa do terreno do mesmo. Foram então demolidas duas das vielas anexas entre aquele espaço e a R. dos Aranhas, do que resultou a R. 5 de Junho, depois R. Major Reis Gomes, onde viria a ser construído o largo com o seu nome. Os viscondes do Ribeiro Real habitaram o palácio de S. Pedro que, desde 1883, era partilhado com o Colégio de S. Jorge, dirigido pela futura M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). Também ali faleceu, a 4 de fevereiro de 1888, o 2.º conde de Carvalhal, António Leandro Carvalhal Esmeraldo e, em 1897, ainda se instalou em parte do palácio o Clube Internacional. O visconde do Ribeiro Real seria elevado a conde do Ribeiro Real, a 16 de fevereiro de 1899, mas parece nunca ter usado o título, falecendo a 22 de março de 1902, altura em que se encontrava já retirado da vida pública, não havendo, por exemplo, qualquer referência a seu respeito na visita régia de junho de 1901. A condessa do Ribeiro Real, em 1921, deu início ao processo de venda do palácio, mas a mesma foi contestada pelos coproprietários, conde de Resende e família de Eça de Queiroz, descendentes de sua irmã, Maria das Dores Carvalhal (1855-1910). A a 20 de janeiro de 1923, a condessa mandou vender em leilão o recheio do palácio, momento em que se dispersou aquele importante espólio. Deverá ter falecido pouco depois dessa data. O espadim de honra do visconde do Ribeiro Real, como fidalgo da Casa Real, deve ter sido logo entregue à Câmara Municipal do Funchal, por legado do mesmo. A sua liteira, no entanto, com as armas de visconde envolvidas pelos atributos utilizados pela Câmara, um ramo de videira e outro de cana-de-açúcar, tal como o seu monograma, encimado por coroa de visconde, deve ter ido então a leilão, tendo passado a mãos particulares e depois ao Museu Quinta das Cruzes, sendo dos poucos exemplares deste tipo de transporte que sobreviveu. É provável que do leilão de 1923 tenha sobrevivido uma fotografia, onde aparece um dos dois óleos de Tomás da Anunciação (1818-1879), encomendados pelo 2.º conde de Carvalhal em 1865, e que fazem igualmente parte do acervo do Museu Quinta das Cruzes. No mesmo leilão deve ter sido vendido o retrato das duas filhas do 2.º conde de Carvalhal, depois depositado na Fundação Eugênia de Canavial.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

república

A aclamação da República, decorrida em Lisboa, na manhã de 5 de outubro de 1910, foi comunicada ao Funchal às 18.00 h do mesmo dia. Ao contrário do que se poderia esperar, a tomada de posse dos republicanos não ofereceu especiais dificuldades na Ilha, embora a imprensa republicana mais agressiva tenha alardeado inúmeros casos conflituosos, especialmente com elementos do clero. Os principais desentendimentos ocorreram no seio dos republicanos, com a crispação dos mais novos contra os mais velhos e experientes, criando problemas nas eleições de 1911 e nas suplementares de 1913, altura em que já se dividiam em três tendências, todas apoiadas em periódicos: os democráticos, os unionistas e os evolucionistas. Palavras-chave: regime político; imprensa; partidos políticos; anticlericalismo; eleições.   No dia 5 de outubro de 1910, a cidade do Funchal acordou, como habitualmente, sem saber o que se estava a passar em Lisboa. Havia, desde as décadas anteriores, contactos entre as várias estruturas republicanas; aliás, poucos meses antes, os marinheiros do cruzador Adamastor tinham realizado um jogo de futebol com os marítimos de Santa Maria Maior, que já utilizavam as cores republicanas e que, pouco tempo depois, se constituíram como clube de futebol (Clube de Futebol Marítimo). Desconhecia-se, no entanto, que, nessa manhã de outubro, o cruzador bombardeava com as suas peças de artilharia o palácio das Necessidades, levando a família real a fugir para a Ericeira e a embarcar para fora do país; essas peças, mais tarde, foram guardadas no Funchal, na entrada do antigo aquartelamento do grupo de artilharia de São Martinho. Os jornais desse 5 de outubro só haviam recebido algumas notícias dos dias anteriores, como a do assassinato de Miguel Bombarda, no hospital de Rilhafoles, por um dos seus doentes, a 3 de outubro, publicando-se, no Diário de Notícias, alguns dados biográficos sobre o assassino, nomeadamente que aderira ao Partido Republicano Português (PRP) (Partido Republicano) e que era um dos seus mais valiosos combatentes. O vespertino O Jornal, dado como afeto ao Governo e à Igreja, informava estarem interrompidas as ligações com a capital, devido a uma avaria no cabo submarino. A notícia terá despertado desconfiança e, mantendo-se por toda a manhã a falta de informações, logo circularam boatos, que levaram à reunião da comissão municipal republicana no Centro Republicano Manuel de Arriaga, à R. da Carreira, n.º 13, e à ordem de prevenção às unidades militares. A notícia chegou às 18.00 h, através da agência noticiosa Havas: “Foi proclamada a República em Portugal depois de um combate em que a Artilharia 1, a Infantaria 16 e a Marinha saíram vitoriosas” (“Proclamação da República”, DN, Funchal, 6 out. 1910, 1). O telegrama confirmava o boato e a comissão municipal enviou felicitações e cumprimentos, em nome do “povo democrático da Ilha”, ao novo Governo e aos jornais republicanos de Lisboa (“A República na Madeira”, O Povo, sup. n.