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confrarias

As confrarias ou irmandades são organizações religiosas muito antigas, que se instituíram desde a Idade Média e se estabeleceram na Madeira com os primeiros povoadores. As confrarias eram então especialmente instituídas para os que desejavam as vantagens de ação prática que ofereciam as organizações religiosas, no sentido de uma certa proteção religiosa, social e até económica, na vida e na morte, mas que não sentiam vocação para entrar para as verdadeiras ordens religiosas. Dentro deste quadro, os madeirenses, desde os meados do séc. XV, resguardaram-se em confrarias, devendo as mais antigas da Ilha ser as dos marítimos e pescadores, sob a proteção do “Corpo Santo”, denominação popular de S. Pedro Gonçalves Telmo (1190-1246), arrogando-se a do Funchal de ser a mais antiga de todas as confraria da Madeira. As primeiras informações que temos do funcionamento de confrarias não apontam, no entanto, para a do Corpo Santo, mas sim para a da igreja de Santa Maria de Cima, onde depois se viria a levantar o convento de Santa Clara. Na vereação da câmara do Funchal, de 7 de fevereiro de 1489, foi perguntado a Gonçalo Eannes, cerieiro, “pela cera que tinha da confraria de Santa Maria de Cima e do círio”, ao que o mesmo respondeu que iria ver no “seu livro e o que achasse, diria por juramento” (COSTA, 1995, 238). Não se volta a mencionar o assunto e, na vereação de 17 de setembro de 1491, acordaram os vereadores a esse respeito que Pero Correia, que então tinha a “cera da confraria de Santa Maria de Cima”, “a emprestasse por peso” a quem o quisesse, devendo a mesma ser pesada perante o secretário da câmara (Ibid., 293). Não é fácil interpretar corretamente o que seria esta confraria à época e tal não invalida que, no cabo do calhau de Santa Maria, não estivesse já a funcionar a Confraria do Corpo Santo, cuja capela é mencionada nesses anos como já levantada. Quase todas as organizações profissionais do Antigo Regime tiveram, de acordo com o espírito do tempo, carácter religioso, e esse aspecto da sua atividade tinha, no sentir dos membros, tanta importância como a sua finalidade secular. Em muitos casos, os oficiais que formavam uma corporação organizavam-se independentemente desta numa confraria religiosa para em comum praticarem os atos de devoção, dentro dos princípios da caridade, fé e piedade. Existe assim um certo paralelismo entre corporação e confraria, quando não mesmo uma certa confusão e sobreposição. Às primeiras deviam corresponder os aspectos técnicos e profissionais, devendo organizar-se no âmbito camarário e dos ofícios e mesteres reunidos na Casa dos 24, e às segundas os encargos pios e de assistência, com especial relevância para o acompanhamento dos enterros, organizando-se no âmbito geral da paróquia ou freguesia onde estivessem instituídas. As primeiras confrarias teriam assim tido por base vínculos profissionais, num quadro, ainda herdado da Idade Média, no qual as atividades profissionais passavam de pais para filhos, servindo também as confrarias para a manutenção desses vínculos. Os oficiais mecânicos do Funchal, e.g., como os ferreiros, os serralheiros, os caldeireiros, os cutileiros, os ferradores, os picheleiros e afins, que trabalhavam com o ferro e o fogo, associavam-se sob a bandeira de S. Jorge, proclamando que a Confraria da Sé do Funchal tinha sido fundada em 1515, embora depois refiram 1562 e só se conheça documentação a partir de 1667. Num curto espaço de tempo, esta passou a associar também os barbeiros, os douradores e outros, aparecendo inclusivamente, na segunda metade do séc. XVII, mulheres e escravos e datando, assim, dos meados desse século o esbatimento progressivo dos iniciais vínculos profissionais nestas organizações. As confrarias organizavam-se sob a proteção de um orago e de acordo com um compromisso, sendo administradas por um juiz, um reitor ou um presidente, um escrivão, um tesoureiro e um número definido de mordomos, de acordo com os seus estatutos, sendo o de confrades mais ou menos ilimitado. A base económica eram as esmolas de entrada dos confrades, a que se seguiam as cotizações e os legados pios, sempre carregados com missas pela alma do doador, de forma a ser encurtada por esses sufrágios a sua permanência no Purgatório, como em muitos testamentos se refere. Uma das primeiras preocupações e obrigações da confraria era assim a aquisição de uma arca para guardar os seus bens e documentos, que só podia ser aberta na presença dos elementos diretivos. Sendo associações detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, mas também os apoiavam noutras situações – não só a eles como às suas famílias na eventual falta dos mesmos –, podendo conceder pensões, constituir pequenos hospitais e recolhimentos, etc. No quadro geral da sua constituição, encontram-se as Misericórdias, essencialmente assistenciais, com base nas quais vão surguir os primeiros hospitais e a assistência aos pobres de uma forma geral, à infância, presos e condenados, assim como ao enterramentos dos mortos (Cemitérios). Ao longo do séc. XVI, a constituição de confrarias na Madeira terá sido exponencial, embora mais em intenção que em efetivação. Ainda assim, com a crise religiosa vigente na Europa nos meados desse século e com a resposta católica que se consubstanciou na reativação dos tribunais da Inquisição, na implantação do Santo Ofício e, depois, na divulgação das normas emanadas pelo Concílio de Trento, a sua multiplicação é um facto. A Igreja assume então aspectos algo repressivos e, ao mesmo tempo, sigilosos, pelo que a proteção dada pelas confrarias passa a ser quase essencial à comum vida social e até profissional de qualquer cidadão. A sua multiplicação e capacidade de angariação de fundos levarão, entretanto, também a uma crescente necessidade de um maior controlo por parte das autoridades religiosas. As primeiras normas centralizadoras em relação às confrarias aparecem nas Constituições Sinodais de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), promulgadas em 1578 embora só editadas alguns anos depois, especificando que no “sagrado Concílio Tridentino é ordenado que os administradores assim eclesiásticos como seculares da fábrica de qualquer igreja, ainda que seja catedral, hospital, confraria, ou outros quaisquer lugares pios sejam obrigados em cada um ano a dar conta aos ordinários da sua administração e cargo”. Acrescenta-se ainda: “e não vindo os mordomos dar a tal conta, os confrangerá a isso com penas pecuniárias que aplicará para a dita confraria e meirinho, e com censuras, se necessário for” (BARRETO, 1578, 138-139). As normas de 1578 tinham carácter geral e visavam, essencialmente, as fábricas e os legados pios, tal como as receitas e despesas, quer das igrejas quer das confrarias, insistindo: “e o que se ficar devendo fará logo com efeito entregar e meter na arca da fábrica, que em cada igreja deve haver com duas chaves, uma das quais terá o recebedor e outra o escrivão do cargo”, determinação depois ampliada para três chaves, no caso das arcas de confraria, sendo a terceira para o vigário ou para o reitor da confraria, muitas vezes a mesma pessoa. A fiscalização das contas deveria ser feita “pelo S. João” ou até “oito dias depois da festa de que é a confraria” (Id., Ibid.), embora este assunto só se cumprisse verdadeiramente nas visitações. Nas seguintes Constituições, chamadas Extravagantes – porque fora do que já havia sido promulgado e por as anteriores “serem breves e não compreenderem tudo”, tendo havido ainda “casos que tinham necessidade de outras novas”, como mandou escrever D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) na abertura das editadas em 1601 (LEMOS, 1601, fl. 2) –, logo se determina que as eleições das confrarias da Sé tinham obrigatoriamente de ter a assistência do deão, ou seu representante, salvo a do Santíssimo (Id., Ibid., fl. 29). Associada às eleições estava a apresentação das contas, a serem entregues oito dias depois ao vigário geral, e, caso tal não acontecesse, seriam multadas em 1$000 réis “para a chancelaria e meirinho” (Id., Ibid., fl. 30), o que anteriormente não ficara estipulado. Para além disso, deixava-se cair o dia de S. João para só se mencionar a festa do orago. Canonicamente as confrarias passaram a reger-se, a partir de 1604, pela Constituição de Clemente VIII e, a partir de 1610, pela de Paulo V. Voltava-se a insistir que para a sua fundação se requeria o consentimento do prelado, que examinava os seus estatutos, geralmente sob a forma de “compromisso” depois alargado a “estatuto”, a quem competia dar-lhes ou negar-lhes a aprovação. Podiam fundar-se em todas as igrejas, embora a Congregação do Concílio de Trento, em 1595, proibisse as de homens nos conventos de religiosas. Clemente XIII também proibiu duas confrarias do mesmo santo ou evocação na mesma povoação, excetuando as “sacramentais” e as de doutrina cristã, que deveriam funcionar em todas as paróquias. As confrarias, para além do aspecto religioso, constituíam também um espaço de afirmação social, ostentando os irmãos eleitos para a mesa as suas varas nas festas, muitas vezes em prata, que lhes conferiam o estatuto e os restantes as suas capas, diferenciando-se assim dos demais. Por outro lado, as suas mesas de reunião, geralmente anexas aos respetivos altares, eram um local de encontro privilegiado, ali se trocando informações e, inclusivamente, fazendo negócios. O visitador da sé do Funchal regista, e.g., em 1601, ter visto nas mesas das confrarias, durante as missas, ajuntamentos de algumas pessoas que “se encostam a praticar com os estão nelas sentados, no que dão torvação e se ocasionaram já desordens”. Para evitar esses encontros, que perturbavam os atos religiosos, determinou, sob pena de excomunhão, “que mais se não juntem nem encostem a praticar nas ditas mesas” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 33, fls. 30-30v.). As questões de prestígio social de uma confraria incluíam igualmente a aproximação às autoridades eclesiásticas, como era o caso dos elementos do cabido que, como membros de um órgão coadjuvante do prelado, especialmente numa diocese com longos períodos de sé vacante, motivavam as confrarias a solicitarem constantemente a sua presença, palavra e proteção. Na sequência das Constituições de D. Jerónimo Barreto e da implantação da organização tridentina, o cabido deliberou inclusivamente, em 1584, “não irem daqui por diante a uma solenidade de confraria, fora das da Sé, sem que pelo caminho se dessem dois mil réis, fora a esmola da missa e dos ministros que se vestem para ela, que será o que somente costumam dar” (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, 151v.-152). Nos primeiros anos de fundação da sé do Funchal, não devem ter funcionado ali confrarias, pois as primeiras teriam sido instituídas na velha igreja de N.ª Sr.ª do Calhau e lá continuaram a funcionar, salvo a do Santíssimo Sacramento, obrigatória em todas as igrejas matrizes, que em 1566 já tinha altar próprio na sé, dado então como do Santo Sacramento (Sé do Funchal). Esta confraria só oficializou o seu compromisso no séc. XVII, mas no século seguinte arvorava-se na mais antiga da sé, com início logo da primeira metade do XVI, anterior ainda a 1515, data que depois várias delas citam como a da sua fundação, o que se referia, com certeza, à vaga intenção de se reunirem como tal, longe de toda a oficialização a que foram posteriormente obrigadas. Nesse quadro, talvez se tenha igualmente instalado, pela mesma altura, a confraria de S. Miguel Arcanjo, anjo protetor de Portugal, cujos confrades alegavam a sua fundação também em 1515. O arcanjo S. Miguel era então devoção muito especial da casa real portuguesa e de D. Manuel em particular, pelo que logo após a instituição da sé do Funchal seria lógica a fundação de uma confraria dessa evocação na catedral, o que, a ter-se verificado, não foi, no entanto, no quadro institucional que determinou depois o Concílio de Trento. Nesse quadro, somente bastante mais tarde, em 1572, a mesma veio a ser instituída e associada aos santos irmãos padroeiros dos sapateiros, provavelmente para, juntando as duas devoções, ganhar um outro peso económico. Mas tal também alegaram depois as confrarias de S. Jorge e de S. Roque. Em 1602, requeriam os “mordomos da confraria do Bem-aventurado S. Roque sita na sé da cidade do Funchal da ilha da Madeira, que no ano de 1521, por causa do grande mal da peste, que o povo da dita cidade padecia”, se juntaram as autoridade da cidade e, lançando sortes, saíra por padroeiro Santiago Menor (Voto da cidade do Funchal), “ao qual logo dedicaram casa e votaram por si e por seus sucessores fazer-lhe a festa cada ano”, o que, como já escrevemos, só veio a ocorrer depois. Acrescentam ainda os mordomos que “logo tomaram juntamente por seus protetores os Bem-aventurados S. Sebastião e S. Roque” e que a câmara ficara de apoiar economicamente as suas festas. Acontecia que a câmara apoiava as festas de S. Sebastião “cada ano, por ordinária, na renda da imposição dos vinhos”, com vinte mil réis, pelo que requeriam ao rei que o mesmo se passasse com a sua confraria, ao que o rei acedeu a 25 de abril de 1603 (Ibid., avulsos, mç. 22, doc. 24). No entanto, uma coisa seria a Confraria de S. Sebastião, instalada numa capela da câmara do Funchal, e outra seria a Confraria de S. Roque, instalada na Sé, mas o Rei aceitou as razões evocadas. Em carta do bispo D. Fr. Fernando de Távora (c. 1510-1577), datada de 15 de junho de 1572 e escrita em Lisboa, pois que nunca foi à sua diocese, mandava o prelado que se levantassem mais dois altares no transepto, dado que os existentes eram poucos para o serviço da Sé, prevendo-se a instalação de mais duas confrarias, cujos estatutos enviou depois. Não foram, no entanto, enviados diretamente ao cabido, como seria lógico, mas para os confrades das Confrarias de S. Miguel e, posteriormente, da Ascensão do Senhor, que os apresentaram, depois, para aprovação ao mesmo cabido. A Confraria de S. Miguel e dos santos irmãos Crispim e Crispiniano, aos quais tinham os sapateiros do Funchal obrigação de mandar “cantar missa no dia” 24 de outubro, dia que lhes era dedicado, foi instituída oficialmente por aprovação do prelado de 26 de agosto de 1572, ordenando-se-lhe que para ela fizessem um “retábulo muito bom” (Ibid., avulsos, liv. 2, fls. 114-115). O assunto foi apresentado depois ao cabido, em reunião na sacristia, a 29 de