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cunha, pedro da silva da

(c. 1610-c. 1670) O governador Pedro da Silva da Cunha foi nomeado em 1655 e tomou posse nesse mesmo ano, o que foi, de certa forma, rápido e não muito normal para a época, na complexa situação política nacional do falecimento do príncipe D. Teodósio de Bragança e, pouco depois, do rei D. João IV, assumindo a regência D. Luísa de Gusmão. Os seus cinco discretos anos de governação, durante os quais, tal como com o seu antecessor, não se registaram especiais conflitos com as restantes autoridades insulares, limitando-se o governador a arbitrar os conflitos entre as mesmas, foram essencialmente ocupados com a recolha do donativo para as guerras do Brasil e, especialmente, para as guerras com Castela, tendo sido, entre 1658 e 1659, levantado um importante terço militar na Madeira, com 500 a 800 homens, para ali combaterem a cargo do mestre de campo D. Jorge Henriques. Palavras-chave: conflitos institucionais, donativo, guerras da Aclamação, levas militares, relações com o Brasil; Pedro da Silva da Cunha, comendador da Ordem de Cristo, era filho de Duarte da Cunha de Azevedo e de sua mulher, Luiza da Silva, devendo ter nascido por volta de 1610. Em 1655, Pedro da Silva da Cunha foi nomeado para substituir o governador Bartolomeu Vasconcelos da Cunha (c. 1610-1663). Pouco se sabe, no entanto, sobre as suas origens, tal como da comenda de que usufruía. A sua patente tem a data de 16 de janeiro de 1655, de que deu menagem a 23 de março, tomando posse a 22 de abril do mesmo ano. O seu governo decorreu numa complexa situação política nacional, uma vez que, pouco tempo antes de Pedro da Silva da Cunha tomar posse, falecera o príncipe do Brasil, D. Teodósio de Bragança (1634-1653), somente com 19 anos, mas que se havia já imposto como herdeiro do trono, pelo que parte da correspondência para o Funchal sobre o donativo para as guerras do Brasil já era assinada pelo príncipe. A arrecadação do donativo atravessaria todo o governo de Pedro da Silva da Cunha, marcado também pelo aumento da ligação com aquele vice-reino e as suas capitanias, em especial a de Pernambuco, onde desde muito cedo se fixara uma comunidade de madeirenses. Em 1657, e.g., regressava ao Funchal José de Lira Aragão, que, em 1646, se deslocara para o Brasil com seu irmão Brás Varela de Lira. O jovem José permanecera 10 anos e 9 meses na área de Pernambuco assentando praça e ascendendo ao posto de alferes. Antes de aportar a Pernambuco, o navio em que viajava fora atacado por naus holandesas, nas imediações do cabo Agostinho. De regresso à ilha da Madeira, o governador, a 1 de abril de 1660, deu-lhe juramento como comandante de uma companhia de ordenanças da Ponta do Pargo, concelho da Calheta, posto em que permaneceu até 1674. Mais tarde, e face aos relevantes serviços prestados, inclusivamente socorrendo navios ameaçados por piratas magrebinos naquela área, o sobrinho José de Vasconcelos Bettencourt de Lira conseguiria obter a propriedade de juiz dos órfãos de Machico, lugar de que tomou posse em 1718. A 6 de novembro de 1656, falecia D. João IV (1604-1656), vítima de litíase vesical (mal da gota e da pedra, como se referia à época), deixando a regência, por testamento datado de 2 de novembro anterior, a D. Luísa de Gusmão (1613-1666). A Rainha escreveria, quase de imediato (a 7 de novembro), à Câmara do Funchal, a comunicar a infausta notícia: “Ontem que se contam seis do corrente, foi Deus servido levar para Si ao Rei, meu Senhor, com tantas e tão particulares demonstrações de piedade, que tenho por certo está no céu” (ABM, Câmara Municipal de Machico, cx. 1, liv. 84, t. 6, fl. 121). A Rainha regente, embora nascida em Castela, assumiu em plenitude a direção dos negócios em curso advindos da Aclamação e a pesada responsabilidade de arrecadar mais impostos para as guerras com Espanha, que entretanto se agudizavam. Em carta de 10 de dezembro de 1656, D. Luísa de Gusmão pede a contribuição dos 20.000 cruzados como imposto anual, voltando a referir-se que convém lançar a contribuição pelos meios que se tiverem por mais suaves, de sorte que “se não molestem meus vassalos e festivamente e com prontidão se acuda àquela quantia, para a defesa do Reino”. E acrescenta-se, tanto mais, que as câmaras da Madeira e da ilha do Porto Santo, tal como o “clero, nobreza e povo, assim o pediram e não ter isto dúvida, hei por bem aprovar os ditos meios, como de feito aprovo” (Ibid., Câmara Municipal de Machico, cx. 1, liv. 84, t.6, fls. 118 ss.). O imposto conhecido como donativo foi, de longe, o assunto mais importante para a corte de Lisboa, ocupando grande parte da correspondência enviada quer para o governador, quer para as câmaras da Madeira, logo após 1640. Estendeu-se depois a toda a população, nomeadamente ao clero e aos comerciantes estrangeiros, que estavam anteriormente isentos. As câmaras organizaram registos próprios, alguns dos quais perduraram, ocupando mais de metade dos documentos avulsos da Câmara do Funchal dessa época. Para a cobrança do donativo, em 1657, foi enviado à Madeira o licenciado António Freire Cardoso, juiz de fora com alçada, no sentido de zelar pelos serviços administrativos da Ilha e pelos negócios do donativo, ou seja, para se pagarem os 20.000 cruzados que cabiam ao arquipélago. Anteriormente tinha sido encarregado do donativo Gaspar Machado de Barros, que, ainda em Lisboa, a 27 de julho de 1650, nomeou Vitoriano de Bettencourt de Vasconcelos superintendente do donativo em Machico, que viria a ser sucedido por António Maciel de Afonseca. Em 1658, surgiam diferendos entre o juiz de fora com alçada e o provedor da Fazenda, estando em causa o testamento de um mercador flamengo a favor do alcaide do mar, Manuel Valente, igualmente meirinho das execuções reais e inquiridor da Real Fazenda, nomeado a 30 de janeiro de 1650. Ao lado do alcaide colocou-se o provedor Francisco de Andrade, que se queixou ao Rei, entendendo que o juiz de fora António Freire Cardoso se estava a intrometer na sua jurisdição. No domingo de Páscoa desse ano, 21 de abril, encontrando-se ambos na Sé do Funchal, o juiz de fora recusou cumprimentar a provedor da Alfândega, obrigando o governador Pedro da Silva da Cunha a intervir, determinando a ambos que recolhessem a suas casas. Pretendeu então o governador chamá-los à fortaleza de S. Lourenço para se reconciliarem, não acatando o juiz de fora e sendo por isso reprendido por Pedro da Silva da Cunha. A atitude ponderada do governador mereceu a aprovação do Conselho de Guerra que, por sua vez, remeteu o processo ao Desembargo do Paço. Durante o governo de Pedro da Silva da Cunha, foi levantado um terço madeirense para as guerras do Alentejo, iniciado em 1658 e comandado pelo mestre de campo D. Jorge Henriques (c. 1604-c. 1650), nascido em Baçaim, na Índia, e filho do antigo governador da Madeira D. Francisco Henriques (c. 1570-1624), apresentado pela Rainha a 30 de novembro desse ano. Esta força viria a utilizar, à semelhança da velha ala dos Namorados de Aljubarrota, uma bandeira verde e teria envolvido um “terço de soldados infantes pagos em número de 600 até 800” (Ibid., Câmara Municipal do Funchal, avulsos, cx. 2, doc. 277), com sargentos-mores, quatro capitães para as companhias de infantaria e, inclusivamente, uma companhia a cavalo, pelo que, logo a 9 de dezembro desse ano, a fazenda do Funchal receberia ordem para lhe entregar 200$000 réis. Desconhecemos os quantitativos globais levantados na Madeira, pois terá havido muitos recompletamentos, e até de outras origens para além da Ilha, mas não devem ter andado longe dos 500 infantes, nem todos recrutados de muito boa vontade. A primeira grande confrontação no Alentejo entre as forças portuguesas e castelhanas veio a dar-se nos campos de Elvas, em 14 de janeiro de 1659, constituindo a primeira grande vitória das guerras da Aclamação. A vitória, entretanto, não foi decisiva e, com a assinatura do tratado dos Pirenéus nesse ano, entre a Espanha e a França, a primeira ficou sem outros compromissos militares, podendo voltar-se novamente para Portugal, o que veio a acontecer em 1663 e 1665. Ciente dessas necessidades, já em carta de 4 março de 1659 à Câmara do Funchal, lamenta a Rainha a situação das fronteiras, mas que não esmorecia no seu empenho de acudir prontamente onde o perigo mais se evidenciasse. Refere D. Luísa de Gusmão que “o inimigo veio com poder sobre a praça de Olivença. Mandei reforçar o exército do Alentejo para ser socorrido. Para as despesas que muito se tem de fazer, por não ser bastante a contribuição das décimas e outros efeitos, da minha fazenda, me suplicassem lançasse, como o fiz, novo meio-quartel. Em 1658, se havia lançado outro quartel destinado ao Exército que mandei formar para descercar a praça de Elvas, que o inimigo veio logo sitiar” (Ibid., doc. 279), pelo que insistia na cobrança do donativo. Nos finais desse ano de 1659, a corte de Lisboa tomava outras opções, registando as doações da infanta D. Catarina de Bragança (1638-1705), e, a 17 de dezembro, nomeava para governador da Madeira Diogo de Mendonça Furtado (c. 1620-c. 1690), que somente um ano e pouco depois se apresentaria no Funchal. A Rainha D. Luísa de Gusmão escreveria ao governador Pedro da Silva da Cunha, a 18 de novembro de 1660, que enviava novo governador “por terdes acabado o tempo e ser justo que regresseis a vossa casa” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, cx. 48, t. 6, fls. 135). A apresentação decorreu na Câmara do Funchal, a 2 de dezembro de 1660, regressando o ex-governador ao continente e não havendo referências a seu respeito depois dessa data. Deve ter falecido por volta de 1670.   Rui Carita (atualizado a 02.03.2017)

