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cem – construindo o êxito em matemática

No final da déc. de 90 do séc. XX, a Associação de Professores de Matemática (APM) realizou um estudo, Matemática 2001 – Diagnóstico e Recomendações sobre o Ensino e Aprendizagem da Matemática, “com o propósito de elaborar um diagnóstico e um conjunto de recomendações sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática no nosso país” (ASSOCIAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA, 1998, 1). Este estudo tinha a preocupação de contribuir para a melhoria do ensino da matemática no início do séc. XXI. Dele emergiram recomendações específicas para uma reorganização curricular, repensando as finalidades do ensino da disciplina para as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula e para a formação de professores, entre outras. Em 2001, seguindo as recomendações advindas do estudo supracitado, o Ministério da Educação lançou o Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências Essenciais, definindo as aptidões fundamentais que um aluno deveria ter desenvolvido no final de cada ciclo (1.º, 2.º e 3.º ciclos). Esta finalidade do ensino da matemática implicava mudanças nas práticas dos professores. Visando ir ao encontro das necessidades de formação para implementar tais mudanças, realizou-se na Madeira uma formação para professores de matemática. Em 2005, no âmbito do Plano de Ação para a Matemática, iniciou-se em todo o país uma formação de professores que teve como propósito melhorar a preparação para uma mais profícua implementação do novo programa da disciplina, então em experimentação, e que veio a ser homologado em 2007. Esta formação decorreu entre 2005 e 2011 e alcançou milhares de professores. O projeto CEM O CEM – Construindo o Êxito em Matemática é um projeto de formação contínua de professores de matemática do ensino básico que teve início no ano letivo 2006-2007, no âmbito do Plano Regional de Ação para a Matemática, e que conta com o apoio da referida Direção Regional e da Universidade da Madeira (UMa). Com uma visão ampla do que é a aprendizagem no geral e a aprendizagem da matemática em especial, foram adotadas três teorias sociais de aprendizagem que seriam o suporte teórico de toda a conceção e implementação do projeto. A teoria da aprendizagem situada, que vê a aprendizagem como participação, defende que, para aprender, as pessoas têm de se empenhar conjuntamente, sendo igualmente necessário que participem nas práticas e tenham uma meta a alcançar. Outra das teorias que sustentam o projeto é a teoria da atividade, que entende a aprendizagem como transformação, seja das práticas em que as pessoas (professores e alunos) se envolvem, seja das pessoas que aprendem (professores e alunos). O terceiro pilar teórico do projeto é a educação matemática crítica, que discute a aprendizagem como ação dialógica, defendendo que para aprender é preciso existir intencionalidade por parte de quem aprende, o que envolve ação e reflexão sobre essa ação. A partir destas três ferramentas teóricas, idealizou-se um projeto com cenários de aprendizagem para os professores e para os alunos. O projeto criado visou melhorar as aprendizagens e desenvolver as competências matemáticas nos alunos, trabalhando com os professores do ensino básico da Região Autónoma da Madeira (RAM) com os seguintes objetivos: a) promover um aprofundamento dos conhecimentos matemáticos e didáticos dos professores; b) favorecer a realização de experiências de desenvolvimento curricular que contemplem a planificação e a implementação de aulas, e posterior reflexão; c) promover o trabalho cooperativo entre docentes (intra e inter escolas). Com estes objetivos, foi promovida uma formação que teve em conta os conhecimentos matemático, didático e curricular, de acordo com os conteúdos matemáticos a abordar, e procurando atender às necessidades e solicitações dos professores. A realização de experiências de desenvolvimento curricular contemplou a planificação de aulas, a sua condução e posterior reflexão por parte dos professores envolvidos, apoiados pelos pares e pelas formadoras que integravam a equipa do projeto. No ano letivo de 2006-2007, iniciou-se o projeto CEM para professores do 3.º ano do 1.º ciclo. Cada equipa de formação era constituída por uma professora do 1º ciclo e por uma professora de matemática do 3.º ciclo e do secundário. Esta exigência prendeu-se com a procura de assegurar que tanto o conhecimento matemático quanto o didático e curricular estavam salvaguardados. Metodologia de trabalho do projeto CEM As equipas de professores destacados pela DRE prepararam a formação construindo propostas de trabalho adequadas ao tipo pretendido e criaram materiais visando o trabalho dos alunos na sala de aula e considerando a sua adequação a uma metodologia de atuação onde o discente é o elemento central do seu processo de aprendizagem. Quinzenalmente, as equipas de formação reuniam com os docentes, organizados em pequenos grupos (de não mais de 12), apresentavam e discutiam com os professores em formação as propostas de trabalho e os materiais construídos, refletindo sobre as metodologias de trabalho e as consequências das mesmas para a implementação das propostas. Finalmente, prestavam apoio aos professores, em contexto de sala de aula, na execução das propostas de trabalho construídas e amplamente discutidas nas reuniões. Cada professor envolvido na formação tinha a liberdade de adaptar à(s) sua(s) turma(s) a proposta construída pelo CEM, sendo essa adaptação apresentada e discutida com as equipas de formação. Os cenários de aprendizagem dos professores também tinham momentos de discussão e reflexão conjunta (professor, equipa formadora, restantes professores em formação) acerca da prática pedagógica resultante da implementação das propostas de trabalho na sala de aula. Os formandos tinham ainda de refletir sobre o processo e apresentar ao grupo de trabalho, com base em artigos científicos fornecidos pela equipa de formadores, diversas temáticas, como sejam, a avaliação das aprendizagens matemáticas e a comunicação matemática. Como estratégia complementar, os professores envolvidos no projeto dinamizavam, com o apoio da respetiva equipa formadora, seminários trimestrais nos estabelecimentos de ensino a que pertenciam, como meio de troca e partilha de experiências com os restantes colegas da escola. Dos cenários de aprendizagem criados para os docentes faziam também parte a análise e interpretação (por parte dos professores, apoiados pelas equipas de formação) dos documentos curriculares que foram emergindo ao longo de todos os anos de projeto. Este aspeto do trabalho é bastante apreciado pelos professores. A evolução do CEM Em 2006-2007, 57 professores do 3.º ano de escolaridade aderiram voluntariamente ao projeto. Em 2007-2008, entraram 119 novos professores, também do 3.º ano, e deu-se continuidade ao trabalho realizado com 49 dos docentes que integraram o projeto no ano anterior, na altura lecionando 4.º ano de escolaridade. Em 2008-2009, o projeto funcionou com 106 professores do 4.º ano (dos que tinham entrado para o projeto no ano antecedente) e entraram cerca de 100 novos professores do 3.º ano. Ainda em 2008-2009, foram preparadas propostas para o 1.º ano de escolaridade, disponibilizadas numa plataforma Moodle, introduzida nesse ano letivo como mais um meio de comunicação entre a equipa de formação e os professores em formação. A preparação das propostas para o 1.º ano foi a forma de garantir o elo de ligação aos professores que tinham terminado a formação presencial. No mesmo ano letivo, chegaram ao 2.º ciclo os primeiros alunos do projeto CEM. O CEM, para o 2.º ciclo do ensino básico (CEM2), surgiu como a continuidade natural e desejável a dar ao trabalho realizado por esses alunos no 1.º ciclo do ensino básico (CEB). Aderiram ao projeto 65 professores de matemática que estavam a lecionar ao 5.º ano de escolaridade e entraram para o projeto mais duas equipas de formação, cada uma delas constituída por duas professoras de matemática (uma do 2.º e outra do 3.º ciclo). Em 2009-2010, o projeto CEM (1.º ciclo) funcionou com cerca de 70 professores do 4.º ano. Foram preparadas propostas para o 2.º ano de escolaridade, disponibilizadas na plataforma Moodle. No CEM2, deu-se continuidade ao trabalho realizado no ano anterior com os professores de matemática do 5.º ano que se encontravam já a lecionar ao 6.º ano. Em 2010-2011, chegaram os primeiros alunos do projeto CEM (1.º e 2.º ciclos) ao 3.º ciclo. Assim, como forma de dar continuidade ao trabalho realizado nos ciclos anteriores, o projeto CEM estendeu-se ao 3.º ciclo do ensino básico (CEM3). Os objetivos do CEM3 são, basicamente, semelhantes aos que tínhamos para o 1.º e 2.º ciclos. Neste ano letivo, foi feita a generalização dos novos programas de matemática do ensino básico. Todo o trabalho desenvolvido teve em conta as orientações do novo programa, até então em experimentação. Iniciou-se o CEM3 com 56 professores do 7.º ano de escolaridade e com três formadoras licenciadas em matemática destacadas pela DRE. Entretanto, nesse ano letivo (2010-2011), a DRE quis alargar o projeto a um maior número de professores. Estreou-se assim uma nova modalidade do CEM para o 1.º CEB (CEM1): formação de formadores. As equipas do CEM1 prepararam 30 professores para fazerem formação a outros docentes por toda a RAM. Cada um destes formadores seria responsável por dinamizar a formação de um grupo de 12 professores. Esta modalidade perdeu a componente de trabalho conjunto na sala de aula. Seguiu-se um esquema semelhante para os professores do 5.º ano. 40 docentes das diferentes escolas da RAM receberam formação com a equipa do CEM2 e depois deram-na aos colegas da sua escola que lecionavam ao 5.º ano. Em 2011-2012, foram 48 os professores do 8.º ano que estiveram envolvidos na formação na sua modalidade original, sendo que muitos deles já tinham tido formação no âmbito do projeto CEM3 no ano anterior, quando lecionavam ao 7.º ano. Ao longo deste ano letivo, 19 professores do 1.º CEB receberam formação e replicaram-na a grupos de 12 professores. Também 33 professores do 6.º ano receberam formação e dinamizaram-na nas suas escolas para os colegas que lecionavam no mesmo ano de escolaridade. Em 2012-2013, o projeto CEM3 atingiu o último ano de escolaridade do 3.º ciclo, trabalhando na sua modalidade original (com acompanhamento na sala de aula). Foram 60 os professores do 9.º ano que frequentaram a formação. Para esse ano letivo (2012-2013), a DRE propôs que se adotasse uma metodologia semelhante à dos 1.º e 2.º ciclos para os 7.º e 8.º anos. Ou seja, professores dos 7.º e 8.º anos indicados pelas próprias escolas fariam formação com as equipas do CEM3 e depois dinamizariam a mesma formação nos seus estabelecimentos de ensino para os colegas que lecionavam ao 7.º ou 8.º ano, respetivamente. Mas esta formação para os 7.º e 8.º anos não teve o sucesso esperado, nomeadamente, devido à obrigatoriedade da mesma e à falta de critérios adequados para a seleção dos professores que iriam receber a formação com as equipas do CEM3 e replicá-la nas escolas. Em relação ao 1.º CEB, nesse ano, fez-se formação para todos professores da RAM que se encontravam a lecionar ao 4.º ano de escolaridade: 153 frequentaram essa formação. Note-se que muitos destes docentes já tinham frequentado o projeto CEM na sua modalidade original e, portanto, conheciam muito bem as metodologias de trabalho em questão. Este aspeto foi uma mais-valia para a formação e refletiu-se na profundidade das reflexões elaboradas pelos professores, quer sobre as propostas apresentadas, quer sobre a implementação das mesmas na sala de aula, e também no aproveitamento dos alunos. No que concerne ao 2.