setembro, pedindo os membros da confraria para se servirem do altar de S.to António, no qual “pudessem fazer sua confraria, com sua mesa e oficiais”, obrigando-se os suplicantes ao encargo do “ornato” e da festa anual do seu santo protetor. Prometiam os confrades de S. Miguel, S. Crispim e S. Crispiano também recompensar o cabido com “a esmola acostumada que dão por missa, que é de mil réis de pensão, além da esmola que se costuma dar ao sacerdote e ministros que os visitem”, entre outros compromissos. O auto foi assinado no transepto da sé, sobre o altar da Ascensão (Ibid., liv. 2, fls. 117-118). A situação indica desde logo um aspecto importante: que os altares eram do cabido da sé, que sobre os mesmos exercia absoluto controlo, assim como uma coisa era a institucionalização da confraria, da responsabilidade do prelado, e outra era o seu funcionamento, da responsabilidade do cabido. Talvez daí o pormenor do auto ter sido assinado no braço oposto do transepto, onde estava então o inicial altar da Ascensão. A confraria veio a funcionar talvez de início e como pediram, no altar de Santo António, mas depois em altar montado na parede nascente da mesma capela, na sequência do altar de S. Roque, que já existia em 1566 (FRUTUOSO, 1968, 347) (Saque dos corsários ao Funchal). Em 29 de outubro de 1572, instituiu-se a Confraria da Ascensão do Senhor, de “irmãos nobres”, cujo pedido a D. Fr. Fernando de Távora partiu de “um nobre da casa d’el-rei” e da qual foi primeiro reitor Gaspar Mendes de Vasconcelos, por certo o interlocutor em causa, chegando a instituição da confraria ao cabido na mesma forma da de S. Miguel. A confraria pretendia celebrar e instalar-se na capela de Santana, referindo o bispo, em Lisboa, que tinham a obrigação de fazer retábulo e obras “conforme suas possibilidades” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, fl. 115), o que não entendemos bem, dado já existir um altar da evocação da Ascensão. As contrapartidas em relação ao cabido eram também nos mesmos termos das anteriores. Os confrades da nova Confraria da Ascensão do Senhor, pouco tempo depois, entre 1573 e 1590, fazendo jus à condição de “irmãos nobres”, encomendariam ao célebre pintor Fernão Gomes (1548-1612) o retábulo para o altar, das melhores tábuas e com as maiores dimensões existentes não só na sé como em toda a ilha, dado possuir mais de três metros de altura. Em 1603, em princípio, temos informação também da existência de uma Confraria de S.to António na Sé. O assunto parece ter sido despoletado por um milagre ocorrido na aluvião do primeiro de dezembro de 1601, conforme escreve Henriques de Noronha. Segundo este autor, nesse dia a Ribeira de João Gomes transbordou e começou a inundar a igreja do Calhau, chegando a “quatro palmos de água, quando os sacerdotes e seculares mais zelosos se arrojaram a salvar o Santíssimo Sacramento e as imagens”. Com a de Santo António se abraçara “Diogo Barbosa, ourives de oiro e a depositou em sua casa”, reparando então “que tinha a cor do rosto desnudada, os olhos elevados ao céu, vermelhos e chorosos, com algumas lágrimas que tinham corrido sobre o Menino Jesus”. A imagem foi depois levada para a igreja de Santiago, posterior matriz de Santa Maria Maior, e “repetiu o Santo outra vez as lágrimas e [foi] justificado o sucesso, primeiro pelo vigário-geral, António Moniz da Câmara, e logo pelo prelado, o venerável bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos”, pelo que, ouvido depois “um conselho de teólogos”, foi lavrada sentença sobre o milagre e a mesma publicada a 12 de janeiro de 1602 (NORONHA, 1996, 338-339). A 23 de maio de 1603, a pedido da Confraria de S.to António da Sé e da congénere de N.ª Sr.ª do Calhau, D. Luís Figueiredo de Lemos, ordenava que fosse “festa de guarda o dia de Santo António” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, doc. 18). A confraria deveria estar em instalação e, com o falecimento do prelado, não se deve ter passado à sua oficialização com estatutos, pois não se volta a referir a Confraria de S.to António da Sé até aos finais do século, quando os mordomos pediram ao Rei a reforma do altar e, na desmontagem do antigo, na tarde de 20 de fevereiro de 1697, o pedreiro Teodósio Pestana caiu de cima do mesmo. O pedreiro salvou-se por ter conseguido agarrar-se à corta do lampadário, tendo o sucedido sido considerado um milagre e lavrando-se auto em 1702 (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 4, doc. 20). Estas organizações eram detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, especialmente no Funchal. Administravam prédios arrendados e foros, que tinham herdado com determinadas obrigações pias, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, e não só, constituindo os juros uma das suas principais fontes de rendimento. Não admira assim que a principal preocupação das autoridades religiosas fosse o controlo das contas e dos elementos colocados à frente das confrarias. Cite-se, e.g., o “instrumento de obrigação de juro a retro”, assinado na casa do cabido da sé a 5 de setembro de 1697, entre o Cón. Pedro Bettencourt Henriques, em nome da Confraria do Amparo, e o P.e Daniel Gonçalves Jardim, por si e em representação da sua mãe e irmãos. A confraria emprestava 100$000 réis com um juro anual de 6$250 réis, “em dinheiro de contado”, “que é por razão do estilo da praça, de 6 e 4 por cento”, isto é 6,25 %. Como garantia, os devedores hipotecavam diversas propriedades na freguesia da Ponta do Pargo, cultivadas de vinhas, árvores de fruto e inhame (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 21, doc. 5). As confrarias estendiam-se, entretanto, por toda a cidade, com sede nas igrejas matrizes, mas também pelos conventos da cidade e da ilha, tal como pelas freguesias rurais e respetivas matrizes, estando também, no entanto, pontualmente sedeadas em determinadas capelas isoladas, as ermidas. Porém, o movimento de doações e de encargos, face à concentração populacional na área do Funchal, quase não tem comparação com o que se passa no resto da ilha. O P.e Francisco Vaz da Corte, vigário de S. Pedro do Funchal, e.g., a 3 de dezembro de 1608, deixou à Confraria do Santíssimo da sua igreja uma naveta de prata para o incenso, “no valor máximo” de 20 cruzados; mas também 15 cruzados à congénere Confraria da Sé e 2$000 réis à da Candelária de S. Pedro, para a ajuda do retábulo; e 2 cruzados por ano à do Bom Jesus da sé, impostos numa fazenda que tinha na Carne Azeda (VERÍSSIMO, 2000, 390). No séc. XVIII, algumas confrarias do Convento de S. Francisco do Funchal funcionavam quase como se se tratassem de casas de penhores, o que aliás acontecia com quase todas as restantes da ilha, mas aqui de forma institucional e oficial, registando o empréstimo, inclusivamente na secretaria do governo em S. Lourenço. A 23 de março de 1757, e.g., o P.e Manuel Franco Herédia, de Machico, solicitou um empréstimo a esta confraria de 20$000 réis, com um juro anual de 1$000, apresentando como penhores um cordão de ouro e um par de sevilhanas, avaliados em 38$950 réis (Id., Ibid.). O Convento de S. Francisco do Funchal detinha uma excecional importância na vida social insular e era tradição, e.g., entre os finais do séc. XVIII e os meados do séc. XIX, os governadores, entrarem para membros da Confraria de N.ª Sr.ª da Soledade como “Irmão Protetor e Presidente da Confraria”, após tomarem posse. O último foi o prefeito e Cor. Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, com a mulher, “a Ilustríssima e Excelentíssima Senhora D. Anna Mascarenhas de Athaide”, que assina o termo a 14 de março de 1835, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da Mesma Confraria” (ABM, Governo Civil, liv. 246, fl. 71). O Convento de S. Francisco do Funchal, entretanto, foi extinto e desocupado por forças militares, a 9 de agosto do mesmo ano de 1834, às ordens do mesmo prefeito, que pouco depois mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Entre os finais do séc. XVI e os inícios do séc. XVII instituíram-se assim confrarias um pouco por toda a ilha, sendo comum, inclusivamente, as pessoas pertencerem a várias confrarias instituídas em várias igrejas, entretanto também abertas a mulheres. Nos meados do séc. XVI, e.g., já se detetam nove confrarias na freguesia de Santa Cruz, sendo ainda criadas no século seguinte as de S. Benedito, dos Santos Passos e da Ordem Terceira de S. Francisco. O testamento de Filipa de Sousa, de 1680, benfeitora da Misericórdia daquela vila, declara que era irmã das Confrarias de N.ª Sr.ª do Rosário, dos Santos Passos, N.ª Sr.ª da Piedade, de S.to António e de S. Benedito. Outra benfeitora, Catarina de Ornelas, tinha declarado, em 1658, que era irmã de N.ª Sr.ª do Rosário, S.to António, Nome de Deus e S. Bento do Convento, que, cremos, era no Convento da Piedade de S.ta Cruz, tal como também aí seria sedeada a dos Irmãos Terceiros (Convento da Piedade de Santa Cruz). A instalação das confrarias no norte da ilha foi mais tardia e difícil, dada a escassez de recursos e o isolamento geral dos pequenos núcleos populacionais. A exceção vai para a freguesia de S. Jorge, com uma certa liderança naquela costa, que logo nos inícios do séc. XVI, a 4 de dezembro de 1515, era dotada com um importante conjunto de alfaias enviadas de Lisboa. Pelos provimentos das visitas da primeira metade do séc. XVII, publicados pelo P.e Silvério Aníbal de Matos, antigo pároco de S. Jorge, temos muitas informações sobre a vivência das confrarias, então montadas sem estatutos superiormente aprovados. Tal terá sido o caso da Confraria do Santíssimo Sacramento, que teria resultado de um privilégio dos reis de Portugal a essa freguesia para celebrar a Festa do Corpo de Deus no seu dia próprio e à qual deveriam concorrer os eclesiásticos das restantes paróquias do Norte. Nos provimentos da visita de 20 de julho de 1647, refere-se um pedido feito pelos irmãos dessa confraria, que dado se terem “comprometido a dar um arrátel de cera cada um, em cada ano para a dita Confraria e os gastos que se fazem com os padres na Semana Santa”, pretendiam colmatar parte dessa despesa com a posterior venda da cera “para pagamento dos ditos padres” (MATOS, 2000, 16), solicitação não atendida pelo visitador. As festas da Semana Santa, a que deveriam acorrer os demais vigários da costa norte, os quais, nesta época, se limitavam praticamente só ao de Santana e a alguns outros que, entretanto, se encontrassem na área, levantaram sempre inúmeros problemas. Na visita de 1636, refere-se que “alguns fregueses se queixam da opressão que tinham em darem de comer aos padres que vinham fazer a festa e que antes lhes queriam dar dinheiro seco” a cada um deles, “pelos três comeres da véspera, do dia e do seguinte”. Nessa altura o visitador estabeleceu então a verba de $450 réis, “os quais lhes darão os mordomos de seus bolsos, não lhe dando de comer”, entendendo que tal dinheiro deveria sair “das esmolas das confrarias”. Entretanto, também o vigário de S. Jorge entendia que deveria ser pago pelo trabalho acrescido desses dias, tal como acontecia aos outros padres, acabando o visitador doutor Lucas Gonçalves Correia, a 18 de agosto de 1650, por entender que deveria ser igualado “na benesse com os vigários das outras paróquias”, até por “saber cantar” e “pelo trabalho dos tais dias, porque conforme sua obrigação, não está obrigado a tanto quanto a devoção cristã se tem aumentado nas procissões, paixões e mais cerimónias da dita semana” (Id., Ibid., 17). A festa do Corpo de Deus, no entanto, envolvia grandes custos e, na visita de 23 de julho de 1681, o cónego Dr. Marcos da Fonseca Cerveira, “informado que os mordomos do orago desta igreja, sendo seis, tinham muitos gastos para assistirem nela à festa do Senhor S. Jorge, mas também em dia de Corpo de Deus”, determinava uma nova articulação dos encargos. Assim, deveriam eleger-se dez mordomos, “a saber, seis para a festa de S. Jorge e quatro para assistirem com o sustento aos padres que vierem para a procissão do Corpo de Deus”, repartindo os encargos por um número superior de fregueses, “para que lhes seja aliviado o gasto” (Id., Ibid., 18). Teria sido na sequência do aumento dos encargos sobre os fregueses, que vinha de uma anterior visitação, que, logo em 1643, “algumas pessoas devotas e zelosas do serviço de Deus” se queixavam ao visitador, o licenciado Francisco Rebelo, vigário da Ponta do Sol, “que se extinguiram nesta igreja de alguns anos a esta parte, algumas confrarias e devoções que nela havia”, pelo que se não faziam as festas a alguns santos, entendendo-se que era “falta muito notável em um povo tão cristão”. O visitador insistia então perante “todos que de novo tornem a ressuscitar as suas antigas devoções, e se ofereçam a servir e festejar os santos, que seus pais e avós com tanta devoção festejavam”, acrescentando: “E obriguem os mesmos Santos a intercederem por eles a Deus Nosso Senhor na Sua Glória” (Id., Ibid., 17). A inicial igreja do calhau de São Jorge tinha altar-mor e dois altares colaterais ou laterais – um dos quais, provavelmente, servindo de altar do Santíssimo –, devotados ao Bom Jesus e a Nossa Senhora da Encarnação. Embora não encontremos referências concretas à articulação interna da matriz, a referência a três altares e as determinações de instituição de confrarias com as devoções do Bom Jesus e de Nossa Senhora da Encarnação levam a pensar já se encontrarem levantados, claro que sem a qualidade dos que viríamos a conhecer na matriz da Achada. As visitações referem ainda a necessidade de constituição de uma confraria do orago da freguesia, o que era obrigatório na sequência das determinações do Concílio de Trento, que funcionaria depois no altar-mor com essa evocação. Nesse quadro, nos provimentos da visita de 1631, o licenciado Francisco de Aguiar determinava “ordenar a Irmandade do Bom Jesus” de modo a que tivesse os seus compromissos devidamente assinados, tal como os da irmandade de Nossa Senhora da Encarnação, para serem assinados e terem “licença do Ordinário”. Os compromissos teriam sido mais ou menos elaborados, pois, 10 anos depois, na visitação de 11 de julho de 1641, o mesmo licenciado Francisco de Aguiar atendia a uma súplica dos irmãos da Confraria de Jesus, que pediam que se “lhes baixasse a pensão de cento e cinquenta réis que todos os anos pagam à confraria, em razão do compromisso da irmandade” para um tostão, ou seja, $100 réis, pelo que o visitador assentou que nessa “parte revogo o dito