História Política e Institucional

convento de são bernardino

O primeiro convento franciscano que se fundou fora do Funchal teve por titular S. Bernardino de Sena, um dos grandes santos da mesma ordem, e foi fundado na freguesia de Câmara de Lobos, entre 1459 e 1460, em lugar ermo e solitário, a certa distância da igreja matriz, a norte do Pico da Torre, ainda restando grande parte dos seus edifícios, embora das campanhas de obras dos sécs. XVIII, XIX e XX. O convento teve uma humilde e obscura origem, mas tornou-se célebre e afamado em toda a Ilha, e até no continente, por ter ali vivido e falecido Fr. Pedro da Guarda (1435-1505), a que o povo chama “santo servo de Deus” (VERÍSSIMO, 2002, 79-91). A fundação é atribuída a Fr. Gil de Carvalho, um humilde frade franciscano que veio do continente do reino para a Madeira, quando os Franciscanos que ocupavam o hospício de S. João da Ribeira acabavam de sair da Ilha para irem estabelecer uma comunidade nas proximidades de Lisboa, em Xabregas, que fundaram em 1456, sobre as ruínas do antigo paço de Xabregas e a invocação de S.ta Maria de Jesus, mas que ficou mais conhecido por Convento de S. Francisco. Desejando Fr. Gil viver em lugar desértico como eremita, como escreveu depois o deão, António Gonçalves de Andrade (1795-1868), anotador da História Insular do P.e António Cordeiro (1641-1722) a partir da História Seráfica, levantou um pequeno cenóbio com dois cubículos “em dois pés de terra semeada entre rochas”, num dos quais habitava o fundador e no outro João Afonso e Martinho Afonso, os quais esmolavam pelo povoado para a sustentação dos três (SOLEDADE, 1705, III, 170-171). Crescendo o número de religiosos, trataram de levantar um pequeno convento em terreno que lhes foi doado por João Afonso Correia (c. 1435-1490), escudeiro do infante D. Henrique, e sua mulher, Inês Lopes, que na Ilha foram o tronco da casa Torre Bela. A nova casa religiosa erguia-se num sítio afastado da povoação, cercado de um lado pela ribeira e do outro, por uma rocha, sendo bem própria para o género de vida a que se dedicavam. Passados alguns anos reuniram-se outros religiosos, que formaram a comunidade inicial, mas uma enchente da ribeira, pelos anos de 1480, haveria de destruir a pequena ermida e os primeiros cubículos, o que desgostou irremediavelmente Fr. Gil de Carvalho, que se retirou para o continente, entregando a direção a Fr. Jorge de Sousa. Foi Fr. Jorge de Sousa que reconstruiu o convento, um pouco mais acima, ao abrigo das correntes caudalosas da ribeira, tendo sido levantada nova e mais vasta igreja, com novas celas, “que logo foram habitadas”, tendo ficado o espaço inferior do inicial ermitério para “algumas oficinas de menor importância” (SOLEDADE, Ibid., 173). Data dos finais do séc. XV aos inícios do XVI a organização canónica do convento como uma verdadeira casa monástica, depois de ter melhorado consideravelmente as condições materiais através de doações, contratos de arrendamento, etc., como era hábito, pois estes mosteiros funcionavam também como empresas agrícolas. A fama e o desenvolvimento da comunidade encontram-se decididamente ligados à presença ali de Fr. Pedro da Guarda que, nascido na Guarda, em 1435 e que, tendo professado por 1455, “querendo subtrair-se à admiração que causavam as suas virtudes” (SILVA e MENESES, 1998, II, 103), se refugiou em S. Bernardino por 1485. Falecido em 1505, logo a sua fama se espalhou pela Ilha e pelo continente, sendo referido por Fr. Marcos de Lisboa (1510-1591), depois bispo do Porto, na terceira parte das suas Crónicas de los Frayles Menores, editadas em Salamanca, em 1570, não tendo nunca cessado o culto popular que lhe tem sido devotado. A comunidade de S. Bernardino foi crescendo ao longo do séc. XVI e, por 1584, Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) refere que ali viviam permanentemente 7 a 8 religiosos, sendo o Convento “abastado de toda a fruta e vinhos” (FRUTUOSO, 1968, 122). Em 1598, no Recenseamento dos Fogos, Almas, Freguesia, e Mais Igrejas, registavam-se 10 a 12 religiosos, sinal de continuar a crescer a população residente do Convento e, por certo, pela devoção suscitada com a ocorrência, no ano anterior, da localização da sepultura de Fr. Pedro da Guarda. No início do ano anterior, a 9 de janeiro de 1597, registam as vereações do Funchal não se ter realizado sessão da parte da manhã, por falta de comparência dos oficiais do concelho, que haviam sido informados de que os franciscanos tinham descoberto os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda (ABM, Câmara Municipal do Funchal, 1313, 3 v.). A exumação oficial deve ter ocorrido depois, a 28 de janeiro desse ano, na presença, de novo do bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), do reitor do colégio do Funchal, P.e Cristóvão João “e outras pessoas qualificadas”, como regista a História Seráfica (SOLEDADE, Ibid., 173). O certificado de transladação de Fr. Ambrósio de Jesus, à época definidor-geral e comissário dos conventos franciscanos da Madeira, datado de 23 de maio de 1624, regista somente tal ter ocorrido em janeiro de 1597 e reivindica para si o ter encontrado, nos claustros, os restos do corpo de Fr. Pedro da Guarda (Girão, 1992, 8, 396-397). A capela-mor da nova igreja foi fundada por Rui Mendes de Vasconcelos (c. 1460-c. 1520), filho mais novo de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves, filha de Zarco, e a sua mulher Isabel Correia, que era filha dos doadores do terreno em que se tinha levantado o primitivo convento. Pajem da rainha D. Leonor e um dos homens-bons do concelho do Funchal, onde serviu de vereador, guarda-mor da saúde e procurador do concelho, Rui Mendes de Vasconcelos mandou redigir cédula de testamento a 15 de setembro de 1515, antes de seguir para o reino, onde determina vir a ser enterrado no meio da capela-mor, junto dos seus filhos já falecidos. A capela teria sido reconstruída por 1533 e a lápide em causa, nessas ou nas obras seguintes, transferida para o adro da igreja, onde se encontra. Mais tarde, o neto homónimo Rui Mendes de Vasconcelos deixou ainda em testamento, de 16 de abril de 1569, 160$000 réis da sua terça para sufrágios por sua alma. Com essa importância deveriam ainda ser compradas várias alfaias e paramentos, como um cálice de prata dourada, de três marcos, uma vestimenta, uma capa e um frontal de seda de damasco. O remanescente seria aplicado em bens de raiz, “em boa terra, em Câmara de Lobos, e em água” para subsistência dos frades, tudo ficando enfeudado, “enquanto o mundo durar” (VERÍSSIMO, 2002, 33), a duas missas semanais rezadas, às quartas e às sextas, pela sua alma e as dos seus filhos. O seu testamento não veio a ser aprovado, fazendo-se inventário e partilhas, de forma a assegurar o legado. Os bens destinados a esse efeito, embora ligeiramente inferiores aos inicialmente destinados, à época, cumpriam suficientemente o determinado, mas o mesmo não viria a ocorrer alguns anos depois. O neto do segundo Rui Mendes de Vasconcelos, por via materna, também padroeiro da mesma capela-mor, João de Bettencourt de Vasconcelos (1535-1615), nos finais do século, requeria ao bispo do Funchal a redução das missas em questão. O bispo D. Luís Figueiredo de Lemos já tinha exposto a situação para Roma e havia recebido uma carta da Sagrada Congregação dos Cardeais, de 4 de outubro de 1589, concedendo-lhe o poder para reduzir as capelas e missa dos administradores do seu bispado “que se sentissem carregados com grande número de missas e encargos, ao justo e razoável, conforme as propriedades e rendimentos” (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, tombo 3, 608-608 v.). O despacho do pedido do administrador da capela-mor de S. Bernardino teve a data de 19 de dezembro de 1593, reduzindo o bispo o número de missas de duas semanais para uma por mês, mas mantendo as demais obrigações dos padroeiros, que eram o pagamento de azeite, pão, peixe ou carne e vinho para a subsistência dos frades. João de Bettencourt de Vasconcelos, a quem, regista Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de) no seu Nobiliário Genealógico, chamavam “o Cavaleiro, de alcunha”, tendo passado à Índia por capitão da nau São Gregório, sucedeu, entretanto na terça dos seus avós, por morte de seu irmão Rui Mendes de Vasconcelos, homónimo dos vários avós e que falecera sem descendência. Por testamento aprovado em 12 de dezembro de 1607, como administrador dos bens do irmão, refere que a terça do mesmo ainda tinha como obrigação para o Convento de S. Bernardino uma pipa de vinho novo, quatro arrobas de azeite e 3$500 réis de missas rezadas e cantadas, pelo que deve ter havido ainda outras alterações a estes legados. No seu testamento, João de Bettencourt de Vasconcelos deixou vinculada a sua terça nas fazendas por cima de Câmara de Lobos e abaixo da quinta da Torre, deixando-a aos frades de S. Bernardino. Determinou que a administração desta capela, depois conhecida como “Terça dos Frades”, deveria passar à sua filha Helena de Vasconcelos (c. 1572-1625), instituidora da capela-mor da igreja do Colégio do Funchal, dado o filho Henrique de Bettencourt não ter descendência e falecer pouco depois, em 1620, e Guiomar de Bettencourt (c. 1571-1607), a irmã mais velha, já ter falecido. Data de cerca de 1633 a construção de três pequenas capelas na cerca, para além de outros melhoramentos nos edifícios do Convento. As capelas de homenagem a Fr. Pedro da Guarda ficavam, uma junto à sepultura do “santo”, identificada nos finais do século anterior, outra junto da cozinha, onde a tradição contava ter havido anjos a ajudá-lo nos seus trabalhos e a última, junto à pequena lapa onde costumava meditar, isolado de tudo e de todos. Por esses anos igualmente se fizeram obras nos claustros e na casa do capítulo, para o que Rui Mendes de Vasconcelos (II) deixara os materiais, como madeira de cedro e que a mandara colocar na loja do mosteiro. Saliente-se, no entanto, que nem sempre estas determinações testamentárias eram cumpridas, pois que no documento em questão se refere a importação de uma laje da Flandres, que não temos informação de alguma vez ter existido, tal como determina que se fizessem grades de ferro, de varões grossos, lavrados e dourados para a capela-mor, de modelo idêntico aos da capela do Santíssimo da sé do Funchal, a fim de substituir os de madeira que já estavam velhos, que também mais ninguém volta a referir. Alguns anos depois Henrique Henriques de Noronha descreve pormenorizadamente o Convento, a “uma légua da cidade do Funchal, para poente”, por cima do lugar de Câmara de Lobos, que com os anos fora aumentando o número de edifícios, especialmente graças à contínua romagem do “Servo de Deus”, constituindo-se numa das melhores casas franciscanas e a segunda da Custódia de S. Tiago Menor da Madeira. Tinham então boas oficinas e “excelentes cómodos” para os 18 religiosos que habitavam no Convento. Compreendia três dormitórios, que com a igreja formavam um “perfeito quadro”, com um claustro rodeado de varandas sobre pilares de “cantaria fina” e no meio uma fonte de “perene água” (NORONHA, 1996, 250-251). O cronista descreve as várias capelas, uma das quais no claustro, dedicada a Fr. Pedro da Guarda, “onde misteriosamente foram achadas as relíquias na sua sepultura, pelo bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, em oito de janeiro de 1597”, o que, se de algum modo pode ser confirmado pelas vereações camarárias do Funchal, que no dia seguinte não tiveram sessão por todos terem acorrido a Câmara de Lobos, embora esteja em desacordo com o que escreveu Fr. Fernando da Soledade, que regista o dia 28 de janeiro, e, logicamente, omite ter sido o bispo do Funchal a fazer o achado. Refere-se ainda à capela construída na antiga cozinha, também dedicada ao “santo”, onde “vinham os anjos beneficiar o comer, enquanto ele se ocupava em outra maior contemplação”, figurando aí a sua imagem de joelhos, em oração, dentro da antiga chaminé “e os anjos ocupados no ofício do Santo” (Id., Ibid.). Nos claustros havia outra capela, que servia de capítulo aos religiosos, dedicada a N.ª Sr.ª da Piedade, “cuja imagem é de maravilhosa pintura”, capela fundada por André Afonso Drumond e sua mulher Branca de Atouguia. Fora do claustro, junto à portaria e à igreja ainda havia outra capela, dedicada às almas, com uma confraria e, a “poucos passos adiante”, ainda a capela de S. Lourenço, dentro da qual, do lado da epístola, ficava uma “lapa fechada com grades de ferro” (Id., Ibid., 252), que ainda subsiste, onde era tradição que Fr. Pedro da Guarda se retirava para oração. A igreja era “proporcionada ao convento”, de uma só nave, com capela-mor e dois altares colaterais: o do lado do evangelho dedicado ao Senhor Jesus, com irmandade e, o da parte da epístola, à Conceição de N.ª Sr.ª. O retábulo-mor possuía três nichos, sendo o central ocupado pela imagem de S. Bernardino de Sena e os laterais, pelas imagens de S. Francisco e de S.to António. Na parede do lado da epístola figuravam as armas dos Vasconcelos e, no lado oposto, havia uma tribuna. Na porta lateral que saía para os claustros havia uma laje com as letras A e D, indicação de que ali havia sido enterrado Fr. António Descalço, “religioso leigo cuja virtude e largas penitências lhe adquiriram larga veneração” (Id., Ibid.), mas na lápide aí existente no começo do séc. XXI figura o nome por extenso do frade leigo, por certo bem anterior aos anos de 1722, em que foram escritas as memórias do cronista Noronha. Fr. António Descalço havia sido canavieiro de açúcar de António Correia, o Grande (1457-1572), filho dos doadores do terreno inicial do Convento, tendo entrado como donato, ou seja “consagrado ao Senhor”, em referência a alguém mais novo e que estaria a preparar-se para seguir a vida religiosa, professando depois, mas como leigo. Passou a usar o nome de Descalço, “porque jamais calçou alparcatas” e quando se “faziam gretas nos pés, do exercício, as cozia com fio de sapateiro”. Faleceu em 27 de maio de 1590, o que parece corresponder à lápide depois colocada, tendo escrito Noronha que foi contemporâneo de Fr. Pedro da Guarda, “que sem dúvida seria o modelo do seu espírito”. No entanto, tendo o “santo” falecido em 1505, não podem ter sido contemporâneos, pois embora o antigo amo, António Correia, tenha falecido com 115 anos, um canavieiro que sempre andou descalço dificilmente teria passado dos 70 anos. Escreveu também Noronha que sobre a sua sepultura “se viam algumas vezes luzes” e ouviam cânticos amenos, com “um suavíssimo cheiro, que saindo dela se fundia por toda a igreja” (Id., Ibid., 251-253). Na descrição de Noronha do então oratório de S. Sebastião da Calheta, refere-se que no Convento de S. Bernardino se havia homiziado Pedro Bettencourt de Atouguia (1622-c. 1680), o qual tinha assassinado, por problemas de coleta de impostos, o corregedor Gaspar Mouzinho de Barba, a 29 de dezembro de 1642. O corregedor viera à Madeira para investigar uma série de tumultos ocorridos no ano anterior e, tomando conta da fazenda real, passou a tratar dos vários pagamentos em atraso. Entre esses pagamentos encontravam-se os de Pedro de Bettencourt, Manuel Homem da Câmara e outros, pelo que dirigindo-se à Câmara do Funchal, então nas traseiras da sé, para prender o último, foi assassinado às portas da mesma por Pedro de Bettencourt. Conta então Noronha, que foi depois preso, em princípio, pelo seguinte corregedor Jorge de Castro Osório, por sua vez, morto por envenenamento poucos meses depois (Aclamação de D. João IV). O morgado Pedro de Bettencourt teria, entretanto “arrombado a prisão” e passou a viver homiziado, de início, no Convento de Câmara de Lobos, “mas com tal mudança de vida”, que despendia a maior parte dos rendimentos do morgado em benefício da caridade, tendo feito “à sua custa as varandas do claustro de S. Bernardino”. Aí permaneceu até 1670, data em que comprou o terreno para o oratório de S. Sebastião da Calheta, cuja construção se iniciou por essa data, professando ali como Fr. José da Encarnação, onde “andou sempre descalço” e foi depois sepultado na capela-mor daquele oratório (Id., Ibid., 257). O Convento de S. Bernardino beneficiava, entretanto do púlpito da colegiada de S. Sebastião da Câmara de Lobos, pelo menos, desde o alvará de D. Filipe II, de 20 de outubro de 1612, que atribuiu ao guardião um ordenado anual de 15$000 réis e a obrigação de pregar na colegiada no Advento e na Quaresma, o mesmo acontecendo com os restantes conventos franciscanos, em relação às colegiadas das matrizes das freguesias próximas. Mais tarde, com a dinastia dos Bragança, as porções e esmolas dos sermões auferidas pelos religiosos estariam isentas do pagamento da décima, por provisão régia de maio de 1650. Os frades de S. Bernardino, e o Convento em geral, a partir dos inícios e meados do séc. XVII, vieram a beneficiar com o recrudescimento da devoção de Fr. Pedro da Guarda, tendo sido contínuas as tentativas de beatificação e os processos enviados para Roma. O Papa Urbano VIII, a 30 de agosto de 1625 ordenou, inclusivamente ao bispo do Funchal, D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), que, com dois dignatários da Sé, fizesse nova inquirição por autoridade apostólica. O processo foi concluído em 1628, sendo enviado para Roma, mas não tendo conhecido despacho. Novas tentativas foram feitas pelo P.e Fr. Baptista de Jesus, que se deslocou a Roma para negociar a causa, ainda sendo conduzida outra tentativa pelo deão, vigário-geral e provisor do bispado em sé vacante, Pedro Moreira (c. 1600-1674), em 1652, igualmente sem resultados. O erário público, entretanto concorreu igualmente para os processos de beatificação, determinando o rei D. João IV, por alvará de 3 de setembro de 1653, que os ministros da justiça aplicassem na Ilha metade das condenações pecuniárias para ajuda das despesas. A determinação de D. João IV foi confirmada cem anos depois, pelo bisneto D. José, por novo alvará, em 27 de fevereiro de 1753, para que se mantivesse a ajuda das despesas ao processo de beatificação do “Santo Servo de Deus” (BNP, Índice Geral do Registo da Antiga Provedoria da Real Fazenda, 118 v.), assunto cumprido ao longo dos séculos seguintes, mas sem resultado, ainda se arrastando o processo por Roma. O Convento de S. Bernardino veio a ser totalmente reconstruído nos inícios e meados do séc. XVIII, quase que somente se tendo preservado a lapa e a sepultura de Fr. Pedro da Guarda, assim como algumas das lápides sepulcrais. As obras devem ter-se iniciado por 1735, como atesta a data inscrita na base da cruz do frontispício da igreja e prolongaram-se, pelo menos para além de 1747, como se inscreveu no lintel de uma das janelas próximo da torre. A igreja ficou então dotada de três portas com molduras assentes em colunas oitavadas e conjunto rematado por cornija relevada sobre a qual assenta um pequeno nicho de cantaria aparente. O conjunto das portas parece ter tido o risco de um mestre das obras reais anterior, talvez Manuel de Vasconcelos, mas toda a fachada deve ter sido reformulada nos inícios do XIX, depois da aluvião de 1803 e ainda nas obras de 1924 a 1928, não sendo fácil deduzir o que ficou das campanhas de obras mais antigas e, inclusivamente, se não se aproveitaram cantarias de outros locais do Convento. Para estas obras, em princípio, o guardião e demais frades tiveram autorização da Câmara do Funchal, por alvará de 13 de janeiro de 1742, licença para cortar vinte e cinco paus nas serras do concelho. Entre 1730 e 1740 também se encomendaram vários painéis de azulejos para os claustros a uma das boas oficinas de Lisboa, de que chegaram aos nossos dias dois muito bons e grandes arcanjos, podendo ter sido mais. De 1740 a 1750 também deve ser o lavabo da sacristia, dos mais interessantes existentes na Região e que, contra o que seria de esperar, recupera o trigrama de S. Bernardino de Sena, de que se haviam apropriado os Jesuítas para a sua emblemática oficial, o que à época teria sido uma atitude corajosa. O Convento voltou a ter obras após o terramoto de 1748, que afetou bastante toda esta área e, então quase uma nova reconstrução, após a terrível aluvião de 9 de outubro de 1803. A descrição da aluvião de João Pedro de Freitas Drumond (1760-1825), o célebre “Dr. Piolho”, dada a fraca estatura, feita a pedido da Câmara do Funchal, refere que a ribeira da Saraiva ou ribeiro dos Frades levara “a cerca, claustros, cozinha, refeitório e adega” do Convento, de que só ficara a igreja e a casa dos romeiros. Uma testemunha ocular, a 15 de outubro seguinte, refere mesmo que “o convento do Servo de Deus também foi ao mar” e “dizem que escapou parte do refeitório e um pequeno celeiro” (VERÍSSIMO, 2002, 65). No livro de Receita e Despesa dessa época registam-se “o gasto que se fez depois do dia 10 deste mês de outubro, quando amanheceu a triste cena do aluvião, que levou este nosso convento com as alfaias que nele se achavam, etc.”