º 191, 9 out. 1910, 1). Foi de imediato distribuído um pequeno texto noticioso que gerou um enorme entusiasmo, acorrendo muitas pessoas ao Centro Republicano, onde se juntaram também militares. Todavia, a palavra de ordem que circulava era de contenção, dado faltar a confirmação oficial da notícia e ainda a aclamação da República na Madeira. Esta chegou na madrugada do dia 6 de outubro, através de um telegrama do ministério do Interior para Manuel Augusto Martins (1837-1936), a nomeá-lo governador civil do Funchal. A comissão municipal republicana distribuiu de imediato um manifesto, sob o título “Ao povo Madeirense”, anunciando a proclamação da República e recomendando aos seus apoiantes “ordem e correção”, palavras que se tornavam nestes primeiros dias a principal preocupação dos republicanos (“Ao Povo Madeirense”, Diário Popular, Funchal, 7 out. 1910, 1). Entendiam e difundiam os novos dirigentes que era indispensável “desfazer pela última vez, a lenda [de] que os republicanos” eram “desordeiros e vingativos”, divulgando comunicados neste sentido pelos jornais locais. Apesar destas informações, a bandeira da monarquia, às 08.00h de 6 de outubro, voltou a ser hasteada em S. Lourenço. O Gov. civil José Ribeiro da Cunha (1859-1915) e o Gov. militar Cor. Valeriano José da Silva, inclusivamente, reforçaram a guarda ao palácio, entregue ao Ten. João Carlos de Vasconcelos (1878-1933). Face aos contactos estabelecidos pelos elementos da comissão republicana para a transferência de poderes, informaram que aguardavam ordens superiores e que, sem as mesmas, se recusavam a proceder a qualquer alteração, na secreta esperança de um retrocesso da situação em Lisboa. O governador civil indigitado, Manuel Augusto Martins, solicitou a Lisboa a comunicação oficial para os dirigentes depostos e, dentro da contenção que haviam assumido, os republicanos aguardaram, na R. da Carreira, o desenrolar da situação. Mantinham-se em reunião com o novo governador civil os membros do PRP, em grande expectativa, levando a cabo uma autêntica maratona de contactos, com a preocupação de não perder o controlo da situação. Entre eles: Nicázio de Azevedo Ramos (1862-1927), Manuel Jorge Pinto Correia (1882-c. 1940), Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969), Pedro Luís Rodrigues, José Quirino de Castro, Francisco Mendes Gonçalves Preto. O telegrama para as autoridades de S. Lourenço chegou às 11.00 h, assinado pelo novo ministro da Guerra, António Xavier Correia Barreto (1853-1939), mas o seu teor não satisfez os elementos monárquicos, nem, no dia seguinte, os sargentos e praças republicanos: “Foi proclamada a República e assumi o cargo de ministro da Guerra do Governo Provisório. Reina absoluta tranquilidade em Lisboa e províncias, estando a ordem convenientemente assegurada e tendo já recebido a adesão de importantes núcleos militares. Aguardo a adesão de V. Ex.ª e oficiais sob o seu comando” (MARTINS, 2004, 65). Na mesma manhã, ainda se reuniram no palácio de S. Lourenço os membros da comissão republicana para acordar a transferência de poderes, mas as autoridades monárquicas demarcaram-se da situação, alegando não ter havido uma ordem taxativa para aderir à República, como entendia o Cor. Valeriano José da Silva, mas sim um “pedido” ou “convite” por parte do novo ministro da Guerra, pelo que ele, pessoalmente, não se associava à mudança (Id., Ibid.). Autorizou-se, no entanto, o hastear da bandeira republicana em S. Lourenço, que foi saudada pela força militar. A comissão republicana deslocou-se para o edifício do Governo Civil, na R. João de Tavira, aguardando a chegada do secretário conselheiro António Jardim de Oliveira (1858-1926), que se encontrava no Monte e foi avisado por telégrafo terrestre. Naturalmente, a sua chegada não foi imediata, juntando-se nas imediações do Governo Civil uma multidão, à qual era preciso dar, de alguma forma, resposta. Face à aglomeração, Manuel Augusto Martins, pelas “4 horas da tarde”, mandou lavrar um termo de posse provisório, que foi por si assinado, assim como pelos vários membros do PRP, após o que foi hasteada a bandeira republicana, “que foi saudada pela enorme multidão que enchia a rua João de Tavira, e que pouco depois se dirigia para a praça da República”, como por esses anos se passou a designar a Pç. da Constituição, depois Av. Arriaga, “levando à frente uma banda que executava A Portuguesa” (“A República na Madeira”, O Povo, sup. n.º 191, 9 out. 1910, 1). Os republicanos entraram em S. Lourenço e o novo governador civil entregou a José Joaquim de Freitas (1847-1936) uma segunda bandeira republicana que o mesmo içou, na qualidade de “um dos mais velhos democratas do Funchal”. A guarda de honra militar apresentou armas e fez a “continência da ordenança” perante o delírio de “muitos milhares de cidadãos” que aplaudiam a nova era de ressurgimento de uma pátria “faminta de moralidade e justiça”, como foi referido na imprensa de então (Id., Ibid.). Da varanda do Clube Restauração, instalado no edifício do Golden Gate, discursaram o novo governador civil, Pestana Júnior, Gonçalves Preto e Azevedo Ramos, “tendo todos palavras de vibrante saudação às instituições nascentes e aconselhando o povo a conservar a serenidade e cordura que já hoje, honra ao povo, nos elevou aos olhos de nacionais e estrangeiros” (“A Proclamação da República em Portugal”, DN, Funchal, 7 out. 1910, 2). Ao meio-dia, o comércio havia encerrado as portas para que todos pudessem assistir aos festejos, mas também, certamente, por precaução. Ao final da tarde, a cidade foi percorrida por uma enorme multidão, que soltava vivas à República e fogos-de-artifício, acompanhada pela antiga Real Filarmónica Artístico Madeirense, que retirara rapidamente as coroas que enfeiravam os bonés do uniforme, juntando-se ainda o conjunto Artistas Funchalenses. À noite, Azevedo Ramos ainda discursava de uma das janelas do Centro Manuel de Arriaga e a redação do jornal Trabalho e União iluminava as suas instalações com balões venezianos. Algumas embarcações, na baía do Funchal, associaram-se às manifestações, tendo o navio de guerra norte-americano Adams embandeirado em arco, o vapor belga Ministre Beernssert dado uma salva e o patacho Navegante içado, à ré, a bandeira da República. No dia 7 de outubro, não se hasteou qualquer bandeira em S. Lourenço, embora no dia anterior tivesse sido transmitido às unidades militares o telegrama do ministro da Guerra Cor. António Xavier Correia Barreto; na fortaleza de Santiago, quartel da artilharia, foi hasteada a bandeira republicana. A bandeira fora alçada às 09.30 h com salvas e não às 08.00 h, conforme a ordenança. Pelas 11.30 h, a força de Infantaria 27 saiu do