compromisso e mando que daqui em diante paguem somente um tostão” (Id., Ibid., 16). Mais tarde, nos provimentos de 20 de julho de 1647 do licenciado Simão Gonçalves Cidrão, era de novo determinada a organização da confraria do orago da freguesia: “Mando ao Reverendo Vigário que ordene com os fregueses que haja Irmandade da Confraria de S. Jorge” (Id., Ibid.). Os confrades, em princípio, não elaboravam de forma detalhada os estatutos das suas confrarias, facto de que se queixou, nos meados do século seguinte, o bispo D. frei João do Nascimento (1741-1753) em visitação pessoal a esta e às outras freguesias, mandando então que esses fossem elaborados por toda a ilha, daí resultando a grande parte dos estatutos que conhecemos. Na visita de 1647, também foram registadas outras prescrições referentes à organização económica das confrarias, já determinadas nas Constituições Sinodais de alguns anos antes: “E para melhor governo das confrarias e para que cessem as queixas de se dizer que se salvam os mordomos ou outras pessoas dos sobejos delas, ordeno que se faça uma caixinha de três chaves, dentro da qual se lançará todo o dinheiro e um livro em que se irá assentando o que à confraria pertence”. As indicações do visitador contrariavam em princípio as vigentes depois nas confrarias da Madeira, que determinavam que as chaves ficassem na posse do vigário, do procurador da igreja e a outra de “quem o reverendo vigário e procurador parecer” (Id., Ibid.). Na maioria das confrarias que conhecemos, a maior parte com estatutos dos meados do séc. XVIII, as chaves ficavam com o juiz da confraria, o tesoureiro e o escrivão, embora as duas últimas funções fossem muitas vezes e alternadamente ocupadas pelo vigário da freguesia. O visitador determinava ainda que a “caixinha” deveria estar “em outra, dentro da igreja ou na parte que aos três parecer mais segura, a qual se fará dentro de um mês” (Id., Ibid., 17). Desconhecemos se chegou a ser feita nessa altura a “caixinha” em causa, só havendo depois referência a uma arca das três chaves, mas para todo o serviço da freguesia. A especial devoção da freguesia de São Jorge, no entanto, deveria ser a de Nossa Senhora da Encarnação, devoção que aliás se manterá depois na igreja da Achada. Assim, o cónego Cidrão, na visitação de 1647, faz um provimento curioso, mandando abrir “uma fresta de quatro dedos em largo, e um palmo pouco mais ou menos em comprimento” na porta principal da igreja, “para que os devotos vejam a Senhora e santos e se encomendem mais a eles com mais fervor e devoção”. Uma das referências mais interessantes nos provimentos é a prática penitencial para expiação dos pecados, especialmente nas sextas-feiras da Quaresma e, muito especialmente, na Quinta-feira Santa. Nos provimentos de 1641, estabelece o visitador, sem referir quais as penitências, “que os que se disciplinarem em Quinta-feira das Endoenças ou Sexta-feira da Quaresma, o não façam por entre as mulheres, da porta travessa para cima” (MATOS, 2000, 16-17), donde se deduz ficarem as mulheres dessa porta para a frente e os homens para trás. Tomando como exemplo as confrarias do Porto do Moniz, as mesmas só se teriam instalado verdadeiramente nos finais do séc. XVII, facto de que se queixavam amargamente os visitadores. A Confraria do Santíssimo de N.ª Sr.ª da Conceição, e.g., ainda não estava instalada em 1666, determinando o visitador a sua montagem com a escrituração de um livro onde constassem as entradas de irmãos, bem como a receita e despesa da irmandade. A confraria estava montada nos finais do século, tendo aderido à mesma os principais proprietários locais, mas não era acessível aos restantes fregueses, dado o pagamento de uma cota de $600 réis anuais. Vieram assim a surgir as Confrarias de S. Sebastião, dos Fiéis de Deus, que utilizavam uma bandeira de Misericórdia, mas que pertenciam ao Santíssimo, tendo de ser alugadas, e cujas cotas eram de $060 réis anuais, e ainda uma Confraria das Almas. A Confraria das Almas seria acusada pelo visitador de 1685 de não cumprir as suas obrigações, quer no acompanhamento dos defuntos quer na satisfação das esmolas, que nesta Confraria era de $200 réis. O visitador advertia, inclusivamente nos seus provimentos, que quem não cumprisse o pagamento das “esmolas” deveria ser expulso, excetuando os que, devido à sua pobreza, não pudessem pagar. A situação não melhorou nos anos seguintes e o visitador de 1689 mencionava que as Confrarias das Almas eram das principais em qualquer igreja, ainda que, no Porto do Moniz, parecesse “não haver almas nem quem se lembrasse delas” (RIBEIRO, 1996, 230). Os provimentos parecem não ter tido especial efeito, pois, em 1691, voltava-se a registar em novo provimento que deveria haver um livro de contas e das entradas dos irmãos. Os problemas económicos, quase mais que os religiosos e de costumes, parecem atravessar grande parte dos provimentos das visitações. Assim aconteceu na igreja de S. João Batista da Fajã da Ovelha, em 1678, quando o cónego Marcos Cerveira condenou os empréstimos a juros praticados pelas confrarias e ordenou ao vigário que cobrasse todas as importâncias em dívida, “assim por escritos, como sem eles”, porque eram necessárias à “obra do retábulo” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal, Provimentos e Visitações..., mf. 144-145, fl. 113-113v). Situação diversa era a vivida na cidade do Funchal, onde, embora sempre ocorressem queixas de falta de verbas, as confrarias proliferaram e, com as mesmas, os luxos das suas festas e dos seus altares. Temos assim ainda na Sé as Confrarias do Senhor Jesus, por reforma da de Santa Ana, de N.ª Sr.ª do Rosário e de N.ª Sr.ª do Amparo, devoções comuns aos finais do séc. XVI e inícios do séc. XVII, da Conceição, dos meados do séc. XVII, de S. José e, ainda, a das Almas, com compromisso aprovado pelo bispo, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), a 6 de maio de 1713, e a do Senhor dos Passos, dos meados do séc. XVIII. A Confraria de S. José, incorporando os oficiais carpinteiros e pedreiros, mas também entalhadores e outros, deve ter seguido o exemplo dos sapateiros, instituídos em confraria em 1562, e a dos ferreiros, instituídos em 1572, mas só lhe conhecemos documentação da segunda metade do século seguinte. Um alvará de 23 de dezembro de 1688, assinado pelo arcediago do Funchal, doutor António Valente de Sampaio, por ordem do então vigário geral e provisor do bispado, José Mendes de Vasconcelos, autoriza oficialmente os irmãos da Confraria de S. José a “levarem Cruz em Procissão”, acrescentando que a mesma deveria ser acompanhada de “pelo menos, seis irmãos” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., Regimento Geral das Capelas…, liv. 19, fl. 33). Por essa época, os mordomos da Confraria de S. José da Sé exploravam uma pedreira no Cabo Girão. O problema da pedra regeu-se, durante o Antigo Regime, pelo alvará manuelino de 9 de fevereiro de 1502, que liberalizava o seu corte e utilização enquanto “bem comum”. A primeira dificuldade teria ocorrido nos finais do séc. XVII, sendo objeto de uma sentença do juiz de fora da Ilha, Manuel de Sousa Teixeira, datada de 28 de março de 1696, a favor da Confraria de S. José da Sé do Funchal e contra o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos. O padre entendia possuir direitos contra a provisão citada, “alegando o direito de posse sobre as terras da pedreira de Cabo Girão” e “exigindo um tributo de 600$000 réis, por cada barco de pedra caída e 400$000 réis, de cada barco que se tirasse da mesma pedreira”. O despacho do juiz de fora foi confirmado pelo ouvidor Teotónio Martins de França, a 24 de maio seguinte, e, mais tarde, pelo ouvidor Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723), a 18 de abril de 1698. Subiu ainda à Relação de Lisboa, onde voltou a ter o mesmo despacho, a 15 de dezembro de 1699, assim como o do juiz da Coroa, a 13 de fevereiro de 1700, ficando tudo registado na Alfândega do Funchal (BNP, reservados, cod. 8391, fls. 29-33) e na Câmara do Funchal (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 247v.), devendo o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos pertencer à família dos instituidores da capela de S.to António visto conseguir fazer todos estes recursos. A relevância desta confraria no séc. XVIII é notória pelo recurso à eleição como juízes dos representantes da família dos Bettencourt de Vasconcelos e Sá, onde se sucedem, em 1760, João José de Vasconcelos Bettencourt (1715-1766), reeleito nos anos seguintes, e, em 1768, a irmã, a “Ilustríssima e Excelentíssima Senhora Dona Guiomar Madalena de Sá e Vilhena” (1705-1789), como vem escrito, que assina a partir daí as atas, sendo esta situação, a de uma mulher aparecer como juiz de uma confraria de homens, neste caso dos pedreiros e carpinteiros do Funchal, única na Ilha, com muito pouco paralelo em Portugal (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 25-27, 29 e 32). D. Guiomar assinaria os termos de eleição até 1779, inclusivamente o termo de 17 de maio de 1771, onde se levantou na mesa o problema do empréstimo das cortinas da confraria e onde se deliberou “que nenhum escrivão nem tesoureiro emprestassem as cortinas”, sob pena de pagar “a condenação imposta pela visita”, repor às suas custas as mesmas e “ser lançado fora do serviço” da confraria. Excetuavam-se, no entanto, os empréstimos “a S. Francisco, ao Corpo Santo, ao Rosário, a Santa Clara e ao Carmo” (Ibid., fl. 34). A morgada faleceu em 1789, pelo que na eleição desse ano, a 19 de março, era eleito para juiz o sobrinho, o “Ilustríssimo Senhor” João de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt de Sá Machado (1733-1790), que assina a folha já com uma letra algo trémula (Ibid., fl. 54), falecendo pouco depois. A 15 de novembro de 1790, fez-se eleição para novo juiz e, “na falta de seu pai”, como filho mais velho, foi eleito o coronel Luís Vicente de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt Sá Machado (c. 1752-1798), que assina com uma letra de excecional segurança para a sua época (Ibid., fl. 56). O coronel faleceria em 1798, mas só em 1800 a confraria deve ter conseguido que aceitasse a eleição para juiz o futuro conde de Carvalhal (1778-1837), embora não assine a folha (Ibid., fl. 66). O futuro conde de Carvalhal continuaria a ser oficialmente juiz da confraria até 1808, quando já saíra da ilha em 1802. Na eleição de 20 de março de 1809, presidida pelo cónego João Francisco Lopes Rocha, que assina o termo, já não se faz referência à eleição de qualquer juiz, o mesmo acontecendo na seguinte, a 20 de maio de 1814, presidida pelo mesmo cónego, agora também arcediago, que já nem assina a ata. Como se pode ver pelo espaçamento das datas das eleições, as velhas confrarias dos ofícios agonizavam lentamente, não havendo referência a mais eleições até aos meados do séc. XIX. As confrarias religiosas foram confrontadas ao longo do séc. XVIII com uma complexa situação de centralização do poder régio. Ao longo desse século, as relações da corte portuguesa com Roma foram um longo "braço de ferro", tentando-se transformar a igreja em Portugal numa “igreja portuguesa”, logo sob a superintendência da coroa e dentro de um processo de centralização do poder régio. Em relação à Madeira, numa primeira fase, assistimos à tentativa do recrudescimento do papel da Inquisição e, depois, à campanha rigorista da “jacobeia”. A campanha dos bispos jacobeus na Madeira assentou num especial rigorismo de interpretação dos preceitos religiosos, com enfâse na prática da confissão, na educação do clero, na moralização geral dos costumes e na centralização do poder episcopal, com o primeiro prelado jacobeu, D. frei Manuel Coutinho (1715-1741), e, após o terramoto de 1748, com o seu sucessor, D. frei João do Nascimento. Os princípios por que se orientavam os jacobeus assentavam no propósito de fazer observar escrupulosamente os preceitos religiosos do catolicismo, tanto ao nível do clero como entre os seculares. Tentavam adequar os costumes das populações à ética cristã, aprofundando uma piedade mais espiritual e interior do que ritualista, estimulando a prática quotidiana da “oração mental”, o regular exame individual da consciência, a correção fraterna dos que pecavam, a frequência dos sacramentos, com particular destaque para a confissão, a mortificação dos vícios e das paixões desordenadas, os jejuns, o desprezo do mundo, a pobreza no vestir e a frugalidade no comer. Nesta mesma linha de cuidados, surgia a necessidade de se observarem as contas das confrarias, das quais não se encontravam registos em quase lugar nenhum, o que se atribuía à incúria de um clero pouco vigilante, depois das capelas e legados pios, dos conventos e recolhimentos, etc. As reações dos clérigos ficaram traduzidas no relatório que o vigário geral apresentou ao bispo em finais de 1725. Nesse relatório foram apresentadas as queixas dos ministros eclesiásticos por serem obrigados a fazer exame, a apresentar habilitações “de genere”, a entregar a tempo os róis de confessados, a dar as contas das confrarias, etc., o que de todo estranhavam, “dizendo que o rigor era demasiado” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., doc. 270, fls. 195-202). A situação da freguesia de S. Jorge face às novas diretivas emanadas pelo bispo D. frei Manuel Coutinho está bem patente na visita de 10 de outubro de 1727 feita pelo doutor Silvestre Lopes Barreto, vigário e ouvidor eclesiástico da colegiada de N.ª Sr.