. Os frades tiveram assim que adquirir quatro panelas, um tacho, uma frigideira, duas peneiras, seis copos, um cutelo, dois quartos, balança e pesos, tendo tudo custado 16$350 réis. Tiveram também de contratar um carpinteiro, por dois dias, “para consertos”, como regista o escrivão Fr. João de Santa Rosa (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, fl. 87). No pedido depois feito pelo guardião Fr. Matias de São Boaventura para se fazer uma vistoria, refere-se que os frades tiveram de trepar pela rocha vizinha do lado nascente, pois a água havia tomado a saída do Convento, demolido a portaria e entrado na igreja. Os frades tiveram que se recolher nas instalações dos Terceiros e na casa dos romeiros, pois haviam ficado sem os dormitórios e mais instalações, solicitando poder utilizar o rendimento da capela instituída por João de Bettencourt de Vasconcelos para a reedificação do Convento. A vistoria determinada pelo provedor dos resíduos e capelas só veio a ocorrer a oito de julho de 1805, levada a cabo pelo então mestre das obras reais e antigo mestre entalhador Estêvão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), assessorado pelo mestre António José Barreto, que lhe haveria de suceder. Os prejuízos tinham sido muito grandes, perdendo-se na totalidade o muro da cerca, as latrinas, o dormitório que estava ao lado do ribeiro, a cozinha e loja anexa, a casa de profundis, o refeitório, a adega, metade do claustro, a capela da cozinha do servo de Deus, a da cova do “santo”, a sacristia e a varanda que lhe ficava em cima, tal como as celas junto da mesma varanda. Na igreja, encontrava-se perdido o teto sextavado, o altar teria de ser refeito, e os azulejos, porque em mau estado, teriam de ser retirados. A ribeira dos Frades alterara o seu leito, passando então junto à porta travessa da igreja, que ia para a capela-mor, tudo necessitando de ser assim corrigido. As obras tiveram autorização do provedor-proprietário das capelas, Pedro Nicolau Bettencourt de Freitas e Meneses, devendo ser colocados em praça “os frutos” do morgadio instituído por João de Bettencourt de Vasconcelos, para se liquidarem pela melhor oferta. Satisfeitos os legados pios, deveria aplicar-se o remanescente na reconstrução do Convento e da capela-mor, de acordo com as diretivas deixadas no auto de vistoria. Ao longo dos anos seguintes as obras arrastaram-se, ainda havendo pagamentos em julho de 1822 e, em 1827, o síndico do Convento queixava-se que a vistoria às obras se achava por completar, em relação à capela-mor, oficinas do Convento e outras instalações. Estes anos foram muito complexos em Portugal com a implantação do primeiro liberalismo e com a contrarrevolução do infante D. Miguel, seguindo-se a guerra civil que, não tendo afetado fisicamente a Madeira, levou à emigração dos principais quadros eclesiásticos insulares, como grande parte dos cónegos da sé e dos vigários das freguesias. As obras do Convento nunca teriam sido completadas. A vida quotidiana da comunidade de S. Bernardino entre os finais do séc. XVIII e os inícios do XIX pode ser analisada pelos quatro livros de receita e despesa que sobreviveram. A documentação do Convento parece ter-se perdido parcialmente com a aluvião de 1803, tendo ficado alguns livros de despesas de obras no conjunto proveniente da provedoria do Funchal; os quatro livros de receita e despesa foram depositados na Torre do Tombo, indo integrar o núcleo dos conventos, tendo a documentação avulsa ficado no núcleo do Ministério das Finanças do mesmo arquivo. O estado de conservação dos cadernos iniciais do Livro de Contas de setembro de 1792 a 1798, quando era guardião o P.e Fr. António do Amor Divino, é testemunho da dificuldade por que deve ter passado toda a documentação do Convento. As receitas do Convento provinham essencialmente de foros e de missas, inclusive nos altares das confrarias, capelas e oratório do síndico, sermões na Quaresma e no Advento na colegiada de Câmara de Lobos, tal como da venda de túnicas, hábitos de saial e de burel para mortalhas, aspeto que era igualmente praticado nos restantes conventos franciscanos masculinos da Ilha. Um hábito de burel e o acompanhamento de um funeral registados, e.g., na primeira semana de setembro de 1792, custaram 2$500 réis, embora um outro enviado para o campanário na mesma semana tivesse custado somente $8000 réis. Os hábitos para mortalha eram feitos no Convento, comprando-se periodicamente uma vara de burel, como nos inícios de fevereiro do ano seguinte, que custou 6$000 réis. As túnicas também ali deviam ser feitas, vindo o linho sedado ou em rama, da Ponta do Pargo e da Fajã da Ovelha, em princípio, como esmola. Na última semana de maio de 1798, e.g., entre os inúmeros envios de hábitos de burel e de saial, registam-se verbas de 4$000 réis, para o do burel enviado para o funeral de Manuel de Sousa, das Eiras, acompanhado por dois religiosos “a 500 réis cada um” e 9$000 réis, para o hábito de saial enviado para Rita dos Santos, da Várzea, cujo funeral foi acompanhado por seis religiosos. Nessa semana também se receberam 3$000 réis pelo “caminho e assistência” ao ofício das exéquias do governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, falecido no Funchal, a 30 de março desse ano, determinadas pelo Cap.-mor Filipe Esmeraldo e nas quais participaram cinco religiosos “a 600 rs.” (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, f. 1v.). As verbas auferidas pelas missas eram também variáveis, registando-se, e.g., na primeira semana de fevereiro de 1793, 35 missas, que renderam 2$800 réis; na segunda semana, 25 missas, 2$000; na terceira, 33 missas, 2$050; e na quarta, 35 missas, 1$800, dependendo assim de onde eram celebradas e dos acordos anteriormente estabelecidos. Havia uma série de missas que eram obrigação do Convento, outras de outras obrigações, tal como as das capelas e das confrarias, nem todas pagas. Na última semana de abril de 1798, no livro de contas de quando era guardião o P.e pregador Fr. Manuel da Piedade, especifica-se que se “disseram” 23 missas, 7 do Convento, 3 de obrigações, 3 das confrarias e 4 de “ofícios de frades”, somente tendo sido pagas quatro, a 200$000 réis, pelo que houve de receita 800$000 réis (Ibid., liv. 2, fl. s/n.ºv.). Nas semanas seguintes variam os quantitativos, havendo missas pagas a $200, a $300 e, inclusivamente, a 1$550 réis, como ocorreu na terceira semana de maio desse ano de 1798 e que parece corresponder à missa que antecedeu ou finalizou o “Noturno da confraria de Jesus” (Ibid., liv. 2, fl. 1) As festas dos padroeiros das confrarias sedeadas no Convento eram igualmente fontes de receita, principalmente se tivessem sermão, podendo chegar aos 3$000 réis. Os foros representavam ainda maiores fontes de receita, como os provenientes da antiga Terça dos Frades, que a célebre morgada Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789) chegou a colocar em tribunal, em 1771, face à aplicação da lei pombalina de 4 de julho de 1768 e do alvará de 12 de maio do ano seguinte sobre os bens vinculados, mas que veio a ter despacho da Relação de 14 de dezembro de 1776, favorável ao Convento e condenando a morgada ao pagamento das custas do processo. Os seus sucessores acabaram por continuar a pagar a célebre “terça”, como o seu sobrinho-neto João de Carvalhal (1778-1837), futuro conde de Carvalhal, que em janeiro de 1811 pagou pela “sua capela”, 16$440 réis, para além de ter rendido ao Convento, “do merecido da Capela da Terça”, mais 49$400 réis (Ibid., liv. 3, fl. 3). Outra fonte de rendimento eram os peditórios, que extravasavam, em princípio as áreas estabelecidas, pois concorriam com o pequeno Convento de S. Sebastião da Calheta e mesmo com o oratório da Porciúncula da Ribeira Brava. Os peditórios decorriam em determinados períodos, consoante as festas em causa e os produtos a recolher, como era o caso do vinho, do trigo e do pão, para o que o Convento adquiria o vasilhame para a recolha e pagava a determinados “moços” ou donatos para fazerem o peditório, tal como depois pagava pontualmente os transportes, quando excediam as quantidades transportáveis pelo homem. Uma vez recolhidos no Convento, uma parte dos mesmos era vendido. As despesas do Convento eram essencialmente na alimentação, feita à base de peixe de aquisição local, ao contrário dos conventos do Funchal onde a aquisição de peixe era mais difícil, mas também de bacalhau, de salmão fumado, de carne e legumes. Na última semana de março de 1793, e.g., uma das principais despesas foi a do peixe fresco, quase 7$000 réis, mas sendo ultrapassada pela do bacalhau, em que se gastou 7$200 réis. Compraram-se ainda feijão “fradinho”, legumes vários e fruta, vários tipos de azeite, inclusivamente “de peixe”, e lenha para cozinhar, uma despesa sempre corrente; nessa semana, foram 23 feixes, 15 a $150 réis e 8 a $100, num total de 3$050 réis (Ibid., liv. 1, f. 11v.). Os frades cultivavam ainda terrenos na sua cerca e em outras propriedades, inclusivamente, contratando pessoal em épocas de maior trabalho. Tinham vinhas e produziam vinho em adega própria e aguardente, tal como criavam animais. Pontualmente compravam um porco “para o chiqueiro”, que depois deviam matar pelo Natal, tal como também compravam galinhas e tinham ovos, pois, pontualmente, aparece o envio de ovos para o Convento de S.ta Clara, de onde depois recebiam doces. No dia de Jesus, ou seja 1 de janeiro, havia cavacas, tal como também nesse mês, a abertura da arca do servo de Deus era assinalada com um jantar de galinha. Pelo Entrudo consumiam carne de vaca e sonhos, antes do jejum e abstinência da Quaresma. Na Quinta-feira Santa não faltava o arroz-doce e em toda a Semana Santa tinham biscoitos, havendo cavacas do dia de S. João Batista, tal como carneiro e cerejas, aparecendo para outras datas festivas aquisições de especiarias, presunto, queijos e outros doces. As despesas gerais incluíam ainda nesses dias festivos o pagamento de músicos, tal como o do transporte de determinadas entidades que visitavam o Convento, vindas, geralmente, do Funchal, que incluíam, não só o barco como o de rede até S. Bernardino. Uma das contínuas despesas era ainda o tabaco, por certo para consumo do Convento, mas também para pagamento de “mimos” a visitantes, funcionários e simples trabalhadores. Contínua era também a despesa com os irmãos doentes, que obrigava à alteração da alimentação, que passava, essencialmente, a dieta de frango e canja, tal como exigia o pagamento dos medicamentos. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido pelo “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A execução do decreto na Madeira foi determinada pelo prefeito da província da Madeira, Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846), que a 27 de agosto desse ano enviava ao provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851) instruções precisas a esse respeito, embora somente cumpridas quase um ano depois. As primeiras diligências ocorreram assim a 7 de abril de 1835, na presença do provedor do concelho, do tabelião Domingos João de Gouveia e do fiscal da fazenda Manuel Joaquim Lopes. Elaborado o inventário do Convento, registaram-se como objetos sagrados, uma custódia, uma âmbula, quatro cálices e um relicário de prata dourada, assim como nas capelas se inventariaram quatro lampadários de prata, um turíbulo, um naveta e três castiçais. Os objetos sagrados foram entregues ao P.e Alexandrino Salgado, vigário capitular da Diocese, e os não sagrados recolheram à provedoria da Fazenda, tendo seguido, a 28 de maio de 1836, no brigue de guerra Tejo, para a Casa da Moeda de Lisboa, de que o prefeito da Madeira havia sido provedor. Todo o conjunto de paramentos e vestiária foi entregue à Diocese e inventariou-se ainda os adornos de prata das diversas imagens. Foram ainda inventariados os livros de coro: um saltério, um antifonário, um livro de missas e um livro de calendário, conjunto entregue à Diocese. No entanto, o conjunto dos 35 livros da biblioteca, os manuscritos de contas do Convento, e um maço de 78 papéis avulsos de escrituras, títulos, provisões e outros documentos, recolheram ao governo civil, sendo depois entregues na provedoria da fazenda. Inventariou-se também todo o mobiliário do Convento, como mesas, cadeiras e, inclusivamente, vidros, loiças, cobres e demais objetos de cozinha, posteriormente vendidos em hasta pública. No mesmo dia do inventário os funcionários da provedoria da fazenda tomaram posse oficial do conjunto dos imóveis, tal como dos bens do Convento, que depois de inventariados e avaliados, previa-se também colocar em hasta pública. Tal aconteceu pouco depois com as diversas propriedades, mas o mesmo não veio a acontecer de imediato com o imóvel. Uma parte do recheio do Convento, a cargo da colegiada da matriz de S. Sebastião de Câmara de Lobos e do vigário-geral da Diocese, foi sendo distribuído pelas matrizes limítrofes, como já havia acontecido com o património dos Jesuítas e aconteceu então com os conventos franciscanos. Na altura do inventário, tal como a paramentaria foi entregue à Diocese, alguns móveis, como os cinco confessionários, duas cadeiras e duas escadas para armações, foram de imediato transferidos para a matriz de Câmara de Lobos. Em abril de 1835, o vigário da freguesia do Estreito de Câmara de Lobos recebeu o sino maior do Convento e o menor foi entregue à matriz da Santíssima Trindade da Tabua. Refere o P.e Pita Ferreira que a imagem de N.ª Sr.ª da Conceição seguiu para a matriz, o sacrário foi oferecido à igreja da Piedade do Curral das Freiras, em 1850, e a imagem do Senhor Jesus foi oferecida à capela da Vera Cruz, na Quinta Grande, em 1866. Com a implantação do Governo liberal foi nomeado para o Funchal um novo vigário capitular e governador do bispado, o Cón. António Alfredo de Santa Catarina Braga (c. 1795-c.1845), que se havia refugiado em Cabo Verde e depois no Brasil, em razão das suas ideias liberais. Tendo já publicado no Porto um folheto contra o culto do “santo”, uma vez na Madeira, a 2 de junho de 1835, fez uma visita extraordinária à capela e lapa de Fr. Pedro da Guarda no extinto convento de Câmara de Lobos. Tendo examinado o monumento onde se guardavam os restos mortais do Franciscano, junto do altar-mor da igreja, mandou-os destruir, o mesmo mandando fazer à pintura existente na capela do “santo” e demais imagens que encontrou, tudo sendo queimado em novo “auto de fé” ao sabor do antigo regime. Entendia assim cumprir o seu “rigoroso dever, para desagravar a verdadeira e sã doutrina do cristianismo”, pois que nunca havia sido canonicamente autorizado o culto de Fr. Pedro da Guarda (A Flor do Oceano, 21 jun. 1835, 30). Se esfriaram e diminuíram momentaneamente estes preitos de devoção e piedade, mas não se extinguiram de todo, tendo-se transformado na sede da paróquia de S.ta Cecília, um número considerável de indivíduos procura a sepultura, onde foram depostos os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda. As imagens só se retiraram da igreja de S. Bernardino a 18 de junho de 1837, umas para a igreja paroquial e outras para a posse de algumas famílias que as conservaram, passando a incorporá-las na procissão anual das Cinzas. Entre estas, encontra-se o busto relicário de Fr. Pedro da Guarda, aparentemente datável dos meados ou finais do séc. XVII, que pertenceu à família de Jorge Sabino de Castro, que em outubro de 2002 a doou ao antigo Convento de S. Bernardino. O edifício do Convento foi vendido em hasta pública, a 12 de março de 1872, por 811$000 réis, a Manuel Joaquim Lopes, sendo registado como Convento Velho, e não integrando a capela dos Terceiros e a casa dos romeiros, então registadas como Convento Novo. A venda já se enquadrava num outro contexto político e religioso, pois desde 1857 já funcionava no antigo convento uma escola feminina e, pelo menos desde 1867, se pretendia reedificar o convento e retomar o processo de beatificação do santo, editando-se folhetos sobre a vida do mesmo e reativando-se a devoção através da Ordem Terceira e dos Salesianos, que ali instalaram uma escola. Fig. 1 – Luís Bernes, Desenho do Convento de São Bernardino em Câmara de Lobos, Luís Bernes. Fonte: Semana Ilustrada, 9 out. 1898, 217. O edifício do velho convento, entretanto, arruinava-se decididamente, como comprova o desenho editado pelo pintor Luís António Bernes (1864-1936) na Semana Ilustrada de 9 de outubro de 1898, assim como algumas fotografias da época, mas que ao mesmo tempo demonstram o interesse que passara a haver pelo imóvel. Efetivamente, a 6 de julho desse ano de 1898, os proprietários tinham vendido o convento velho por 60$000 réis ao prelado diocesano D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), mas que era mais uma doação do que uma venda, pois foi vendido muito abaixo do preço pelo qual o haviam adquirido. As ruinas do velho convento vieram a ser pontualmente recuperadas por iniciativa da M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). O projeto de recuperação do edifício teve início por volta de 1911, mas só foi concretizado em meados de 1916 para funcionamento do curso preparatório para o seminário diocesano. Foi neste edifício que a M.e Mary veio a falecer, em 18 de outubro desse ano, não tendo assistido à chegada dos alunos. O edifício voltaria a ter obras de reabilitação, por iniciativa do pároco de Câmara de Lobos, P.e João Joaquim de Carvalho (1865-1942), entre janeiro de 1924 e meados de 1928. A igreja sofreria uma total remodelação, eliminou-se grande parte das preexistências, como a antiga tribuna e as armas dos Vasconcelos nas paredes norte e sul da capela-mor, removeram-se igualmente as lápides sepulcrais e encomendou-se em Braga um retábulo-mor com amplo camarim, executado naquela cidade pela antiga oficina do entalhador Leandro de Sousa Braga (1837-1897), que ainda usava o seu nome. O retábulo custou 12$000 réis e chegou ao Funchal a 24 de setembro de 1926, procedendo à montagem um dos mestres entalhadores da mesma oficina. No ano seguinte ainda haveriam de chegar os altares colaterais, em abril de 1927. A igreja seria de novo benzida pelo bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957), a 24 de outubro de 1926, durante as festas de S. Francisco, nesse ano ligeiramente adaptadas para coincidirem com as celebrações do 7.º centenário da morte do patriarca dos Franciscanos. Até 1933, continuou ali a funcionar o curso preparatório do Seminário Diocesano, que nessa data foi integrado no Seminário da Encarnação. O conjunto voltaria a sofrer reabilitação em 1960, para a instalação da paróquia de S.ta Cecília, tendo decorrido, em 2014 e 2016, novas obras de reabilitação geral do conjunto, a cargo da mesma paróquia e com o apoio da Ordem de S. Francisco, segundo projeto de 2006 do ateliê dos arquitetos Victor Mestre e Sofia Aleixo.     Rui Carita (atualizado a 20.02.2017)