quartel do colégio (Colégio dos Jesuítas), armada e de baioneta calada, dirigindo-se para a fortaleza de S. Lourenço e estacionando no Lg. da Restauração, em frente à porta da mesma, onde se veio a estabelecer, já mais tarde, o Museu Militar (Museu Militar da Madeira). Logo saiu do colégio outra força, em direção ao mesmo local. Estas unidades não tinham aceitado o comando de qualquer oficial e não responderam aos apelos do Cap. Henrique Luís Monteiro (1862-1928) para regressarem à ordem. Neste contexto, surgiu o jovem Gregório Pestana Júnior, por nós já referido, recém-nomeado administrador do concelho que subiu a um dos bancos do passeio público e apelou à ordem, prometendo resolver a situação. Dirigindo-se à R. João de Tavira, trouxe do Governo Civil uma bandeira, que entregou ao Ten. Vasconcelos e foi de imediato hasteada. Acalmados os ânimos e chegada a banda da Infantaria 27, a bandeira foi arreada para ser então hasteada ao som de “A Portuguesa”, entre vivas à República. Falou então às forças o Maj. de artilharia Manuel Goulart de Medeiros (1861-1947), açoriano, inspetor do material de guerra, que exortou os soldados ao respeito pelos superiores. Explicou que era republicano desde longa data, mas que, como militar, nunca rinha deixado de cumprir os seus deveres de respeito e de disciplina. O Maj. Luís Correia Acciauoli (1858-1942) assumiu o comando das forças de Infantaria 27 e, com a banda, desfilou pelas ruas do Funchal, dando vivas à República, até à fortaleza de Santiago, onde o grupo foi saudar os camaradas de artilharia que se mantinham no quartel, sob o comando do Cap. João Augusto Pereira (1875-1915). Pela tarde, civis e militares, em conjunto com a Filarmónica Artístico Madeirense, voltaram a percorrer as ruas do Funchal desse modo efusivo. A nomeação de Manuel Augusto Martins para o lugar de governador civil do distrito recolheu absoluto consenso na altura. Era um republicano com provas dadas no combate político local, várias vezes candidato a deputado pelo Partido Republicano da Madeira (PRM), diretor do semanário O Povo e presidente da comissão republicana do concelho do Funchal. Como escreveu, mais tarde, Ciríaco de Brito Nóbrega (1856-1928), diretor do Diário de Notícias do Funchal: “nunca mendigou empregos; nunca aspirou a honrarias; nunca curvou a cabeça senão ao dever e nunca obedeceu senão à voz da consciência” (NÓBREGA, DN, Funchal, 22 mar. 1911, 1). Trabalhara em Lisboa, no escritório de Afonso Costa (1871-1937) e no de António José Teixeira de Abreu (1865-1930), durante dois anos, regressando depois ao Funchal, sem se deixar envolver com a “corrupção política e social, conservando sempre íntegra e imaculada a sua reputação de homem de bem”, sendo respeitado a admirado por todos, quer amigos quer adversários (Id., Ibid.). Cabia ao governador civil e às estruturas locais do PRM encontrarem os restantes elementos para preencher os órgãos de poder local. O primeiro lugar a ser preenchido foi o de administrador do concelho, com o referido Manuel Gregório Pestana Júnior, que tomou posse a 7 de outubro desse ano. Foi-lhe também atribuída a direção do principal órgão dos republicanos, o semanário funchalense O Povo, antes mencionado, após a saída de Manuel Augusto Martins. Orador notável, era militante do PRP e, ainda como estudante da Faculdade de Direito de Coimbra, participou ativamente na greve académica de 1907, tendo sido preso e processado. Nos finais de 1908, já discursava no Centro Republicano Manuel de Arriaga, no Funchal e, terminado o curso, nos meados de 1910, regressou à Madeira, com 24 anos de idade, participando ativamente nos trabalhos do partido. A 19 de outubro, efetuou-se a assembleia-geral do PRM, onde foram apresentadas as primeiras diretivas para a reorganização republicana insular: precaver-se contra excessos e adesões oportunistas, e efetuar sindicâncias a todas as corporações administrativas, de modo a impor moralidade na administração pública. A primeira moção, apresentada pelo Maj. Goulart de Medeiros, defendia que o novo Governo republicano devia apostar na união de todos os Portugueses, mas salvaguardando as adesões à nova ordem, não se admitindo aqueles que o faziam para tentar conservar privilégios. Até à consolidação das novas instituições, não se poderiam escolher elementos de alguma forma ligados ao regime anterior, “exceto se tivessem qualidades excecionais de honradez, instrução e inteligência” (“Centro Manuel de Arriaga”, DN, Funchal, 22 out. 1910, 1). A assembleia-geral continuou no dia seguinte, sendo apresentada outra moção, da autoria de Azevedo Ramos, a pedir sindicâncias a todas as repartições públicas do distrito, em especial à Câmara Municipal do Funchal e à Junta Geral. Ao longo de outubro e de novembro, o novo governador procedeu às exonerações e às nomeações dos administradores dos concelhos rurais e da comissão administrativa do município do Funchal, sendo os restantes lugares preenchidos até ao final do ano. Como podemos verificar pelas nomeações feitas, foi grande a dificuldade em encontrar elementos da confiança do PRM para se preencherem todos os lugares, acabando alguns membros por desempenharem várias funções, como acontecera anteriormente, no tempo da monarquia. A comissão administrativa da Câmara Municipal do Funchal ficou a ser presidida por Afonso Vieira de Andrade, tendo os demais pelouros sido distribuídos por Silvestre Quintino de Freitas, José Bernardo de Almeida, Manuel dos Passos Freitas (1872-1952), José Quirino de Castro, Manuel Jorge Pinto Correia e Henrique Augusto Rodrigues. A presidência da Junta Geral foi entregue a Aníbal Sertório dos Santos Pereira, tendo como procuradores José Joaquim de Freitas, o P.e Fernando Augusto da Silva (1863-1949), e os irmãos Augusto e Pedro Luís Rodrigues. Para a presidência da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, foi nomeado António Augusto Curson, que foi depois ministro do Comércio, em 1921 e membro do conselho nacional dos escuteiros de Portugal, fazendo