ª da Conceição da vila de Machico, àquela freguesia, quando era ali vigário o P.e António Fernandes Barradas. Regista o visitador nos seus provimentos que achara não existir “livro do tombo das missas e obrigações e pensões anexas”, mas “tão-somente uma pauta muito diminuta”, ordenando que “em termo de seis meses” se fizesse o respetivo tombo, onde se haveria de registar os encargos, legados e obrigações, que se era preciso ir sempre atualizando. O mesmo se deveria passar em relação a cada uma das confrarias e às ermidas, acrescentando ainda que, em relação às missas, havia então determinações muito específicas do prelado para se não aceitarem “pensões de missas perpétuas”, salvo se com seu consentimento (MATOS, 2000, 17). Teceu em seguida o visitador uma série de considerações sobre as confrarias, com especial destaque para o que se encontrava regulado pelas Constituições Extravagantes sobre a eleição dos novos mordomos, de que se deveriam fazer os termos de eleições, as responsabilidades dos tesoureiros e do vigário, que deveria aprovar as contas do tesoureiro, etc. Explicava ainda os inconvenientes resultantes da falta de registos, como era o caso “do grande número de missas caídas, a que era obrigada a dizer a Confraria de N.a Sr.a da Encarnação desta igreja, que todas mando satisfazer para alívio e bem das almas dos testadores” (Id., Ibid.), onde se deveriam encontrar as inúmeras missas deixadas no testamento do P.e Tomé Caldeira. Silvestre Lopes Barreto refere ainda a vistoria que fizera no Livro da Arca das Três Chaves, onde achara “tudo na mesma confusão, no lançar do dinheiro na dita arca e nos termos do dito livro”, voltando a insistir na separação das entradas e das saídas, assim como nos títulos dos bens das confrarias. Sobre os fregueses de S. Jorge, refere o visitador que fora informado de que, devendo ir ouvir missa, chegavam atrasados, pelo que determinava “que dobrando o sino pela segunda vez” viessem todos para a igreja, para que à terceira vez que tocassem os sinos já estivessem todos reunidos para ouvir o vigário, sob pena de multa em $200 réis “para a fábrica da igreja”. O visitador também fora informado de outras infrações no adro da igreja, “ajustando contas e armando conversas, de que muitas vezes resulta haver pendências e gritadas”, tudo contribuindo para o descrédito dos lugares sagrados. Os infratores deveriam ser multados também em $200 réis, mas pagos no aljube (ABM, S. Jorge, Registo de Provimentos..., mf. 681, cota 58, fls. 1-3v.). A seguinte visita ocorreu a 28 de agosto do seguinte ano de 1728, então pelo bispo D. Fr. Manuel Coutinho, cujos provimentos se iniciam com uma ríspida admoestação ao P.e António Fernandes Barradas, na medida em que este não tinha elaborado o “tombo da sua igreja”, nem o que dizia respeito às “missa e obrigações”, ameaçando-o “com pena de suspensão do seu ofício” se não desse princípio àquela obra e continuasse a ter somente uma “pauta das missas”. Dava-lhe assim mais seis meses para elaborar os tombos, após o que viria a S. Jorge o juiz dos resíduos para “tomar conta das capelas nesta paróquia” (Ibid., fls. 35v.-36v.), mas o vigário, quase de imediato, era afastado. O projeto de D. frei Manuel Coutinho era o de “plantar nova cristandade” no território insular, como se registou nas memórias que mandou elaborar sobre o seu trabalho na Madeira. A delimitação da área de manobra das confrarias, a tentativa de chamar à diocese o controlo absoluto sobre os legados pios, envolvendo os bens e seus encargos, criou uma profunda crispação que, aliás, foi apanágio de todos os episcopados jacobeus, como o do seu sucessor, D. João do Nascimento, dentro de um programa de ação rigoroso e reformador, que raramente conheceu desvios. Data deste episcopado a reforma de uma parte substancial dos estatutos das confrarias madeirenses e a criação de uma nova confraria, a dos Escravos de Nossa Senhora do Monte, a 6 de abril de 1750, “dia em a Igreja Católica solenizou os Prazeres da mesma Senhora”, na sé do Funchal e em todas as mais igrejas, revelando bem o título adotado o espírito jacobeu estirado no compromisso de serem “escravos servos” (ABM, Confrarias, liv. 53, fl. 1). Numa segunda fase, temos a centralização pombalina, que levou à extinção da Companhia de Jesus, “um estado dentro do próprio Estado”, à delimitação das entradas nos conventos e ao controlo económico das confrarias. O governo da Diocese foi então entregue a D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que se pautou por um certo autoritarismo, certamente inspirado no gabinete pombalino e, provavelmente, no facto de ter iniciado o seu episcopado na Madeira, assumindo o governo de armas. Assim, em 1760, o juiz dos resíduos e provedor das capelas, Pedro Nicolau de Bettencourt Freitas, queixava-se do bispo e do vigário-geral pela prisão arbitrária e vexatória do seu filho João José Bettencourt e Freitas e do seu irmão Francisco José Bettencourt e Freitas. O problema da provedoria e do juízo das capelas, onde constavam os registos das missas das confrarias, mas não só, arrastou-se com as interferências contínuas do prelado em tudo o que dissesse respeito a esse assunto e não pararia de extremar até aos finais do século, pois era impossível cumprir os legados pios estipulados, por vezes, centenas de anos antes. Entre as principais lesadas estavam as confrarias, cuja vida assentava, principalmente, nos legados pios, assunto que em breve passava para o foro civil, sob a tutela do governador. No quadro da centralização régia, em 1766, procedera-se à incorporação na coroa das capitanias, sendo estas extintas na déc. de 90 juntamente com as ouvidorias. Procedeu-se também a reformas na organização religiosa, na tentativa de reduzir as regalias, posse de bens e a percentagem de membros pertencentes ao clero em relação à população ativa, aspectos que começaram a ser sensíveis logo em 1766 com a retirada progressiva da superintendência do bispo sobre as confrarias, passando nessa altura a aprovação dos estatutos para a coroa, assunto que levaria anos a resolver. Foram igualmente colocados em causa os beneficiados da diocese, ordenando, uma vez mais, o rei, a 27 de julho de 1768, o envio de listas completas e atualizadas de todos os beneficiados e de todas as colegiadas insulares. Acumulavam-se, entretanto, em Lisboa as queixas contra a ação do prelado e dos seus visitadores, principalmente na área dos resíduos e capelas. Uma das queixas foi emanada pela câmara da Ponta do Sol, em novembro de 1779, e assinada por todos os vereadores. A queixa era acompanhada de um relatório assinado pelo então provedor José Vicente Lopes de Macedo Correia e referia as violências e vexames praticados pelo visitador eclesiástico, bacharel Manuel Roque Ciríaco de Agrela, com os tesoureiros e administradores das confrarias e irmandades da Ilha, narrando circunstanciadamente vários casos (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 542 e 553). As queixas repetiram-se no ano seguinte, novamente pelo provedor e então também pela Câmara Municipal do Funchal, envolvendo, genericamente, os abusos e excessos de jurisdição frequentemente exercidos pelo bispo e seus visitadores, vigários e párocos sobre as confrarias. A situação não deixou de piorar nos anos seguintes e, com a chegada do novo governador João Gonçalves da Câmara Coutinho, em 1777, o ministro Martinho de Melo e Castro (1716-1797) teve mesmo de admoestar o governador e o bispo. A carta abre com um pedido de desculpas: “Vossa Senhoria desculpe a um ministro velho, com alguma experiência do mundo, a sincera liberdade do que lhe disser; na certeza de que toda ela nasce do ardente desejo que tenho de que sirva bem”. Ao longo de 16 páginas, não deixando de criticar a ação do bispo, “demasiado zeloso”, e do vigário geral, “mais pronto a atear conflitos, que os resolver”, admoesta o governador para que não se repetissem mais questões entre as duas autoridades, “para que nem Vossa Senhoria tenha o desgosto, nem eu o pesar, de que elas cheguem à Real Presença” (Ibid. doc. 71, fl. 15). A nomeação para novo bispo do Funchal recaiu em D. José da Costa Torres (1741-1813), prelado que iria enfrentar corajosamente, acrescente-se, uma das situações políticas e económicas mais complexas da história portuguesa e insular, com o rescaldo da guerra de independência das colónias inglesas da América do Norte, de 1775 a 1782, e, depois, as ideias maçónicas que iriam conduzir à Revolução Francesa, em 1789. A ação do prelado estendeu-se depois, mais uma vez, ao juízo da provedoria dos resíduos, sobre a qual exerceu algumas pressões que parecem ter-se estendido ao “conteúdo das contas”, pelo que o tribunal da mesa da consciência e ordens, em 16 de outubro de 1780, ordenou ao governador: “fareis ouvir por escrito ao reverendo bispo do Funchal” sobre esse assunto, devendo depois comunicar os resultados aos deputados daquela mesa (ABM, Governo Civil, liv. 535, fls. 13v.-14). Em causa estava a superintendência régia sobre o juízo dos resíduos e capelas, estabelecida deste a vigência do gabinete pombalino, sobre o que, logicamente, a Igreja mantinha as maiores reservas, entendendo ser assunto seu. Tentou a igreja madeirense nesses anos recuperar algum espaço de manobra perdido anteriormente através de uma nova imagem, de acordo com os gostos da época, dentro da tentativa de recuperação do antigo protagonismo regional do prelado. As obras envolveram a abertura de duas grandes janelas na fachada e a montagem de uma varanda corrida e, interiormente, o alargamento das paredes das naves laterais para que aí tivesse lugar a remontagem da maioria dos altares das confrarias, até então no transepto. O problema foi a sequente montagem dos altares, a que as confrarias, de certa forma, resistiram. Para fazer face à situação, D. José da Costa Torres tentou acabar com as antigas irmandades de ofícios, que haviam levantado parte dos altares do transepto, por provisão episcopal de 18 de abril de 1792, alegando a sua “irregular ou nula administração”, passando os seus documentos e receitas para a fábrica da sé, que se encarregou do cumprimento das respetivas obrigações pias. O assunto, no entanto, não era linear e as confrarias tinham, de certa forma, personalidade jurídica independente, pelo que, embora não afrontando o prelado, os novos altares só vieram a ser montados nos anos seguintes. Tal como no continente, também na Madeira se viveu um clima de grande agitação com a proclamação da Constituição de 1820, a reação absolutista de 1823 e a Carta Constitucional de 1826. Se, por um lado, era ideia dos liberais a completa separação entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa e a delimitação de outras áreas, como a que conduziu à extinção imediata dos conventos, por outro lado, tiveram que contemporizar com toda uma tradição ancestral, definindo a Carta Constitucional que os portugueses apenas podiam professar a religião católica romana, credo oficial do reino. A partir desta data, algumas confrarias iniciam timidamente a sua reformulação, enviando os seus novos estatutos ao governo de Lisboa, como a Confraria de S. Miguel da Sé, que os reforma em 1819 e em 1839. Com os acontecimentos políticos que se desenrolaram com a implantação do governo constitucional, e que protelaram o preenchimento das dioceses em Portugal, houve uma rutura entre o governo português e a cúria romana. Assim, o bispo D. Francisco José Rodrigues de Andrade (1761-1838) saiu da Madeira em maio de 1834 e só em junho de 1843 foi confirmado D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1810-1862) como bispo do Funchal. Chegado ao Funchal no ano seguinte, foi durante o seu episcopado que ocorreram as sedições contra os calvinistas e, com a chegada à Madeira de José Silvestre Ribeiro (1807-1891) em finais de 1846, também o bispo D. José Xavier saía, nos inícios de 1848, do Funchal, ficando a sé vacante até meados de 1859. A atuação dos seguintes governadores foi algo mais contemporizadora e a da Igreja mais tradicional. Dentro de uma nova segurança, tentou então recuperar algumas das suas estruturas, incentivando as velhas confrarias, como podemos ver no Livro da Confraria de São José. Por ata de 20 de fevereiro de 1859, tentou-se assim a reativação da confraria. Tinha então falecido o último tesoureiro, António Rodrigues Santos, pelo que os confrades rogaram a presença do cónego João Frederico Nunes, “atual Mordomo da Reverenda Fábrica” da sé, para que presidisse à sessão, “fazendo as vezes de conservador, como é costume na confraria”, pedido a que o mesmo anuiu, tomando assento na mesa (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 73). Até então, no entanto, nunca tinha sido costume nesta confraria a figura do “conservador”, embora existente noutras confrarias, como na do Senhor Bom Jesus, citado desde 1735 nos estatutos da confraria e entregue a um capitular, e na Confraria de S. Miguel, lugar entregue ao próprio deão. Compareceu então à eleição da nova mesa da Confraria de S. José o genro do falecido tesoureiro, que pediu à mesa “em seu nome, pelos mais herdeiros, suas cunhadas e sogra” que tomasse conta das alfaias, livros e mais objetos pertencentes à confraria, à guarda do seu sogro, e que os desobrigassem dessa responsabilidade, o que, depois de conferido, foi aceite. Foi então eleito o cónego para conservador, “por escrutínio secreto”, tendo este aceitado. Foi ainda solicitado ao mesmo cónego que escrevesse ao 2.º conde de Carvalhal (1831-1888) participando-lhe de que havia sido eleito para juiz da confraria, “como tem sido feito aos Maiores de Sua Ex.ª”, colocando-se em primeiro lugar o nome de D. Guiomar, depois João de Carvalhal, o filho e coronel Luís Vicente de Carvalhal “e, ultimamente, o falecido Exmo. Sr. Conde de Carvalhal”, que aliás falecera em 1837, ou seja, 22 anos antes (Ibid., fl. 74). Foi ainda decidido aceitar como novos irmãos os oficiais dos diferentes ofícios de carpinteiro e pedreiro, “que espontaneamente comparecerão e declararão que queriam entrar”, perdoando-se-lhes, “por essa ocasião somente”, “a joia do costume” ($400 réis), ficando a pagar anualmente $100 réis no dia da festa do orago. Seguidamente, foram então eleitos o tesoureiro, o escrivão e os 12 mesários e mordomos (Ibid., fls. 73v.-74v.). O livro apresenta depois algumas folhas em branco e, a folhas 77, uma interessante cartela, embora algo ingénua, encimada pelas armas do 2.º conde de Carvalhal e com o termo de eleição do conde, assinada por “O Irmão da Mesa servindo de secretário o fiz e assino”, António Joaquim Abreu Jardim. Mais à frente, aparece a lista dos “Irmãos antigos” (Ibid., fls. 79-82v.), somente 10, e a lista dos novos irmãos, que entraram naquele dia 20 de fevereiro de 1859, discriminados com o nome completo, estado e morada: 113 membros, o que não deixa de ser espantoso. A 5 de maio do mesmo ano, ainda entraram mais 17 irmãos, a 26 de fevereiro do seguinte ano de 1860, mais 5, a 28 de abril, mais 1 e, a 29, mais 2. No entanto, as folhas seguintes estão em branco, sinal de ter sido “sol de pouca dura”. As confrarias de ofícios tiveram um importante papel de coesão social no Antigo Regime, estabelecendo normas de comportamento, disciplinando e desenvolvendo hierarquias, bem como socorrendo e prestando assistência, especialmente aos doentes, pobres e defuntos. Com a centralização do poder régio, a partir do gabinete do marquês de Pombal, o seu controlo passou a ser objeto de disputa entre a Coroa e a Igreja, sendo progressivamente cerceada a sua autonomia, que se apagou discretamente ao longo do regime liberal. As velhas confrarias dos ofícios extinguiam-se, assim, progressivamente ao longo da segunda metade do séc. XIX, resistindo somente as sacramentais, ou seja, as do Santíssimo e as dos oragos de cada freguesia. Pontualmente, no entanto, subsistem outras, renascendo também algumas dentro de uma certa liturgia de celebração, no âmbito, hoje exclusivo, das paróquias. Não é, pois, de excluir futuros renascimentos de associação e devoção que nos ultrapassam, como a adesão de mais de 100 novos membros à confraria de São José da sé em 1859.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