º CEB, no mesmo ano letivo, 26 professores do 5.º ano e 27 do 6.º ano participaram na formação. Muitos já tinham frequentado o CEM2 na sua modalidade original. Em 2013-2014, estando a DRE muito agradada com os resultados dos exames nacionais de matemática do ano anterior, solicitou novamente formação para todos os professores do 4.º ano da RAM e para os professores do 1.º e do 3.º (anos em que o novo programa de matemática, definido em 2013, estava a ser implementado). Iniciou-se com os professores destes 1.º e 3.º anos uma nova modalidade do CEM e apostou-se no b-learning, uma vez que muitos destes professores já tinham participado no projeto, numa das outras modalidades. No 2.º e 3.º ciclo, a formação foi para os professores que lecionavam aos 5.º e 7.º anos, respetivamente, uma vez que eram anos de implementação do novo programa de matemática (2013), como se disse. No 7.º ano, na modalidade original e no 5.º, sem acompanhamento na sala de aula. Os números do CEM  Ao longo destas linhas foi indicado o número de professores que participaram na formação do CEM nos três níveis de ensino. Quanto aos discentes, cada professor que participou no CEM tinha mais do que uma turma e terá trabalhado com uma metodologia semelhante nas várias turmas que tinha e pelas quais foi passando ao longo dos anos pós-projeto CEM. Não se consideram esses valores no quadro da fig. 1, mas somente o número de alunos no ano e turma com que o professor participou no projeto. Muitos destes discentes foram “alunos do CEM” durante diversos anos e ciclos de escolaridade. Também vários professores dos diferentes ciclos participaram no CEM durante vários anos. Ano letivo N.º de professores por ciclo N.º de alunos por ciclo 1.º  2.º 3.º 1.º 2.º 3.º 2006-2007 57 - - 1140 - - 2007-2008 168 - - 3360 - - 2008-2009 206 65 - 4012 1625 - 2009-2010 70 31 - 140 775 - 2010-2011 15 40 56 1920 1000 1046 2011-2012 19 33 48 2400 825 772 2012-2013 153 53 113 3060 1300 2418 2013-2014 235 36 29 4700 900 658 Fig. 1 – Quadro com o número de docentes e discentes que participaram no projeto CEM entre os anos letivos de 2006-2007 e 2013-2014. Os resultados do projeto CEM Os resultados obtidos são, em termos gerais, semelhantes para o CEM1 e para os CEM2 e CEM3. Podemos avaliar o projeto tendo em conta: as aprendizagens matemáticas dos alunos e as transformações nas práticas dos professores. Para avaliar as aprendizagens matemáticas dos alunos, temos disponíveis os seguintes elementos: resultados das provas de aferição e dos exames nacionais; observação do trabalho dos alunos aquando da participação das equipas de formação nas aulas dos professores em formação; partilha feita pelos professores nas reuniões quinzenais sobre o desempenho dos alunos nas aulas; inquéritos realizados aos alunos; portefólios elaborados pelos professores; múltiplas teses de mestrado realizadas na UMa. No que diz respeito aos resultados das provas de aferição dos alunos do projeto CEM1, CEM2 e CEM3, podemos constatar, ao longo dos anos, que estes são ligeiramente melhores do que os resultados globais dos alunos da RAM. A grande diferença está na ausência da classificação mais baixa (nível E) nos alunos do projeto e de uma percentagem maior de alunos com classificação superior (nível C). No ano 2012-2013, a média dos resultados dos exames nacionais dos alunos da RAM foi superior à média dos resultados dos exames nacionais dos alunos de Portugal continental. Da observação direta do trabalho dos alunos, denota-se aprendizagens significativas ao nível dos conteúdos matemáticos, maior interesse e empenho para com a aprendizagem da matemática, mudança de atitude em relação a esta disciplina, mais competência na resolução de problemas matemáticos e utilização da matemática de forma crítica. Os professores que recebem “os alunos do CEM” referem que estes aprenderam a discutir ideias matemáticas e a comunicar matematicamente, quer por escrito, quer oralmente; têm um forte poder de argumentação; sabem trabalhar cooperativamente, com materiais manipulativos e com software informático, mantendo uma postura crítica face à aprendizagem da matemática; têm muita facilidade em discutir estratégias e procedimentos, bem como em fundamentar as suas opiniões. Estes resultados são também corroborados pelos autores das várias teses e relatórios de mestrado em ensino da matemática no 3.º CEB e no secundário elaboradas na UMa, por professores que frequentaram o CEM. Para avaliar as transformações nas práticas dos professores, dispomos dos seguintes meios: reuniões quinzenais, idas às escolas, reflexões; planificação e execução das aulas, escolha dos materiais e seleção de estratégias; portefólios elaborados pelos docentes; inquéritos realizados aos mesmos; e a dissertação de doutoramento da Eva Gouveia. Da análise de todos estes instrumentos de avaliação podemos afirmar que houve mudanças ao nível dos conhecimentos científicos e didáticos dos professores envolvidos no projeto, visíveis através de um maior rigor científico-matemático e de uma maior necessidade de aprofundamento dos conhecimentos matemáticos. Houve também mudanças no que diz respeito à planificação e condução das aulas, bem como à reflexão que passaram a fazer sobre as aulas participadas. As planificações tornaram-se mais sistematizadas e fundamentadas; as aulas, menos expositivas e mais centradas no aluno; os conteúdos matemáticos, tratados com maior rigor científico; os professores, mais críticos em relação ao seu desempenho. No geral, ao final de um ano de projeto, a prática pedagógica dos professores envolvidos no mesmo sofreu transformações, quer na diversificação de estratégias, quer na crescente inclusão de materiais manipulativos nas suas planificações e nas suas práticas, bem como na segurança com que passaram a trabalhar a matemática. No que diz respeito ao trabalho cooperativo entre os docentes, houve alguns casos de sucesso, mas, de um modo geral, os professores ainda resistem ao trabalho cooperativo intra e inter escolas. As formadoras do projeto As formadoras do CEM são uma parte fundamental do projeto. Para que tudo decorra da melhor forma possível, quando em contacto direto com os professores em formação, é necessário um forte trabalho de bastidores que também merece ser destacado. Semanalmente, houve reuniões de trabalho entre as formadoras do projeto e a sua coordenadora. Foi nessas reuniões que se definiram ou redefiniram estratégias de trabalho, se discutiram as propostas apresentadas e debatidas com e pelos professores, e se consideraram artigos científicos sobre a aprendizagem da matemática, a avaliação das aprendizagens matemáticas, a utilização de materiais manipuláveis e softwares educativos e applets na aula de matemática, entre outros.   Elsa Fernandes (atualizado a 29.12.2016) 

Educação História da Educação

casa dos vinte e quatro

“Casa dos Vinte e Quatro” é a designação dada à representação dos diversos ofícios do concelho no funcionamento da vereação com o intuito de se defender os interesses dos vários grupos profissionais. A primeira referência à presença de um procurador dos mesteres em vereação é de 21 de dezembro de 1470, quando Fernão Vaz compareceu na Câmara do Funchal na qualidade de mester. Contudo, até 1482, os mesteres não estiveram representados na Câmara, disso se queixando, em junho de 1481, João do Porto, sapateiro que se deslocou a Lisboa em representação dos ofícios a reivindicar a sua capacidade de representação municipal e a criação da Casa dos Vinte e Quatro, como sucedia em Lisboa. Assim, podemos dizer que a afirmação dos mesteirais na sociedade e vereação funchalense não foi fácil. A sua presença e poder foram desautorizados, o que os levou a reclamar em 1481, de forma que a infanta D. Beatriz, em carta à edilidade funchalense, “encomenda e manda catar honra aos procuradores dos mesteres quando forem a câmara a requerer” (MELO, 1972, 114). A falta de cortesia dos oficiais e homens bons do concelho para com os mesteres foi o argumento invocado por Lopo Vaz, em 1471, para requerer a renúncia do cargo de mercador de pesos. Esta desconsideração pelos ofícios e juiz do povo está bem patente em várias situações. Enviado como seu representante a Lisboa, não só chamou a atenção da Infanta D. Beatriz para o caso, como alertou para as desconsiderações de que eram alvo os seus parceiros de ofício por parte dos vereadores. Em face das reclamações apresentadas, D. Beatriz expediu, ainda nesse ano, uma carta em que recomendava aos oficiais da vereação um melhor tratamento para com os mesteres: “encomenda e manda catar honra aos procuradores dos mesteres quando forem a câmara a requerer” (Id., Ibid., 69). Pelo decreto de 7 de maio de janeiro de 1482, sabemos que os mesteres do Funchal tinham assento de direito na vereação, com dois representantes. Por alvará de 17 de maio de 1483, os mesteirais do Funchal têm o privilégio de integrar a procissão do Corpo de Deus, segundo a ordenança da câmara da cidade de Lisboa. E, finalmente, em 21 de dezembro de 1483, é criada a Casa dos Vinte e Quatro, no Funchal. Diz o Rei: “que haja neste Funchal vinte e quatro dos mesteres para requererem por o povo miúdo” (Id., Ibid., 134-135), tendo-se aquela mantido até à Revolução Liberal e sendo extinta pelo decreto de 7 de maio de 1834. Na déc. de 80 do séc. XV, a reclamação de direitos pelos mesteirais, contando as vexações de que eram e continuaram a ser alvo, era uma prerrogativa muito importante. Assim, em 1488, por questões com as proeminências para a venda de carne no açougue, reclamam junto do rei um “lugar e licença para poderem entre si fazer um carniceiro”, que lhes foi concedida por carta de 24 de janeiro de 1494 (Id., Ibid., 294-295). A Casa dos Vinte e Quatro era presidida por um juiz, que usava uma vara vermelha, símbolo do poder. Este passou depois a designar-se juiz do povo, pelo facto de representar os ofícios e demais pessoas do povo em vereação. Assim, no primeiro de janeiro de cada ano, eram apresentados os quatro mesteres, que prestavam juramento perante o juiz mais velho ou juiz de fora. Era o juiz quem apresentava os quatro procuradores que representavam os ofícios, no início das sessões do mês de janeiro. Para além disso, tinha o encargo de administrar o dinheiro dos lázaros e enjeitados. Depois, na vereação que tinha lugar aos sábados, falava sobre assuntos económicos e assessorava os vereadores em tudo o que a isso dissesse respeito. Finalmente, apresentava, em vereação, os que haviam de servir os cargos de afilador, aposentador e recebedor. Podia ainda ir à vereação em representação do povo e aí apresentar as suas reclamações. Esta situação deve ter terminado com a Revolução Liberal, pois, em 1824, insistem em reclamar lugares nos ofícios da câmara, nomeadamente os de aferidores, como era uso antigo. Em 1820, são referidos como os homens-bons da Casa dos Vinte e Quatro. É de referir que, no período de confronto entre liberais e absolutistas, a postura da Casa dos Vinte e Quatro foi favorável aos absolutistas, enquanto os vereadores e homens-bons assumiram uma postura pro-liberal. A alçada do município incluía a regulamentação e fiscalização dos vários ofícios. De acordo com postura de 11 de agosto de 1481, todos os oficiais deveriam apresentar fiança em vereação. Além disso, todo o oficial mecânico deveria ser examinado por um juiz do referido ofício, sendo, depois, obrigado a apresentar anualmente fiança e juramento perante a vereação. Para cada um dos ofícios dos mesteres, havia um vedor e um examinador que controlavam a qualidade do produto elaborado. Assim, em 1485, deparamos com 5 tosadores, 3 alfaiates, 3 vendeiros, 2 barbeiros, 1 ourives, 1 tecelão e 1 confeiteiro, que