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cunha, bartolomeu vasconcelos da

 O governador e capitão-general Bartolomeu Vasconcelos da Cunha era filho de Francisco de Vasconcelos da Cunha, governador de Angola entre 1635 e 1639, e que tivera o título de conde do Porto Santo. Tomou posse do governo da Madeira a 16 de outubro de 1651 e, ao contrário dos seus antecessores, não teve especiais problemas com os provedores da Fazenda nem com os juízes de fora do Funchal, ou com os corregedores. Com o aumento de movimento no porto do Funchal, datam da sua vigência como governador as complexas obras de fortificação do Ilhéu Grande do porto do Funchal. Este governador veio para o Funchal acompanhado de uma senhora que não era a sua mulher, de quem teve vários filhos, mas tal não obstou que fosse depois governador interino de Angola e general na Índia, perdendo-se depois no mar, vindo para o Reino em 1663. Palavras-chave: arquitetura militar; cartografia; fortificação; Guerras do Brasil; Guerras da Aclamação; relações institucionais. Armas da família Vasconcelos. 1515. Arquivo Rui Carita O governador e capitão-general Bartolomeu Vasconcelos da Cunha (c. 1610-1663), a quem chamaram na Ilha “o Monstrinho” (NORONHA, 1996, 55), era filho de Francisco de Vasconcelos da Cunha, governador e capitão-general de Angola entre 1635 e 1639, e de sua segunda mulher, D. Isabel de Brito. A família ocupara desde os meados do século anterior importantes postos no quadro do Império, tendo o homónimo bisavô, em princípio, comandado a armada que em 1559 partiu de Lisboa e, no ano seguinte, com o governador Mem de Sá, desalojou os Franceses da baía de Guanabara do Rio de Janeiro, no Brasil. O jovem Bartolomeu Vasconcelos da Cunha participara nas campanhas da Catalunha e de Milão, onde foi capitão de cavalaria, oferecendo-se por requerimento de 26 de maio de 1636, quando o pai se encontrava como governador e capitão-general de Angola, a D. Filipe III (1605-1665), pedindo que lhe fizesse a mercê de uma companhia de Infantaria do Terço, com o título de capitão, oferecendo a sua fazenda ao serviço real, para participar na restauração da capitania de Pernambuco. Com a aclamação de D. João IV em Lisboa, achando-se o pai, Francisco de Vasconcelos da Cunha, na corte de Madrid – e despachado com o título de conde do Porto Santo, dada a sua ascendência nos Mendes de Vasconcelos, pontualmente governadores nesta Ilha e com muita fazenda nas Índias de Castela, que tinha comércio com Angola –, largou tudo e veio para Lisboa, sendo recompensado com a comenda de S. Cristóvão de Nogueira e de S.ta Maria da Torre da Horta, na Ordem de Cristo. O mesmo se passou com o filho, Bartolomeu Vasconcelos da Cunha, então nas campanhas do Brasil, e que regressou também ao continente, participando depois nas campanhas da Aclamação, em Olivença, onde atingiu o posto de mestre-de-campo. Foi-lhe passada a patente para o governo da Madeira em 23 de agosto de 1651, de que deu menagem em Lisboa ao primeiro de outubro do próprio ano, e a 16 tomou posse na Câmara do Funchal, na presença do anterior governador, Manuel Lobo da Silva (c. 1610-c. 1695). O novo governador não veio para o Funchal com a mulher, Juliana de Melo, sua prima, filha de José de Melo, irmão de sua mãe, mas com Antónia Micaela da Cunha. Esta senhora era filha de Tomás Bação e Catarina da Cunha, e sobrinha do inquisidor Francisco Cardoso de Torneo, bispo eleito de Portalegre, que estivera em visitação na Madeira em 1618, no tempo do governador Pedro da Silva (c. 1580-1639) (Inquisição). Essa situação deve ter levado o zeloso cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) a abster-se sobre esse assunto, limitando as suas informações a referir que no Funchal, em 1654, tinha nascido Troilo Vasconcelos da Cunha (1654-1729) (Cunha, Troilo Vasconcelos da), depois funcionário superior da Junta dos Três Estados e autor de várias composições poéticas. A atuação do novo governador Bartolomeu Vasconcelos da Cunha foi excecionalmente discreta, não havendo especiais problemas com os provedores da Fazenda nem com os juízes de fora do Funchal, ou com os corregedores, como ocorrera com os seus antecessores. Até então esses desentendimentos eram frequentes e continuaram, colocando de sobressalto as populações. O relacionamento estreito, no entanto, até porque não usual, também era de desconfiar. O mercador Diogo Fernandes Branco (filho) (c. 1636-1683), então a residir em Lisboa, foi prontamente informado das relações de Bartolomeu Vasconcelos com o ouvidor da capitania do Funchal António Ferreira Pinheiro, comunicando-lhe o gerente da sua casa comercial, em carta de 12 de dezembro de 1651, que o novo governador nada fazia nem despachava sem o conselho do ouvidor “e por ele se governa” (VIEIRA, 1996, 233), insinuando assim proceder por advertência do conde-capitão. A casa dos Condes da Calheta era então gerida pelo 4.º conde, João Gonçalves da Câmara V (1590-1656), que se casou duas vezes, dado a primeira mulher ter falecido de parto. Do segundo casamento teve uma filha, Mariana de Lencastre Vasconcelos e Câmara (c. 1610-1698), que se casou com o primo, João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658), 2.º conde de Castelo Melhor, sendo possível que nesta data já houvesse uma certa ligação destas duas casas senhoriais a tudo o que dissesse respeito ao Funchal, até pela instituição da Companhia Geral do Comércio do Brasil, tendo o 2.º conde, pelo menos em outubro de 1649, ancorado no Funchal, a caminho do Brasil. Com o aumento de movimento no porto do Funchal, principalmente devido às relações preferenciais com o Brasil, data do início da vigência do governador Bartolomeu Vasconcelos da Cunha o recomeço das complexas obras de fortificação do ilhéu Grande do porto do Funchal. O pedido foi enviado para Lisboa pelo provedor da Fazenda do Funchal, com data de 5 de outubro de 1651, citando que os moradores da Ilha tinham pedido ao governador, aquando da sua chegada, que o mesmo requeresse ao Rei que se fizesse uma fortaleza no ilhéu “que está junto neste porto, para segurança do mar e embarcações que nele estão cada hora” (ANTT, JPRFF, liv. 396, fl. 7v). O provedor especifica que lhe parecia “obra muito necessária, porque com o dito reduto feito no dito Ilhéu, nos não cometerão os piratas tantas vezes, como o fazem, acanhoando os que no Porto estão, de que recebiam perda & da terra os não podiam defender em nada, por estar distante a artilharia”. Acrescenta ainda que o gasto na obra seria mínimo para a fazenda, dado ser do “donativo, que os moradores desta Ilha em si puseram para reparo & guarda dela” (Id., Ibid.). O governador também escreveu para Lisboa no mês seguinte e a resposta veio pouco tempo depois, com data de 10 de fevereiro do ano seguinte e dirigida ao mesmo. Cita então que se tinha visto a carta de 6 de novembro, em que se transmitia o pedido dos “moradores da dita ilha, oficiais da Câmara, nobreza, militares e eclesiásticos” (ARM, Ibid.; RG, t. 6, fls. 116v-117) e se tinha visto também a planta enviada. Em face das informações enviadas pelo governador e pelo provedor, de que nos trabalhos se recorreria ao pessoal das companhias de ordenanças: “vos valeríeis da gente da terra, por companhias, ou esquadras” e “que para a alvenaria os ditos moradores se ajustariam convosco, de sorte que acudiriam à obra com as pessoas e fazendas”, o Rei autorizou o início da construção. Pedia, no entanto, para ser informado das necessidades de artilharia e alvitra a deslocação de pessoal da “outra fortaleza que hoje há”, ou seja, S. Lourenço, tal como se fazia na barra de Lisboa com as fortalezas de S. Julião da Barra e de S. Lourenço da Cabeça Seca, o Bugio, “para se escusarem outros soldados e despesas” (Id., Ibid.). Os primeiros trabalhos na área datavam da época do governador D. João de Menezes (c. 1600-1649), entre 1634 e 1636, mas a inscrição que Bartolomeu Vasconcelos da Cunha mandou colocar sobre a pequena porta superior refere que foi feita no tempo do seu governo e da primeira pedra. Claro que não foi e nem foi acabada, como prova o mapa do engenheiro Bartolomeu João (c. 1590-1658), num desenho muito rudimentar e que pouco tem que ver com a fortaleza que conhecemos hoje, totalmente reconstruída mais de 100 anos depois, pelo engenheiro Francisco de Alincourt (1733-1816).   Fortaleza do Ilhéu. 1654. Arquivo Rui Carita. Ao longo do seu governo, Bartolomeu Vasconcelos da Cunha consolidou a organização da companhia do presídio da fortaleza e foi preenchendo os lugares de chefia militar que foram vagando. Em 1653, ou pouco antes, tinha falecido Martim Mendes de Vasconcelos, que exercera o lugar de governador do Porto Santo ao longo de 33 anos, família na qual o governador colocava os seus ancestrais. Foi nomeado para o lugar o capitão Roque Ferreira de Vasconcelos, até então capitão entretenido, com alvará régio de 8 de julho de 1641. Fez juramento e menagem do cargo a 2 de maio de 1653, perante o governador da Madeira. O governador, no entanto, não concordara com a nomeação, informando o Rei de que, se a escolha dependesse da sua vontade, recairia sobre Jorge Moniz de Meneses. Reconhecia ao recém-nomeado “qualidades e partes” (ANTT, Conselho de Guerra, consultas, mç. 14, doc. 66), mas considerava um grave impedimento a sua avançada idade. Sepultuta do licenciado Bento de Matos Coutinho. Arquivo Rui Carita Em 1652 houve protesto dos artilheiros, que eram auditados, desde o alvará de 30 de maio de 1648, pelo juiz de fora do Funchal, função anteriormente exercida pelo auditor de guerra e pelo licenciado Bento de Matos Coutinho (c. 1595-1651), cargo então extinto pelo Conselho da Fazenda. A pedido dos mesmos artilheiros, D. João IV escreveu ao governador, a 22 de dezembro de 1652, para que o lugar voltasse a ser instalado. Contudo, 40 anos depois, ouvidos dois dos governadores, voltava-se a desobrigar Manuel Maciel de Afonseca do cargo de auditor-geral da gente de guerra do presídio e as funções regressavam ao juiz de fora do Funchal. O governo de Bartolomeu Vasconcelos da Cunha ficou marcado pela execução do mapa da Madeira de Bartolomeu João: “Descrição da Ilha da Madeira, cidade do Funchal, lugares, ribeiras, portos e enceadas, e mais secretos; feita por Bartolomeu João, engenheiro dela em tempo do governador, capitão desta ilha no ano de 1654”, que o investigador Paul Alexander Zino (1916-2004) localizou em Londres, em 1940, à venda na casa de Francis Edward Lda. O assunto foi comunicado ao Arquivo Histórico-Militar de Lisboa mas, não se conseguindo a verba necessária para a sua aquisição, a carta foi adquirida pelo investigador madeirense, regressando ao Funchal, de onde teria sido levada pelo coronel William Henry Clinton (1769-1846), na primeira ocupação britânica de 1801-1802 (Ocupações britânicas).   Carta de Bartolomeu João. 1654. Arquivo Rui Carita A referência que temos a uma carta deste género executada por Bartolomeu João é anterior a 1654 e mandou-a executar o governador Nuno Pereira Freire (c. 1590-c. 1650), em outubro de 1642, para ser enviada ao Rei (Cartografia). Por certo, o mestre das obras deve ter ficado com elementos para executar outra carta para o novo governador, a qual, muito provavelmente, teria sido novamente enviada ao Rei, mas ficando um exemplar em S. Lourenço, de que há referência ali se encontrar em 1799. Sendo a carta de Bartolomeu João proveniente da biblioteca da abadia de Welbeck, dos duques de Newcastle, a cuja família pertencia o coronel Clinton, este teria levado a carta na sua bagagem de regresso a Londres, oferecendo-a depois a seu primo duque. Esta carta é essencial para o estudo da arquitetura militar da Madeira e não só, sendo um dos mais importantes e completos documentos iconográficos, somente com paralelo, mas bastante tempo depois, na grande vista do Funchal de Thomas Hearne (1744-1817), datada de 1772. A 6 de dezembro de 1653, faleceu em Lisboa o príncipe herdeiro, D. Teodósio (1634-1653), somente com 19 anos, mas que se havia já imposto como herdeiro do trono, recebendo o título de 9.º duque de Bragança e depois o de príncipe do Brasil, pelo que parte da correspondência para o Funchal sobre o donativo para as levas para ali recrutadas já era assinada pelo príncipe. O seu falecimento abriu uma crise política, com consequências futuras ainda mais graves, pois se a sua educação tinha sido preparada cuidadosamente, tendo sido seu mestre o P.e António Vieira (1608-1697), tinha-se descuidado francamente a educação do segundo filho, o infante D. Afonso (1643-1683). Para o governador da Madeira também teria sido uma grave contrariedade, pois era moço-fidalgo do paço o seu filho mais velho, Francisco de Vasconcelos da Cunha (c. 1630-1662), que com o falecimento do príncipe, “desenganado das bem fundadas esperanças que tinha deste grande Príncipe, ou por superior vocação, deixou os morgados e as comendas de seu pai e avô, em que havia de suceder por mercê já feita e se recolheu à Religião da Companhia de Jesus” (COSTA, III, 1712, Ibid., 555), onde viria a falecer. Com a morte do infante D. Teodósio foram marcadas as cortes para juramento do novo herdeiro, aproveitando-se o ensejo para a reunião do capítulo geral da Ordem de Cristo, em Tomar e em setembro desse ano de 1653. No entanto, até pela doença de D. João IV, e à semelhança do que acontecera antes, as cortes acabam por se reunir em Lisboa, com o clero em S. Domingos, a nobreza em S. Roque (junto dos Jesuítas) e o terceiro estado em S. Francisco (como era lógico, junto dos franciscanos). Foi nestas cortes que apareceram os primeiros pedidos dos Açores e da Madeira para se fazerem representar em cortes, na primeira fila, o que não deixa de ser um pedido estranho. Aliás, os procuradores da cidade de Angra às cortes de 1653 chegam a pedir ao Rei que, para o arquipélago dos Açores, nunca houvesse vice-Rei nem governador nas várias ilhas. A questão tinha por base pedidos anteriores, logo a seguir à aclamação, mas que só foram a despacho nove anos depois, uma vez analisada pelo desembargador Tomé Pinheiro da Veiga (1570-1656), “procurador da minha Coroa” (ABM, Ibid., fl. 118v), tendo a resposta afirmativa chegado com data de 6 de julho de 1654. As câmaras do Funchal e das vilas, todas em situação difícil, não encontraram, no entanto, uma maneira de conseguir receita para manter um procurador às cortes, nem atinaram com pessoa que pudesse, à sua própria custa, desempenhar o cargo honroso de figurar na primeira bancada. Nos inícios de 1655 foi apresentado novo governador para a Madeira, então Pedro da Silva da Cunha (c. 1610-c. 1670), que tomou posse a 22 de abril desse ano, regressando Bartolomeu Vasconcelos da Cunha a Lisboa. No entanto, o ex-governador foi preso, “tanto que chegou”, como escreveu António Carvalho da Costa (1650-1715), “até aparecer a dita D. Antónia no convento de Santana, onde faleceu” (COSTA, Ibid., 556). A situação, no entanto, não afetou a carreira política e militar de Bartolomeu Vasconcelos da Cunha, que passou no ano seguinte à Índia, como capitão-mor das naus, mas que, passando por Angola, entre os meados de 1653 e outubro de 1654, foi aí governador interino, sendo depois general de Mormugão, Terras de Salsete, Bardes e fortaleza da Ganda, na barra de Goa, e depois de ocupar estes postos se perdeu no mar, vindo para o reino no ano de 1663. Da sua ligação com Antónia Micaela da Cunha teve Bartolomeu Vasconcelos da Cunha: Maria de Vasconcelos, que morreu religiosa no Convento de Santana em Lisboa, para onde entrara com a mãe; Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, religioso da Santíssima Trindade, em Lisboa, aonde se recolhera depois de ocupar vários postos de guerra, “deixando as esperanças de outros maiores” (Id., Ibid., 556), para que estava apontado, e que ainda era vivo em 1712; o poeta Troilo de Vasconcelos da Cunha, nascido no Funchal, como acima escrevemos, que se casou com Mónica da Silva Coutinho, cujo pai era o alemão João Herve, e a mãe Mariana da Silva Coutinho, mas cuja descendência entrou toda para ordens religiosas; e Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, por certo também nascido no Funchal, que em 1712 era “moço-fidalgo da Casa de Sua Majestade, como o foram seus pais e avós, aos quais imitando, serve a el-Rei na guerra” (Id., Ibid.). A mulher do antigo governador da Madeira, Juliana de Melo, deve ter falecido quando o marido estava no Funchal, pois este Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha teve alvará de moço-fidalgo com data de 15 de setembro de 1657, sendo então dado como “filho natural” (TORRES, 1840, 303). O pai, tal como o filho Troilo Vasconcelos da Cunha, cultivou largamente a heráldica e a genealogia, havendo na biblioteca do último uma coleção interessante de trabalhos sobre os Vasconcelos, onde se encontra, inclusive, um que foi impresso em Madrid, em 1646, a “favor de Bartolomeu de Vasconcelos” (Id., Ibid., 4), o que não deixa de ser interessante, pois tanto Francisco como o filho, depois governador da Madeira, tinham optado, logo em 1640 ou em 1641, pelo apoio à realeza de D. João IV.   Rui Carita (atualizado a 03.03.2017)