parte da equipa da nova mesa da Misericórdia José Ernesto Areias, João Lomelino Ferreira de Sousa, Carlos Firmino Gonçalves, Bernardo do Nascimento Rodrigues, João Rodrigues Braga e Artur Pedro de Quintal. José de Castro (1848-1929), então no Funchal, foi nomeado ajudante do procurador-geral da República e Carlos Olavo Correia de Azevedo (1881-1958), secretário-geral em Lisboa, dada a necessidade de ali haver um procurador. José Alfredo Mendes de Magalhães (1870-1957), enviado à Madeira como comissário da saúde da República, por ocasião da epidemia de cólera que grassava no arquipélago, onde aportou no cruzador Almirante Reis, foi confirmado no cargo de procurador-geral da República, voltando José de Castro para Lisboa e, para a comissão administrativa do Asilo de Mendicidade e Órfãos, foram apresentados José Joaquim de Freitas, Henrique Augusto Rodrigues, Maximiano de Sousa Rodrigues, João Augusto Duarte Vítor, Francisco de Andrade e Manuel dos Passos Freitas. O Partido Progressista (PP) foi o primeiro partido monárquico a aderir ao novo quadro político, até porque muitos dos seus membros já eram republicanos (Partido Progressista). O Diário do Comércio, afeto a essa linha partidária através do seu proprietário e redator principal Francisco António Ferreira (1870-1912), logo na edição de 7 de outubro, deu vivas à República. No dia 23, comunicou que suspendia a sua ação, informando que o PP dava liberdade política aos seus filiados para aderirem ou não à causa republicana. A direção do PP disponibilizava-se, inclusivamente, a facultar ao novo regime a sua organização local (sede, jornal, arquivos, etc.). Também O Direito, de que era diretor e proprietário Artur Leite Monteiro (1871-1937), clarificou a sua linha editorial, apresentando-se como representante de “um partido monárquico liberal”, que eram os antigos regeneradores, mas pedia aos seus “velhos companheiros de outras lutas” que não criassem “o mais leve embaraço às autoridades”, dando a entender que a situação não tinha retrocesso (“A República”, O Direito, 9 out. 1910, 1). A 4 de novembro, foi registada uma circular de 31 de outubro, reenviada pelo comando militar às entidades que tutelava, “a fim de uniformizar a norma a seguir na correspondência militar” (AMMM, circular, 31 out. 1910). A indicação era para que passasse a constar no alto das folhas, ao centro e “por extenso”, a designação “Serviço da República” e se substituísse o antigo remate “Deus guarde V.ª Ex.ª” por “Saúde e Fraternidade” (Id., Ibid.). Também se reformulava a antiga pragmática, sendo o nome da maioria dos destinatários somente antecedido por “Ao Snr.”, eliminando-se assim “Ills.mos” e “Ex.mos” (Id., Ibid.). Por sua vez, nas capas da correspondência, “S. N. R.” dava lugar a “S. R.” (Id., Ibid.). A 23 de outubro, realizou-se uma assembleia-geral do Centro Arriaga, no Ateneu Comercial do Funchal, com o objetivo de reformular os órgãos diretivos do PRM, ampliando-os a uma comissão distrital e a uma comissão municipal. A reorganização estendeu-se igualmente às comissões paroquiais, cujas eleições decorreram nos finais desse mês, às quais cabia indicar os regedores e iniciar o recenseamento eleitoral. Até ao final de outubro, criou-se um centro republicano em Machico e, em novembro, dois centros republicanos em São Gonçalo. No ano seguinte, constituiu-se o Clube Republicano da Madeira e, comemorando o aniversário da implantação da República, a 5 de outubro de 1911, foi inaugurada a Sociedade Republicana Estrela Brilhante. Nas comemorações do primeiro aniversário da República, apareceu a discursar, ao lado dos principais elementos republicanos madeirenses, uma mulher, Hermínia Augusta de Sousa, mostrando que não era apenas aos homens que competia defender os novos ideais. A este propósito, o jornal local A Voz do Povo acrescentou que as mulheres eram “as únicas” que podiam “levantar a geração futura” (“Os Festejos da República”, A Voz do Povo, Funchal, 10 out. 1911). A 15 de outubro, estava constituído o comité fundador da Associação das Mulheres Republicanas Madeirenses e publicitou-se a abertura de inscrições no Centro Republicano Manuel de Arriaga, ao Lg. do Colégio, n.º 8. A instabilidade política que sobreveio afastou as mulheres do debate, não se encontrando mais informações sobre a Associação durante o período em apreço. Nas eleições nacionais de 1911, uma médica viúva, Beatriz Carolina Ângelo (1878-1911), conseguiu votar, alegando que era cidadã portuguesa, chefe de família e instruída, sendo o seu, muito provavelmente, o primeiro voto feminino europeu. A Constituição de 1913 explicitaria já que o voto estava reservado aos chefes de família do sexo masculino. As dificuldades do novo regime começaram a surgir pouco depois da implantação da República. A 13 de novembro de 1910, realizou-se, na nova Pr. da República, realizou-se um comício a pedir o fim dos monopólios dos regimes cerealífero e sacarino, e a abolição dos impostos sobre os produtos de primeira necessidade, criando-se então uma comissão de figuras republicanas de prestígio local para apresentar ao governador do distrito as suas reivindicações. Cientes da necessidade de apoio em Lisboa, os republicanos madeirenses também criaram uma comissão na capital, constituída pelo ex-visconde da Ribeira Brava, os irmãos Carlos e Américo Olavo Correia de Azevedo (1882-1927), António Paulino Mendes, comerciante madeirense radicado em Lisboa e ligado ao ex-visconde, entre outros. Mas a situação em Lisboa não era melhor e, um pouco por todo o país, à euforia do mês de outubro, sucedeu uma dura luta política e um grande defraudar das esperanças iniciais. Durante os primeiros meses do regime republicano na Madeira, as autoridades e a população foram ainda confrontadas com um grave surto de cólera-morbo que surgiu em outubro de 1910 e se prolongou até aos inícios de fevereiro do ano seguinte. A necessidade de impor medidas sanitárias enérgicas fez despoletar inúmeros focos de resistência às autoridades; aliados ao