apresentaram fiança. Em 1488, temos 9 alfaiates, 4 vendeiros, 3 barbeiros, 1 ourives, 1 tosador, 1 tecelão e 1 confeiteiro. Nesse ano, surgem ainda referenciados 4 moleiros a trabalhar na cidade, que deviam prestar juramento na câmara. Para além disso, a vereação intervinha na regulamentação das atividades através das posturas. Esta intervenção das autoridades, especialmente as das concelhias, tinha como finalidade assegurar a qualidade da matéria-prima e dos ingredientes usados na sua laboração, de modo que o artefacto se apresentasse no mercado com a qualidade desejável. Ao mesmo tempo, a vereação atuava no sentido de evitar a especulação, definindo uma tabela de preços para os serviços a prestar no âmbito dos artefactos. Mercê deste apertado sistema de regulamentação, exarado nas posturas, o município tinha o controlo de todos os ofícios, bem como de todas as atividades artesanais e transformadoras. Algumas, pela sua importância para a vida do burgo, mereceram uma constante vigilância por parte dos almotacéis: o moleiro, as padeiras, os vendeiros, as regateiras e os carniceiros sujeitavam-se ao controlo destes oficiais concelhios. Esta era uma forma de assegurar o fornecimento dos produtos essenciais para as necessidades do burgo. Nas sessões camarárias, havia uma diferenciação social materializada na disposição dos vários elementos e das cadeiras a que tinham direito. Assim, aquando na vereação, os procuradores dos mesteres tinham assento em mesa separada dos vereadores e as suas cadeiras eram rasas. Esta diferenciação social era evidente até no tratamento dado, sendo revelador o facto de, em 1706, o governador Duarte Sodré Pereira se dirigir aos elementos do senado como “vossas senhorias” e aos procuradores dos Vinte e Quatro como “vossas mercês”. Em 1803, o juiz do povo José Júlio Henriques Gordilho sentou-se na mesma mesa dos vereadores, sendo admoestado pelo procurador do concelho, João da Câmara Leme, de forma que, a 7 de agosto de 1811, voltou tudo ao que era dantes. Por outro lado, quando o rei dirigia qualquer missiva aos da ilha, referia-os em último lugar: juiz, vereadores, procurador e procuradores dos mesteres. A sua condição e estatuto foram melhorando com o tempo. A partir de 1685, passaram a ter o direito de estar em vereação com o chapéu, o que antes havia sido negado pelos vereadores. A sua importância na sociedade madeirense era manifestada não só pela presença e atuação em vereação, como pela sua posição nas confrarias e, acima de tudo, na procissão do Corpo de Deus, onde desfilavam a seguir aos mercadores e tabeliães. A questão das hierarquias era bastante considerada, representando uma forma de afirmação social deste grupo de mesteres e marcando a diferença social e institucional. Um alvará de 2 de abril de 1763 concedera à câmara do Funchal o direito de seguir atrás do pálio na procissão de Corpus Christi, seguindo logo atrás os mesteres. Em 1803, a sessão da câmara gerou alvoroço quando o juiz de fora ordenou que os mesteres se sentassem à mesa com os vereadores. Por causa disso, os representantes do povo deixaram de comparecer às sessões camarárias durante algum tempo. No decurso do séc. XVI, a relação dos mordomos dos ofícios, feita pela vereação, indica a sua estrutura socioprofissional: pedreiros, sapateiros, alfaiates, barbeiros, vinhateiros, tecelões, besteiros, hortelãos, almueiros, pescadores, mercadores, almocreves, ourives, tabeliães e tanoeiros. Para os anos imediatos, surgem dados referentes à fiança e aos juízes dos ofícios (ferradores, ferreiros, barbeiros e moleiros) que testemunham a dimensão adquirida pela estrutura oficinal. Estamos perante uma exigência da sociedade para serem asseguradas as necessidades básicas, pois o isolamento e as dificuldades de contacto com a Europa não favoreciam o abastecimento dos artefactos de uso corrente aí produzidos. A importância e a fixação dos mesteres em determinadas áreas do burgo deu origem a ruas com o nome dos diversos ofícios aí sedeados, como o dos ferreiros, dos tanoeiros, dos caixeiros, etc. As posturas de 1550 evidenciam o poder do corpo mesteiral nas vereações. Por outro lado, ao longo do processo histórico, testemunham-se diversos processos que elucidam o desprezo votado aos mesteres. Em 1770, o Juiz do Povo no Funchal, o mestre de tanoeiro Manuel João da Silva, foi humilhado publicamente por ter apreendido alguns barris de aguardente de contrabando ao cônsul inglês Thomas Cheap, sendo-lhe tirada a vara, desmanchada a cabeleira e rasgada a casaca, acabando por ser preso. Este episódio revela a impunidade com que atuavam os ingleses e o desagrado com que o povo via esta forma de atuação impune. A exposição realizada em 1849 pelo governador civil José Silvestre Ribeiro documenta esta desconsideração para com os mesteres e pode ser considerado o principal impulso para o necessário avanço. O retrato desta situação surgia já em 1847 na Madeira, com as atividades artesanais a ocupar 4% da população da ilha e 21% da população do Funchal, o que demonstra que a cidade paulatinamente se foi especializando nos serviços e atividades transformadoras, perdendo parte da sua ruralidade. Este grupo, nessa altura, é dominado pelos carpinteiros, sapateiros e tanoeiros. Em 1862, passados 15 anos, temos um retrato completo destas atividades na cidade e nas freguesias rurais feito por Francisco de Paula Campos e Oliveira. Os artistas e operários representam, então, cerca de 38% da população. Se a este grupo retirarmos os lavradores, teremos a sua concentração na cidade e, se a isto adicionarmos os referentes em Câmara de Lobos, seremos levados a concluir que a maior concentração oficinal tem lugar em Câmara de Lobos, com 19% destes ofícios. Nos concelhos rurais, destacam-se a Ponta de Sol, a Calheta e Machico. A incidência vai para os ofícios ligados ao sector transformador, onde dominam os sapateiros, carpinteiros e marceneiros, enquanto nos serviços assumem destaque os barqueiros e boieiros. Os oficiais mesteirais também tinham as confrarias de classe profissional (Confrarias). Estas eram associações de irmãos que se reuniam sob a proteção de um santo padroeiro que veneravam. Tinham estatuto ou compromisso que estabeleciam as regras que os regia. A sua missão era vocacionada para ações de solidariedade material e espiritual, tratando da formação e exercício profissional e da assistência na doença e miséria. Neste último caso, poderiam conceder empréstimo de dinheiro ou bens em casos extremos. Por fim, acompanhavam o cortejo fúnebre, participando nas despesas do funeral e nas missas de sufrágio. Assim, a confraria de S. Pedro Gonçalves era a dos pescadores e existia no Funchal, Câmara de Lobos e Calheta. Já na Ribeira Brava, Ponta do Pargo, Porto Moniz, S. Jorge, Santa Cruz e Porto Santo, destaca-se a confraria de S. Pedro, o pescador; em Machico, a do Senhor dos Milagres; na Madalena, a da Nossa Senhora da Vida; no Caniçal, a de Nossa Senhora da Piedade. Em 14 de dezembro de 1562, foi criada no Funchal a Confraria de S. Jorge, da veneração e proteção dos ofícios de ferreiros, serralheiros, caldeireiros, barbeiros, ferradores, cutileiros, douradores e picheleiros. Em 26 de agosto de 1572, foi criada a Confraria de S. Miguel e dos Santos Crispim e Crispiniano na Catedral da cidade do Funchal, pelos oficiais dos sapateiros, surradores, curtidores e correeiros. Com a extinção da Casa dos Vinte e Quatro, em 1834, começaram a surgir, a partir de 1835, as associações de classe. Primeiro, foi criada a Associação Comercial, em 1835, e, depois, temos conhecimento das seguintes: Ateneu Comercial do Funchal (1898), Grémio dos Empregados do Comercio Funchalense (1908), Associação de Vendedores de Viveres a Retalho (1912), Associação dos Industriais Madeirenses (1909), Associação de Classe dos Industriais Madeirenses (1897), Associação dos Trabalhadores Marítimos do Funchal (1912), Associação dos Fabricantes de Calçado do Funchal (1905), Associação dos Manipuladores de Pão do Funchal (1912), Associação dos Carpinteiros e Artes Correlativas (1899), Associação dos Chauffeurs da Madeira (1913), Associação dos Pedreiros do Funchal (1912), Associação dos Serralheiros e Artes Correlativas do Funchal (1913), Associação dos Tanoeiros do Funchal (1913), Associação dos Trabalhadores Braçais (1917), Associação dos Empregados do Comércio Madeirense (1916), Associação dos Trabalhadores Agrícolas (1918), Associação dos Proprietários da Madeira (1918), Associação dos Industriais de Destilação da Madeira (1918), Liga das Artes Gráficas do Funchal (1915). Temos ainda a Associação de Socorros Mútuos dos Sapateiros Funchalenses (1895), Associação de Socorros Mútuo Monte-Pio Marítimo Funchalense (1900), Associação de Socorros Mútuos Reforma dos Operários Madeirenses (1904), Associação de Socorros Mútuos Monte-Pio Madeirense (1904). De acordo com a evolução da conjuntura política, foram surgindo estruturas ou associações de interesses socioprofissionais, limitadas a defender os interesses do grupo. Com a República, ganharam força os sindicatos e, com o Estado Novo, as corporações, nomeadamente com a Constituição de 1933.   Alberto Vieira (atualizado a 20.12.2016)

História Política e Institucional

doações

A doação é um ato pelo qual se transfere, gratuitamente, a posse total ou parcial de um bem a outrem, e reveste duas modalidades: inter vivos, quando o doador aliena irrevogavelmente o património, ou in mortis causa, quando a doação apenas se processa após a morte do doador, assumindo, assim, o carácter de um legado. Apesar do carácter gratuito da cedência, a doação não é, de modo geral, totalmente desinteressada, na medida em que pressupõe um objetivo que é importante para o doador, ainda que isso não lhe retire o estatuto de instrumento estruturante tanto na história do reino de Portugal como na do arquipélago da Madeira. A prática de se doarem parcelas de território a senhores nobres ou eclesiásticos surge cedo na Península Ibérica, muito como resultado do empreendimento da reconquista cristã, e destinava-se quer a recompensar serviços prestados ao Rei, quer a promover o repovoamento das áreas retomadas, quer a representar um simples ato da generosidade do Monarca. O próprio nascimento de Portugal radica numa doação feita por Afonso VI de Leão e Castela a seu genro, o conde D. Henrique, e, após a elevação do condado à categoria de reino, a prática continuou a ser seguida pelos Reis de Portugal, que abundantemente distribuíram terras a entidades civis e religiosas, de entre as quais avultam as concessões a ordens religiosas e a instituições conventuais. Esta estratégia visava, sobretudo, contribuir para a defesa, promover a fixação de povoadores, e assegurar a produtividade das terras entregues a mosteiros. Quando, cerca de 1419, se (re)descobre a Madeira, e se começa a pensar o seu povoamento, desenrolado a partir 1425, principia também a definir-se um modelo para a administração do território, o qual assentará, do mesmo modo, em sucessivos processos de doação. Com efeito, enquanto entre 1420 e 1425, a responsabilidade sobre o arquipélago permanecia inteiramente nas mãos do Rei, D. João I, a partir de 1425, ela é transferida para as do infante D. Henrique, sem que, no entanto, a posse das ilhas deixe de ser propriedade régia, pois enquanto foi vivo D. João sempre se considerou como “Rei e Senhor” delas. A morte do Soberano, ocorrida em 1433 vai alterar esta situação, na medida em que o novo monarca, D. Duarte, por carta de doação datada de 26 de setembro do mesmo ano, concederá ao infante D. Henrique o estatuto de “Senhor das Ilhas”, tornando-o, assim, e de facto, donatário do arquipélago. Na mesma data, D. Duarte atribuiu também à Ordem de Cristo “para todo o sempre o espiritual das