História Política e Institucional Personalidades

crise sucessória de 1580

Tal como aconteceu no continente português, também a Madeira se teria dividido entre os partidos apoiantes das aspirações de D. António, prior do Crato (1531-1595) e de Filipe II de Castela (1527-1598). Estiveram ao lado de D. António as famílias dos capitães donatários do Funchal, Machico e Porto Santo, embora nem todos se tenham empenhado muito, com exceção de alguns membros da família Câmara – mas esses só se empenharam no continente – e o donatário de Machico, D. Francisco de Portugal (1550-1582), 3.º conde de Vimioso, que veio a morrer na batalha naval de Vila Franca do Campo, ao largo dos Açores. Na ilha da Madeira citava-se o deão da Sé do Funchal, Francisco Henriques (c. 1535-1600), sobrinho do padre Leão Henriques (1515-1589), confessor do cardeal D. Henrique (1512-1580), o Dr. Gaspar Gambôa (?-1582), juiz de fora de Machico, que fugiu para os Açores, onde veio depois a ser justiçado e, provavelmente, outros elementos do clero e da burguesia local, mas sem especial importância. Ao lado do pretendente castelhano vamos encontrar as câmaras e os funcionários régios, que, sem terem tomado especificamente qualquer partido, acabaram assim por apoiar e aceitar sem preconceitos a realeza de D. Filipe I, o mesmo se tendo passado com a maior parte da nobreza e da burguesia. Entre os fidalgos madeirenses será de mencionar João Bettencourt de Vasconcelos, que passara a viver na ilha Terceira, sendo depois capitão-mor da cidade de Angra, onde foi justiçado como partidário de Filipe II, por determinação de Manuel da Silva Coutinho (1541-1583), conde de Torres Vedras e lugar-tenente de D. António.   Palavras-chave: condes de Vimioso; corregedores; donatários; encarregado de negócios da guerra; nacionalismo; representação em Cortes.     Com o falecimento de D. Sebastião (1554-1578) em Alcácer Quibir, tinha sido aclamado Rei o seu tio-avô, o cardeal D. Henrique, que fora regente a partir de 1562 e assegurara entretanto toda a gestão corrente do reino, sendo raríssimos os documentos efetivamente assinados pelo seu sobrinho-neto. Já muito debilitado fisicamente, D. Henrique ainda considerou a possibilidade de pedir dispensa dos votos para se casar e assegurar descendência, mas tal não aconteceu. Entre os possíveis candidatos à sucessão encontrava-se outro neto de D. Manuel (1469-1521), D. António, prior do Crato, filho do infante D. Luís (1506-1555) e de Violante Gomes, a “Pelicana”, com a qual o infante se poderá ter casado em segredo. O cardeal já havia mandado levantar processo, tendo deposto a favor de um possível casamento, entre outras pessoas, Joana de Eça (c. 1480-c. 1573), mulher de Pedro Gonçalves da Câmara (c. 1480 – c. 1550), dama da Rainha D. Leonor (1458-1526) e camareira-mor da Rainha D. Catarina (1507-1578), tal como depôs o sobrinho, Martim Gonçalves da Câmara (c. 1539-1613), que fora escrivão de puridade de D. Sebastião. O cardeal, no entanto, não aceitou a hipótese do casamento do infante e da “Pelicana”, oficializando a situação de D. António como bastardo, e invalidando assim qualquer possibilidade de ele subir ao trono. Os restantes netos do Rei D. Manuel, como Rainúncio de Farnésio (1569-1622), D. Catarina de Bragança (1540-1614), Manuel Felisberto de Saboia (1528-1580) ou mesmo D. João de Bragança (1543-1583), marido e primo de D. Catarina, estavam todos mais ou menos dependentes hierarquicamente de Filipe II, filho da Imperatriz D. Isabel de Portugal (1503-1539) e de Carlos V (1500-1558), dificilmente podendo opor-se às pretensões, aliás legítimas à época, do Rei de Castela, Aragão, Catalunha, Navarra, Franco-Condado, Países Baixos, Milão, Nápoles, etc. A ideia desenvolvida nos séculos seguintes e, mais especialmente, nos meados do séc. XX, de um Rei português, D. António, e de um Rei espanhol, Filipe II, não tem sentido nos finais do séc. XVI: primeiro, porque os reis eram todos primos, e, depois, porque a ideia de Espanha como um reino homogéneo é muito posterior. A defesa de os apoiantes de D. António serem nacionalistas e da queda da monarquia nacional em 1580 não é outra coisa senão uma tentativa de politização da história, pois tais conceitos não existiam à época. O cardeal-Rei ainda mandou reunir cortes em Almeirim para se decidir a sucessão (a primeira reunião foi no convento de S. Francisco daquela vila, a 11 de janeiro de 1580), mas o cardeal faleceu a 31 de janeiro e não chegou a nomear sucessor, apesar de deixar uma junta de governadores, praticamente todos apoiantes da realeza de Filipe II. A junta era constituída pelo arcebispo de Lisboa, D. Jorge de Almeida (1531-1585), por D. João Telo de Meneses, D. Francisco de Sá de Meneses (c. 1510-c. 1583), D. Diogo Lopes de Sousa e D. João de Mascarenhas. Deste grupo, só D. João Telo era contrário à sucessão de Filipe II de Castela. O cardeal já havia manifestado, entretanto, a sua intenção de nomear Filipe II como sucessor ao trono, tendo havido uma nítida continuidade governativa. Um dos exemplos de continuidade a apontar é o de Jácome Ribeiro de Leiria, ouvidor do Funchal (Ouvidorias), colocado na ilha da Madeira pelo cardeal D. Henrique, provavelmente na sequência da morte no Funchal do 4.º capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1512-1580), 1.º conde da Calheta (Calheta, condes da), falecido a 4 de março de 1580. O ouvidor recebeu entretanto no Funchal o governador da capitania, nomeado pelo cardeal-Rei e pelo novo conde da Calheta, João Gonçalves da Câmara (1541-1580), que optou por ficar na corte. A nomeação recaiu no irmão, Rui Dias da Câmara (c. 1542-c. 1600), conforme já fora determinado por D. Sebastião, em 1571. O novo governador tinha ficado prisioneiro em Alcácer Quibir, mas foi dos primeiros prisioneiros a serem resgatados, tomando posse da capitania em abril de 1580. Com a morte inopinada do jovem 2.º conde da Calheta, a 4 de junho de 1580, presumivelmente vítima do surto de peste que então grassou no país, o irmão regressou ao continente, provavelmente entre setembro e outubro de 1580. No Funchal ficou o ouvidor, que logo após o falecimento do cardeal-Rei, solicitou aos governadores a revalidação da mercê. O ouvidor do Funchal teve confirmação da chancelaria portuguesa de Filipe II a 10 de setembro de 1580, ou seja três dias antes da aclamação do Rei pela Câmara de Lisboa. A provisão registada na Câmara do Funchal foi feita em nome de “Dom Filipe, por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves” e é assinada pelos doutores Pero Barbosa e Jerónimo Pereira de Sá "do seu concelho e seus desembargadores do paço" (ABM, CMF, RG, t. 3, fl. 178v.). Pero Barbosa era então um dos mais influentes desembargadores do paço e já em 1579 emitira um longo parecer sobre a sucessão do cardeal, indicando decididamente o nome de Filipe II de Castela. D. António fora aclamado em Santarém, a 19 de junho de 1580, e depois em Lisboa, mas existem dúvidas sobre se alguma vez assumiu efetivamente o Governo. Em breve seguiram cartas para vários pontos do país e para os arquipélagos atlânticos. Para as ilhas, foi seu portador António da Costa, cavaleiro fidalgo da casa real, que partiu de Lisboa em 9 de julho e estava na Madeira nos finais desse mês. Tal como acontecera com as câmaras açorianas, este delegado deve ter entregado nas da ilha da Madeira as cartas de D. António a anunciar a sua aclamação, datadas do mesmo dia 9 de julho de 1580, acompanhadas de certificados da Câmara de Lisboa a confirmarem a sua aclamação na capital. Não consta que o mandatário António da Costa tenha sido hostilizado na Madeira, mas nada ficou na Ilha a atestar a sua passagem. No entanto, em breve chegava a Lisboa a notícia da sua passagem pela Madeira e da possibilidade de ter ali sido aclamado D. António, o que parece não ter acontecido. Nenhum dos capitães-donatários se encontrava na sede da sua capitania, pelo que nem as câmaras, nem os seus ouvidores quiseram tomar qualquer responsabilidade, aguardando o desenrolar da situação no continente, como se passou com o então ouvidor do Funchal. Com a entrada em Lisboa de D. Fernando Alvarez de Toledo (1507-1582), 3.º duque de Alba, e aclamado Filipe II na Câmara de Lisboa, logo se constituiu um Governo chefiado pelo duque e apoiado num conselho de assessores. Era uma sequência do anterior sistema dos governadores, sendo o conselho constituído por Pedro de Alcáçova Carneiro (c. 1510-c. 1584); pelo bispo de Leiria, D. Pedro de Castilho (c. 1530-1615), que também tinha sido bispo de Angra e que depois viria a ser vice-Rei de Portugal; pelo jurista Paulo Afonso; por D. João da Silva (1528-1601), conde de Portalegre e neto de Diogo de Azambuja (1518) e por Duarte de Castelo Branco, meirinho-mor. Como já citámos, constituiu-se assim uma certa continuidade governativa, que tentou que nada se alterasse significativamente até à tomada de posse oficial de Filipe II. Na Ilha, não podemos deixar de salientar o papel desempenhado pelo então bispo do Funchal, D. Jerónimo Barreto (1543-1589), o todo cauteloso amigo dos Jesuítas, que mediante a promulgação das Constituições Sinodais da Diocese, a 18 de outubro de 1578 – e embora aquelas só tenham sido editadas em 1585 –, tinha limitado igualmente a margem de manobra dos elementos do clero. Assim, não seriam muitas as tomadas de posição individuais, levando todo o bispado a acatar as determinações do cardeal-Rei e depois a realeza de Filipe II, como registaria o conde de Lançarote, D. Agustin de Herrera y Rojas (1537-1598), em 1583. Claro que terão existido posições diferentes, como, em princípio, as do deão da Sé, como viriam a referir as autoridades castelhanas, mas que não terão passado de posições individuais e pessoais, se é que existiram, não chegando verdadeiramente ao domínio público. Não encontramos na Madeira, como adeptos do prior do Crato, qualquer quadro diretivo, entre morgados ou elementos camarários, e.g., salvo o deão da Sé, e mesmo isso não passa de rumor, pois não existe nenhuma comprovação. Desta forma, e depois de consolidada a posição de Filipe II em Lisboa, pronunciaram-se as Câmaras do Porto Santo, de Machico, de Santa Cruz e do Funchal. Ao contrário dos Açores, a Madeira esperou sempre uma definição concreta do poder central para depois tomar as suas atitudes, nunca se empenhando decididamente em nenhuma das lutas partidárias que dividiram o país. Esta falta de empenho permitia à Ilha, caso se alterasse o quadro de forças geral, estar sempre do lado vitorioso. Daí a opinião, por vezes expressa pelos partidários de Filipe II, de que a Ilha era toda partidária de D. António, como expressou depois, a D. Francés de Alava y Belmonte (c. 1518-1586) o capitão Gaspar Luís de Melo; e a apreensão do duque de Alba, de que ali tivesse sido aclamado D. António, em julho de 1580, o que não resiste à análise, nem oferece qualquer recorte. Mais tarde, o conde de Lançarote citaria como afetos a D. António o comissário do convento de S. Francisco, Fr. Manuel de Boaventura, e Fr. Tomás de Tentúgal, confessor das freiras de Santa Clara. No Caniço, era apontado Diogo Álvares Arruda e, em Santa Cruz, Pedro Moniz e Freitas Grilo. Publicamente e a assumir a sua opção só parece ter havido o Franciscano Fr. João do Espírito Santo e o comerciante francês Pedro de La Randueta, que pagaram com a vida a opção que fizeram, mas que só aparecem na Madeira depois da instalação de D. António, prior do Crato, nos Açores. Com a ascensão ao trono de Filipe II, a Madeira enviou logo dois procuradores para defenderem os seus interesses, para o que foram escolhidos João Rodrigues Mondragão e Martim Mendes de Vasconcelos, vereadores das Câmaras do Funchal e de Machico, e que devem ter estado presentes nas cortes de Tomar. Com a ida do Rei para Lisboa, surgem cartas no Funchal sobre assuntos vários, muito provavelmente acionados pelos procuradores da Madeira. A primeira carta, datada de 2 de outubro de 1581 (Sintra), refere um galeão de prata da Nova Espanha, o célebre La Gallega, dos maiores navios do seu tempo, que tinha arribado à Ilha e cuja carga era necessário fazer chegar a Sevilha. Nesta sequência, a 5 de dezembro manda-se pagar aos procuradores que se tinham apresentado ao Rei 100$000 réis pelos dinheiros da renda da imposição aplicada às obras da fortificação e autoriza-se que a descarga de pão no Funchal, assim como a sua arrecadação, sejam pagas também pelos dinheiros da fortificação, dado o bom andamento das obras: “sobre estando as obras da fortificação da dita cidade, como dizem” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, mç. 2, doc. 137). Parece não haver dúvidas de que houve, pois, uma tentativa camarária de assalto aos dinheiros da fortificação (Defesa). De imediato, e ao mesmo tempo que despachou favoravelmente estes assuntos, o Rei iniciou contactos para a nomeação de um governador para a Madeira, mas não sem ouvir demoradamente várias opiniões a esse respeito, inclusivamente de madeirenses. Com a instalação de forças afetas a D. António nos Açores, despachou para a Ilha um corregedor da sua confiança acompanhado de forças militares, João Leitão (c. 1540 – c. 1602), ao qual fora atribuída a tarefa de determinar a prisão de D. António em Portugal, com indicação de se encontrar encarregado dos “negócios da guerra”. A situação evoluiu nos meses seguintes com o apoio de forças francesas à causa do prior do Crato e, inclusivamente, pelo aparecimento de adeptos ativos da causa de D. António na Madeira, pelo que, perante o oferecimento do conde de Lançarote, D. Agustín de Herrera y Rojas (1537-1598), que se encontrava nas Canárias, Filipe II mandou-o avançar de imediato para o Funchal com forças ali recrutadas. Os elementos em causa, um frade franciscano e um comerciante francês, viriam a ser executados, como já se referiu, mas o recorte local da causa do prior do Crato teria sido quase perfeitamente nulo. Resta acrescentar que era partidário de D. António, prior do Crato, o assumido 3.º conde de Vimioso e capitão de Machico, D. Francisco de Portugal (1550-1582), que acompanhara seu pai, D. Afonso de Portugal (1519-1579), 2.º conde, e seu irmão, D. Luís de Portugal (1555-c. 1620), à fatídica batalha de Alcácer Quibir. Resgatados os jovens D. Francisco e D. Luís de Portugal por interferência do duque de Medina Sidónia, D. Alonso Pérez de Gusmán (1550-1615), e recolhidos em Sanlucar de Barrameda, na província de Cádis, D. Francisco assumiu o título de conde, e em breve apoiava as pretensões de D. António ao trono de Portugal e visava, inclusivamente, o lugar de seu condestável. Com a instalação nos Açores e a passagem por Porto Santo da armada francesa de apoio ao prior do Crato, nela embarcou o juiz de fora de Machico, Dr. Gaspar Gambôa, para aquele arquipélago. Os Vimioso, no entanto, nunca se tinham sequer deslocado à sua capitania e, entretanto, a câmara já tinha assumido o seu apoio à realeza de Filipe II de Castela, tendo enviado ao continente o vereador Martim Mendes de Vasconcelos. Como pormenor, alguns anos depois, o herdeiro da casa, D. Luís de Portugal, reivindicaria os direitos ao título e à capitania, ainda em tempo de Filipe II, capitania entregue, entretanto, a Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), descendente de Zarco. Falecido sem descendência Tristão Vaz da Veiga, D. Luís de Portugal conseguiu reaver a capitania de Machico.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