analfabetismo geral, às crendices e superstições, rapidamente fizeram daquelas bandeiras contra a nova situação política. Em vários pontos da Ilha, foram saqueadas residências de médicos e os profissionais de saúde foram acusados de terem espalhado a doença; nessa sequência, também as residências das autoridades sofreram ataques. A situação mais difícil terá ocorrido em Machico, a 11 de dezembro, após a novena a Nossa Senhora do Socorro. A população terá sido convocada e, descendo à vila, obrigou o administrador e o escrivão do concelho a acompanhá-la com a antiga bandeira da monarquia, em busca do subdelegado de saúde. A residência do médico foi saqueada, a farmácia anexa foi destruída e todos os livros encontrados foram queimados no quintal. Quando as forças militares do Funchal chegaram, no dia seguinte, no vapor Açor, comandadas pelo Ten. Alberto Artur Sarmento (1878-1953), a multidão já havia dispersado, deixando a bandeira monárquica hasteada no forte do cais de Machico. No relatório depois efetuado, considerou-se que a utilização da antiga bandeira teria sido motivada pela presença das chagas de Cristo e a convicção de que estas extinguiriam a epidemia. A 14 de dezembro, Santa Cruz passou por uma situação idêntica, sendo os soldados recebidos com paus e pedras, e respondido a tiro. À tentativa de assalto à prisão camarária, no antigo forte de S. Francisco, foram utilizados engenhos explosivos e as forças da ordem prenderam mais de 20 populares. No dia seguinte, ocorreram também tumultos em Câmara de Lobos, tendo sido assaltado o pequeno hospital de isolamento e ameaçado com navalhas o pessoal ali em serviço, que fugiu para o Funchal. Tal como em Machico, a multidão apareceu com a bandeira da monarquia e com alguns elementos das filarmónicas locais. No dia 26 de dezembro, foi a vez de ocorrerem tumultos no Funchal, tendo-se insubordinado algumas praças de Infantaria 27, que saíram do quartel do colégio para tomar de assalto o lazareto Gonçalo Aires. Como alguns desses elementos tinham tentado levar as forças aquarteladas em S. Lourenço a aderir ao movimento, houve tempo de deter a sublevação. Nessa sequência, veio a prender-se um sargento como mentor da sublevação, depois enviado para o continente. Em finais de dezembro, na canhoneira Zaire e, nos inícios de janeiro, no vapor Peninsular, chegaram reforços militares do continente, mas a epidemia extinguia-se pouco depois e, com a mesma, o motivo imediato dos desmandos. Nestes primeiros meses, surgiram também atritos com o clero, especialmente o rural, registando-se a utilização do púlpito para fazer propaganda contra a nova situação, muito especialmente em reação à Lei de Separação do Estado das Igrejas. A ideologia anticlerical dos principais periódicos republicanos criou a imagem de uma sociedade rural antirrepublicana que não corresponde à verdade, pois regista-se somente um caso de efetiva resistência ao novo regime: Estreito de Câmara de Lobos. Acreditamos que muitos outros possam ter existido, mas não de uma resistência convictamente antirrepublicana e sim, tão-somente, de resistência à mudança, própria do mundo fechado que era o rural. O caso do Estreito de Câmara de Lobos tornou-se conhecido e chegou aos vários periódicos da cidade. O pároco local, Miguel Pestana dos Reis, maldizia os jornais liberais, mandava cantar o hino à Carta Constitucional na saída das insígnias do Espírito Santo e ameaçava com a excomunhão e as penas do inferno os que ousassem assinar os periódicos republicanos. Mas estas informações foram vinculadas pelos jornais do Funchal e são difíceis de confirmar. Em maio de 1911, terá corrido a informação de que o pároco estava para ser chamado ao administrador do concelho e o povo amotinou-se, não o deixando sair. Em sequência, foram assaltadas as residências das autoridades locais, fugindo estas para o Funchal. No dia 5 de maio, a cidade, “boquiaberta”, assistiu à chegada de “400 vilões do Estreito de Câmara de Lobos, em pé de guerra e com ar de poucos amigos” (“O Povo do Estreito de Câmara de Lobos”, O Radical, Funchal, 6 mai. 1911, 1). Uma delegação dos mesmos foi recebida pelo governador civil, apresentando-lhe as seguintes reivindicações: manutenção do pároco Miguel Pestana dos Reis; fim das operações relativas ao registo civil na freguesia, devendo ser tudo “conforme a lei antiga” (Id., Ibid.); dispensa de licença da autoridade administrativa para as manifestações exteriores de culto religioso. A manifestação teve algum êxito porque, embora tivessem sido efetuadas prisões, o padre regressou à paróquia no dia 8, não se provando que tivesse tido qualquer envolvimento nos motins, nem no que os jornais do Funchal haviam noticiado. Os periódicos continuaram a divulgar várias reações às determinações da República, mas estas foram abaixo do que seria de esperar e do que se passou no continente. Na sequência da Lei do Divórcio e da publicação da pastoral coletiva dos bispos contra a Lei de Separação do Estado das Igrejas, foram detidos dois párocos, o de S. Gonçalo e o de S.ta Luzia, acusados de haverem distribuído a pastoral, espantando-nos não terem sido presos mais. Referem os periódicos do Funchal que, nas festas desse mês, foram arvoradas “bandeiras velhas” no Arco da Calheta (“Graves Acontecimentos”, Trabalho e União, 8 jul. 1911, 1); mas, na verdade, conhecendo-se este tipo de festas e a distância até ao Funchal, compreende-se que dificilmente poderiam ter sido arvoradas outras bandeiras, pois a nova, certamente, não existia ainda por ali. No ano seguinte, e já noutras circunstâncias, com um novo governador civil, ainda se registou um incidente, tendo sido proferida na igreja do colégio uma homilia, em finais de maio de 1912, com “alusões ofensivas do prestígio do Governo e da República”, sendo ordenada uma averiguação ao comissário de polícia, com vista à redação de um auto, para ser entregue ao poder judicial (ARM, Governo Civil, liv. 121, fl. 64). No entanto, não temos mais informações a esse respeito. O