Ilhas da Madeira, do Porto Santo e da Ilha Deserta” (FERREIRA, 1960, 35-36). Entre 1440 e 1450, o infante donatário, doará, por sua vez a Tristão Teixeira (8 de maio de 1440), a capitania de Machico, a Bartolomeu Perestrelo (1 novembro de 1446), a do Porto Santo e a João Gonçalves Zarco (1 de novembro de 1450), a do Funchal. Fica assim claramente estabelecido o papel que o mecanismo de doação ocupa na génese da administração do território insular. No próprio desenrolar do povoamento, as doações continuaram a desempenhar um papel importante no que concerne à cedência de propriedades em regime de sesmarias, como forma de garantir o arroteamento dos terrenos, seguindo-se aqui um procedimento muito equivalente ao que se passara no reino. Os beneficiados com a concessão de terrenos não foram, porém, apenas os senhores que receberam os terrenos para arrotear, mas também a própria Igreja, cuja implantação no arquipélago igualmente gozou do acesso a propriedades oferecidas para que nelas se pudessem edificar os necessários edifícios de culto. Com efeito, a construção dos templos requeria espaços, que foram disponibilizados quer a partir de contributos de particulares, que nas suas fazendas povoadas rapidamente erigiam capelas destinadas à celebração dos ofícios divinos, quer originados nas instituições que tutelavam o espiritual das ilhas: a Ordem de Cristo, primeiro, e, depois, a Coroa. As ordens monásticas foram igualmente beneficiadas por este sistema de doações, o que se verifica a partir da fixação definitiva dos Franciscanos no arquipélago. Tendo cabido à Ordem Seráfica a responsabilidade do pastoreio das almas dos primeiros povoadores, logo por volta de 1479 assiste-se à entrega de um terreno vinculado à capela de Clara Esteves, falecida, o qual, por ordem de D. Beatriz, à data administradora da Ordem de Cristo, foi entregue aos frades de Assis para edificação da sua casa conventual. O mesmo aconteceu com a construção do convento de N.ª Sr.ª da Piedade, em Santa Cruz, erigido em terrenos de Urbano Lomelino e com o convento de S. Bernardino, em Câmara de Lobos, para o qual contribuiu a doação do sítio operada por João Afonso, escudeiro do infante D. Henrique e senhor do lugar. A ereção dos conventos de Clarissas na Diocese do Funchal operou-se de acordo com os mesmos critérios. Assim, para o primeiro deles, S.ta Clara, fundado em finais do séc. XV, foi determinante o papel de João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do Funchal, que o mandou edificar em terrenos anexos à igreja de N.ª Sr.ª da Conceição de Cima, já fundada por seu pai, João Gonçalves Zarco. Aos Câmaras ficou, ainda, adstrito o padroado da instituição, a qual requeria, para ingresso, um dote avultado que reforçava o carácter elitista das suas freiras, decidido, de resto, por D. Manuel, quando a destinara a servir as “filhas e parentes dos principais da terra” (FONTOURA, 2000, 55). Com os conventos de N.ª Sr.ª da Encarnação e de N.ª Sr.ª das Mercês, o procedimento foi idêntico. Assim, o primeiro começou a erguer-se, a partir de 1645, graças ao empenho e financiamento do Cón. Henrique Calaça, e o segundo foi fundado em 1663, por iniciativa de Gaspar de Berenguer e sua mulher Isabel de França, que o dotaram de terreno e verbas destinadas ao seu funcionamento. No processo de construção da Sé do Funchal assiste-se igualmente à doação, por parte de D. Manuel, então ainda na qualidade de administrador da Ordem de Cristo, a cujo padroado pertencia a administração religiosa do arquipélago, de um canavial, conhecido como “campo do duque”, sobre o qual se haveria de erguer o templo (FERREIRA, 1963, 41). Para tornar mais expedito o procedimento, o duque doou ainda os rendimentos de penas criminais que lhe pertenciam, bem como a imposição sobre vinhos atavernados, ou seja, aplicou ao fim da construção da igreja impostos que normalmente seriam por ele recebidos. O desenrolar do processo de cobertura da Ilha por estruturas religiosas leva à criação de um conjunto de paróquias fora do Funchal – Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol, Calheta, Machico, Santa Cruz, e.g., cujas igrejas se tiveram de ir edificando, correndo as despesas com a capela-mor por conta da Ordem de Cristo, numa fase inicial, e da Coroa, numa fase posterior, ficando o restante corpo do templo por conta dos fregueses, que assim, e desde o início, se associam também à dinâmica de dotação da Igreja dos contributos indispensáveis à sua implantação em território insular. Este modus operandi que divide responsabilidades na construção e manutenção dos espaços sagrados vai manter-se ao longo do tempo, sendo frequente ver chamadas de atenção dos bispos, em sede de provimentos de visitação, nas quais se apelava aos paroquianos para que não descurassem as suas obrigações naquela matéria. Assim acontece, e.g., na Tabua, quando, em 1589, se assinala que o forro da igreja está danificado pela chuva, pelo que se solicita aos fregueses que, “por todo o mês de setembro” o mandem consertar (ACDF, Tabua, cx. 2, fl. 10). Nessa mesma freguesia, e por estar a igreja velha arruinada, provia o visitador, em 1590, que os fregueses edificassem um novo templo, de acordo com especificações deixadas, e, se assim não o cumprissem, ver-se-iam condenados. O visitador acrescentava, porém, que sendo “a capela e a sacristia da obrigação de Sua Majestade a quem se pagam os dízimos […] mandamos lhe requeiram provisão para as mandar fazer segundo o corpo da igreja e poder correr toda a obra juntamente” (Ibid., fl. 13v.). À medida que a determinação tridentina, que obrigava à residência paroquial, vai sendo implementada, também se pode acompanhar aquilo que as visitações iam provendo sobre o assunto, o qual implicava, igualmente, a contribuição direta dos paroquianos. Continuando na Tabua e em 1590, o prelado que pessoalmente visitava a freguesia pedia aos fregueses que “hajam assento e chão acomodado para casa do vigário perto da igreja e que lha ajudem a fazer e ponham da sua parte para isso toda a diligência e favor por ser importante a residência dele em a freguesia e igreja” (Ibid., fl. 15). O mesmo acontecia na Fajã da Ovelha, onde, também em 1590, o povo era solicitado a arranjar “chão” e ajudar o pároco na construção da casa (ACDF, Fajã da Ovelha, Provimentos de Visitações, 1591-1730, fl. 9), enquanto no Seixal, em 1591, os pedidos iam no sentido do fornecimento de “madeira, pedra e colmo”, bem como colaboração com mão de obra para a residência do clérigo (ACDF, Seixal, Livro de Provimentos, 1591-1756, fl. 3v.). Outra forma muito utilizada para induzir a doação de bens à Igreja era a do recurso aos peditórios que se faziam a propósito dos mais variados motivos: para se instituir uma confraria, por ocasião da festa do orago – neste caso normalmente organizados pela confraria da mesma invocação –, para ajudar as ordens mendicantes, e ainda para financiar os conventos cuja regra os impedia de possuírem bens próprios, como acontecia, e.g., com o de N.ª Sr.ª das Mercês. A exemplificar a primeira das situações (a que diz respeito à fundação de uma confraria), veja-se o que ficou exarado em 1590 na Ponta Delgada, em que o bispo, D. Luís Figueiredo de Lemos, interessado na fundação de uma Confraria das Almas ordena aos fregueses que “dentro em dois meses instituam a dita confraria das almas e para que mais comodamente o possam fazer lhes dou licença pera que tirem esmolas pelas eiras e lagares da freguesia.” (ARM, Ponta Delgada, Livro de Provimentos, 1589-1694, fl. 8). O exagero que, porém, por vezes se verificava nestas iniciativas levava os prelados a intervir procurando disciplinar aquela prática, para o que deixavam avisos tendentes à moderação, como se vê no que está vertido nos provimentos de S. Martinho exarados em 1587 e que dizem estar o antístite informado “que algumas pessoas vêm a esta freguesia pedir esmolas pera confrarias & os santos de outros lugares & freguesias havendo aqui os mesmo santos & confrarias o que é causa de se dividirem as esmolas & estarem tão pobres as próprias no que querendo nos prover mandamos que nenhum petitório geral ou particular de santo de fora se consinta na freguesia em que houver outro semelhante posto que para isso haja licença nossa porque não é nossa intenção concedê-la” (ARM, Registos Paroquiais, S. Martinho, liv. 9122, fl. 4-4v.). A instituição de confrarias veio a revelar-se um profícuo mecanismo de captação de bens para a Igreja, pois não só os irmãos contribuíam com verba anualmente paga para a sua manutenção, como a administração dos bens legados por particulares fazia confluir para os seus cofres um não despiciendo fluxo financeiro, que deveria ser gerido tendo em vista o fim que presidira à constituição do movimento confraternal: a celebração de ofícios divinos, a ajuda ao próximo e a salvação das almas. A responsabilidade da gestão destes fundos variava de acordo com o compromisso das diversas confrarias, e era objeto de inspeção nas visitas paroquiais, deixando os bispos, ou os visitadores, nos seus provimentos, muitas vezes críticas e recomendações sobre os procedimentos a seguir na apresentação dos resultados da contabilidade confraternal. Outro recurso que muito contribuiu para a sustentação económica da Igreja surge sob a forma de doações in mortis causa, ou seja, aquelas que eram feitas em testamentos e se destinavam a assegurar a prestação continuada de cuidados à alma do falecido que, para tal, doava terras ou rendimentos a serem aplicados em missas para resgate da sua alma. Sendo esta uma prática transversal a todos os grupos sociais, os montantes legados variam, contudo, e como seria de esperar, em função da capacidade económica dos doadores, constatando-se situações em que se fundam capelas de missas, com obrigação de celebração diária enquanto “o mundo for mundo”, a par de outras que apenas solicitam os ofícios divinos que os herdeiros acharem possíveis. O facto de os rendimentos afetos às capelas se tornarem insuficientes mercê do decurso do tempo, da desvalorização, ou de outros fatores, vai estar na origem de múltiplos conflitos que irão opondo bispos a testamenteiros e a juízes dos resíduos e capelas, sendo fonte de inesgotáveis processo em tribunais e de preocupações no tocante ao incumprimento das últimas vontades dos instituidores. A emergência deste fenómeno, que impossibilitava a cabal satisfação dos legados, é muito antiga na Madeira, estando já contemplada nas Constituições Sinodais de 1615, onde se referia ter o bispo sido informado de que “muitas capelas se não cumprem por as propriedades e bens sobre que foram instituídas renderem hoje tão pouco que não basta para se dizerem as missas […] que os instituidores mandam dizer”, “pelo que se autorizava aos administradores em incumprimento que pudessem satisfazer apenas dois terços do inicialmente previsto” (COSTA, 1987, 19). As dificuldades na satisfação de encargos pios, o devir histórico e, até, as alterações da conjuntura política motivadas pelo liberalismo, com a consequente diminuição do peso institucional da Igreja, foram, aos poucos, diminuindo a prática dos legados testamentários, sem que, no entanto, se possa falar de uma completa extinção do procedimento. No começo do terceiro milénio, as doações na Igreja Católica estão sujeitas às normas do Código de Direito Canónico (liv. V) e das normas particulares das dioceses.   Cristina Trindade (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social História Política e Institucional

capitanias