História Política e Institucional

corpo santo

Ordenação de São Pedro Gonçalves Telmo. Capela do Corpo Santo do Funchal. Foto BF Corpo Santo é a denominação popular de S. Pedro Gonçalves Telmo (1190-1246), religioso leonês, em princípio, que teria nascido em Astorga ou Placência, tendo entrado para a ordem dos dominicanos e sido prior de S. Domingos de Guimarães. O seu culto aparece associado ao fogo-de-santelmo, eflúvio luminoso que aparece nos mastros dos navios em determinadas condições atmosféricas, bem como noutros lugares, e que deve o seu nome ao congénere padroeiro dos navegantes mediterrâneos, S. Telmo. O seu culto espalhou-se pelas comunidades marítimas do centro e norte de Portugal e da Galiza, sendo o padroeiro, por exemplo, da Diocese de Tui-Vigo. A capela do Corpo Santo do Funchal deve ser uma das capelas mais antigas da cidade, devendo datar dos finais do séc. XV, sendo já referência toponímica na vereação de 21 de fevereiro de 1497 e, em 9 de agosto de 1505, como limite oriental da vila. Entre os finais do séc. XV e os inícios do séc. XVI, os pescadores e marítimos madeirenses organizaram-se em confrarias religiosas sob a devoção do Corpo Santo, devendo a do Funchal ser a mais antiga da Ilha, pelo menos disso se vangloriando os seus membros, o que parece confirmar-se pela sua capela, onde o portal deverá ser pré-manuelino. Pouco depois, provavelmente, ter-se-iam organizado os marítimos da Calheta, que tiveram capela junto da praia, da qual sobreviveu a imagem do orago, dos meados do séc. XVI, e um livro de receita e despesa para os anos de 1738 a 1789, tal como os marítimos de Câmara de Lobos, embora se tenham organizado canonicamente apenas no século seguinte, e dos quais se conhece mais documentação. Os marítimos de Santa Cruz e a sua Confraria ainda foram mais tardios em se organizar, nunca tendo tido instalações próprias, funcionando no altar de N.ª Sr.ª da Conceição da igreja matriz do Salvador, onde ficou uma pequena cartela pintada a óleo com uma fragata, provavelmente dos meados a finais do séc. XVIII. Os marítimos de Machico parecem ter-se integrado nas confrarias ligadas à Misericórdia daquela vila, na capela dos Milagres, e os do Porto Santo ter-se-ão organizado na Confraria de S. Pedro, de que não conhecemos documentação, embora tenham subsistido festejos em honra desse orago. O mesmo parece ter-se processado com os marítimos da Ribeira Brava, organizados na Confraria de S. Pedro e fazendo-se representar nas procissões com a barquinha, miniatura de um barco de pesca, aspeto referido nos compromissos das confrarias do Corpo Santo, nomeadamente na do Funchal, de 1745: “para pompa e crédito da confraria”, quando sair “a bandeira e a barquinha serão acompanhadas por aqueles que se costumam reservar e destinar para esse efeito” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 2, § 2.º). A Confraria e a capela do Corpo Santo do Funchal deve ter gozado de um certo desafogo económico, fruto dos tradicionais “quartões”, ou seja, a quarta parte de quinhão do pescado, entregue pelos seus membros para as campanhas de obras a que a capela foi sendo sujeita. O edifício que sobreviveu parece confirmá-lo, com um portal de arquivolta apontada, muito simples e sem marcação dos capitéis, por certo do séc. XV. O edifício teve uma reconstrução manuelina, com campanário de desenho tardo-gótico sobre a empena da fachada e gárgulas em forma de canhão na abside (Arquitetura religiosa e Gárgulas). Interiormente, ostenta a tábua pintada do orago da primeira metade do séc. XVI, inclusivamente com o santo a abençoar uma nau manuelina em dificuldades, que será a mais antiga representação de uma embarcação na Madeira. Teto da Capela do Corpo Santo do Funchal. Foto BF Da mesma campanha de obras poderão ser as restantes tábuas do retábulo-mor com uma Nossa Senhora da Conceição, um S.to António pregando aos peixes, um S. Lourenço, provavelmente em memória da barca do primeiro reconhecimento feito à Madeira por Zarco e Tristão, e ainda outra tábua dificilmente identificável. O conjunto assenta em predelas igualmente pintadas sobre madeira, com S. Pedro e S. Paulo, havendo uma imagem de Deus Pai a encimar o retábulo, todos estes trabalhos parecendo de uma oficina portuguesa da primeira metade do séc. XVI, conjunto entretanto refeito ao gosto maneirista nos inícios ou meados do séc. XVII. Mais tardia deve ser a pintura da porta do sacrário, com um Senhor dos Passos. A capela do Corpo Santo teve obras em 1559, data que apareceu “na verga de uma fresta que se tapou na parte do norte”, como se registou no frontispício do “livro do compromisso e termos de entrada de irmãos”, tresladado de 1738 (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 1). Entre 1567 e 1570, a capela já apresentava a configuração geral que tem persistido, com um adro mais amplo, à frente e para o lado do mar, como aparece na planta do Funchal de Mateus Fernandes (III) (c.1520-1597), arquivada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNB, Cart. 1090203). A capela do Corpo Santo voltaria a ter obras nos finais do séc. XVI, encontrando-se uma das janelas da capela com a data de 1594. As duas décadas finais desse século teriam sido excecionais para os marítimos do Corpo Santo do Funchal, pois a Confraria possuía um fantástico cálice de prata dourada, com campainhas, datado de 1580, depois exposto no Museu de Arte Sacra e, entre os finais desse século e os inícios do seguinte, mandou executar nas oficinas madeirenses três lampadários de varetas (Ourivesaria e prataria). Por 1590, encomendou a um dos melhores pintores em atividade em Portugal, Fernão Gomes (1548-1612), um novo retábulo de S. Lourenço, que curiosamente já se encontrava pintado no retábulo-mor, o retábulo de Nossa Senhora da Estrela, talvez de outra oficina continental, mas dentro dessa época. Ora se Nossa Senhora da Estrela se encontra dentro das normais devoções dos marítimos e é igualmente invocada para casos de doença, funcionando a confraria com especial ênfase no apoio aos doentes, o recrudescimento da devoção de S. Lourenço encontra-se nessa época, por certo, ligado ao facto de ter assumido o trono de Portugal o Rei Filipe II de Castela (1527-1598). A tábua com um S. Lourenço no retábulo-mor parece indicar, assim, já haver a sua devoção entre os elementos da confraria antes de Filipe II assumir o trono de Portugal, devoção que se manteve no séc. XVIII, tendo o altar missa todas as sextas-feiras e, a 10 de agosto, dia do santo, missa cantada e sermão. Esta evocação, inclusivamente em altar próprio, parece poder confirmar a informação, depois divulgada pelos cronistas do final do séc. XVI, de ter tido a barca em que João Gonçalves Zarco e Tristão fizeram a primeira viagem à Madeira esse nome, que ficou depois como topónimo da primeira ponta que tiveram de dobrar para aportarem à Ilha. Parece também poder-se associar o protagonismo da confraria à estadia no Funchal do Cap. Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) como governador (Encarregado de negócios da guerra), que a partir de 1585 prolonga a muralha do Funchal para oriente (Muralhas da cidade). Por 1600, a muralha atingia as arribas por baixo da então igreja de Santiago Menor, dando origem à necessidade de construção de uma nova fortaleza: Santiago (Fortaleza de Santiago), tendo havido um forte investimento em obras em toda esta área urbana. As obras na capela do Corpo Santo também não pararam, tendo sido a capela-mor totalmente revestida com pinturas sobre a vida do santo protetor, algumas datadas de 1615 e 1616, com um monograma, provavelmente “LSA”, que não levou à identificação do autor. Uma das representações de S. Pedro Gonçalves Telmo, no teto, é acompanhada de uma detalhada representação de uma importante nau, com as armas de Portugal pintadas no castelo da popa e, no mastro grande, a bandeira pessoal dos Reis de Castela. As confrarias do Corpo Santo eram essencialmente constituídas por marítimos. O compromisso da Confraria de Câmara de Lobos, de 1691, que deve transcrever o do Funchal, também reformulado nesse ano, mas que não conhecemos, refere taxativamente que a entrada estava reservada aos homens do mar e pescadores. Pelo compromisso do Corpo Santo de Câmara de Lobos pode concluir-se que, por esse tempo, os pescadores e mareantes daquela localidade procuraram legalizar a sua confraria nos moldes da Confraria do Funchal, cujo compromisso tinha então sido confirmado pelo bispo da Diocese, D. Fr. José de Santa Maria (c. 1640-1708), que tomara posse em março de 1691. Desconhece-se o fundador da capela da Conceição de Câmara de Lobos, sede da Confraria local do Corpo Santo, bem como a data da primitiva construção desta capela, porém sabe-se em 1569 decorriam ali obras. Rui Mendes de Vasconcelos, um dos descendentes de Zarco (c. 1390-1471), deixou, por testamento de 16 de abril de 1569, 3$000 réis para ajuda do lajeamento da “casa de Nossa Senhora da Conceição” (ABM, Misericórdia do Funchal, liv. 684, fl. 52v.). Gonçalo Pires, em 8 de dezembro desse ano, legou, também por cláusula testamentária, 2$400 réis para aquelas obras. Duas sepulturas colocadas a descoberto em 1986, a primeira de António Garcia, tabelião público em Câmara de Lobos, e sua mulher Brásia Soares, datada de 1587, e a segunda de Joana de Atouguia (c. 1550-1631), mulher de Mendo Rodrigues de Vasconcelos (c. 1550-1609), indicam os Atouguia, pelo menos, como financiadores desta capela. Assim, Mendo Rodrigues de Vasconcelos, como neto de um primeiro Rui Mendes de Vasconcelos (c. 1460-c. 1520) e de Isabel Correia, que tinham instituído a capela-mor do convento de S. Bernardino, optara por ali ser sepultado com os pais e avós. Pela altura da oficialização ou reforma do compromisso de 1691, os homens do mar de Câmara de Lobos vão chamar a si a capela de N.ª Sr.ª da Conceição, que se encontrava em estado arruinado e onde já tinham a imagem do seu orago. Em 1702, o bispo do Funchal autorizou a confraria a reconstruir a capela, com a condição de manutenção da imagem de Nª Sª da Conceição no altar-mor e de se reservarem 12 sepulturas para se enterrarem os confrades dos escravos da Confraria da Conceição, mas desta Confraria não restou qualquer documentação. A 9 de maio de 1710, um mandado do Conselho da Fazenda autorizava a arrematação do muro da capela de Câmara de Lobos a João Bettencourt Perestrelo, por 1870$000 réis, sinal provável de que as obras já teriam terminado. O retábulo da capela, datado de 1723, foi executado pelo mestre entalhador açoriano Manuel da Câmara e seu filho e homónimo. No compromisso dos irmãos do lugar de Câmara de Lobos de 1691, a entrada na Irmandade ainda estava exclusivamente reservada aos homens do mar e pescadores. Contudo, no Funchal, o novo compromisso de 1745 admitia já irmãos não vinculados à atividade marítima, desde que pagassem de esmola de entrada $600 réis e um tostão de esmola anual, cobrada no dia da festa do patrono ou quando fosse pedida de porta em porta. Este alargamento a outras profissões, não previsto no compromisso antigo, fizera-se “por serem poucos os homens do mar, como para lhes suavizar as obrigações e poupar suas esmolas para a confraria” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 1.º, § 2.º). Pelos termos de entrada na Confraria do Funchal, concluímos que dos 335 irmãos, com profissão identificável, admitidos entre 1738 e 1772, apenas 49 não eram marítimos: 12 eram sacerdotes católicos, 11 alfaiates, 6 mercadores, 5 sapateiros, 4 barbeiros-sangradores, 2 pedreiros, 2 tanoeiros, 2 ferreiros e mais 4 homens, um de cada uma das seguintes profissões: vendeiro, oleiro, prateiro e carpinteiro, havendo ainda um estudante. Quanto aos clérigos, eram na sua maioria da colegiada de Santa Maria Maior, então Santa Maria do Calhau, cujo vigário presidia à mesa da Confraria do Corpo Santo. Os padres eleitos, capelães “de boa vida e costumes” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 4.º, § 1.º), entravam habitualmente para a irmandade. Assim, para a Confraria do Corpo Santo do Funchal, ao longo do séc. XVIII, tinham passado a entrar elementos não marítimos, mas com interesses relacionados com o mar ou de relevo para os confrades. Francisco Mendes, v.g., era oficial de tanoeiro, mas proprietário de uma embarcação de pesca que varava nas Fontes, e, em 20 de outubro de 1766, entrou para a Confraria sem dar esmola de entrada, por contribuir com o quartão do seu barco. A Confraria tinha conveniências na admissão de irmãos de profissões da terra, numa troca de benefícios recíprocos. Em 20 de abril de 1738, foi admitido na Irmandade do Corpo Santo do Funchal o mestre sangrador Ambrósio Homem, sendo-lhe dispensada a habitual esmola de entrada, mas com a obrigação “de sangrar e deitar ventosas a todos os irmãos homens do mar, suas mulheres e filhos, e a todos aqueles que cada um dos ditos irmãos homens do mar tiverem em sua taxa de obrigação” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 8). Quando não pudesse cumprir esta obrigação, teria de, à sua custa, contratar algum substituto. Só assim gozaria de privilégios idênticos aos que desfrutavam os homens do mar, nomeadamente os 3$000 reis para o hábito de defunto. Mais tarde, em 14 de agosto de 1770, Domingos João de Ornelas, barbeiro, morador em Santa Clara, fez-se irmão do Corpo Santo e também não pagou os $600 réis de entrada, sob a condição de fazer três sangrias por $100 reis aos “irmãos do sítio das Fontes” (Ibid., fl. 67v.), provável indicação de dois grupos de mareantes: os de Santa Maria do Calhau e os do sítio das Fontes de João Dinis. No dia 20 de março de 1772, Jerónimo José Tavares, oficial de barbeiro, foi admitido na Irmandade, sendo-lhe também dispensada a esmola de entrada, em troca da obrigação de sangrar aos irmãos da confraria, cobrando “por cada duas aventaduras”, que pensamos ser a aplicação de ventosas, $100 reis (Ibid., fl. 73v.). No ano de 1743, 6 alfaiates ingressaram também na Confraria, em troca de consertos nas capas de seda que vestiam os irmãos em momentos solenes. As confrarias do