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impostos e revoltas

A nossa história regista várias convulsões geradas por decisões em torno dos impostos. Entre elas, assinalamos as lutas da Patuleia, em parte, envolvendo o tema da atualização das matrizes; a Janeirinha, contra o imposto de consumo; e a Saldanhada, que compreendeu questões concernentes ao sistema fiscal. Estes tumultos refletiram-se na história do arquipélago da Madeira, onde se referenciaram algumas insurreições contra o lançamento ou a existência dos impostos em causa. Palavras-chave: impostos; tributação; revoltas; guerra; política. Os impostos nunca mereceram a aceitação da população, daí o seu nome. A nossa história regista diversas convulsões geradas por medidas concernentes a impostos e tributos. Entre elas, no séc. XVII, a Revolta do Manuelinho, que alastrou de Évora a Lisboa e Beja. Mais tarde, aconteceram as lutas da Patuleia, em parte, envolvendo o tema da atualização das matrizes; a Janeirinha, contra o imposto de consumo; e a Saldanhada, que compreendeu questões respeitantes ao sistema fiscal. Estes tumultos refletiram-se na história do arquipélago da Madeira, onde se referenciaram algumas insurreições contra o lançamento ou a existência destes impostos. “Maria da Fonte” ou “Revolução do Minho” é o nome por que ficou conhecida a revolta popular que irrompeu em maio de 1846 contra o governo do partido cartista chefiado por António Bernardo da Costa Cabral. A situação de tensão política do país, associada ao descontentamento popular, em consequência de algumas medidas governamentais, como as leis de recrutamento militar, as alterações fiscais e, acima de tudo, a proibição de realizar enterros dentro de igrejas conduziram a esta revolta popular. À sublevação inicial, sucedeu, a partir de 6 de outubro, uma situação de guerra civil que ficou conhecida como “Patuleia”, situação acima referida, e que perdurou até 30 de junho de 1847, altura em que foi assinada a Convenção de Gramido. Um dos principais motivos desta convulsão social foi a lei de 19 de abril de 1845 que dividiu a décima em outros três impostos: a contribuição predial, industrial e de juros. A queda do governo inviabilizou esta alteração tributária que foi revogada pelo dec. de 22 de maio de 1846, adiando a sua aplicação e obrigando-a a ser feita de forma faseada, mais tarde. Durante o último quartel do séc. XIX, estes foram um dos principais rastilhos das diversas convulsões populares que aconteceram por toda a Ilha, em 1880, 1897, 1899. À voz dos deputados, juntou-se, em 1887, a dos populares que se revoltaram, por toda a Madeira, contra a medida de implantação das juntas de paróquia criadas em 1836 e que foram adiadas por força do código administrativo de 1886 A oposição popular surgiu quando se divulgou a ideia de que, das mesmas juntas, resultariam novos impostos. Esta revolta representou a expressão do descontentamento popular perante o abandono a que a Ilha fora votada, o que se tornava evidente em momentos de aflição. Mas as juntas de paróquia não funcionaram em muitos dos casos e, apenas com a promulgação do código administrativo de 1886 se pretendeu implantar a referida estrutura na Ilha. O temor de que fossem portadoras de novos impostos conduziu a motins populares aquando das eleições para as mesmas, ficando estes conhecidos como “Parreca”. Os desacatos aconteceram por toda a Ilha, entre 1887 e 1888, com especial incidência no Faial, Caniço, Ponta de Sol e Santana, obrigando ao envio de batalhões militares dos Açores e de Lisboa. Em São Vicente, estes desacatos resultaram na queima de toda a documentação do arquivo municipal, perdendo-se, irremediavelmente, o que estava aí depositado. Em Ponta Delgada e Boaventura, resultaram na não concretização do ato eleitoral para as juntas de paróquia. Em qualquer uma destas convulsões, os agitadores políticos serviram-se dos argumentos que mais faziam alimentar o descontentamento popular. No concelho de São Vicente, estão referenciados tumultos da população, tendo dois como origem o sistema de cobrança de impostos. O mais relevante ocorreu em 12 de abril de 1868 e levou à destruição total do arquivo camarário, tal como referimos. Os tumultos confundem-se com a convulsão política que ocorreu a 8 de março de 1868 e que ficou conhecida como “Pedrada”. As eleições acirraram os ânimos entre os defensores dos partidos Popular e Fusionista e foi esta conjuntura de afrontamento que fez despoletar a revolta popular tendo como objetivo a aplicação do decreto sobre o sistema métrico decimal e a abolição do imposto indireto sobre a eira e o lagar que foi substituído pela contribuição predial. A rebelião alastrou também às diversas autoridades das freguesias. O governador civil enviou forças militares da Ponta do Sol e do Funchal, que aí se mantiveram por algum tempo, sendo suportadas pelo município. O maior problema daqui resultante foi a perda de documentação do arquivo municipal, à qual antes aludimos, que teve implicações negativas na administração corrente dos anos imediatos. Na verdade, quase toda a documentação concelhia foi levada pela população enfurecida e devorada pelas chamas. Assim, de data anterior, apenas restaram quatro livros de registo de testamentos (1801-1834), um livro de despesas do hospital provisório de São Vicente, lavrado aquando do surto de cholera morbus (1856), quatro livros de correspondência para as diversas autoridades do concelho (1843-1867), quatro livros de correspondência expedida às autoridades superiores do distrito (1845-1866) e outros quatro de registo de testamentos (1842-1878). Tudo o mais se perdeu. Depois disto, a população do concelho parece ter adquirido a fama de arruaceira. Sempre que eram tomadas decisões com implicações diretas na vida da população, o temor das autoridades camarárias era evidente. Em 1897, a vereação ordenou ao administrador do concelho que fizesse um auto de investigação para apurar a verdade sobre certos boatos subversivos contra a câmara, que era acusada de falsear as disposições das posturas atribuindo-lhe providencias e lançamentos de impostos revoltantes, talvez com o fim de levar o povo à sublevação. Sabe-se que, na freguesia do Seixal, havia ocorrido, em janeiro de 1868, uma manifestação de desagravo pela revisão das matrizes, o que obrigou a comissão revisora a abandonar o serviço. Certamente, em face disto, a vereação fez sentir, em 1899, a necessidade do serviço de três guardas-civis para a repartição, que apresentava tanto valor e destacou a “importância das loucuras dos contribuintes, face a um concelho tão populoso como este, que se acha excitado não só para praticarem os mesmos desatinos que os povos de Santana, como talvez perdas da Fazenda” (VIEIRA, 1997, 39). Tantas cautelas da câmara não impediram que, noutros momentos, não tivesse havido tumultos, como os que sucederam em abril de 1911, face às medidas governamentais que determinavam o encerramento das fábricas de aguardente. A 20 de março, a câmara apelara às autoridades para a necessidade de revogar esta decisão, face aos receios da ira popular, mas a resposta do governo foi o envio, em segredo, de uma força militar que não impediu que a revolta acontecesse. O resultado foi a prisão de 10 dos revoltosos: Manuel de Sousa Marinheiro, João José Serra, António Sebastião Costa, Vicente, filho de Vicente Vieira, Gregório Fernandes, Francisco Fernandes, João António Gonçalves, Manuel Pereira, Manuel Gonçalves Bacalhau e Manuel Pestana. Em 1880, a câmara decidiu lançar o imposto ad valorem, baseando-se a medida na necessidade urgente de criar receitas para satisfazer as despesas obrigatórias a que era mester atender a fim de conseguir-se o equilíbrio do orçamento da receita e despesa municipais. O imposto incidia sobre todos os produtos exportados do concelho: vimes, cana, carne, coiros, peles, cereais, vinho aguardente, aves, batata, lenha, madeira, nata e manteiga, bordados. O imposto motivou, uma vez mais, a ira popular, sendo um primeiro indício disso as afirmações do comandante da guarda fiscal, Manuel Filipe de Andrade, que havia “afirmado que o imposto ad valorem foi lançado apenas com o intuito de com o rendimento dele os vereadores comerem jantares, ceias e galinhas, isto em São Vicente, e de haver também escutado no Funchal que a atual vereação e município era composta de malandros sabendo ainda a comissão que o dito fiscal nunca perde o ensejo de poder maldizer quer da vereação quer dos seus atos” (Id., Ibid.). A hecatombe eclodiu no dia 10 de julho e levou a vereação a revogar tal imposto. Não sem antes criticar esta atitude. Assim, “considerando que, a forma tumultuosa dos movimentos populares dos dias dez e doze do corrente mês de julho neste concelho e vila, provou que a multidão por palavras e obras se revoltara com o intuito de não pagar impostos municipais, nomeadamente o imposto ad valorem e cuvatos; considerando que tais atos de rebelião coíbem e são a variação municipal duma ação proveitosa e útil dos seus esforços em benefício do mesmo município” (Id., Ibid.). No dia 10 de julho, um grupo de moradores de Boaventura marchou sobre a vila de São Vicente, onde chegou um grupo de mais de mil pessoas, que, em pouco tempo, duplicou. O primeiro alvo da ira foi Heliodoro de Sousa, oficial da repartição do Registo Civil e presidente da comissão executiva da câmara. Os populares acusavam-no de cobrar pelas cédulas um valor superior ao estabelecido no dec. 9521, de 14 de abril de 1924. Foram cercados os edifícios públicos e as casas dos seus responsáveis, que foram obrigados a fugir. Para serenar os ânimos, o Governo enviou uma força, no mesmo dia, que sitiou a vila. Alguns populares da Vargem e de Ponta Delgada obrigaram certas personalidades locais, mais influentes, a acompanharem-nos à vila. Os tumultos alargaram-se à Ribeira Brava e a Câmara de Lobos, municípios onde também se havia lançado o referido imposto ad valorem, criado em 1920 para taxar as mercadorias de exportação para fora do concelho. O relato dos acontecimentos correu nos periódicos funchalenses e despertou a atenção das autoridades. A 11 de julho de 1920, o Diário de Notícias do Funchal questionava a legitimidade das câmaras para sobrecarregar os seus munícipes com estes pesados encargos: “Não se capacitarão as câmaras municipais de que são mandatárias do povo e que, portanto, se eles impõe o dever de fiel e lealmente interpretarem o sentimento dos seus eleitores?” (VIEIRA, 1997, 41) Entretanto, o governador, em circular de 14 de julho, recomenda às câmaras a revisão deste imposto, a exemplo do que sucedera nos Açores. Todavia, a inevitável solução foi a sua extinção, que ocorreu a 11 de julho, na Ribeira Brava e só a 22 do mesmo mês, em São Vicente.   Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

História Económica e Social

imposição do vinho

A necessidade de encontrar uma fonte de receitas para cobrir as despesas do concelho levou os funchalenses a propor ao senhorio o lançamento da imposição do vinho sobre a venda do vinho “atabernado”, o que veio a acontecer em 22 de março de 1485. Para tal, solicitou-se o traslado do regimento da imposição do vinho aprovado para a cidade de Lisboa, que veio a ser publicado a 11 de junho de 1486. O lançamento da imposição do vinho foi determinado, em 1484, por D. Manuel, a exemplo do que se fazia no reino com o real do vinho e da água, ficando a receita para “enobrecimento e cousas do concelho” do Funchal (VIEIRA, 2003, 305). A imposição enquadra-se no conjunto de impostos camarários indiretos, uma vez que só a partir do séc. XVII passou para o controlo do erário régio e a receita a ser repartida. A imposição incidia também sobre outros bens de consumo para além do vinho. Destes, temos nota da carne, cereais, farinha e biscoito. Da referente aos cereais, sabemos que foi arrecadada em 1485, mas, depois, com as dificuldades relativas ao abastecimento deste produto, foi levantada por algum tempo, estando de novo implantada em 1488, altura em que sabemos ser esta de 1 real por alqueire. Para a arrecadação da imposição sobre a venda da carne, a Câmara do Funchal nomeava um oficial, com o encargo de assistir nos açougues ao peso da carne lançado, partindo daí o imposto. De acordo com o lançamento do imposto de 1484, a incidência era sobre o vinho vendido nas tavernas, onerando-se as transações locais entre o comerciante ou produtor e o taberneiro. Todos os que vendessem vinhos deveriam comunicar ao vereador que “o dito carrego tiverem pera se lhe ser esprito o perco a que o puser e lhe ser lancada a vara pera se saber quantos almudes tem […]. Do mesmo modo o mercador fara saber aos oficiais que o carrego teverem, todos os vinhos que trouxer e dos que vender atavernados sera obrigado a fazer a saber ante do abrir pera lhe ser esprito o preço e lhe ser lançada a vara [...]” (Id., Ibid., 305). Aos infratores aplicava-se a pena de 1.000 reais e “mais lhe sera logo levado em cheo todo ho que a dita pipa ou toda ou quanto avia de render a dita renda [...]”