A instituição do regime de capitanias-donatarias (Donatário), ensaiado no povoamento da Madeira e depois exportado para os Açores, Cabo Verde, São Tomé e Brasil, marcou profundamente a gesta dos Descobrimentos portugueses. No entanto, em meados do séc. XVI, este modelo parece ter atingido o limite do seu período de duração. Assim, as tentativas da sua reimplantação, nomeadamente por D. Sebastião (1554-1578), com a criação da capitania de Angola, em 1571, e por Filipe III (1578-1621), com a criação da capitania da Serra Leoa, em 1606, mostraram que este modelo estava já fora da sua época. O processo de centralização do Estado empreendido ao longo do séc. XVII, embora se compadecesse com a sua existência, dificilmente tolerava a sua proliferação.   Com a integração das donatarias na Coroa, os capitães donatários ficaram responsáveis perante a mesma pela manutenção das capitanias “em justiça e em direito”, como referem as respetivas cartas de doação (BNP, cód. 8391, fls. 1v.-2v.ss., 119v.-120v.ss., 403-405ss.), sendo os aspetos de justiça, em princípio, os mais importantes (Ouvidorias). Saliente-se que os capitães donatários não eram verdadeiramente proprietários das terras das mesmas, que pertenciam à Coroa, embora aí pudessem ter, pontualmente, propriedades. Com o tempo, as iniciais funções militares tornaram-se meramente honoríficas, restringindo-se à apresentação dos alcaides pequenos, com função de policiamento (Polícia de segurança pública), o mesmo acontecendo em relação aos assuntos da Fazenda régia, pois, embora os capitães donatários em Lisboa usassem o título de vedor-mor da Fazenda, essa função há muito que passara a estar cometida a um provedor. As cartas de doação dos sécs. XVI e XVII eram, geralmente, omissas relativamente à atribuição dos ofícios, mas essa mercê foi algumas vezes atribuída e confirmada, em documentos próprios, como recompensa por certos serviços ou pelo mérito e linhagem dos capitães donatários. Essa prorrogativa de “data dos ofícios”, como se designava, era geralmente concedida em uma ou duas vidas, ou seja, na vigência do donatário e do seu sucessor, embora fosse posteriormente confirmada nos sucessores. Era este o caso da apresentação de ofícios, essencialmente na área da justiça, como de alcaides, carcereiros, escrivães vários, tabeliães, meirinhos, inquiridores, contadores e distribuidores. A condessa da Calheta, D. Maria de Vasconcelos, por exemplo, conseguiu obter para o filho e para o neto, a 18 de agosto de 1624, a data dos ofícios concedidos ao seu marido, 5.º capitão e 3.º conde da Calheta, Simão Gonçalves da Câmara (c. 1565-c. 1620), somente em uma vida. Tratava-se, assim, da apresentação dos ofícios de escrivão dos órfãos do Funchal, da almotaçaria, alcaidaria e imposição da cidade, de meirinho da serra, de tabeliães do público e do judicial dos lugares da sua jurisdição, de meirinho da cidade, de inquiridores, contadores e distribuidores da vila da Calheta e lugares da capitania, assim como de juízes e oficiais da vila da Calheta. Na Madeira, as capitanias sofreram um rude golpe nos finais do séc. XVI com a nomeação de um superintendente das coisas da guerra ou encarregado dos negócios da guerra, que tinha a função de capitão-general das capitanias do Funchal e de Machico. O Rei Filipe II (1527-1598) teve um especialíssimo cuidado nessas nomeações, começando por escolher um descendente de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), a quem tinha já feito mercê da capitania de Machico: Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da). Saliente-se ainda que, logo na altura da nomeação, escreveu à jovem capitoa viúva do Funchal, mostrando a urgência do preenchimento do lugar e informando que não esqueceria os direitos do jovem capitão donatário, seu filho. Face à incapacidade dos descendentes dos primeiros capitães, muito especialmente do 4.º capitão, Diogo Teixeira (c. 1500-1540), dado como incapaz em 1538, a capitania de Machico foi entretanto entregue a João Simão de Sousa, vagando depois para a Coroa na sequência da morte do 4.º capitão, em 1540, dado que não tinha descendência legal. Em 1541, D. João III fez mercê da mesma a António da Silveira, que tinha sido capitão de Diu. No entanto, este vendeu-a num curto espaço de tempo, em 1549, com licença e faculdade de D. João III, a Francisco de Gusmão, mordomo da infanta D. Maria, para dote da sua filha, D. Luísa de Gusmão. Esta veio a casar com D. Afonso de Portugal (1519-1579), 2.º conde de Vimioso, que incorporou na Casa dos Vimioso a capitania de Machico. O 2.º conde viria a falecer em Alcácer Quibir, passando então a usar o título o seu filho mais velho, D. Francisco de Portugal (1550-1582), que viria a aderir à causa de D. António e a falecer em combate ao largo de Vila Franca do Campo, nos Açores. Ficando a capitania de Machico uma vez mais nas mãos da Coroa, esta foi entregue por Filipe II a Tristão Vaz da Veiga. O irmão mais novo dos Vimioso, D. Nuno Álvares de Portugal (c. 1555-c. 1625), move, ainda em vida de Filipe II, um processo à Coroa, alegando que o pai teria ficado vivo em Alcácer Quibir, pelo que o irmão assumira ilegalmente o título e a capitania de Machico. Assim, tendo falecido o assumido 3.º conde, D. Francisco de Portugal, em 1582, o irmão considera que a capitania não deveria ter vagado para a Coroa, pois o pai ainda poderia estar vivo algures em Marrocos. Falecido Filipe II, este longo e algo bizarro processo teve seguimento, conseguindo a Casa dos Vimioso (Condes de Vimioso), falecido Tristão Vaz da Veiga, em 1604, reaver a capitania. Ao longo do séc. XVII, as capitanias da Madeira encontravam-se, assim, na posse dos seus anteriores donatários. Dada a estadia na corte dos capitães do Funchal e de Machico – os condes de Castelo Melhor (Castelo Melhor, marqueses de) e os de Vimioso, e, depois, os marqueses de Valença (Valença, marqueses de) –, as funções de comando de tropas propriamente ditas continuaram no governador e no capitão-general, mas a capitania ficou como título, mantendo as rendas, uma certa intervenção camarária e as funções judiciais. O donatário passou a fazer-se representar na sede da capitania por um ouvidor (Ouvidorias) e lugar-tenente, que, em Machico, podia estar ligado, de alguma forma, a um certo ascendente militar, daí se justificando um certo alheamento, ou afastamento, do governador da Madeira em relação a Machico. Registam-se presenças várias dos governadores da primeira metade do séc. XVIII nas vilas da capitania do Funchal, mas não nos ocorre nenhuma nas vilas de Machico e Santa Cruz. Os ouvidores das capitanias regiam-se pelas Ordenações de Filipe II, especialmente pelo título LX, “Corregedores das Comarcas e Ouvidores dos Mestrados e de Senhores de Terras”. A situação das capitanias do Funchal e de Machico, com os capitães a residirem na corte e as mesmas a serem regidas por ouvidores, nunca foi extensível à capitania do Porto Santo, dada a presença física, no arquipélago, do respetivo capitão donatário. As coisas alteraram-se algumas vezes nos sécs. XVII e XVIII, nas ocasiões em que o donatário, por motivos vários, abandonou o arquipélago. Nesses casos, o próprio capitão do Porto Santo nomeou um governador durante a sua ausência e, quando tal se deu compulsivamente, a nomeação foi efetuada pelo governador e capitão-general da Madeira, antes da extinção das capitanias. A capitania do Funchal A evolução desta instituição não foi de forma alguma linear, até pela diferença nos seus rendimentos, provindos das rendas territoriais, de terras e foros, da redizima e do selo, bem como de moinhos, serras de água, sabão e sal. Para uma comparação, veja-se que, em 1653, por exemplo, o conde-capitão do Funchal pagou a importância de 100$000 réis respeitantes ao donativo (Donativo) para as despesas de guerra. Em 1662, as décimas dos dois primeiros quartéis foram orçadas em 130$000 réis para a condessa da Calheta e capitoa do Funchal, enquanto para o conde de Vimioso, donatário de Machico, foram orçados em 20$000 réis. A situação económica da capitania do Porto Santo era pior. Em 1693, por exemplo, a redízima, no valor de 76$800 réis, somente conseguia pagar o ordenado do capitão-mor Jorge Moniz de Meneses, nomeado a 31 de outubro de 1653, e o mesmo já havia acontecido com o anterior governador, Martim Mendes de Vasconcelos, nomeado em 1564. A sucessão por varonia da capitania do Funchal foi interrompida em meados do séc. XVII. O 8.º capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara (c. 1600-1656), faleceu sem descendência, pelo que assumiu a capitania a sua irmã, D. Mariana de Alencastre Vasconcelos e Câmara (c. 1605-1689), condessa de Castelo Melhor pelo seu casamento com o conde João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658). Já viúva, D. Mariana passou a utilizar também o título de condessa da Calheta e, ocupando o cargo de camareira-mor da Rainha D. Francisca Isabel de Saboia (1646-1683), o de marquesa de Castelo Melhor (Câmara, D. Mariana de Alencastre Vasconcelos e), título que só viria a entrar nos seus descendentes muito mais tarde, em 1766. A futura condessa da Calheta defrontou em tribunal os seus parentes mais próximos, pois, tendo a capitania a natureza de bem da Coroa, havia cabimento na sucessão para a aplicação da Lei Mental (que permitia a reversão de tal bem para a Coroa). Por alvará de 2 de outubro de 1539, o Rei D. João III concedera dispensa dessa lei, para efeitos de sucessão, ao 5.º capitão da capitania do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1512-1580), por duas vidas: uma por morte do dito capitão, sem filho nem outro descendente varão legítimo, e, outra, quando um qualquer donatário morresse sem filho nem descendente varão lídimo. O processo movido por D. Mariana conheceu, assim, sentença a seu favor em 1660 e, ainda, sobressentença em 1677, confirmando a entrada da capitania na Casa de Castelo Melhor. Com a extensão à Madeira do regimento dos corregedores das ilhas dos Açores, deu-se o primeiro passo para a reforma da organização da justiça, à qual, no entanto, se opõe, na corte de Lisboa, a Casa de Castelo Melhor. Em 1747, foi nomeado um novo juiz de fora de origem açoriana, Miguel de Arriaga Brum da Silveira (c. 1690-1755). Incumbido do lugar de juiz de 1.ª instância “com predicado de correição por 3 anos”, acumulou, sucessivamente, os lugares de mamposteiro-mor dos cativos e de provedor da Fazenda dos defuntos e ausentes (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 9, fls. 95v.-99). No entanto, quase imediatamente, voltam a registar-se as doações do conde de Castelo Melhor, “confirmadas por carta assinada pela Real Mão” (Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 9, fls. 116-131v.), e as anteriores questões entre o corregedor e o ouvidor, então levantadas pela Casa do conde. Abria-se, assim, caminho para a centralização da justiça e para a posterior extinção das capitanias e das ouvidorias. A capitania de Machico As primeiras especificidades que se destacam relativamente à capitania de Machico são o incumprimento da determinação de obrigatoriedade da nomeação de um letrado para este lugar, como existia no Funchal, e, ao mesmo tempo, a nomeação quase preferencial de um militar, acrescida da indicação diferenciada dos cargos de ouvidor e de locotenente. Este aspeto é de tal forma ressalvado que a nomeação é quase sempre primeiramente relativa a ouvidor e só depois, em alvará separado, a locotenente, diferenciando-se assim perfeitamente as duas. Pode, pois, depreender-se a sobrevivência, em Machico, das obrigações político-militares do capitão donatário. Este aspeto parece igualmente explicar, até certo ponto, o quase não provimento, na primeira metade do séc. XVII, do posto de sargento-mor das ordenanças desta capitania. Parece ter havido algumas dificuldades na Casa dos condes de Vimioso na apresentação dos seus ouvidores, locotenentes e outros oficiais nos inícios do séc. XVIII, como o juiz dos órfãos da capitania de Machico, associado ainda às rivalidades entre as Câmaras de Santa Cruz e de Machico. Houve também uma franca descoordenação entre as nomeações do marquês de Valença (título de que os Vimioso passaram a usufruir) e as apresentações dos ouvidores nestas décadas, acabando o governador da Madeira por ter de interferir nas ouvidorias, nomeando ouvidores interinos. Teria sido, provavelmente, o problema das ouvidorias que levou a mais uma alçada, desta feita de Manuel Vieira Pedrosa da Veiga, “corregedor com alçada por Sua Majestade, que Deus guarde, com especial ordem do dito Senhor em toda a ilha da Madeira”, que, no final de 1735, se apresentava em Machico como juiz de fora. Conforme se registou, não se faziam correições na Madeira desde 1684, pelo que o corregedor assumiu também as funções de ouvidor de Machico, dada a “ordem de correição às ouvidorias” que possuía, com “uma carta de D. João V sobre os excessos que se cometiam em várias vilas da Madeira”, vindo igualmente com ordem para investigar as “arrecadações dos bens dos concelhos” (ARM, Câmara Municipal de Machico, liv. 81, fls. 472v.