Corpo Santo, no entanto, eram essencialmente irmandades de homens do mar e contavam sobretudo com a contribuição destes. O compromisso do Funchal de 1737 determinava que todo o mareante e irmão entregasse $010 de cada 1$000 réis ganhos, e os pescadores dessem uma esmola de peixe, para além das esmolas particulares. Os irmãos de Câmara de Lobos cotizavam, de todos os barcos de pesca e de carreira, meio quinhão para a sua Confraria, o mesmo fazendo os da Calheta. No compromisso de 1745 do Funchal, estipulava-se o quinhão de cada barco, para os marítimos. O quartão, ou seja a quarta parte de um quinhão, era um excecional contributo dos barcos dos mareantes do sítio das Fontes do Funchal. Porém, antes de ser estipulado o quinhão, aquele donativo já era prática corrente. Reunidos em 12 de outubro de 1766, comprometeram-se os arrais daquele sítio, todas as vezes que fossem ao mar em pesca, a entregar ao tesoureiro da Confraria um quartão do pescado. Quando um arrais entrava para a Confraria, normalmente, toda a tripulação do seu barco ingressava também na Irmandade. As mulheres dos marítimos, a partir dos inícios do séc. XVIII, acompanhavam habitualmente os seus maridos na admissão à Confraria, não pagando a esmola de entrada. Pelos termos de entrada na Confraria do Funchal, concluímos que, entre 1738 e 1772, foram admitidos 335 homens e 183 mulheres, das quais apenas 28 ingressaram individualmente, sendo as restantes conjuntamente com os maridos. As confrarias madeirenses do Corpo Santo realizavam anualmente a festa solene do seu patrono, S. Pedro Gonçalves Telmo, e a do Funchal fazia também a festa de S. Lourenço, como estava estabelecido no compromisso e para o que, na sua capela, existia altar consagrado àquele mártir. Os irmãos, de opas brancas, deveriam acompanhar a confraria nas procissões em que habitualmente saía, com a bandeira e a barquinha, como na procissão do Corpo de Deus, e nos funerais dos irmãos falecidos. No Funchal tinham, para além das missas nos domingos e dias santos, missa todas as sextas-feiras no altar de S. Lourenço, nove Missas do Parto e três pelo Natal. No oitavário de Todos os Santos, a confraria ficava obrigada a celebrar um ofício de nove lições, com vésperas, em sufrágio dos irmãos defuntos, e de suas mulheres e filhos. As preces pelas almas dos mortos constituíam grande preocupação da gente marítima que, desprovida de bens materiais para uma capela vinculada, encontrava na confraria o dispositivo adequado para a celebração de missas e outras orações em sua memória. Por cada irmão que morria, por sua mulher, ou por filhos com idade superior a 18 anos e sob poder paternal, a confraria tinha a obrigação de mandar rezar um ofício de três lições, segundo os compromissos de Câmara de Lobos, de 1691, e do Funchal, de 1737, enquanto o seguinte desta cidade, de 1745, estabelecia quatro missas. Os filhos falecidos com mais de 10 anos e menos de 18 tinham direito a duas missas rezadas por suas almas, enquanto aos menores de 10 a confraria apenas facultaria dois círios para o funeral. O compromisso de 1745 do Funchal refere que anteriormente a obrigação por cada irmão defunto, sua mulher ou filhos menores de 18 anos sob a proteção do pai constava de um noturno, mas que se havia mudado, porque as missas “têm mais valor porque são infinitas” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 3.º, § 2.º). Contudo, em Câmara de Lobos, faziam-se habitualmente noturnos pelos irmãos defuntos, como atesta o tesoureiro João da Costa nas contas que presta entre 1776 e 1785. As viúvas dos marítimos desfrutariam destes sufrágios desde que não viessem a casar-se com homens de terra. Os filhos dos homens do mar receberiam idêntica penalização quando abandonassem o ofício de seus pais, e as filhas, quando se casassem com homens de terra. As confrarias do Corpo Santo serviam, assim, também para perpetuar o grupo e evitar ligações fora do mesmo. Os irmãos e suas mulheres tinham direito, por altura da sua morte, à quantia de 3$000 réis, para ajuda da mortalha ou do enterro. Em janeiro de 1742, a Confraria de Câmara de Lobos tornou este privilégio extensível aos filhos dos homens do mar, pescadores ou tripulantes de navios de carreira, contribuintes com o meio quinhão para a Irmandade. O tanger do sino à hora do enterro lembrava à Irmandade do Corpo Santo a sua obrigação estatutária de acompanhamento do funeral do irmão defunto, com as suas opas brancas, a cruz, as insígnias e os círios, “a cera que para essas funções deve se haver pronta”, como se refere no compromisso do Funchal de 1745 (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 2.º, § 2.º). Aos mareantes vítimas de naufrágios ou assaltos em viagem, a confraria tinha a obrigação de dar esmola para o seu sustento. Os irmãos pobres ou enfermos, as viúvas necessitadas e os órfãos recebiam igualmente esmolas, do fundo das sobras. No compromisso do Funchal de 1745, ficou estipulado que apenas uma quarta parte das sobras seria utilizada nestas manifestações de solidariedade. Ainda dentro deste espírito de socorros mútuos, mas já não como esmola, faziam-se empréstimos de dinheiro. Por alguns registos deduz-se que se procedia a cobrança de juros, à razão de 5 % ao ano, o que encontramos em outras confrarias. Estas confrarias contavam, aliás, como a maioria das restantes, com rendimentos oriundos de juros. Em 3 de junho de 1760, v.g., o Cap. João Bettencourt Herédia ingressou na Irmandade do Corpo Santo do Funchal, dando 2$000 réis de esmola de entrada, com a condição de não lhe cobrarem as anuais. Esses 2$000 réis seriam postos “a juro a razão de cinco por cento, que é um tostão, que será para a confraria e ainda depois de sua morte, ficar à dita confraria” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 38v.), conforme declaração do escrivão. Na conta apresentada por João da Costa, tesoureiro da confraria de Câmara de Lobos, dos anos de 1776 a 1785, o capítulo “Rendimento” subdivide-se em “Juristas e alugueres e meias partes” (ABM, Juízo dos Resíduos..., cx. 3). Em 1776, os “juristas” entregaram à confraria 34$830 réis, o que corresponde a 22,5 % das receitas desse ano. O rendimento principal da confraria era constituído pelas esmolas do quinhão, meio quinhão ou quartão. Porém, era uma receita suscetível de variações, por ser uma percentagem e depender do número de saídas para o mar. Outras receitas eram as esmolas anuais, $100 réis no Funchal, esmolas espontâneas, alugueres de casas e, claro, os juros do dinheiro emprestado. Sobre o pescado entregue à confraria, os compromissos estabeleciam normas a fim de se evitarem fraudes. Determinava-se no compromisso de Câmara de Lobos que o meio quinhão de cada barco deveria ser registado pelo escrivão “com toda a inteireza e verdade e se assentará por adições com distinção e clareza no livro” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 1, fl. 18v.). Na Calheta, em 11 de setembro de 1766, ficou determinado pelo juiz do resíduo secular, face ao procedimento pouco correto de alguns tesoureiros nas contas das meias partes, que o seu registo não se fizesse em papéis avulsos, por ocasião das arrematações em praça, mas num livro próprio e pelo escrivão. Em cada termo, deveriam constar os nomes do arrais e do proprietário do barco, do arrematante, que deveria assinar, e a respetiva importância. Para estas arrematações, realizadas na presença do vigário da colegiada da vila da Calheta, o povo deveria ser convocado com oito dias de antecedência. A partir dos finais do séc. XVII, as confrarias do Corpo Santo eram presididas pelo vigário da freguesia, que servia, assim, de juiz, e administradas pelos mordomos da mesa, um escrivão e um tesoureiro. Em Câmara de Lobos eram 3 os mordomos e no Funchal, 12. Os cargos de escrivão e tesoureiro – referindo o compromisso de Câmara de Lobos o escrivão e o arrecadador – eram eleitos em assembleia de irmãos, realizada no dia do patrono e presidida pelo vigário. Segundo o compromisso da confraria do Funchal, de 1745, os 12 irmãos da mesa e o escrivão deveriam ser irmãos da terra, enquanto o tesoureiro seria obrigatoriamente homem do mar. Esta regra criou alguns problemas ao normal funcionamento da Confraria, pois tornava-se difícil o recrutamento de tão grande número de homens da terra, quando a Irmandade se compunha maioritariamente de marítimos. Em 16 de maio de 1756, a Confraria reuniu na capela do Corpo Santo e deliberou retomar os preceitos estatutários antigos, ficando a administração cometida apenas ao escrivão e ao tesoureiro que os homens do mar escolhessem, sem, à partida, estar a elegibilidade condicionada pela atividade profissional em terra ou no mar. As razões apontadas e registadas em ata prendem-se com o reduzido número de irmãos da terra e o facto de estes, normalmente, pertencerem e servirem outras confrarias, recusando a eleição para a do Corpo Santo. Nesta assembleia, os homens do mar reafirmaram a sua posição hegemónica e fizeram valer o seu pragmatismo, para continuação e bom funcionamento da Irmandade “que foi erigida e feita pelos homens do mar e estes até agora, desde sua criação sempre a sustentaram à custa das esmolas que lhes dão do ganho de suas pescarias” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 79, fl. 43). O vigário, o tesoureiro e o escrivão detinham, cada um, uma das três chaves da arca onde se guardavam valores e o dinheiro da confraria, de que subsistiu uma pequena arca na capela do Corpo Santo do Funchal, talvez já dos inícios do séc. XX. Tanto o juiz, como o escrivão e o tesoureiro eram portadores de varas de prata quando participavam em atos públicos da confraria ou em cerimónias em que esta se fazia representar, das quais subsiste ainda uma, de meados do séc. XVIII, assinada por “VIF.”, marca de ourives não identificado. Ao escrivão cabia a guarda dos livros da irmandade, a admissão de novos elementos, e o acompanhamento do tesoureiro na cobrança dos quinhões dos barcos e na arrecadação das esmolas. O tesoureiro ficava ainda responsabilizado pelo inventário da prata e de outros bens móveis. No Funchal, os irmãos do Corpo Santo pertenciam também à Confraria do Santíssimo Sacramento da freguesia de Santa Maria Maior do Calhau, sem esmola de entrada, com direito a todos os sufrágios. Do quinhão que davam dos seus barcos, o tesoureiro da Confraria do Corpo Santo entregava, no final de cada ano, 1/6 ao tesoureiro da Confraria do Santíssimo, ficando assim “os homens do mar mais aliviados de fazerem as suas contas e pagar a 2 cobradores porque em tempos antigos pagavam também um quartão àquela Confraria” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 10.º, § 3.º). Nas confrarias do Corpo Santo os marítimos podiam assim contar com uma série de apoios em vida, quer em casos de naufrágios e de ataques corsários, quer na doença, onde “as necessidades não esperam nem sofrem demoras” (Ibid., § 7.º) e, depois, no sufrágio da sua alma e da dos seus parentes mais próximos, satisfação reconfortante em tempos de profunda crença na eternidade, e sabiam ter o seu corpo direito a um funeral condigno. Em vida, a confraria assegurava-lhe socorro em acidentes e contribuía para a sua sobrevivência, quando doentes ou na velhice, proporcionava cuidados médicos, concedia empréstimos e investia em casas de habitação para arrendamento. As confrarias começaram a conhecer dificuldades quando, ao longo do séc. XVIII, começaram a ser alvo de disputa entre os poderes eclesiásticos e reais, na base dos quais, essencialmente, se encontravam os aspetos económicos. As primeiras ações régias foram para chamar a si a aprovação dos compromissos, o que foi logo transmitido à Madeira e aceite pelo bispo jacobeu D. João do Nascimento (c. 1690-1753), ordem que, a 11 de julho de 1750, transmitiu às confrarias, mas que poucas cumpriram. A 17 de novembro de 1766, haveria nova ordem, então para o provedor das capelas da ilha da Madeira e do Porto Santo, registada na Câmara do Funchal. A Confraria do Corpo Santo do Funchal, v.g., só então enviou os seus estatutos para aprovação em Lisboa, recebendo a aprovação com data de 29 de agosto e a confirmação a 24 de outubro de 1767. A partir de então os conflitos institucionais dispararam, tornando muito difícil a vida das confrarias. A Confraria do Corpo Santo do Funchal ainda estava bem ativa entre 1881 e 1887, período da execução do conjunto dos lampadários e da cruz processional em prata, pelo ourives Guilherme Guedes Mancilha, ensaiador do Porto, e a Confraria de Câmara de Lobos, quando empreendeu, em 1908, uma ampla campanha de reabilitação da capela da Conceição, entregue ao pintor Luís Bernes (1864-1936). Os marítimos madeirenses estiveram, inclusivamente, na base da fundação do mutualismo moderno, quando, em reunião de 17 de outubro de 1897, 177 irmãos decidiram a instalação de uma caixa de montepio marítimo. Mais tarde, a 10 de dezembro de 1950, em cerimónia solene e numa iniciativa da Empresa do Cabrestante, Ld.ª, a gente do mar atribuía o título de arrais ao seu santo patrono, S. Pedro Gonçalves Telmo. A capela do Corpo Santo do Funchal foi classificada pelo dec. nº 30.762, de 26 de setembro de 1940, como imóvel de interesse público, e um decreto de 1974, por intercedência da DRAC, que esclarece que a capela não se designa de Corpo Santo, como normalmente é referida, mas do Espírito Santo; a razão deste esclarecimento é um enigma. Em 1954, a Direção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais procedera a obras de arranjo e reparação, com a demolição do alpendre e da antiga sacristia, a colocação do óculo sobre a porta principal e a substituição da cobertura. As obras prolongaram-se por 1955 e 1957, com beneficiações do exterior, e concluíram-se em 1960. Em 1987 foi efetuado levantamento sumário dos bens, entregue na Diocese e na paróquia de Santa Maria Maior, e nesse mesmo ano a DRAC e a oficina Arte e Restauro executaram a recuperação geral das telas da capela-mor. Em 1995, procederam à limpeza sumária da tábua central do altar-mor e à recuperação geral, para abertura ao público.   Rui Carita