(Id., Ibid., 305). O taverneiro que baixasse o preço do vinho deveria participar ao escrivão e ao varejador, para a imposição da quantia ser arrecadada pelo novo preço, ou seja, “uma canada de vinho por almude de 13 canadas por canto a recebe em dinheiro do pouo que asy do dito vinho bebe” (Id., Ibid., 305), enquanto do vinho vendido na pipa deveria ser retirada uma canada ou um almude de 13 canadas. Para a arrecadação do referido imposto, a Câmara estabeleceu três funcionários: o varejador, o escrivão e o recebedor, que respondiam perante a vereação. A arrecadação desta renda fazia-se por arrematação, o que acontecia, anualmente, na presença do governador e do capitão general, do juiz de fora, dos vereadores, do procurador do Concelho e do procurador da Real Fazenda. O porteiro da Câmara, com um ramo verde na mão, fazia o pregão, que era dito durante “muito tempo” (Id., Ibid., 305). Os interessados faziam os lanços, sendo arrematado aquele que apresentasse valor mais elevado, recebendo ele o ramo. Antes de ficar legitimada a sua função de arrecadar a imposição, o arrematante deveria apresentar um fiador e prestar juramento. Para se proceder ao lançamento do tributo, o escrivão da Câmara fazia, no início do ano, uma vistoria às tabernas e lançava, num rol, o vinho aí existente. A partir deste rol, era arrecadada a imposição pelos rendeiros ou recebedor da Câmara. A vereação deveria igualmente nomear, de entre os mesteres, dois varejadores para procederem à vistoria do vinho. O arrieiro-mor conduzia os vinhos às tavernas. A eficácia das medidas de arrecadação do novo direito só foi possível com o recurso a um quadro administrativo. O cargo de condutor de vinhos para as tabernas, com o encargo de aí fazer chegar o vinho, mediante manifestos, foi criado para tornar o controlo da circulação dos vinhos mais eficaz. O varejador percorria as tabernas ou casas onde se vendesse vinho e lançava a vara em todas as vasilhas, dando conta ao escrivão da quantidade disponível, do preço de venda e do dia em que tinha procedido ao varejamento. O recebedor tinha o encargo de proceder ao recebimento e à arrecadação do dinheiro, tendo um livro onde assentava a conta, para dela ser deduzida a soma a pagar e dela dar notícia aos oficiais da Câmara, ao recebedor e ao escrivão da Câmara. O dinheiro coletado começou por ser usado no custeamento das despesas correntes da Câmara, mas, depois, em 1489, foi consignado ao que então se entendia como o “nobrecimento desta vila” (Id., Ibid., 305) e que incluía diversas obras públicas, como caminhos e pontes. Desta forma, por ser uma principal fonte de renda, foi usada, de várias formas, na realização de diversas obras e no custeamento de diferentes despesas. Em 1508, dois terços da imposição das carnes foram aplicados nas obras do baluarte e da fortaleza do Funchal, ficando, assim, estabelecidos dois ramos de arrecadação desta imposição. Nesta mesma data, ficou igualmente estabelecido que a imposição seria de duas canadas por almude de 14 canadas, isto é, um sétimo do vinho vendido nas tavernas. Por alvará de 20 de setembro de 1516, D. Manuel mandou aplicar parte deste produto à construção do hospital do Funchal. Para o período de 1581, foram aplicados dois terços da renda para as despesas de abastecimento de cereal à cidade. Em 1663, nos concelhos de Santa Cruz e Machico, estas rendas foram repartidas entre as obras das igrejas que estavam arruinadas e a construção dos muros das ribeiras. O valor da cobrança era de duas canadas em cada almude de 14 canadas, ou a sétima parte, o que equivale a 14,3 % de imposto. A partir do séc. XVII, a Câmara ficava apenas com um terço do tributo, sendo o remanescente receita da Coroa. O fiador do rendeiro tinha de ser pessoa “abonada”, caso contrário havia quebra de contrato, repetindo-se o ato da arrematação, poucos dias depois. O taverneiro estava igualmente obrigado a apresentar fiador, “para que ele possa na sua taverna vender vinho e tudo o que nele tiver para vender” (Id., Ibid., 305), pagando a imposição. Este imposto incidia sobre o vinho vendido a retalho, havendo obrigatoriedade de os proprietários manifestarem o vinho, ato que era repetido, anualmente, antes de começar a venda do vinho novo. As vendeiras não cumpridoras, geralmente denunciadas pelo rendeiro, eram chamadas à Câmara. Em junho de 1724, o rendeiro da imposição relembrava a Lei Real que proibia as vendeiras de vinho de vender aguardente, sob pena de 6$000 réis e cadeia, e que o pagamento do vinho da imposição não fosse medido por almude. Em 1725, um terço da renda da imposição do vinho no Funchal revertia para os lázaros. Este imposto, sendo embora uma boa fonte de receitas, onerava a vida dos contribuintes, situação agravada quando coincidia com o pagamento do finto. Assim, a 27 de julho de 1729, Sebastião Figueira, rendeiro da imposição do vinho no Funchal e seu termo, queixou-se de 18 ou 19 vendeiras de vinho, as quais, por sua vez, também se queixaram do aumento dos impostos. Parece que, entretanto, fora lançada uma finta, por ordem de Lisboa, o que provocou uma reação dos pagadores e cobradores. Já em finais do séc. XV, o vinho apresentava-se como um produto de grande relevo na economia madeirense, sendo uma importante fonte de receita, por intermédio da imposição, lançada para custear as despesas do concelho ou seu enobrecimento. Esta nova fonte de receita, lançada em 1483 e autorizada em 1485, foi regulamentada pelos regimentos de 1485, 1628, 1640, 1776 e 1782. No séc. XVII, o vinho afirmava-se já como o principal produto da economia madeirense, apresentando-se como a primacial fonte de rendimentos da administração da Ilha. Assim, houve necessidade de melhorar a forma da sua arrecadação, tornando-a mais eficaz e de acordo com o aumento do volume de vinho transacionado nas tabernas. Em 1628, temos novo regimento, em que se delegava toda a responsabilidade da sua arrecadação no juiz, que tinha sob a sua alçada o feitor e o escrivão da Câmara. O juiz assentava o preço, o que recebiam dos direitos, as pipas vazias e os almudes das pipas já abertas. Só após ser colocada a “insígnia de Juiz” (Id., Ibid., 306) o vinho podia ser vendido, procedendo-se à arrecadação dos direitos aos quartéis. Com o decorrer dos anos, aumentou a importância do vinho, assim como os subterfúgios dos taberneiros para se furtarem ao pagamento da arrecadação. Assim sucedeu em finais do séc. XVIII, com a sua arrematação, em lanços bienais, passando a sua alçada para os denominados administradores da renda, que procediam à arrematação dos contratos ao rendeiro ou arrematador, recebendo destes os respetivos valores, aos quartéis, em data estabelecida no contrato. A renda era estabelecida a partir do vinho coletado no ano anterior, sendo deduzida através da abertura do preço corrente do barril de vinho do ano em causa. O rendeiro arrematava a arrecadação da imposição do vinho, em praça pública, obrigando-se a proceder à sua arrecadação, com o auxílio do varejador e do arrieiro-mor ou condutor dos vinhos “atabernados”. Segundo documento de 1784, este último tinha por obrigação “examinar continuadamente por todas as tabernas da cidade o vinho que para elas vai a vender e no fim de cada dia dar conta ao rendeiro para este arrecadar o devido imposto” (Id., Ibid., 310). Até 1796, o arrieiro-mor era nomeado pela Câmara, mas, desde sempre, o rendeiro da imposição do vinho tinha o privilégio de eleger e nomear os seus cobradores. Contudo, no meio rural, manteve-se o hábito da sua eleição pela Câmara, como sucedeu, em 1819, em Santa Cruz. Aliás, em 1834 existiam dois arrieiros – José de Freitas e José da Costa Martins – com o encargo da condução dos vinhos das freguesias do norte para as tabernas. Feita a inspeção para avaliação da quantidade de vinho e estabelecimento do seu preço de venda, procedia-se à sua arrecadação, em género ou em dinheiro. Segundo o regimento de 1628, a imposição era paga em quartéis, de três em três meses. O rendeiro, conforme o contrato, estava obrigado a entregar ao administrador da renda os quartéis estipulados. Depois de deduzidas as despesas inerentes à sua arrecadação, ele deveria confiar metade à Câmara e a outra ao administrador da renda ou à Junta da Real Fazenda. Em 1794, da parte desta última, retirava-se, no Funchal, para o Senado da Câmara. A boa administração desta renda definia-se quer por uma forma prática e responsável da sua arrecadação, quer por medidas proibitivas ou limitativas da venda do vinho a retalho. Assim, por regimento de 1485, foi determinada a imposição de pena de 1000 réis e a apreensão do vinho não varejado. Em 1628, esta pena passou para 2000 réis, e, em 1715, a venda do vinho, por miúdo, sem a insígnia do juiz de fora, na taberna com ramo à porta implicava a perda do vinho encontrado em armazéns e dois meses de prisão irremissíveis, consagrando a proibição de vender vinho na cidade. Ao denunciante era atribuída parte do vinho aprisionado, ao mesmo tempo que se mantinha segredo sobre este. Em muitas freguesias rurais da Ilha escasseavam os agentes económicos interessados na arrematação das rendas, ficando a cargo da Câmara respetiva. O mesmo sucedia na ilha do Porto Santo, onde eram arrecadadas, por inteiro, pela Câmara, que delas se servia para custear as suas despesas correntes. Esta imposição era da sua inteira responsabilidade e esta não admitia intromissões de outras autoridades nesta questão, o que a levou a reclamar, em 1784, contra a intromissão que a Junta da Fazenda Real pretendia exercer. A renda era estabelecida a partir de um rol de vinho disponível nas tabernas, feito pelo escrivão da Câmara no início do ano. Essa vitória marcava, igualmente, o momento a partir do qual os(as) vendeiros(as) podiam iniciar a venda do vinho novo. Esta imposição fora criada, em 1485, para que as suas receitas fossem usadas na beneficiação e defesa da vila do Funchal, razão pela qual, em 1610, uma parte da mesma continuava a ser utilizada para defesa da dita cidade. A renda da imposição do vinho foi empregue na construção da sé do Funchal, tendo o mesmo sucedido em 1502 com as rendas de Ponta de Sol e Calheta. Todavia, em 1508, concluída a construção do novo templo, a Câmara do Funchal solicitava o retorno das mesmas para as obras de enobrecimento da cidade, o que foi autorizado por carta régia de 13 de setembro de 1508. Desta renda, el-rei D. Sebastião autorizou que se retirasse 20 réis para a ajuda das festas de S. Roque. Em 1713, o relojoeiro municipal era pago pelos sobejos dos dízimos, uma vez que o rendimento da imposição do vinho estava aplicado ao sustento dos lázaros e dos expostos. Em 1599, a despesa de construção de uma galé e fragata, para “comboiarem” os mares da Ilha, foi feita através desta renda. No continente, o vinho pagava 7 reais do real de água. Com o novo regimento de 1628, a imposição foi aumentada para duas canadas, enquanto a pena dos infratores passou para 2.000 reais. O vereador mais velho da Câmara era o juiz da Imposição, tendo alçada sobre o feitor e o escrivão da Câmara. A aplicação das penas aos infratores foi alvo de atropelos, acontecendo muitas vezes o juiz julgar indevidamente os taberneiros. Um foi incriminado, em 1780, porque “na sua taverna estava medindo e vendendo vinhos sem insígnia de juiz” (Id., Ibid., 306). A Câmara discordou da pena e da multa, ilibando o réu e obrigando o juiz a indemnizá-lo pelos danos causados. Ao mesmo tempo, retirou-lhe a licença de ofício e proibiu-o de exercer todo e qualquer cargo público. Não estamos perante um episódio único, uma vez que foram constantes as provisões e cartas a recomendar o cuidado a ter na arrecadação, de modo a evitar-se ocultações e desvios. Em 1715, foi proibida a venda a retalho pelos mercadores nos armazéns “contra a forma do regimento, porque sem ramo nem licença o vendiam como lhes parecia” (Id., Ibid., 307), punindo-se os infratores com penas pesadas. Em carta de 1782, D. Maria I ordenou às câmaras da cidade do Funchal e da vila da Calheta a aplicação do regimento que regulamentava a arrecadação da imposição, proibindo a venda de vinhos a retalho fora das tabernas com ramo à porta, dando recomendações sobre a forma de evitar o dolo. Na que dirigiu ao Funchal, refere que os “desvios, e ocultações acometidos na arrecadação da imposição do vinho, sem que tenham sido bastantes os regimentos, posturas e Alvarás, que tem coibido se não venda vinho por quaisquer medidas legais ou arbitrárias, sem se pagar a imposição, procedendo manifestos aos rendeiros ou administradores, cometendo os vendedores o dolo conhecido”. Daí a aplicação das leis reais que proibissem semelhantes descaminhos, não consentindo que pessoa de qualquer qualidade vendesse vinho sem o manifesto e o pagamento da imposição. Na segunda carta, a rainha alude ao “pouco cuidado, com que na Câmara deixa imprevenidas estas distrações em ofensa não só das posturas dela e da Câmara desta cidade, nos Alvarás”(Id., Ibid., 307). Ao mesmo tempo, ordenava-se que o vereador mais velho deveria proceder à devassa contra os infratores, o que na realidade sucedeu, como dá conta ao administrador da imposição do vinho da Calheta, em carta de 12 de abril de 1783. A medida seria suspensa a 7 de maio desse ano. Perante tantas recomendações e ordens repressivas, seria de esperar o cumprimento daquilo que estava estabelecido. A realidade era outra, pois, a 27 de fevereiro de 1806, a Câmara do Funchal ordenava à da Calheta a obediência às ordens régias, enviando-as para que se desfizessem algumas dúvidas surgidas. A mesma ordem foi dada, em 1818, ao juiz ordinário da Câmara da Ponta do Sol, em resposta a pedido de esclarecimento, aludindo-se a que “todo o vinho que se vende atabernado paga imposição e que todo aquele que entra para a venda paga, ainda que seja dado, trocado ou bebido pelo taverneiro” (Id., Ibid., 308). As determinações, por parte do reino, da Junta ou da Câmara, continuaram em cartas, provisões e alvarás, o que comprova que eram insuficientes para evitar o dolo, a infração, os desvios e o suborno. A Junta, em portaria de 1834, dava conta da introdução de vinhos nas tabernas fora da alçada do arrieiro-mor e da venda a retalho nos armazéns. Perante os factos consumados, restava-lhe fazer apelo, por edital, ao juiz do povo, juízes ordinários da Calheta e de Santa Cruz, administrador da renda e público para que fosse posta em prática a lei de 23 de dezembro de 1715. A ação da justiça perante os infratores não condizia com o carácter repressivo das ordens e admoestações das autoridades municipais, sendo a maioria dos casos absolvida, como sucedeu em 1780, 1783 e 1838. Para que a imposição fosse arrecadada na melhor forma, evitando as infrações ou o dolo, tornou-se necessário criar uma estrutura administrativa capaz, em que os agentes, encarregados da arrecadação do imposto, manifestassem interesse e empenho. A solução encontrada foi a arrematação, em lanços bienais, a particulares. O administrador da renda procedia à arrematação dos contratos e recebia os quartéis, na altura determinada. A arrematação do imposto nos diversos municípios passou a contar, desde o séc. XVII, com a presença de um representante do governador. O rendeiro ou arrematador detinha o contrato, de acordo