assunto era nacional, pelo que, já no ano anterior, o ministro da Justiça Bernardino Machado (1851-1944) oficiara a todos os prelados e governadores de dioceses do continente e ilhas adjacentes a apelar para o respeito aos poderes instituídos e a solicitar possíveis alterações ou modificações para aperfeiçoamento das leis já publicadas. O assunto deveria ser encaminhado para a sua sede própria, o Ministério da Justiça ou as Cortes Constituintes, pelo que não deveria ser discutido, de forma alguma, a partir dos púlpitos das igrejas. A necessidade de impor à força o novo enquadramento político, institucional e jurídico, com atitudes porventura escusadas, criara logo um certo mal-estar. O periódico O Povo, a 8 de outubro de 1910, refere que “um grupo de sargentos do regimento de Infantaria 27” tinha manifestado ao comandante o “desejo de que a coroa que encimava a porta principal do regimento”, virada à R. do Castanheiro, fosse retirada e, “à 1 hora da tarde, foi destruída pela picareta esse troféu da monarquia morta” (O Povo, Funchal, 8 out. 1910). No mesmo dia, o Diário de Notícias do Funchal informava que também tinham sido destruídas à picareta as coroas que encimavam as portas do palácio de S. Lourenço, da fortaleza de Santiago e da Alfândega do Funchal. No dia 12, noticiou que se pensava ainda “eliminar pela picareta demolidora a coroa e as esferas armilares do torreão do palácio de São Lourenço”(DN, Funchal, 12 out. 1910, 1). Pedia, assim, que, “em nome da estatística arqueológica e histórica [...] se suspenda a sua ação destruidora”, pois a conservação de tais emblemas em nada contrariava a instalação das novas instituições (Id., Ibid.). Com a retirada das armas reais da porta de S. Lourenço, também a imagem do santo que encimava o portal foi tirada e partida, embora retornasse ao seu lugar, depois de reconstruída e de se fazer uma cabeça nova, dado a original nunca ter sido encontrada. É voz corrente que os retratos dos antigos governadores que estavam no interior do palácio de S. Lourenço tinham sido rasgados à baioneta pelos marinheiros do cruzador Almirante Reis, e que teriam sido feitos outros desacatos, difíceis de comprovar, mais tarde. Grande parte do recheio que ali se encontra veio de Lisboa por volta de 1939 (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), tendo outro tanto sido adquirido e doado por famílias madeirenses, pelo que não é fácil saber como era o seu interior na altura dos acontecimentos expostos. A força e irreverência de alguns dos elementos mais novos, sobressaindo em muitos um forte anticlericalismo, levaram a clivagens no seio dos republicanos, num curto espaço de tempo. O primeiro conflito foi desencadeado nos finais de dezembro com uma notícia no periódico local O Povo a criticar o presidente da comissão administrativa da Câmara do Funchal Afonso Vieira de Andrade, acusando-o de ceder às pressões da Igreja para não demolir imediatamente a capela e o portão dos Varadouros, informação que partira de Pestana Júnior, administrador do concelho e diretor daquele periódico. O arco dos Varadouros e a capela eram dados como estando algo em ruínas e considerados sem qualquer valor como “monumento”, entendendo-se ser imprescindível a demolição do conjunto para as obras de continuação da R. João Esmeraldo e para a higiene da cidade (Portão dos Varadouros). A comissão administrativa da Câmara apresentou a demissão em bloco e o governador do distrito colocou-se do seu lado, pedindo-lhes que se mantivessem em funções até à resolução do problema. O portão dos Varadouros e a capela anexa só foram demolidos em abril de 1911, transferindo-se o altar desse templo para a sacristia velha da Sé do Funchal. Tendo a epidemia sido debelada em janeiro, não se vê outra razão para a demolição em abril senão a aproximação das eleições e o aceso debate político então em curso (Eleições na Primeira República). Com a clivagem progressiva das hostes republicanas, foi convocada uma reunião para S. Lourenço, realizada a 5 de janeiro de 1911, tendo a maioria dos velhos membros do PRM ficado lado do governador e da comissão da Câmara. Alfredo de Magalhães, responsável pelas medidas de controlo e combate do surto epidémico, pediu alguma contenção. Compreendia a energia e a insubordinação da mocidade, mas entendia também que, num meio como o da Madeira, “retardado e com pouca cultura democrática”, se impunha aos “mais fogosos e irreverentes o dever […] de não pulverizar ou até desunir” o PRM (“Reunião das Comissões Republicanas do Funchal”, O Povo, Funchal, 7 jan. 1911, 1). Era um recado quase explícito para o jovem e arrebatado Pestana Júnior, chamando-o à disciplina partidária, tendo o mesmo respondido que não aceitava esse tipo de recomendações e que o que estava em causa era a liberdade de imprensa. Estavam abertas as hostilidades dentro do PRM e, em nome da articulação das administrações do concelho e da Câmara, enquanto decorria o combate à epidemia de cólera, por ordem do governador, Pestana Júnior ficava suspenso, por um prazo de 30 dias. A 16 de janeiro, Pestana Júnior informou oficialmente que, nessas condições, apresentava a sua demissão, “pura e simples”, mas não abdicava da sua inteira liberdade para proceder como entendesse (ARM, Governo Civil, liv. 299, fl. 36v.). A 21 de janeiro, a direção do jornal O Povo voltou a ser entregue a Azevedo Ramos. A saída de Manuel Gregório Pestana Júnior da administração do concelho marcou o aparecimento da primeira cisão nos quadros republicanos, aglutinando-se à sua volta um certo número de apoiantes, em especial, alguns médicos da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal que trabalhavam no controlo da epidemia. Assim, nasceu o grupo dos novos, naturalmente, em oposição ao governador e aos antigos republicanos. A 9 de fevereiro de 1911, surgiu O Radical, dirigido por Pestana Júnior e propriedade de Gonçalves Preto, em cujo escritório decorreram as primeiras reuniões. No mesmo mês, constituiu-se o Grupo Democrático, com 15 