Religiões

crenças e superstições

A comunidade madeirense, como qualquer outra, caracteriza-se por ter fé, crer em entidades superiores, adoptar modos de manifestar essa atitude de em relação àquilo em que acredita. Mas, por um lado, temos de distinguir as crenças, de acordo com uma fé considerada verdadeira ou aceitável, assente em princípios bem definidos e tidos por inabaláveis certezas, que também podem comportar conjuntos de devoções complementares de grau menos importante, e das superstições que sobrestimam aspectos de pormenor ou de fantasia que se insinuaram e se consolidaram nas convicções individuais ou colectivas, ou podem ter tido origem numa experiência de vida que tenha marcado profundamente o grau de persuasão pessoal numa direcção completamente inesperada. Ao contrário do que possamos pensar, as crenças, as crendices e as superstições foram em grande parte herdadas de patrimónios muito antigos, transmitidas ao longo de gerações, saltando fronteiras, adaptando-se às várias maneiras de aceitar e interpretar a vida e o mundo que constituem as religiões, e também os mitos e as lendas. Na Madeira, a religião comporta uma muito vasta quantidade de crenças e devoções, de “crendices” (na expressão do Visconde do Porto da Cruz) e superstições. No final, não foi esquecida a muito intensa afirmação do “sebastianismo” na Madeira, com a crença no regresso de D. Sebastião e na Ilha de Arguim. Palavras-chave: superstições; crenças; romarias; festividades religiosas; tradição popular.   Os conceitos de crenças e superstições são muitas vezes tomados como iguais ou confundem-se um com o outro. A palavra “crendices” tem uma conotação mais próxima de “superstições”, enquanto “crenças” se apresenta como mais adequada e próxima das exigências de disciplinas como a etnologia e antropologia, e diz respeito às interações dos indivíduos ou das comunidades com as muitas entidades e as várias modalidades religiosas, sobrenaturais ou consideradas mágicas, numa relação de aceitável legitimidade ou paralegitimidade quanto à doutrina e às práticas por parte de uma coletividade. É perfeitamente aceitável empregar os três termos nesta breve exposição, desde que bem explicados: crenças, crendices e superstições. Na Madeira, nos começos do terceiro milénio, as pessoas são, na sua grande maioria, crentes, i.e., dizem acreditar nos preceitos da religião, predominantemente católica, que, por tradição familiar ou sociocultural ou por opção pessoal, lhes são transmitidos ou que cada um descobre por sua própria iniciativa. Se os fundamentos doutrinais assentam em canónicas certezas e, portanto, constituem verdades tidas por irrefutáveis, a fé conduz a conceções, atitudes, sentimentos básicos e correlatos que impregnam ou ditam os comportamentos. Cada um crê e age segundo uma doutrina, seja ele católico praticante ou não, protestante ou adventista. Também haverá os agnósticos e ateus, mas em minoria. A fé é vivida por cada um, mas pode também manifestar-se coletivamente em sessões de culto, devoções, festividades. Interessa acrescentar que é certo que cada um desses indivíduos pode intimamente ser sensível a modalidades mais particulares e de pormenor que não constituem o todo principal da doutrina e que, portanto, não vão prejudicar ou diminuir a solidez da adesão à fé ou doutrina nos seus pilares ortodoxos. Podem, pelo contrário, contribuir até para uma maior robustez e afirmação dessa religião ou dessa doutrina. Neste caso, podemos falar de crenças. Todavia também pode haver desvios que consistem em sobrevalorizar aspetos de menor importância ou falsa representatividade, que levam a acreditar e atuar de modo mais discordante com uma fé esclarecida (aqui podemos falar de crendices). Também pode acontecer que o indivíduo ou mesmo a comunidade se apegue voluntária ou involuntariamente a conceitos irracionais ou mesmo a um não explicável preconceito, a um pormenor, a uma atitude ou a um aspeto da realidade, aos quais atribui exagerado significado e especial interpretação. Então, estamos a falar de superstições. De acordo com o que fica dito, adiantamos que a fé, e falamos principalmente da católica, se afirma para os madeirenses fundada nos principais instrumentos e ensinamentos transmitidos pela família, pela Igreja, pela sociedade: os mandamentos, as orações principais e, entre elas, o Credo, que quase todos vão aprender na catequese. Neste cômputo breve, saliente-se a importância da celebração do Natal como a celebração e festividade por excelência da devoção madeirense. Durante esta época do ano, que inclui desde o Advento até aos Reis e mesmo ao dia de S.to Amaro, são muitas as manifestações religiosas, mas também as da devoção que penetram as casas das famílias, sem esquecer as de natureza mais profana. No calendário litúrgico, a Madeira valoriza o Natal muito mais do que a Páscoa, o que tem sido explicado pela influência importante que a espiritualidade franciscana exerceu no início do povoamento e ao longo dos séculos. A sensibilidade à família, à natureza e à fraternidade marcou muito o sentimento religioso dos madeirenses, que valorizam mais o período natalício, conduzindo a uma atmosfera de emoção e de festejo da simplicidade, dos valores da família e da solidariedade social. As entidades de devoção são o Jesus Menino, a Sagrada Família, os pastores e os Reis Magos. A lapinha ou o presépio, com a rochinha, perfazem uma natureza acolhedora e afetiva, que motiva os afetos do encontro entre gerações, entre vizinhos e entre todas as camadas sociais. Ao mesmo tempo, ergue-se Jesus no trono na escadinha onde as laranjas, os peros, as searinhas, as cabrinhas e o alegra-campo contextualizam o ambiente festivo. Também a morte do porco com todo o seu ritual proporciona momentos de festejo e de convivência da família e dos vizinhos. Neste período, limpam-se a fundo as moradias, enfeitam-se as lojas, as pessoas e as famílias criam uma atmosfera de saudação e de prendas. O Natal, com os bolos de mel, os licores, os enfeites dos interiores das casas e varandas, as rituais visitas aos avós e outros familiares com que não se conviveu durante o resto do ano, reveste-se do significado mais comovente e mais feliz da existência do ilhéu. É, de facto, um tempo de festa, não só no campo, mas também na cidade. Na devoção, ficam como marcos a Missa do Galo, ainda nalgumas paróquias as missas do parto e, nas festividades de carácter profano, a consoada, a abertura das prendas e a continuação da atmosfera festiva pelos restantes dias do ano, sobretudo a noite de S. Silvestre, até ao dia de S.to Amaro, em que se varrem os armários. A sensibilidade dos fiéis madeirenses também se manifesta no período da Quaresma e Páscoa. As famílias passaram a preocupar-se menos com a aquisição das bulas que isentam da proibição comer carne durante o período da Quaresma. No entanto, há sempre o cuidado de, nas sextas-feiras, a culinária privilegiar o peixe e o bacalhau em nome do espírito da época. Na Semana Santa, principalmente na quinta-feira, as montras das lojas do Funchal ficam tradicionalmente decoradas com grande preocupação estética, mediante arranjos realizados com os artigos nelas vendidos e com muita quantidade de flores. Na devoção durante esse período, a população acorre às manifestações religiosas, não só aos principais atos litúrgicos, mas sobretudo à procissão do Senhor dos Passos. As procissões e as romagens também constituem de modo mais espetacular a afirmação exteriorizada e adesão forte dos crentes. Há que considerar as crenças no âmbito da religião, mas que dizem respeito a devoções, a festividades, a conceções do sobrenatural. Entre elas, salientam-se os cultos às entidades principais, com celebrações, devoções e romarias, como a devoção a Jesus Cristo (Senhor Bom Jesus, na Ponta Delgada; Senhor dos Milagres, em Machico) e, em todas as paróquias, a tão aguardada Festa do Senhor. Destacam-se ainda as festas à Virgem Maria (Nossa Senhora do Monte, no Monte, Nossa Senhora do Livramento, no Caniço) e ao Espírito Santo (com um conjunto de festividades e rituais, incluindo a visita ao domicílio dos fiéis). Também são importantes as devoções a santos, como S. João, S.to António, S. Pedro, S. Roque, e S.to Amaro, aos patronos das paróquias. A devoção das primeiras sextas-feiras, o uso do escapulário de N.a S.a do Carmo e a prática de rezar o terço têm também muitos seguidores. Outro ritual frequente é o indispensável sinal da cruz pelo qual se protege religiosamente o começo de muitas atividades ou se abençoam pessoas, animais e alguns produtos (o pão, e.g.), se assinala o respeito pelo espaço sagrado (ao entrar na igreja, ao passar em frente dela ou do sacrário, ou diante de um cemitério) e se assegura a proteção dos incautos dos assaltos do diabo, dos maus espíritos e das feiticeiras. Passando a considerar as “crendices”, está muito enraizado na população o medo do diabo (o grima, o demónio, o papão), das almas penadas, dos espíritos maléficos, das feiticeiras.“Embora a civilização tenha destruído muitas crenças populares outrora vulgares na Madeira, ainda hoje existem algumas entre nós, que nos parecem dignas de menção por estarem bastante arreigadas no ânimo do nosso povo” (SILVA e MENESES, 1998, I, 331-332), dizem os autores do Elucidário Madeirense, e passam a enumerar algumas dessas que julgam continuarem mais persistentes: “A crença nas feiticeiras, nas bruxas, no mau olhado, no ar mau e no poder que têm certos indivíduos de curar com palavras ou de adivinhar o futuro por meio de cartas, encontra-se não só nos campos, mas também na cidade, sendo de notar que há pessoas consideradas cultas, que não abandonaram ainda inteiramente certas alusões que nos transmitiu o passado” No final, têm, contudo, o cuidado de contrariar a opinião de todos quantos pensam que a Madeira “continua a ser muito atreita a crendices e a superstições, reconhecendo mesmo que na Europa, mesmo nos países mais adiantados, há maior número de superstições e de crendices do que na Madeira”. Mais adiante, prosseguem os dois estudiosos com mais pormenores sobre o que foi discriminado: “As feiticeiras no entender do povo, têm por mister fazer toda a casta de malefícios, e aparecerem algumas vezes sob a forma de uma botija a rolar nos caminhos, a qual se transforma numa mulher, que obriga a pessoa que provocou a transformação a conduzi-la às costas até casa; as bruxas têm por principal encargo chupar de noite o sangue das crianças, malefício este que pode no entanto ser evitado, colocando-se uma tesoura aberta sob o travesseiro da cama da pessoa que se quer proteger” (Id., Ibid., 332). Para afastar as feiticeiras e os espíritos maus, não há como exclamar em voz alta: “Tosca marrosca, olhos na cara e freio na boca”. A seguir, os autores do Elucidário referem que o Campo Grande, no Paul da Serra, é o local das reuniões das feiticeiras presididas pelo demónio que toma a forma de bode, sendo os fogos-fátuos interpretados como presença ou mesmo baile das feiticeiras. No Elucidário Madeirense, são ainda referidas as crendices sobre o poder de algumas pessoas adivinharem o futuro com cartas de jogar e lançando sortes. E aludem às artes de curar com palavras (ar mau, mau olhado e bucho encostado), aos cuidados a ter quando, no campo, se ouvem os cães a uivar, o que denota a presença de maus espíritos, de feiticeiras ou do diabo nas redondezas. A maneira de os fazer calar é muito simples e eficaz, afirma a população: colocar no chão um sapato ou uma bota de sola para cima. Há três épocas em que as crendices e as superstições são ainda em maior número pelo S. João, pelo S. Pedro e pelo S.to António: “É na véspera de S. João e de S. Pedro que qualquer pessoa pode conhecer uma parte do destino que lhe está reservada. O rapaz ou rapariga solteiros, que à beira das ave-marias encher a boca de água e se puser à escuta, conhecerá pelo primeiro nome de homem ou de mulher que ouvir qual o nome da pessoa a quem há-de ligar um dia os seus destinos, sendo possível chegar ao mesmo resultado por meio de sortes lançadas em água, se alguma delas se abrir durante a noite. Um ovo lançado num copo também pode dizer muito, se o deixarmos exposto ao ar na noite de S. João, e se nesta noite a água refletir a imagem de uma pessoa ao baterem as 12 horas, é porque uma pessoa tem a vida garantida até à festa do mesmo santo no ano imediato” (Id., Ibid.). O Visconde do Porto da Cruz também regista uma das sortes, na noite de S.to António, e igualmente para saber como se chama o futuro namorado: “Quando uma rapariga quer saber o nome daquele que virá a ser seu marido, salta três vezes e em três direções diferentes a tradicional fogueira de Santo António, deixando cair no braseiro uma moeda. Ao outro dia, antes de romper o sol, procurará a moeda entre as cinzas para a entregar ao primeiro pobre que encontrar e a quem perguntará o nome” (PORTO DA CRUZ, 1954, 9) E prossegue: “As sortes não se limitam às questões de amores. Deitam-se sortes para tudo! […] Colocando debaixo da cama um prato com terra, outra com água e um terceiro com ouro e indo ao acaso tatear, logo se sabe o destino: – se tocar na terra é a morte, se for na água é viagem e no ouro a fortuna. […] Colocar debaixo do travesseiro, três favas – uma inteira, outra meia descascada e a terceira descascada. Ao bater a última badalada da meia-noite apanha-se uma das favas ao acaso; se for a inteira é que a vida seguirá na opulência; se for a meia descascada é a mediania e aquela que não tem casca significa a pobreza.” (Id., Ibid., 17). As três conclusões mais habituais nas sortes nos dias de S.to António e sobretudo de S. João, depois da interpretação feita pelo entendido ou entendida no que respeita às formas que assume o ovo que se quebra e deita para dentro do copo com suficiente água (copo e água, têm de ser bem transparentes, para que tais formas/figuras surjam bem definidas) ligam-se às três principais formas possíveis que a clara assume dentro da água – uma igreja, um caixão ou um barco. As bentas também merecem referência desenvolvida no Elucidário: “As bentas são ramos de árvores e arbustos colhidos na manhã de S. João, quando, diz o povo, todas as plantas têm virtude, à exceção da malfurada. Colocados à porta ou dentro das habitações, anulam os efeitos do mau-olhado e evitam muitos sortilégios a que está sujeita a humanidade. O alecrim é de entre as plantas existentes na Madeira, a que mais usada é para combater os artifícios diabólicos” (SILVA e MENESES, 1998, I, 332). Muitas pessoas fazem-se acompanhar de uma cruz feita com dois pequenos ramos de alecrim, que põem no bolso ou dentro da carteira, para proteção. Segundo a tradição, além do alecrim, a arruda também pode ser usada para afastar os maus espíritos ou o ar mau, plantada em vaso ou no jardim. Voltando à época festiva de S.to António e de S. João, um costume da predileção dos madeirenses, como aliás doutras gentes de Portugal, é saltar à fogueira, num simpático gesto de saudação de todos, sobretudo dos jovens, ao novo período do ano, com a chegada do solstício, no ensejo do aperfeiçoamento dos indivíduos e do universo. Aliás, nesse período solsticial, os dois elementos de eleição são a água e o fogo, ambos bem significativos da purificação e renovação da natureza. Muitos madeirenses acreditam que “os espíritos voltam ao mundo quando por cá lhes ficou qualquer coisa para cumprir. Para libertar as almas de promessa por cumprir e que as faz penar diz-se – ‘se é sinal de morto venha outro’ – e no caso de vir outro sinal então logo vem ao pensamento o modo como se procederá” (PORTO DA CRUZ, 1954, 18). Grande estima é dedicada aos animais, sobretudo os de criação, que merecem os cuidados no dia a dia, mas também os que, acompanhando a população na vigilância, podem proteger, auxiliar ou simplesmente acompanhar. Nos de criação, são muitos os cuidados para tratar das aves de capoeira, das cabras e principalmente do porco, cuidar da vaca que, na Ilha, fica resguardada no palheiro, o que é claramente devido às características orográficas da paisagem, mas também devido ao receio dos olhares dos estranhos que poderão exercer má influência no gado. Todo o cuidado é pouco para os proteger do mau-olhado, principalmente no que toca ao porco que vai ser um trunfo para a economia da família ao longo do ano seguinte. E os animais são objeto de outras atenções se se verificar moléstia ou estado débil que faça o dono suspeitar de qualquer mau espírito, mau ar ou olhar pérfido, recorre-se a processos ao alcance de todos com utensílios adequados, e.g.: colocam-se chifres de boi ou de carneiro, garrafas vazias e ramos de alecrim amarrados aos paus do chiqueiro e um carvão escondido num buraco do muro ou do barranco; para quebrar as invejas dos que cobiçam um suíno, esconde-se com o carvão um prego torcido e um pedaço de alecrim. Mas os cuidados com outros animais são levados muito à risca: os ovos das galinhas não podem ser chocados de modo que os pintos nasçam na fraqueza da lua. Também os cães são muito apreciados, porque podem constituir preciosa ajuda na defesa dos humanos e dos seus pertences, mas também como exteriorizada indicação de momentos de revelação do mundo dos maus espíritos, da presença do diabo e das feiticeiras, que denunciam com o seu uivar. A convivência com animais, alguns bem pequenos, pode fornecer sinais a serem interpretados de maneira que o homem esteja mais consciente do que se passa ou vai passar-se ao seu redor e sugerir soluções para os problemas e dificuldades quotidianas. Assim, abelha que entra em casa é boa nova, uma mosca varejeira é visita, um besoiro é mau agoiro, borboleta preta é má notícia, borboleta branca anuncia felicidade, uma aranha de manhã é agoiro; ao meio-dia preocupações e à noite esperanças, uma pomba branca que entra em casa traz paz e ventura, casa onde haja baratas terá dinheiro, se um rato atravessa o caminho à nossa frente prevê mau resultado no que se vai fazer, se um morcego bate nos vidros da janela, por cada pancada é um ano de vida que resta a quem ouvir, um fio de teia de aranha que atravessa um caminho é um resto de linhas da Virgem, animal que nasce em noite de S. João traz varinha de condão. E outras, não menos insólitas: quando as abelhas ferram, curam o reumatismo, o sangue da crista de galinha preta, espalhada na pele, chama os vermes intestinais, ingerir formigas faz apurar a vista, friccionar o casco da cabeça com moscas frita em azeite de baga de louro faz nascer o cabelo, beber chá de esterco de pombos faz bem à asma, a sopa de caracóis faz bem às forças perdidas e dá abundância de leite às amas, comer o coração cru das andorinhas dá bom fôlego, matar um gato faz atrasar a boa sorte sete anos, e matar um bisbis é pecado. Interpretam-se os voos das aves, principalmente da cagarra e da coruja; o aparecimento de uma aranha preta, se é de manhã ou à noite; o cantar do grilo que pode ser benfazejo para uns, maléfico para outros; um gato preto que aparece a atravessar a estrada ou a rua é sinal de mau prenúncio. No que toca ao convívio das crianças com alguns destes animais, o poisar de uma joaninha constituirá motivo de júbilo, e motivo para tentar agarrá-la, não para lhe fazer mal, mas para a guardar quase como talismã (“poisa, poisa, Maria Loisa …”); e os piolhos preocupam pais e familiares que, para alertar os miúdos a que tenham cuidado, dizem-lhes que, se não colaborarem em catá-los, os bicharocos podem arrastá-los a eles e às criancinhas até ao mar. Para os vegetais também há usos e interpretações. Como se disse anteriormente, o alecrim é considerado a planta por excelência do uso no ritual, dotada de poderes especiais. A arruda, assim como o alho, também ocupam um lugar importante entre as plantas protetoras; e o mesmo se diga do louro, preferido nas decorações festivas e nas preparações de culinária. Nas lapinhas, privilegia-se o alegra-campo, mas não podem ser esquecidas as searinhas (de trigo ou lentilhas) e as cabrinhas (daválias), ao lado das laranjas e dos peros. A significação das flores, na Madeira como no resto do território português, constitui um conjunto de códigos, que guardam uma linguagem variada e muito específica: o amor-perfeito significa pensamento; a camélia branca, pensamentos puros; a camélia vermelha, grandeza de alma; a camélia singela, arrependimento; o cravo simples vermelho, amor vivo e puro; o cravo seco, desprezo; a dália vermelha, teus olhos abrasam-me; a hera, amizade firme; o junquilho, desejo ardente; a laranjeira, castidade; o lírio branco, inocência; o lírio roxo, fogo de amor; a madressilva, laços de amor; a magnólia, simpatia; a margarida branca, sociedade; a margarida vermelha, responde-me; a papoila vermelha, alívio; a petúnia branca, convicção; a petúnia roxa, pouca confiança; a rosa amarela, infidelidade; a rosa branca, segredo; a rosa magenta, teus olhos perderam-me; a tulipa, declaração de amor; a urze, amor eterno; a violeta branca, promessa; a violeta dobrada, amizade; a violeta roxa, modéstia. Esta lista baseia-se em convenções da tradição que foram sobejamente divulgadas por folhetos de cordel e inspira mensagens trocadas entre namorados apaixonados ou desiludidos, assim como pode servir para a composição dos ramos em casamentos, aniversários e funerais. A figa que consiste em colocar o dedo polegar da mão entre o indicador e o médio faz parte dos gestos de proteção e suposta eficácia em momentos difíceis, sobretudo de arriscada decisão, para evitar alguma ameaça ou atrair alguma coisa boa. O Visconde do Porto da Cruz anota: “Quando se encontra um corcunda e para que ele traga a felicidade nesse dia, levanta-se a mão direita ao mesmo tempo que se faz uma figa dizendo: ‘– Ai Giba, ai Giba/Que entorta prá frente/Vai, vai diligente/E deixa-m’em paz/Golfinho Gibinha/Não mais me persiga/Aí vai uma figa/Nam olhes p’ra trás/Vai em nome de Maria Pandilha/E de toda la sua famila/Que nam enguices rico nem prove/Nem ninguém que o cáu covre – Amen”. E acrescenta: “A figa feita a um ‘Giba’ só se desfaz quando aparece uma farda e também não se deve ficar querendo mal ao Giba, que é para que a figa não perca o seu valor.” (PORTO DA CRUZ, 1954, 19-20). Um gesto que no passado era muito comum na Madeira, pelo menos entre os jovens, era o beliscão: quando se encontrava uma pessoa de cor e se estava acompanhado, dava-se um beliscão ao companheiro ou companheira, e pedia-se a realização de um desejo se a pessoa de cor fosse homem, e, pelo contrário, que se afastasse um mau sucesso se fosse mulher. Em Portugal, dar um passo com o pé direito é necessário quando se comemora o aniversário ou se entra no Ano Novo, na noite de S. Silvestre. E pedir a bênção ao pai, à mãe e a outros membros da família mais velhos, incluindo os padrinhos também e o sacerdote, era quase obrigatório: consistia em chegar a criança ou o jovem e mesmo o adulto ao pé da outra pessoa-autoridade e dizer: “Pai, a sua bênção”, sendo a resposta: “Deus te abençoe!” Os sonhos também ocupam um lugar especial nas crendices e superstições dos madeirenses. As interpretações seguem as da tradição, que constam das publicações pseudopedagógicas e didáticas da literatura de cordel (almanaques e livros de sonhos); e.g., sonhar com flores prevê morte de pessoa de família ou conhecida, sonhar com excrementos, dinheiro, ter sorte. No caso da Madeira, saliente-se a sua utilização para a previsão do resultado de alguns jogos, sobretudo a lotaria ou o jogo do bicho. A terminar, registe-se ainda um aspeto paralelo, o mito de D. Sebastião, e os que se encontram relacionados com ele, como o da ilha de Arguim ou ilha da esperança, situada numa concreta ilha submersa que alguns afirmam ter avistado de alguns sítios da Ilha (do norte e mesmo do sul, e.g. Câmara de Lobos e na Ponta do Sol), e que será um cenário idílico de ordem social, harmonia entre os seus habitantes, trabalho produtivo, grande abundância, beleza, saúde e paz, essa ilha que um dia se crê vir a emergir, substituindo a Madeira, que, assim, poderá desaparecer nas águas do oceano. Estes testemunhos manifestam a permanência de uma narrativa, abrangente ou fracionada em vários episódios, todos eles bem reconhecidos como estando ligados à crença sebástica, i.e., derivados da importação do mito do sebastianismo. Registamos, seguidamente, alguns testemunhos sobre esta matéria, recolhidos por universitários madeirenses junto de informantes para o Arquivo Digital de Literatura Oral Tradicional (ADLOT). O primeiro é uma pequena narração em que se encontram, como acontece frequentemente, algumas contaminações (no princípio, “São” por “Dom” ou “Rei”, o que resulta em curiosa variação): “São Sebastião veio de África durante a guerra para a Madeira onde se instalou. Foi avisado por um anjo que ia ser atacado. Então com um só golpe de espada formou o Curral das Freiras, onde se foi esconder dos inimigos. Quando estes chegaram viram que não conseguiam atacá-lo e desistiram, pois não havia maneira de lá entrar. A quantidade de rocha tirada pela espada foi posta onde é hoje a Penha de Águia. Dom Sebastião há de voltar um dia, e no dia que este voltar o ponto da Madeira vai ser as escadas da Igreja do Monte. Tem-se de andar sempre para a frente, pois se olharmos para trás ficamos em estátuas – ah/lembrei-me – Uma das ilhas vai afundar, ou a Madeira ou o Porto Santo, para se erguer a ilha onde está o rei Dom Sebastião” (ADOLT – Madeira; informante: Maria Estela Nunes Mota, 58 anos, Santa Cruz, 1993; coletores: Jordão C. R. Freitas e João Dário). Mais duas pequenas histórias narradas por uma mesma informante. A primeira: “Umas pessoas que vinham de Câmara de Lobos encontraram dois cavaleiros que lamentavam a dureza da sua vida. Aquelas acompanharam os viajantes. Chegados à Penha os cavaleiros desceram-na. Curiosos, os chavelhos seguiram-nos e viram eles [sic] entrar pelo mar adentro”. E a outra, semelhante numa circunstância, mas importante por introduzir a ilha de Arguim no cenário, ainda por cima situada em pleno Funchal: “Na manhã de São João umas pessoas que vinham de Câmara de Lobos para o Funchal com carga para o mercado, descansaram junto da Penha de França, ali na descida para a Pontinha. Viram uma terra, a terra de Arguim. Baixaram-se para atirar um punhado de terra, mas quando se levantaram a terra já tinha desaparecido” (ADLOT – Madeira; informante: Maria do Carmo Freitas, 60 anos, Eiras, Santa Cruz, 1993; coletor: Jordão C. R. Freitas). Outras narrativas consideradas lendas poderão ascender ao estatuto de mitos: o Cavalum nas furnas de Machico (autêntico Adamastor madeirense) e o Bicho do Cidrão.   João David Pinto Correia (atualizado a 01.03.2017)

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