-480), o que também ocorreu no Funchal. A Casa dos Vimioso e Valença deparou-se, entretanto, com algumas dificuldades económicas logo no início do século, abdicando do pleito sobre a capitania de Pernambuco para poder manter o título de marquês. A situação económica não se teria equilibrado e, tal como o marquês de Valença não conseguiu fazer valer os seus direitos à capitania de Machico na chancelaria régia ao longo do séc. XVIII, ainda que fosse presidente da mesa da consciência e ordens, também a vereação camarária mostrou francas reservas em aceitar a nomeação de ouvidores e locotenentes para a capitania, mesmo antes da sua extinção pelo gabinete pombalino. Assim, a 1 de janeiro de 1765, quando o ouvidor se apresentou em Machico para assistir à distribuição dos pelouros para o triénio seguinte, a Câmara recusou a sua presença, o que levou à intervenção do juiz de fora do Funchal no mês seguinte. O Rei D. José I despacharia favoravelmente o processo, comunicando à Câmara de Machico: “Tenho por bem dizer-vos, que tendes obrado bem em não consentirdes, que o suplicante servisse de ouvidor findo o seu tempo”. Na sequência destes acontecimentos, em setembro do mesmo ano, era admoestado o Gov. José Correia de Sá (Sá, José Correia de) devido à “falta de seriedade e reverência com que tratara o caso do ouvidor de Machico”, admoestação que seria transmitida à Câmara (Ibid., liv. 86, fls. 69v.-70). Não mais voltou a haver ouvidor em Machico, apesar dos pedidos do governador. A capitania do Porto Santo A situação desta capitania foi ainda mais nebulosa, não só pela pobreza das suas condições e habitantes, situação que piorou consideravelmente ao longo do séc. XVIII, como pelo consequente abandono a que, até certo ponto, foi votada pelos seus capitães donatários. Em face disso, desde o séc. XVII que o governador da Madeira nomeava governadores para o Porto Santo sempre que se verificava vazio de poder na ilha, visto que a mesma tinha governo próprio, na pessoa do seu capitão donatário. Assim, toda a documentação oficial produzida em Lisboa em relação ao Governo da Madeira foi sempre omissa em relação à ilha do Porto Santo, embora alguns governadores tenham proposto a Lisboa o alargamento das suas competências àquela capitania. Casa Colombo (exterior) Porto Santo. Arquivo Rui Carita.   Casa Colombo, Porto Santo. Arquivo Rui Carita.     Armas dos Perestrello. Arquivo Rui Carita Nos inícios do séc. XVII, o Porto Santo foi alvo de duas alçadas dos corregedores – primeiro de António Ferreira, em 1606, e, depois, de Simão Cardoso Cabral, em 1610 –, que visavam averiguar as queixas dos moradores contra o comportamento de Diogo Perestrelo Bisforte (c. 1560-1616), donatário da ilha. Na primeira vez, o governador foi afastado da ilha e teve ordem para se apresentar em Lisboa, regressando, no entanto, em 1610, altura em que a situação piora. Assim, nesse mesmo ano, teve nova ordem para se apresentar em Lisboa, onde ficaria seis anos, sendo perdoado a 15 de outubro de 1616. Desta feita, não terá regressado ao Porto Santo, pois faleceu no Funchal a 20 de dezembro desse ano. Afastado o Cap. Diogo Perestrelo Bisforte do Porto Santo, somente em abril de 1654 tomaria conta da capitania o herdeiro Diogo de Bettencourt Perestrelo (c. 1684), até porque, logo em 1617, a ilha foi devastada por piratas argelinos, quase não tendo ficado habitantes no seu território. Em 1606, após o primeiro afastamento do capitão, foi nomeado João de Ornelas Rolim como locotenente, com ordenado pago pelo donatário. Aquando do segundo afastamento do Cap. Diogo Perestrelo Bisforte, o governador da Madeira nomeou, em 1619, Martim Mendes de Vasconcelos como governador e capitão-mor do Porto Santo, a que se seguiram Roque Ferreira de Vasconcelos e Jorge Moniz de Meneses. Nos inícios do séc. XVIII, a capitania era governada pelo 9.º donatário, o Cap. Estêvão de Bettencourt Perestrelo, que presidiu, por exemplo, às eleições para a Câmara no dia 1 de janeiro de 1705 e às sessões seguintes para eleição dos vários agentes camarários, como o alcaide e os almotacés. O 9.º capitão surge em funções em 1674, embora o seu pai, Diogo Perestrelo, ainda fosse vivo em 1684, data em que mandou lavrar testamento. Após 12 anos de suspensão, por ter deixado “entrar na dita Ilha duas embarcações francesas” (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 16), este capitão foi restituído à sua capitania em fevereiro de 1703. Em 1707, ainda se encontra no Porto Santo, tendo sido “nas suas mãos” que o novo Sarg.-mor Duarte Pestana de Velosa prestou menagem (ABM, Câmara Municipal do Porto Santo, liv. 165, fl. 31). No entanto, perante novo desastre do assalto corsário de 1709, no qual, mais uma vez, a população não mostrou qualquer sinal de resistência, D. João V mandou-o apresentar-se, sob pena de prisão, em Lisboa, não voltando à sua capitania. O incidente encontra-se registado como ocorrido a 27 de junho de 1709, tendo desembarcado na ilha várias pessoas que, transitando numa barca proveniente da freguesia de São Vicente e com destino ao Porto Santo, haviam sido aprisionadas por um navio corsário francês. Mais uma vez, a população não reagiu, tendo o corsário francês feito o seu desembarque normalmente (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 30). A capitania ainda foi revalidada no 10.º donatário, Vitoriano Bettencourt Perestrelo, a 5 de setembro de 1722, mas não há qualquer informação sobre a sua presença no arquipélago. No entanto, como este donatário não vem referido no Índice da Antiga Junta e Provedoria, partimos do princípio que não se apresentou como donatário do Porto Santo no arquipélago, pois que, para efeitos de abono, a sua apresentação constaria dos registos da Fazenda. A capitania ainda voltou a ser revalidada, em 1747, em Estêvão de Bettencourt Perestrelo, filho de Vitoriano de Bettencourt e Vasconcelos, anterior “proprietário e senhor donatário da ilha do Porto Santo e governador dela” (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 972, fl. 217v.), então falecido, e confirmada em 1749. A mercê do novo capitão donatário era citada como “do senhorio e governo” da ilha do Porto Santo, “em que sucedeu a seu pai, por ser de juro e herdade” (Ibid., Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 972, fl. 230v.). Cita-se, no alvará, que era até então governador da ilha Jorge Correia de Miranda, efetivando-se, ao mesmo tempo, a colocação do tio do novo capitão donatário, Nicolau Bettencourt Perestrelo de Noronha, como sargento-mor do Porto Santo. O governador e capitão donatário não se deslocou de imediato para a ilha, mas conseguiu logo ter acesso às redízimas. Estêvão de Bettencourt Perestrelo tomou ainda menagem das mãos de D. José I, a 11 de março de 1755, e posse no Funchal, a 4 de junho de 1757, perante o governador da Madeira, o que foi até certo ponto uma originalidade, pois marcou a subordinação do lugar de capitão donatário do Porto Santo ao governador da Madeira. Aliás, a distância entre as datas da carta da donatária (1747), da menagem (1755) e da posse no Funchal (1757) revela bem as dificuldades experimentadas pelo capitão donatário para alcançar, na altura, os “seus direitos” (Ibid., Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 974, fl. 1). É muito provável que não tenha sequer fixado residência no Porto Santo, pois, no ano seguinte, a 15 de junho de 1756, em carta enviada do Funchal, apresenta uma representação ao secretário de Estado Diogo Corte Real sobre a difícil situação da ilha do Porto Santo, marcada pela esterilidade dos últimos anos, pedindo milho e farinha para acudir à fome dos habitantes. Na sequência do relatório elaborado pelo Eng.º Francisco de Alincourt (1733-1816) (Descrições militares), de abril de 1769, e do edital do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), citando “o ócio e a indigência dos moradores do Porto Santo” (AHU, Madeira, docs. 355, 356, 360-363), a situação catastrófica do Porto Santo teve de ser encarada de outra forma. As reformas pombalinas Com a criação, a 2 de agosto de 1766, de um governo centralizado para os Açores cometido a um governador e capitão-general e a consequente extinção das capitanias-donatarias naquelas ilhas, o gabinete do marquês de Pombal nomeou dois juristas práticos nestes assuntos, os desembargadores José Francisco Alagoa e Bartolomeu Geraldes de Andrade, para reverem toda a situação dos donatários insulares e “dos títulos dos sobreditos [...] que tiverem direito para serem conservados” (BNP, cód. 341, fls. 339-341). Logo a 4 de setembro do mesmo ano, foi elaborado, no palácio da Ajuda, um contrato de compensação ao conde de Castelo Melhor, que o conde registou, a 9 de setembro, no tabelião António da Silva Freire. Do processo completo, seria solicitada, mais tarde, em 1785 e 1788, confirmação a D. Maria I e enviada documentação à Câmara do Funchal para respetivo registo, em 1790 e 1792. Desta forma, a 4 de setembro de 1766, eram incorporadas na Coroa as capitanias da Casa de Castelo Melhor – a de Santa Maria, nos Açores, e a do Funchal, na ilha da Madeira –, alegando o Rei D. José a existência de “motivos justíssimos” e o “benefício da utilidade pública e do bem público e comum” dos seus vassalos. Revertiam, assim, para a Coroa as antigas “datas das sesmarias” e as jurisdições e nomeações dos ouvidores, dos oficiais de justiça, da Câmara, dos órfãos, das almotaçarias e dos tabeliães. Para além disso, as capitanias ficavam reduzidas às alcaidarias-mores, sendo também reduzidos os privilégios exclusivos “dos fornos de pão de poia, moendas e serrarias aos termos em que menos ofenderem ao direito divino, natural e das gentes, e fizessem calar aos atendíveis clamores dos habitantes das referidas duas ilhas” de Santa Maria e da Madeira (Ibid.). O antigo capitão do Funchal ficava, essencialmente, com o título da alcaidaria-mor e a redízima de todos os rendimentos reais da antiga capitania, praticamente sem encargos, o que significava que o que perdia em prerrogativas sociais ganhava em dinheiro. Ficavam francamente reduzidos os antigos privilégios de venda de sal, que não podiam exceder o preço taxado pelas antigas doações, já citadas, assim como o monopólio dos fornos de “pão de poia”, podendo os habitantes ter fornos particulares para o seu consumo doméstico e para “padejarem”. Viam-se igualmente reduzidos os antigos monopólios das moendas de água e das serrarias. Em contrapartida, o antigo capitão ficava com o título de marquês de juro e herdade, duas dispensas da Lei Mental e o título de conde da Calheta para o primogénito. Ficavam, igualmente, para a Coroa as fábricas de sabão branco de Lisboa e de Almada, mas eram cedidos ao futuro marquês a Qt. da Labruja, na Golegã, e parte dos terrenos da cerca de São Roque, em Lisboa, na base dos quais se veio a levantar o magnífico e célebre palácio no qual viveu o conde da Foz, que lhe deu nome, e onde estiveram outras entidades e instituições, como o Secretariado Nacional de Informação. Ainda no que respeita a bens patrimoniais, o marquês ficava com 10.000 cruzados anuais de juro, para constituir um vínculo. Nesta sequência se compreende a ordem do Conselho da Fazenda, de 20 de outubro do seguinte ano, 1767, dada ao provedor do Funchal para tomar posse “da capitania das vilas de Machico e Santa Cruz”. O ofício da Fazenda especifica que a capitania se achava vaga “desde o óbito do 5.