com o estabelecido em praça, e obrigava-se a recolher a renda por meio de agentes. Roque Rodrigues era, em 1792, o arrematador da Câmara do Funchal. Nas freguesias, havia igualmente o arrematador, que procedia à arrecadação, como sucedeu, em 1819, em São Jorge, na alçada do concelho de Machico. Caso não existisse, as funções eram da competência da Câmara. A arrematação deste direito da Câmara do Funchal de 1792 foi feita por uma sociedade composta por Francisco Martins de Gouveia, José Gonçalves Braveza e António Cipriano. O processo não foi fácil para a empresa, pelos desentendimentos havidos, como se pode deduzir de alguns documentos. O rendeiro tinha alçada sobre o arrieiro-mor ou condutor dos vinhos vendidos, nas tavernas, “da livre escolha como as mais pessoas aí ocupadas”. Disso nos dá conta o governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, em 1784: “De todo tempo teve o rendeiro da imposição do vinho o privilégio de eleger e nomear os seus cobradores e vigiar, entre os quais há um capataz a que chamam condutor” (Id., Ibid., 309). Segundo o Gov. Florêncio Correia de Melo, em 1818, a Câmara interveio na nomeação: “Houve um tempo em que a Câmara nomeava sujeito para aquele lugar, mas como a nomeação nem sempre era de vontade dos rendeiros, deixou-se a estes a liberdade de escolher para condutor dos vinhos algum homem de confiança” (Id., Ibid., 307). A Junta não podia, nem devia, interferir na nomeação, como refere a Câmara, em 1784, não se justificando os requerimentos de António Pinho e António João da Silva, pois, por alvará de 14 de abril de 1796, estava impedida de o fazer. O provimento de Tomé da Silva e de Silvestre Jesus Seabra para o cargo de condutor dos vinhos, em 1784, deu lugar a acesa polémica. O facto repetiu-se em 1797 e 1816, respetivamente, com António Silva e João Gonçalves. Na maioria dos municípios rurais, a situação não se justificava, mas nas vilas mais importantes, como Santa Cruz e Machico, poderiam ser necessários, sendo providos pela respetiva câmara, como sucedeu, em 1819, em Santa Cruz, com o soldo de 35 réis por barril, pagos pelo taberneiro. José de Freitas e José da Costa Mateus eram os arrieiros que, em 1834, tinham o encargo de conduzir os vinhos das freguesias do norte para as tabernas. A situação justificava-se pela necessidade de evitar a baldeação com os do sul, uma vez que se alude à medida proibitiva do governador J. A. Sá Pereira. A abertura do preço do vinho, por três homens “probos debaixo juramento” (Id., Ibid., 310), antecedia o ato de arrematação da renda. De acordo com o preço corrente do barril de vinho, estabelecia-se a quantia do imposto, procedendo-se à arrematação, em lanços. O conhecimento público era feito por meio de edital. O arrieiro-mor e o varejador, sob as ordens do rendeiro, percorriam as tabernas da cidade dando conta do vinho, que, depois, registavam em livro próprio. Feita a inspeção, procedia-se ao lançamento da imposição, avançando-se com a arrecadação, em género ou dinheiro. A coleta era feita em género, como se pode deduzir dos avisos da Junta a Paulo Vicente de Ornelas, administrador da renda de São Jorge, para entregar vários lotes de vinho de 200 pipas da renda arrematada a quem a havia adquirido por arrematação. Em 1834, a Junta ordenou ao administrador da renda de Machico que o pagamento aos carreteiros do vinho deveria ser feito pelo preço do ano anterior. Os carreteiros tinham o encargo de transportar o vinho das rendas do lagar aos armazéns da Junta ou do administrador. No ato da arrematação, o rendeiro combinava o modo de entrega da receita da Junta, por norma em quartéis distribuídos pelo período do contrato. O dinheiro da arrematação tinha como base o preço corrente, estipulado a partir da produção do ano antecedente. Os preços eram estabelecidos de acordo com a qualidade da colheita ou o tipo de casta. Assim, em 1828, relativamente à freguesia de São Jorge, temos 600 barris pagos a 1350 réis ao barril, 600 a 1300 réis, e 915 a 1200 réis. Deduzido o dinheiro, procedia-se ao pagamento aos quartéis. Retiradas as despesas de arrecadação, o rendeiro entregava metade à câmara da zona do arrendamento e a outra ao administrador local da renda. Já em 1792, em aviso do juiz da Câmara da Ponta do Sol, e em 1798 e 1835, por aviso ao rendeiro da imposição do vinho de São Vicente, João António de Gouveia, é patente que metade da renda era entregue à Câmara e a outra à Junta. Em 1794, da parte da Junta deduzia-se, no Funchal, um terço para o Senado da Câmara. No Porto Santo, à falta de rendeiro, a soma era arrecadada, por inteiro, pela Câmara, que dela se servia para custear as despesas normais. Os quartéis da renda eram pagos, de forma irregular, justificando-se pelas condições adversas da produção. Para evitar perdas com o contrato, o arrematador reclamava das dificuldades, esperando poder contar com os bons ofícios das autoridades. Acontece que a disputa entre diversos grupos de arrematadores fazia elevar a renda a valores incomportáveis A solução estava no recurso a diversos subterfúgios para evitar a entrega do imposto. Foi o que sucedeu com o contrato de 1776/1778, em que a renda foi arrematada em 601.000 réis. Em 1785, ainda estavam por arrecadar 2.881.000 réis, pelo que a Junta deu parecer favorável à proposta apresentada por António Cipriano da Conceição, arrematador de 1783/1784, para ser novo rendeiro dos anos de 1785/1787 por 5.610.000 réis ao ano, com a cláusula de não ser posta em praça. A Junta estava consciente da situação, insistindo nos inconvenientes do ato de arrematação. O valor elevado das dívidas, em 1790, obrigou à decisão drástica de proibir os devedores de proceder a novas arrematações. A informação sobre as rendas da imposição é muito limitada e só dispomos de dados em série, para o período que decorre, a partir de 1775. No quadro geral do valor das rendas arrecadadas, podemos assinalar, entre 1781 e 1799, uma tendência de aumento, até se atingir, em 1797/1798, quase o dobro dos anos de 1780 e 1781. No período de 1803 a 1805, atingiu-se, de novo, valores baixos, inferiores aos de 1780-1781, mas a receita voltou a subir. Entre 1818 e 1834, faltam-nos dados totais, mas dispomos de alguns parcelares que elucidam, ainda que de modo precário, acerca da imposição em momentos críticos da primeira metade do séc. XIX. A renda começou por ser administrada pelo município, contudo, com o domínio filipino, passou a contar com a intervenção da Coroa, através do erário régio, sendo a receita dividida entre o município e este. Não obstante ter sido uma renda criada para usufruto dos municípios, no sentido de suprir as despesas, a forma de aplicação foi distinta ao longo dos tempos. No Funchal, a primeira aplicação da renda foi na construção da praça que deveria servir o edifício da Alfândega e a Igreja. Em 1488, o imposto só poderia ser aplicado na aposentadoria do tabelião, mas em 1489 e 1490 insiste-se no uso para enobrecimento da vila, que, em 1493, significava a realização de obras para as casas do concelho e da cerca e muros. D. Manuel tinha perfeita consciência do objetivo da imposição e queria seguir, rigorosamente, a finalidade, reprovando a atitude da Câmara quando pretende desviá-lo para outros fins: “Em outro apontamento que pedis por mercê que vos deixe gastar a imposição no que vos bem parecer este requerimento fora razoado se me viras gastar dela em alguma coisa que não pertencera ao bem dessa terra mas vós sabeis que eu vos tenho dado segurança que nem meus sucessores não gastem nem metam mão nessa renda se não em coisas de enobrecimento e acrescentamento e honra dessa vila como até aqui é feito”(Id., Ibid., 313-314) Nos primeiros anos do séc. XVI, as rendas do Funchal, Ponta de Sol e Calheta foram usadas no financiamento das obras da Sé do Funchal. Concluída a obra, desviou-se o dinheiro para a aposentadoria, a correção das ribeiras e obras do hospital. A partir de 1568, a grande preocupação da cidade estava nas despesas militares, em que se incluíam a fortificação da cidade e as despesas do presídio. Ao longo dos tempos, foi evidente o choque de interesses entre o município e as autoridades régias sobre a forma de utilização da receita do imposto. Assim, quando, em 1611, se estabeleceu que dois terços ficariam consignados à fortificação, a Câmara considerou que seriam mais bem aproveitados na canalização das ribeiras, sendo contrariada pela intervenção decisiva do governador, que insistiu na construção da fortaleza do Pico. No decurso do séc. XVIII, parece que a receita passou a ser distribuída em três partes para diversas finalidades. Assim, para além da parte usada no apoio social aos lázaros, há dois terços dedicados à fortificação. Os princípios que regeram o lançamento da imposição do vinho perduraram até ao séc. XIX. Assim, em 1839, na prestação de contas ao administrador geral, justificou-se a despesa de 4612.275 réis da imposição do vinho, que “foi gasta em obras municipais, sustento dos expostos, sustento dos Lázaro, pagamentos dos empregados, pagamento às Câmaras municipais desta ilha da quarta parte do imposto dos cereais, que lhes pertence, e em diversas despesas miúdas”(Id., Ibid., 314).   Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

História Económica e Social

hospício da porciúncula da ribeira brava

O pequeno hospício franciscano da Ribeira Brava, devotado a N.ª S.ra da Porciúncula – mítica capela de S. Francisco de Assis –, que canonicamente nunca chegou a ser convento, parece ter sido fundado vagamente como oratório, por volta de 1581, mas deve ter tido depois francas dificuldades de oficialização, dada a sua localização na área de influência da Companhia de Jesus, sendo aí que o Colégio do Funchal (Colégio dos Jesuítas) cobrava os seus dízimos e onde, inclusivamente, possuía armazéns. Deve datar de após 1730 a sua reconstrução e institucionalização como hospício, para se tentar depois transformá-lo em convento (o que nunca aconteceu), aproveitando um legado testamentário do beneficiado da colegiada daquela freguesia, P.e Inácio Ferreira Garcês, de 12 de maio de 1724. O legado em questão constava de algumas casas próximas, onde residia o padre beneficiado, com quintal e mais quinhões, que ele deixou à Confraria do Santíssimo da Ribeira Brava, com a indicação de que, se os frades franciscanos quisessem construir um convento naquele sítio, as propriedades deveriam ser-lhes entregues. O padre faleceu a 6 de julho desse ano e pediu para ser acompanhado no seu funeral por frades de São Bernardino, de Câmara de Lobos sinal de não haver ainda na Ribeira Brava Franciscanos em permanência. As obras do futuro hospício devem ter sido iniciadas em 1730, data essa que teria ficado inscrita no pequeno portal da capela. A construção prosseguiu pelos anos seguintes e a 4 de abril de 1731 já se registava o primeiro enterramento na capela. Informa Eduardo Clemente Nunes Pereira (1887-1976) que as mesmas obras foram suspensas pelo prelado jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742) por não terem os frades pedido autorização nem ao Rei nem a ele, por edital de 16 de agosto de 1732, transcrito no Livro do Tombo da matriz da Ribeira Brava (PEREIRA, 1967, II, 642); mas, consultando o mesmo tombo, nada consta. Temos apenas informações documentais de obras a partir de 1736 e, pelo menos a partir dessa data, as mesmas prosseguiram. Sobreviveram os livros de receitas e despesas, de entre 1736 e 1809, recolhidos na Fazenda do Funchal e mais tarde transferidos para a Torre do Tombo. Aparecem assim referidas as obras de 1736, no valor de 50$000 réis, assim como pequenas doações vinculadas, e.g., na primeira semana de outubro de 1737: “15 missas de capela e uma cantada, que rendem neste mês: 3$650”. As contas globais desse mês de outubro foram de 46$000 réis para as receitas e de 35$000 para as despesas. Era então comissário delegado do hospício Fr. António do Amor Divino (ANTT, Ministério das Finanças, Convento de Nossa Senhora da Porciúncula da Ribeira Brava, Ribeira Brava, liv. 1). Nas missas supracitadas deviam estar incluídas as de sufrágio pela alma do Alf. Manuel Ferreira Garcês, que fora o primeiro síndico do hospício e no ano anterior deixara metade dos rendimentos do vínculo que tinha instituído para três missas pela sua alma, assim como a sua residência “para acrescentamento e largueza dos religiosos do dito hospício”, “pelo pouco sítio que têm” (ABM, Juízo…, cx. 100, n.º 9). O hospício seria de reduzidas dimensões, possuindo capela com arco triunfal de cantaria, púlpito e pequena torre sineira, visível nas fotografias dos finais do séc. XIX. O edifício tinha celas para os religiosos, refeitório, uma adega, casa das carnes e cozinha, para além de quintal onde se cultivavam vinha, árvores de fruta e hortaliças, e se criavam aves de capoeira e porcos. Nos anos seguintes, habitavam no hospício seis religiosos, ainda fazendo parte da casa franciscana um barbeiro, um donato (ou seja, um servente não professo), uma lavadeira, uma amassadeira e um mulato. Por altura dos peditórios, contratavam-se moços para recolha das oferendas, predominantemente vinho e cereais. No ano de 1738, e.g., recolheram-se na freguesia da Serra de Água 16 barris de vinho, 5 alqueires de trigo, 16 de centeio e 2 de cevada e, na da Ribeira Brava, 7,5 pipas de vinho, 46 alqueires de trigo, 38 de centeio e 26 de cevada. Das poucas referências que temos depois, nos inícios de 1782, conseguiu o guardião do hospício que o governador desse ordem ao juiz do lugar de Câmara de Lobos para sempre que se pescasse peixe se contemplasse os religiosos na devida proporção do “peixe que se tirar” (ABM, Governo Civil do Funchal, liv. 520, fl. 20). Ficando o pequeno hospício quase contíguo à igreja matriz da freguesia, não devem ter sido poucas as interferências entre uma e a outra instituições, face à partilha das verbas dos enterramentos e outros legados pios. O relacionamento entre elas chegou a levar à intervenção episcopal, como ocorreu em 1803, oficiando o bispo D. Luís Rodrigues Vilares (c. 1740-1810) ao guardião do hospício que se abstivesse de fazer “celebrar função alguma sagrada, nem expor o Santíssimo” sem a sua expressa autorização episcopal e que a essas funções deveria sempre presidir o vigário da Ribeira Brava, “ou outro sacerdote com expressa delegação sua” (APEF, cx. Franciscanos, n/ catalog., 7 fev. 1803). É provável que seja da capela deste hospício uma tela de retábulo, em princípio, uma N.ª S.ra da Porciúncula, da oficina de Nicolau Ferreira e assinada em 1789, que se encontra no Museu de Arte Sacra do Funchal, e o sacrário da matriz da Quinta Grande, que a tradição local refere como sendo dali proveniente. As pressões advindas da centralização régia e as dificuldades económicas do pequeno hospício levaram a que, quando a 20 de fevereiro de 1834 os conventos e similares foram suprimidos e extintos pelo governo liberal, o pequeno hospício de N.ª S.ra da Porciúncula da Ribeira Brava, já somente fosse habitado pelo religioso Fr. João Evangelista de Potreis e o Ir. Torcato, que servia de procurador, sendo o primeiro transferido para a comunidade dos Menores Reformados Capuchinhos italianos do Vale de Santo António, no continente, e o segundo secularizado. O que restava do pequeno edifício, vagamente identificável em fotografias dos finais do séc. XIX, veio a ser demolido nos inícios do séc. XX, dando origem ao espaço que foi depois ocupado pelo cinema, e mais tarde pela Biblioteca Municipal e o Lg. dos Herédias.   Rui Carita (atualizado a 04.02.2017)