elementos, entre os quais alguns ex-regeneradores e, em maio, estavam lançadas as bases para a constituição do Centro Republicano Democrático. O título académico dos elementos do Centro Republicano Democrático, designados por “os novos”, valeu-lhes o nome jocoso de “Centro dos Doutores” ou “doitores”, por corruptela de “doutores”, dado serem na maior parte licenciados pela Escola Médico-Cirúrgica do Funchal. Do grupo inicial faziam parte José Varela (1874-1937), João Augusto de Freitas (1872-1942), António Rodrigues Capelo (1875-1940), Alfredo Justino Rodrigues (1872-1940), João Miguel Rodrigues da Silva (1882-1931), Paulo Perestrello Aragão (1872-1916), Abel Sabino de Freitas, António Augusto, e os líderes Pestana Júnior e Vasco Gonçalves Marques, antigo regenerador. Nas reuniões, realizadas no escritório de Gonçalves Preto, chegaram a participar o advogado Joaquim Carlos de Sousa (1867-1950), o jornalista Francisco António Ferreira (1870-1912), João Frederico Rego, Pedro Ferreira e Egídio Torcato Rodrigues (1877-1955), estes dois últimos, ex-regeneradores. O primeiro alvo dos novos foi o presidente da comissão camarária, Afonso Vieira de Andrade, seguido pelo governador civil, acusado de não ouvir as diversas estruturas do PRM e de tomar decisões arbitrárias. Nas páginas de O Radical, colocava-se igualmente em causa o papel da Igreja, apoiando-se a proibição das festas religiosas, nomeadamente os grandes arraiais de Senhor dos Milagres de Machico ou de N.ª Sr.ª do Monte no Funchal, assunto que levantou larga polémica entre os republicanos. Os apoiantes de Manuel Augusto Martins não pouparam críticas aos dissidentes do Radical e do Centro Republicano Democrático, acusando-os de pseudorrepublicanismo e de contarem com antigos monárquicos nas suas fileiras, nomeadamente os médicos e advogados que tinham sido regeneradores. Deste modo, não apresentavam questões verdadeiramente novas, apenas deram novas roupagens a polémicas antigas. Com a aproximação do ato eleitoral de 28 de maio, os dois grupos republicanos – de um lado, o Clube Republicano e o governador, apoiados pelo jornal O Povo, do outro, o Centro Republicano Democrático, apoiado pel’O Radical – mostraram claramente as suas divergências, vindo os monárquicos a optar por se abster de concorrer. Os republicanos mais antigos vieram a escolher como cabeça de lista Manuel de Arriaga (1840-1917), que levou algum tempo a aceitar voltar às lides parlamentares, só o fazendo por cortesia e gratidão para com a Ilha, enquanto o Centro Republicano Democrático escolheu Pestana Júnior e Francisco Correia Herédia Ribeira Brava, aparecendo o nome de Carlos Olavo Correia de Azevedo nas duas listas. O saldo das eleições foi muito negativo, em termos de repercussão local e mesmo nacional, tendo o ato eleitoral sido submetido à apreciação da Assembleia Constituinte e todos os dados sido revistos e escrutinados (Eleições na República). As dissidências republicanas na Madeira, apoiadas pela ação combativa dos diferentes periódicos que foram surgindo, consolidaram-se e refletiram-se no fracionamento das estruturas organizativas. A eleição de Manuel de Arriaga como Presidente da República, a 25 de agosto, recebida com entusiasmo pela grande maioria dos republicanos insulares, foi uma exceção. A sua vitória foi consensual, atendendo ao passado político de primeiro deputado republicano eleito pela Madeira e de conhecedor das realidades insulares, pelo que a notícia foi recebida com alegria, elevando, de alguma forma, a autoestima republicana, então bastante abalada. Organizaram-se vários festejos, entre os quais, uma parada militar no antigo campo de D. Carlos, rebatizado com campo Almirante Reis. Após as eleições, a 16 de junho, realizou-se uma assembleia-geral no Clube Republicano da Madeira, que elegeu novos corpos gerentes, vindo a presidência da assembleia a ser assumida por José Joaquim de Freitas, a direção por Romano de Santa Clara Gomes (1869-1949) e o conselho fiscal por Nicázio Azevedo Ramos. Este último afastou-se progressivamente da política ativa, passando a dedicar-se à investigação médica e à sua empresa. Mantiveram-se, nas várias estruturas, Manuel Jorge Pinto Correia, José Quirino de Castro, Manuel dos Passos Freitas, Henrique Augusto Rodrigues, Francisco da Conceição Rodrigues, Eduardo Olim Perestrello (1884-1947), João Tiago de Castro e outros. No final do ano, foram feitas eleições idênticas eleições no Centro Republicano Democrático, passando a presidência e a vice-presidência da assembleia-geral, respetivamente, a António Filipe Noronha (c.1880-1963) e a Eduardo Nicolau de Ascensão (1883-c.1930), integrando a comissão política Francisco Correia Herédia Ribeira Brava, Pestana Júnior, Gonçalves Preto, José Varela, António Augusto da Silva Pereira e Vasco Gonçalves Marques. Nas várias comissões, ainda apareceram Alfredo Guilherme Rodrigues, Fernando Tolentino da Costa e outros. A abertura do Centro tinha contado com uma intervenção do antigo visconde da Ribeira Brava, que foi depois portador de uma moção para Afonso Costa onde era afirmada a simpatia pelo grupo parlamentar republicano democrático, gesto que o mesmo agradeceu, prontificando-se a prestar toda a solidariedade e proteção ao Centro. Nos finais de 1911, as divergências relativamente à orientação política do distrito agudizaram-se, envolvendo mesmo os republicanos mais moderados. O Centro Manuel de Arriaga e o Clube Republicano da Madeira, bem como a maioria das comissões políticas, retiraram o apoio a Manuel Augusto Martins, em setembro. A Voz do Povo, órgão do Centro Manuel de Arriaga que já citámos e que começou a ser publicado a 1 de outubro, sob a direção de Frederico Pinto Coelho (1851-1916), liderava, com O Radical, as críticas ao governador. Acusavam-no de perseguições aos republicanos, de não ouvir as recomendações do PRM e de confiar cargos importantes a antigos monárquicos que não se haviam filiado neste partido. Nos finais de novembro, o Centro Republicano Manuel de Arriaga implorou