º conde de Vimioso, D. Luís de Portugal (1656), sem sucessão, em que depois sem título se introduziu seu irmão, o 6.º conde de Vimioso, D. Miguel de Portugal (falecido em 1680), e depois muito menos, o filho natural deste, o marquês de Valença, Dom Francisco de Portugal (1679-1749), e o atual seu neto, Dom José Miguel de Portugal (e Castro) (1709-1775), os quais todos, não tirarão cartas, nem mercê têm para a poderem requerer”. Este ofício aproveitava ainda para solicitar que fossem revistos os demais bens da Coroa, não fossem encontrar-se em idênticas situações. Pedia-se que fossem enviadas ao Conselho as listagens desses bens com a indicação da respetiva situação, para se refazer o arquivo “que se incendiou pelo terramoto do primeiro de novembro de mil setecentos cinquenta, e cinco” (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 975, fls. 184-184v.). Em 1772, regista-se na Alfândega toda a documentação respeitante à capitania de Machico, parecendo o assunto ficar encerrado. Tentando acompanhar o que fizera o marquês de Castelo Melhor, os antigos capitães de Machico iniciam também a reivindicação das antigas rendas. Em 1783, conseguiu D. Afonso Miguel de Portugal e Castro (1748-1802), marquês de Valença, como tutor do seu filho, conde de Vimioso (1780-1840), receber 1443$330 réis da sua antiga capitania. Saliente-se que, entre 17 de junho de 1779 e 28 de outubro de 1782, a redízima tinha rendido 11.990$522. D. Afonso Miguel, sendo nomeado governador-geral do Estado da Baía em 1775, conseguiu, antes de partir, que D. Maria I o nomeasse marquês de Valença e o confirmasse donatário da “extinta capitania de Machico”, com o título de conde para o herdeiro e direito aos “bens, rendimentos e direitos da extinta capitania de Machico no mesmo Estado”, como especifica a Rainha (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 977, fls. 97-99). O novo marquês vice-rei ficou, assim, com mais um título e, tal como o marquês de Castelo Melhor em relação ao Funchal, com os rendimentos da alcaidaria da antiga capitania de Machico, que, em 1825, viriam a ser penhorados pelos seus descendentes.   Marquês de Valença. Brasil. Arquivo Rui Carita.     Armas do Marquês de Castelo Melhor. Arquivo Rui Carita Muito diferente foi a situação da capitania do Porto Santo, que, nestes meados do séc. XVIII, conheceu um dos piores momentos da sua existência, ao ponto de se tentar transferir toda a sua população para a Madeira. Desde os inícios do séc. XVIII que se vivia na ilha uma situação catastrófica marcada por inúmeros períodos de fome, o que tinha levado a população a um completo imobilismo. Quase todos os governadores alertaram Lisboa para esta situação, mas só se vieram a tomar medidas efetivas com Manuel de Saldanha de Albuquerque (1712-1771) e, sobretudo, com João António de Sá Pereira. A capitania foi extinta por diploma de 13 de outubro de 1770 após a morte do donatário em Lisboa, não se coibindo o próprio Rei D. José I de apelidar os portossantenses de vadios, referindo que “os sobreditos moradores cuidam em alegar genealogias para fugirem ao trabalho” (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 16). Com a extinção da capitania em 1770, foram liquidados de imediato os rendimentos em atraso dos donatários, e, em maio do ano seguinte, o próprio governador da Madeira, António de Sá Pereira, deslocou-se à ilha, acompanhado do corregedor Francisco Moreira de Matos e do oficial Eng.º Francisco Salustiano da Costa (c. 1745-c. 1820) (Costa, Francisco Salustiano da), do seu médico, o Dr. João Joaquim Curado Calhau, e de 25 soldados. A provedoria recebeu ordens para fretar o iate de Francisco Teodoro e Manuel da Silva Carvalho, assim como para preparar provisões de biscoito e uma lista de remédios fornecida pelo médico do governador. João António de Sá Pereira procedeu a nomeações várias no Porto Santo, a primeira das quais foi a do Cap. Pedro Teles de Meneses como inspetor da agricultura, recebendo as primeiras instruções em 1770. A nomeação foi depois comunicada à Câmara do Porto Santo e ao marquês de Pombal, que a levou ao “Real Arbítrio”, recebendo a aprovação de D. José I (AHTC, Erário Régio, liv. 395, fls. 306-309). Na ilha, o governador Sá Pereira procedeu ao emparcelamento dos terrenos e à reorganização geral da população, assunto entregue ao corregedor. Como alguns ofícios tinham desaparecido por completo, nos finais do ano de 1770 já vários rapazes tinham sido transferidos para o Funchal e entregues a vários oficiais, que ficaram encarregados de os ensinarem. O Governo acabou por tomar a seu cargo a sua manutenção – alimentação, vestuário, alojamento e instrução –, nomeando, inclusivamente, um médico-cirurgião para os acompanhar, ao qual também foi entregue um dos rapazes. Entre os ofícios que estes jovens aprenderam, estavam os de sapateiro, alfaiate, oleiro, carpinteiro, pedreiro, ferreiro, cirurgião e sangrador. A nomeação e o trabalho do novo inspetor da agricultura não foram, como já era habitual neste domínio, pacíficos, pois, interferindo com muitos interesses, principalmente os dos proprietários madeirenses, o inspetor foi acusado de inúmeras irregularidades. Assim, ainda que a ilha do Porto Santo tenha sido de imediato dotada de regimento da agricultura, datado de 13 de junho de 1771, os resultados não foram muito animadores. Em finais de 1774, deslocava-se ao Porto Santo o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781) (Martins, Domingos Rodrigues), para inspecionar as fortificações, transformando-se, por sua decisão, o pequeno reduto de São José no forte que viríamos a conhecer (Fortes do Porto Santo). Entretanto, devem ter sido executadas obras na Câmara Municipal – também elas, certamente, orientadas e dirigidas pelo mestre Domingos Rodrigues Martins –, a ajuizar pelas armas que passou a ostentar, talvez ligeiramente anteriores às do forte de São José. Também por essa altura se devem ter iniciado outras obras, como as da Casa nobre que posteriormente seria ocupada pelo tribunal, ostentando tal edifício, no lintel da entrada, a data de 1788. O cargo de governador da ilha continuou a ser desempenhado pelo sargento-mor Nicolau Bettencourt de Noronha, tio do antigo Cap. Nicolau Bettencourt Perestrelo, entretanto falecido a 9 de abril de 1768. Nessa altura, o governador escreveu para Lisboa a alvitrar a nomeação do ajudante do sargento-mor de Machico, Matias Moniz de Bettencourt, que servia igualmente na sala do Governo do Funchal. Explica, então, que, encontrando-se o donatário “há anos nessa corte” (ARM, Governo Civil, liv. 530, fls. 17-18v.), com a morte do sargento-mor e governador, ficava a ilha a ser governada pela Câmara e pelo capitão mais antigo. Ora, como a ilha ainda tinha 300 homens de ordenanças, deveria ter um sargento-mor e governador para o controlo geral dessa gente. No entanto, só após a morte do donatário e a extinção da capitania tal pedido teve despacho de Lisboa. A proposta da nomeação do filho do falecido sargento-mor, Manuel da Câmara Perestrelo de Noronha, foi de 15 de maio de 1782, sendo confirmada apenas a 23 de setembro de 1785. Este ramo da família foi sendo todo nobilitado, devendo ter movido influências para não perder tal lugar. Este lugar passou, entretanto, a ser subordinado ao governador da ilha da Madeira, como consta das nomeações de Manuel Ferreira Nobre Figueira, sargento-mor do regimento de milícias de Vila Real, nomeado em 1797. Efetivamente, este sargento prestou menagem de tal lugar em São Lourenço, nas mãos do governador da Madeira, a 27 de setembro desse ano, e o mesmo viria a acontecer com João Baptista Rofle, capitão-tenente da Armada, nomeado em 1800.         Rui Carita (atualizado a 20.12.2016)

História Política e Institucional

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

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branco, josé de sousa de castelo

Nasceu em Leiria a 2 de novembro de 1654, sendo filho de Heitor Vaz de Castelo Branco, “senhor do Lagar do Rei e comendador de Santa Marinha”, e de sua mulher, D. Luísa Maria da Silva Arnault, senhora de morgado (NORONHA, 1996, 126). Tal como o seu antecedente, D. Fr. José de Santa Maria, este prelado foi recrutado nas fileiras da pequena nobreza de província. Enquanto jovem, foi para Coimbra estudar, e aí se formou em teologia, tendo, de seguida, ocupado um canonicato na sé de Leiria. Encetou, depois, uma carreira na Inquisição, instituição que serviu como deputado em Évora, como promotor em Lisboa, como inquisidor, de novo em Évora, e, finalmente, como presidente do tribunal de Coimbra. Nessa posição se encontrava quando, em 1697, foi designado por D. Pedro II para bispo do Funchal. A sagração aconteceu em Lisboa, no oratório de S. Filipe de Nery, a 28 de junho de 1698, ano em que se deslocou para a diocese, fazendo, na viagem, um desvio por Mazagão, onde se deteve “a ensinar os moradores” e a crismar 1400 pessoas (Id., Ibid., 127). Ainda durante a viagem, começou, de acordo com um manuscrito intitulado Memorias sobre a Creacção e Augmento do Estado Eccleziastico na Ilha da Madeira, a dar indícios de um comportamento singular, pois, segundo reza o texto, “foi este Bispo o Prelado mais amante da nobreza que tem vindo a esta Ilha”. A fundamentação desta apreciação encontra-se, logo de seguida, na descrição de um episódio com Gaspar Mendes de Vasconcelos, cujo pai, o Ten.