ao presidente do Conselho de Ministros, por carta, que pusesse termo à situação. As desilusões sentidas em relação à República, que apontavam que a Ilha estava “mais desprezada, mais abandonada ainda, do que no tempo da monarquia”, como se escreveu em A Voz do Povo (A Voz do Povo, Funchal, 28 nov. 1911), eram secundadas pelos demais periódicos. A 16 de setembro de 1911, através do semanário Trabalho e União, um grupo de socialistas lançou a ideia de constituir um centro socialista funchalense. Passara quase um ano sobre a implantação da República e continuava a situação dos monopólios, da carestia de vida, dos impostos e da falta de infraestruturas. A 23 de setembro, o mesmo periódico anunciou a abertura de inscrições, na sua redação, para o novo centro socialista. O ano terminou com uma nova proposta política, anunciada pelo semanário O Povo, na sua edição de 31 de dezembro: a união republicana. As reuniões tinham começado nos meados do ano e, a 5 de outubro de 1912, foi lançado um “bissemanário da tarde”, O Tempo, com redação e administração na R. João Esmeraldo n.º 18, dirigido pelo Cap. de administração militar Manuel de Sousa Brasão (1884-1923), que passou a defender a orientação do novo partido União Republicana. Mas a exemplo do que sucedeu no continente, este periódico teve uma vida efémera na Madeira, embora ainda no final desse ano recebesse um nome de peso: em novembro, Manuel Augusto Martins assumiu a presidência da comissão executiva do jornal; vale a pena referir que, mais tarde, nas eleições de 1921, Sousa Brasão foi eleito deputado (Eleições na República). A 30 de abril de 1912, foi constituída uma comissão para organizar o Partido Evolucionista, que se tentou implantar na Ilha ao longo do ano. O Gov. Manuel Augusto Martins foi substituído, em fevereiro de 1912, pelo jovem Gov. João Maria de Santiago Prezado (1853-1927), que tomou posse a 4 de abril, regressando à direção de O Povo. O novo governador procedeu a uma série de exonerações e nomeações, sendo a comissão administrativa do Funchal entregue a um grupo do qual fazia parte Pestana Júnior e demais elementos do Centro Republicano Democrático, como Henrique Augusto Rodrigues (1856-1934) e Fernando Tolentino da Costa (1874-1957). A escolha não foi pacífica e o novo governador transformou-se num alvo do periódico O Povo, que o acusou de reintegrar pessoal demitido depois da República, afastando os antigos republicanos. As críticas mantiveram-se nas nomeações seguintes, pois em agosto foram escolhidos os membros da Junta Agrícola da Madeira, responsável pelas Obras Públicas da Ilha: Pestana Júnior, Francisco Correia Herédia Ribeira Brava, João Augusto Freitas, Manuel José Varela, Eduardo Fernandes Alves, Manuel Jorge Pinto Correia, José Luciano Henriques, Francisco Andrade e Pedro José Lomelino. A escolha de Vasco Gonçalves Marques para a administração do concelho também não podia agradar aos velhos republicanos e ao periódico O Povo, até porque era um antigo regenerador e dado como delegado, na Madeira, dos deputados Ribeira Brava e Pestana Júnior. Em setembro, ocorreu a cisão no Centro Republicano Democrático, criando-se dois grupos, um liderado por António do Monte Varela (1865-1957) e pelo Cap. José Maria da Conceição Macedo (1865-1931), tendo sede na Ponta do Sol; outro liderado por Pestana Júnior, essencialmente, apoiando Afonso Costa, em cujo gabinete de advocacia aquele estagiara. A 5 de outubro, surgiu um novo semanário republicano, A Vida, em defesa do Partido Democrático Madeirense, fundado por Pestana Júnior. O grupo de António Varela respondeu com um outro periódico, A Democracia, que surgiu a 15 de abril e passou a ser o órgão de imprensa do Centro Republicano Democrático. Curiosamente, ambos os jornais chegaram a ocupar as mesmas instalações no Funchal, na R. Câmara Pestana n.º 25 (Partidos Políticos). O Gov. Santiago Prezado acabou por se ver envolvido em toda esta turbulência, sendo acusado de falta de neutralidade por vários quadrantes e, alegando motivos de saúde, embora tivesse somente 27 anos de idade, pediu a demissão em março, sendo substituído pelo Maj. Alfredo Ernesto de Sá Cardoso (1864-1950). A situação política madeirense não melhorou com a mudança do governador, e a fragmentação dos republicanos prosseguiu. A 1 de maio de 1913, apareceu ainda o bissemanário O Liberal, com instalações na R. dos Ferreiros n.º 87, tendo como diretor o advogado Remígio Gil Spínola Barreto (1869-1963) e como editor e administrador o jovem médico José Maria Ferreira (1880-1966). Apresentava-se como um órgão do PRP e subscreveu, logicamente, as posições do novo governador. Poucos dias depois, Sá Cardoso nomeou Spínola Barreto como governador substituto. A família republicana madeirense apareceu, assim, dividida em três tendências, nas vésperas das eleições suplementares de 16 de novembro de 1913: os democráticos, apoiantes de Afonso Costa; os unionistas; os evolucionistas. Os novos quadros republicanos, especialmente Ribeira Brava e Pestana Júnior, entre o Funchal e Lisboa, mas assessorados, no Funchal, por Vasco Gonçalves Marques e outros, desenvolveram um interessante trabalho de reformulação desta cidade, chamando à Madeira o Arqt. Miguel Ventura Terra (1866-1919). O projeto de melhoramentos que entregou logo em 1915 ainda deu uns tímidos primeiros passos, com a amputação do cunhal do baluarte do Castanheiro (fortaleza de S. Lourenço) para a ampliação da futura Av. Arriaga e com a demolição da cadeia camarária para a abertura do Lg. da Sé, mas a aproximação da Primeira Guerra Mundial, essencialmente, envolvendo uma grande potência marítima, que era a Inglaterra e outra continental, que era a Alemanha, levou a adiar os trabalhos. A entrada precipitada de Portugal nesse vasto conflito internacional também não resolveu as divergências internas republicanas, sendo necessárias algumas décadas para encontrar um caminho de estabilidade.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

História Política e Institucional