-Gen. Inácio Bettencourt de Vasconcelos, o mandara para o reino assentar praça; segundo se conta, o bispo logo o trouxera para bordo, atribuindo-lhe no caminho uma conezia, tendo mandado, assim que chegou a terra, o mordomo avisar o general que “ali lhe mandava o filho cónego” esperando que ele lhe perdoasse “o vir contra as suas determinações” (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 273, fl. 93v.). O mesmo documento insiste nesta tónica quando acrescenta que não “houve casa que não beneficiasse, criando-lhe alguns dos seus filhos em cónegos da catedral”, e, de facto, é possível constatar que da família dos Correias e da dos Ornelas saíram três capitulares, da dos Freitas dois e da dos Berengueres um, registando-se, ainda, a atribuição de benefícios que favoreceram outros agregados nobres da Ilha. Com efeito, as Memorias acrescentam que “continuamente lhe estava fazendo a eles presentes de trastes e ainda cortes de vestido” e que ia “passar dias de verão nas Quintas dos Cavaleiros da terra e com todos fez uma boa harmonia (Ibid., fl. 97). Se esta era uma estratégia de minimização de conflitos, não resultou em pleno, porque o episcopado de D. José não foi isento de confrontos que opuseram o bispo a mais do que uma entidade na Ilha. Um dos cenários dessa conflitualidade ocorreu com dois dos três governadores com quem se cruzou no exercício de funções, sendo que, logo com o primeiro, João da Costa Ataíde, se registaram atritos que também envolveram o provedor da fazenda, Manuel Mexia Galvão. Este último, acusado de mancebia pelo vigário-geral, virou-se contra aquele eclesiástico “mais por vingança e por ódio que por defensa […] com ânimo vingativo de injuriar a pessoa de um prelado […] a quem devia tratar com respeito de Pai”, o que determinou a apresentação de queixas mútuas para o reino. Do reino veio, assim, um desembargador, Diogo Salter de Macedo, incumbido de averiguar o que na realidade se passara. Em virtude da sua ação, o provedor foi chamado à câmara a fim de lhe ser aplicada pública e áspera repreensão, e o mesmo teria acontecido ao governador, não fosse ter falecido entretanto. Quanto aos autos do processo, determinou o desembargador que se queimassem para “que de tão estranho modo de recusa não haja em tempo algum memoria nem lembrança”. Em contrapartida, as referências contidas na provisão trazida por Diogo Salter de Macedo dizem que ao bispo se deveria dar notícia da anterior resolução, a fim de que “reconheça a consideração que a minha Real justiça [tem] a quem com menos decoro fala em autos públicos das pessoas dos prelados que justamente se queixam das ofensas que lhes fazem”, o que é o bastante para se perceber que o bispo saiu com grande vantagem desta contenda (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 270, fl. 7). Com o governante seguinte, Duarte Sodré Pereira, gozou o prelado da melhor das relações, chegando, inclusivamente, a ser padrinho de um dos seus filhos e estabelecendo-se, portanto, entre os dois, uma relação de compadrio. Já com o seu sucessor, Pedro Alves da Cunha, voltaram as coisas a correr mal, designadamente por terem surgido diferendos quanto ao lugar que o governador pretendia ocupar na sé. Terminada a comissão de Pedro Alves da Cunha, foi o prelado cumprimentar o novo governador, João Saldanha da Gama, mas, da conversa que tiveram, ficou o bispo com a impressão de que o novo titular do cargo seria “do mesmo caráter” do anterior, e essa constatação terá apressado a decisão de D. José de Castelo Branco abandonar a diocese. Com efeito, e embora publicamente evocasse razões de saúde como motivo da ida para Lisboa, a verdade é que ficaram registos de que a bordo da nau “ia aquele por cuja causa ele largava o bispado”, ou seja, Pedro Alves da Cunha, o que motiva alguma dúvida sobre as reais motivações do abandono episcopal. A confirmar esta asserção, acrescentam as Memorias que, a bordo, o ex-governador fez ao bispo “muitos obséquios, de sorte que ele se arrependeu de ter partido”, mas, apesar deste sentimento, e de se ter mantido como titular da diocese por mais sete anos, nunca mais regressou à Madeira. Embora tivesse renunciado à mitra do Funchal em finais de 1721, por, segundo afirma Noronha, os médicos considerarem que o clima da Ilha não era favorável à sua doença, a verdade é que D. José só veio a falecer bastantes anos mais tarde, em 1740, facto que contribui para infirmar a tese da doença como real motivo para a saída do arquipélago (NORONHA, 1996, 128). Para além dos dois governadores, outra das entidades com quem D. José registou desentendimentos graves foi com a comunidade franciscana, a qual, em consequência disso, se viu quase completamente destituída de confessores. O desaguisado começou com a determinação exarada pelo bispo de que todos os clérigos, regulares e seculares, do bispado teriam de se fazer examinar para confessores, do que discordou o custódio de S. Francisco, padre frei Jacinto da Esperança, que recorreu ao rei por causa da “perseguição” que considerava estar a ser-lhe movida pelo prelado. Queixava-se, então, o custódio, em seu nome e no dos religiosos da Ordem, “da notória força e violência com que os oprime o reverendo bispo da dita Ilha”, consubstanciada na privação da autorização para confessar sem se submeterem a novo exame, o que se repercutia negativamente não só na reputação da Ordem, como nos proventos arrecadados (PAIVA, 2009, 37). Além disso, acrescentava, estas ordens do prelado tinham levado à suspensão de todos os frades da Calheta, e não se poderia aceitar a ideia de que fossem “todos criminosos” (DGARQ, Cabido da Sé..., mç. 12, doc. 34, fl. n.n.). A estes argumentos contrapunha D. José o de que “como os confessores tratam de matéria mais arriscada não só pelo foro da consciência e utilidade, ou prejuízo das Almas, mas também porque doutrinam em segredo, é mais perigosa e mais arriscada esta matéria que a dos pregadores”, pelo que não podia ser “tão liberal” neste tema quanto era na concessão de licenças para pregar. A isto acrescia o bispo que poderia acontecer que desta sua “severidade” resultasse estímulo para aplicação ao estudo de que “até aqui pouco se cuidava”, e, usando de uma ironia fina, ainda fazia notar que, sendo os franciscanos pobres, “pelos pregadores haveriam os proventos temporais que das confissões não podem tirar; e da suspensão destes [confessores] lhes resultará viverem com mais descanso que sempre é apetecido da natureza” (Ibid.). Os antecedentes deste conflito derivariam, possivelmente, de uma pastoral publicada a 20 de dezembro de 1699, na qual o prelado derrogava todas as facilidades anteriormente concedidas a pregadores e confessores, condicionando-as, agora, à realização de novo exame. Esta atitude decorria do facto de ter o prelado sido informado de que alguns clérigos, “esquecidos de suas obrigações”, se não aplicavam no estudo da Moral, “não usando do sacerdócio mais que só na missa, pelo interesse temporal que dela tiram”, situação que lhe parecia intolerável, e à qual procurava, então, obviar (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx, 45, doc. 8). Porém, se as relações com os franciscanos foram tensas, o mesmo não se passou com os jesuítas, cujo reitor, o padre Miguel Vitus, era, nas palavras endereçadas pelo prelado à inquisição de Lisboa, “coisa muito singular em tudo, na capacidade, letras, virtude e ardente zelo na conversão dos hereges, e no cuidado que tem nos reduzidos”, pelo que seria homem a quem se poderia fiar tudo e “só a ele se devem cometer os negócios de maior importância e risco” (FARINHA, 1993, 887). Vinha este elogio a propósito daquela que, no entender do prelado, seria a melhor opção para se tratar dos assuntos respeitantes ao Santo Ofício na Ilha, pois, apesar de na Madeira haver dois comissários, os desentendimentos entre eles poderiam comprometer a objetividade necessária nos julgamentos. Durante este episcopado, e por razões que se poderão atribuir, por um lado, ao facto de o bispo ter sido recrutado das fileiras da Inquisição, e, por outro, à recente reativação do funcionamento do tribunal, assiste-se a um certo aumento das denúncias apresentadas, cujo número, para o período de 1690 a 1719, se cifra em 59 casos. Apesar de o bispo ter referido a meritória ação do reitor do colégio no combate aos hereges, ou talvez por isso, as ocorrências de heresia são escassas, pois só aparecem dois suspeitos, enquanto a grande incidência das faltas se dá nos domínios das curas supersticiosas e das blasfémias, com 13 acusados em cada área. O saldo final destas denúncias cifra-se em apenas 3 processos, 1 de judaísmo e 2 de bigamia, mas a correspondência trocada entre o bispo e a Inquisição, em Lisboa, permite saber-se que a boa opinião que o prelado tinha da nobreza insular não se estendia ao resto da população da Ilha. Assim, em carta escrita a 11 de novembro de 1707, D. José lamentava-se, dizendo que “a assistência de dez anos e o trabalho de sofrer esta gente me tem dado conhecimento do seu orgulho, e dos seus atrevimentos. Saiba Vossa Senhoria que não estou entre gente, senão em um bosque de feras sem nenhum conhecimento, sem obediência da razão, levados tão-somente de suas paixões como brutos sem temor de Deus, nem honra nem previsão de futuros” (Ibid., 887), o que, por sua vez, se harmoniza com a impressão que colhe dos seus fregueses, os quais, em visita a Ponta Delgada, considera “muito rudes” na doutrina, não só os meninos, como também os pais que, se falhassem no envio dos filhos à estação da missa, deveriam ser publicamente inquiridos sobre os ensinamentos religiosos (ARM, Paroquiais, Livro 116-B, fl. 5). Num outro sítio e num outro contexto, expandia ainda o prelado a má opinião que tinha dos ilhéus, que considerava, pela sua ambição “fáce[i]s de levantar testemunhos uns aos outros para melhorarem as suas pretensões” (ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Eusébio, mç. 1, doc. 21). Para tentar obviar às falhas de caráter e às omissões de doutrina, envidou D. José alguns esforços, traduzidos na realização de um plano de visitação com a periodicidade devida, complementado por missões de interior, para as quais recorria aos meios ao seu dispor. Assim, em 31 de janeiro de 1700, enviava para as paróquias rurais, “armados de todos os poderes da sua jurisdição”, dois jesuítas, os padres mestres Inácio de Bulhões e Domingos de Melo, a fim de que, por ser o tempo de “grande calamidade de doenças e mortes”, ajudassem os vigários nas confissões. A esses missionários cometia, ainda, a responsabilidade de “aprovar e reprovar confessores na forma que lhes parecer”, voltando a demonstrar a preocupação que a correta prática do sacramento da penitência lhe despertava. Como nota curiosa, pode ainda acrescentar-se o facto de, para além da saúde moral das populações, o prelado zelar, ainda, pela cura dos males do corpo, pelo que, a acompanhar os jesuítas, ia também um cirurgião “aprovado para que visite os enfermos e lhes aplique os remédios necessários” (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx. 45, doc. 9). No mesmo ano, mas em agosto, realizava-se nova missão, desta vez resultante da oferta dos serviços de um frade, frei João de Santo Ambrósio, que “movido do fervor do seu zelo e caridade determina fazer missão em todas as freguesias deste nosso bispado” (Ibid., doc. 10). Os cuidados que o bispo dispensava à qualificação dos ministros autorizados a confessar voltam a evidenciar-se em edital publicado em 1710, onde se determinava que se não lançassem no rol dos habilitados a apresentar-se a exame os indivíduos que não mostrassem certidão de matrícula, ou aprovação, na aula de moral do colégio da Companhia “por serem muito poucos os sacerdotes capazes de servir a Igreja no exercício do confessionário” (Ibid., cx. 32, doc. 39). Para além disso, destaca-se uma lista dos clérigos do bispado feita em 27 de agosto de 1715, onde constam para a freguesia da sé, por exemplo, 131 eclesiásticos, dos quais apenas 24 estão habilitados a confessar, o que vem, mais uma vez, demonstrar que os critérios para acesso àquele ministério eram severos (Ibid., Livro 2.º da Câmara Eclesiástica, fls. 17-17v.). Para além dos cuidados já expressos com alguns aspetos do exercício do múnus episcopal no tocante à formação dos clérigos, D. José ainda dedicou uma atenção particular ao seminário, o qual fez transferir das antigas instalações no paço onde residia para um novo espaço, situado na rua que passou a chamar-se “do Seminário”, e onde se situavam uns aposentos inicialmente destinados a um mosteiro, o “Mosteiro Novo”, que nunca chegou a funcionar para o fim a que se destinara. O bispo dotou, ainda, o seminário de novos estatutos. Outra das tarefas com as quais se comprometeu o antístite foi a de provedor da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, a cujos destinos presidiu nos anos de 1704 e 1709. Depois de 15 anos em que esteve presencialmente à frente da diocese do Funchal, retirou-se, então, o prelado para Lisboa, conforme já se viu, mantendo-se em funções por mais sete anos, findos os quais renunciou, ficando o bispado à guarda de um governador, Pedro Álvares Uzel, que dele se ocupou até à chegada do novo titular da mitra, D. frei Manuel Coutinho.     Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 22.12.2016)

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