História Económica e Social

corso

Há uma diferença entre corso e pirataria, embora muitas vezes as duas atividades se confundam. O corso acontece quando alguém que se dedica ao trabalho de pilhagem no mar ou em terra está munido de um documento régio que o legitime – a chamada carta de corso, passada por um monarca, que autoriza o exercício da atividade, e uma ordenança de corso. Esta ação exerce-se contra os inimigos, nomeadamente em momentos de guerra, sendo uma forma de extensão dos conflitos bélicos do espaço terrestre para o marítimo. É nesses momentos que mais se fazem sentir os efeitos nefastos da guerra de corso, como sucedeu, e.g., no período da União Peninsular, a partir de 1580, e, depois, com as guerras de sucessão da Áustria e de independência das colónias europeias dos continentes americanos. Já a pirataria acontece quando as embarcações que desenvolvem a atividade de perseguição e saqueio doutras embarcações, ou em terra, não têm a sua ação legitimada por uma carta e ordenança de corso. É por isso que o ataque francês de 1566 ao Funchal poderá ser entendido como uma atividade de pirataria, enquanto muitas das ações de nações inimigas, que se sucederam entre 1580 e 1640, contra as embarcações ibéricas que em algum momento atingiram o Funchal, foram atividades de corso. No pós-1640, Francisco Álvaro Homem, conhecido como o “pirata do jardim do mar”, recebeu carta de corso de D. João IV, em troca de proteção aos navios do comércio do Brasil. Recorde-se que, por esse motivo, foi deserdado por sua mãe, D. Maria Gonçalves de Távora. Entretanto, em 1730, Pantaleão Faria de Abreu solicitava autorização para armar o bergantim Santana e São Joaquim para poder perseguir uma setia moura que empestava os mares da Ilha, criando insegurança. A ordem favorável do governador funcionava como documento jurídico legitimador da ação. Era através das chamadas ordenanças de corso que os monarcas organizavam o modo de atuação das diversas delegações do almirantado e o apoio a conceder, aos níveis naval e militar, aos corsários, bem como as bases de ação de corso. Para que um corsário fosse dado como tal pelas potências beligerantes ou amigas, tinha de possuir a referida ordem ou documento comprovativo e de ter prestado fiança, e era obrigado a entregar as presas a um tribunal especial, a quem competia determinar o seu destino. Este direito de corsário deixava de ter efeito quando não fossem respeitados estes requisitos e, acima de tudo, quando não existia a carta de patente, ou estava caducada, ou quando, por qualquer motivo, o corsário violava a lei do direito das gentes. Este perdia ainda essa condição quando atuava nas águas fluviais do inimigo. Assim, e.g., em 1739, o bergantim castelhano Santelmo e Nossa Senhora da Candelária aportou ao Funchal e apresentou a sua carta de corso de 24 de novembro de 1739, como forma de legitimar a sua ação contra os Ingleses. Os mares do Funchal eram constantemente invadidos por corsários franceses e castelhanos que andavam em busca da sua presa, os navios ingleses. Em 1803, a tomada de uma galera espanhola por um corsário inglês, no porto de Ponta Delgada, conduziu a uma viva polémica, em razão de o ato se ter praticado em águas territoriais portuguesas. O caso repetiu-se, no mesmo ano, com o corsário Gordon, que tomou a galera espanhola Nossa Senhora das Mercês dentro do porto, e a quem o governador da Ilha solicitou por carta a apresentação de documento comprovativo da declaração de guerra e a ordem de corso, pois caso contrário seria considerado pirata. Contudo, segundo informe do cônsul, Gordon possuía ordem de corso. A patente de corso justificava e legitimava a ação do corsário. Já o ato de apresamento de um navio deveria partir de uma causa que o justificasse. Nos sécs. XVIII e XIX a causa que levava ao corso estava ligada de modo direto às guerras europeias, por um lado, e às guerras da independência das colónias americanas, por outro. Assim, quer durante a Guerra de Sucessão da Casa de Áustria (1740-1748), quer durante as Guerras Napoleónicas (1799-1815), houve um confronto aberto entre Ingleses, Franceses e Espanhóis, com particular incidência na Madeira, uma vez que os Ingleses haviam escolhido o Funchal como base de apoio às suas ações de corso no Atlântico, razão por que a Ilha se vê envolvida neste tipo de guerra. Por vezes, não era necessária uma declaração aberta sobre as potências para se lançarem ações de corso, pois estas articulavam-se frequentemente a partir de rivalidades latentes pela posse das rotas e dos mercados coloniais. Era a luta entre os adeptos do mare liberum e do mare clausum. Muitas vezes, bastava o navio pertencer a uma nacionalidade neutral em face dos conflitos, mas com uma certa colaboração ativa com o inimigo, para se justificar uma ação de corso, tal como sucedeu com Portugal relativamente a Inglaterra; outras vezes, era suficiente o transporte de mercadorias de nação inimiga. Em face destas situações, a atuação, bem como a organização e o apoio ao corso, estava regulamentada pelas respetivas ordenanças, das quais temos notícia, em França, em 1584, 1881 e 1778, na Holanda, em 1597, 1622 e 1705, em Inglaterra, apenas em 1707, na Dinamarca, em 1720, e em Espanha, em 1718, 1762, 1779 e 1802. As mesmas ordenanças estipulavam os aspetos logísticos das embarcações armadas em corso, não só por meio das casas de apoio, onde estas podiam fazer aguada e prover-se de munições dos armazéns reais, mas igualmente do serviço da tripulação a bordo. Se atentarmos um pouco na adição da ordenança de 1718, veremos o lugar de destaque que é dado à questão do armamento, das munições e do apoio diversificado pelas diversas dependências do almirantado, ao mesmo tempo que se constata, e.g., que existia um controlo rigoroso da tripulação ao serviço. A questão da legitimidade jurídica destas ações de corso prende-se com várias noções difusas de direito internacional que marcaram os primórdios da expansão europeia; não parece ter havido entendimento entre os diversos participantes, não obstante a criação de tribunais arbitrais para o efeito. O período que decorre nas duas décadas finais do séc. XVI é marcado por inúmeros esforços da diplomacia europeia no sentido de conseguir a solução para as presas do corso. Para isso, Portugal e França haviam acordado, em 1548, a criação de dois tribunais de ar­bi­tragem, cuja função era anular as autorizações de represália e cartas de corso. Contudo, a sua existência não teve reflexos evidentes na ação dos corsários. A abertura do mundo atlântico foi, no início, geradora de conflitos com a disputa pela posse das Canárias, que se alargou, depois, ao próprio domínio do mar oceânico. Portugueses e Castelhanos entraram em aceso confronto, servindo o papado de árbitro na partilha. Os Franceses, os Ingleses e os Holandeses, que num primeiro momento foram apenas espectadores atentos, entraram também na disputa, reivindicando um mare liberum, i.e., o mar livre ou aberto a todos, e o usufruto das novas rotas e e dos novos mercados. Por outro lado, o Atlântico não foi apenas o mercado e a via comercial, por excelência, da Europa, mas também um dos palcos principais para onde se transferiram e onde se desenrolaram os conflitos das coroas europeias, por meio da guerra de corso. Neste contexto, sendo as ilhas atlânticas os principais pilares da estratégia de domínio do oceano e da afirmação dos impérios, acabaram por se ver envolvidas nesta guerra de corso, que tem como palco os mares. Quando os Portugueses se lançaram, no séc. XV, à exploração do oceano, encontraram, à partida, um primeiro obstáculo. As Canárias, que tão necessárias se apresentavam para o controlo exclusivo do oceano, estavam já a ser conquistadas por Jean de Béthencourt, navegador francês financiado pelos mercadores de Sevilha. Esta foi a primeira dificuldade, que causou inúmeros problemas à plena afirmação do mare clausum lusitano. Em face disso, só havia uma possibilidade: tomar posse de uma das ilhas por conquistar (La Gomera, por exemplo) e avançar com o povoamento da Madeira, que poderia funcionar como área suplementar no apoio ao progresso das viagens para o Sul. Rapidamente, do mare clausum ibérico se passou ao mare liberum, partilhado por todos, por força da pressão dos impérios francês, holandês e inglês. Se é certo que a disputa peninsular pelo domínio dos mares ficou solucionada com os tratados assinados em 1479 e 1494, o mesmo já não poderá dizer-se quanto à cobiça e ao empenho de outras Coroas europeias pela posse das rotas e dos novos espaços, como foi o caso de França. Restava aos que haviam ficado de fora o recurso à guerra de corso, o contrabando e o comércio ilegal. O corso foi a resposta dada pelos excluídos ao domínio ibérico dos mares e do chamado Novo Mundo. Isto porque aos demais povos europeus, habituados desde muito cedo às lides do mar, só restava uma reduzida franja do Atlântico, a norte, e o Mediterrâneo. O cisma do Ocidente, por um lado, e a desvinculação de algumas comunidades da alçada papal, por outro, retiraram aos atos jurídicos a plenitude da ação e da eficácia. À doutrina definidora do mare clausum opõe-se a do mare liberum, que teve em Grócio o principal teorizador. Foi esta última visão da realidade oceânica que norteou a intervenção de Franceses, Holandeses e Ingleses neste espaço. Os Ingleses deram início, em 1497, a incursões sucessivas no oceano, enquanto os huguenotes de La Rochelle se afirmaram como o terror dos mares, primeiro com a tentativa de assalto à Gran Canaria e a Tenerife, em 1556, e depois com o assalto concretizado, em 1566, à cidade do Funchal. Os Franceses estiveram ativos por toda a déc. de 50, tendo, depois de um período de curta acalmia (1559-1569), os ataques voltado a recrudescer a partir de 1579, atingindo o auge na déc. de 80. A navegação tornou-se mais difícil e as rotas comerciais tiveram de ser adequadas a uma nova realidade: surgiu a necessidade de artilhá-las e de uma armada para as comboiar até porto seguro. Perante a situação de instabilidade nas ilhas, a Coroa procurou estabelecer um conjunto de medidas de proteção das populações e rotas comerciais. No período de 1536 a 1556, há notícia do envio de pelo menos 12 armadas com esta missão. Depois, procurou-se garantir nos portos costeiros do arquipélago um ancoradouro seguro, construindo-se as fortificações necessárias. Os Castelhanos tinham necessidade de uma estrutura de apoio do mesmo género na área considerada crucial para a navegação atlântica, pelo que, por diversas vezes, solicitaram o apoio das autoridades açorianas. Contudo, a ineficácia, ou a necessidade de uma guarda e defesa mais atuantes, obrigou-os a reorganizar as suas carreiras, criando um sistema de frotas. A partir de 1521, estas frotas, para afugentar os corsários e garantir proteção e segurança ao trânsito das embarcações, passaram a usufruir de uma nova estrutura organizativa e defensiva. Primeiro, vigorou o sistema de frotas anuais artilhadas ou escoltadas por uma armada; depois, a partir de 1555, o estabelecimento de duas frotas para o tráfico americano: Nueva España e Tierra Firme. Para Portugal, em 1565, assinalam-se 43 embarcações e 2825 homens envolvidos neste processo, distribuídos pelas armadas da costa do Algarve, da costa do reino, das ilhas, do Brasil, da Mina, da ilha da Madeira, do Norte de África e do Congo. A conturbada conjuntura política de finais da centúria quinhentista e princípios da seguinte provocou uma mudança do cenário. A crise dinástica e a consequente união das Coroas peninsulares levaram a uma abertura da área ao comércio dos insulares, dos seus vizinhos e dos demais europeus, nomeadamente os Holandeses. Se é certo que, em determinando momento, as ilhas se fecharam ao comércio com os inimigos políticos e religiosos, também não é menos verdade que a união não conseguiu garantir o exclusivo dos mercados detidos pelas monarquias ibéricas, agora unidas. Isto representou um passo para a partilha do oceano por todas as potências europeias, que não prescindiram da posição fundamental das ilhas. No caso dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, não foi fácil ao novo Monarca impor limitações à presença dos inimigos estrangeiros. Assim, não obstante a ordem de expulsão dos Ingleses, em 1589, e as posteriores medidas limitativas do tráfico comercial com a Europa do Norte, não se pode dizer que tenha existido uma total rutura nas relações comerciais. O mesmo sucedeu com os Franceses. Na verdade, La Rochelle continuará a ser um porto de permanente contacto com os portos de Angra, do Faial e do Funchal. Perante isto, poderá concluir-se que o mercado das ilhas não foi tão afetado pelas alterações políticas e consequentes represálias como à primeira vista pode parecer. Na Madeira e nos Açores, continuou a afirmar-se a presença britânica, que teve consumação plena na segunda metade do séc. XVI. O mundo das ilhas manteve-se alheio ao jogo de interesses europeus. Apenas nos espaços continentais atlânticos (África e Brasil) e no Oriente se tornava evidente o assalto dos beligerantes às possessões portuguesas, acabando por fragilizar a hegemonia e o império que os Portugueses haviam conseguido em princípios do séc. XVI. Os primeiros indícios do corso, como forma de represália, acontecem na déc. de 70 do séc. XV, por iniciativa de barcos castelhanos que ameaçam o Funchal. Antes disso, já João Gonçalves Zarco atuara como corsário nas costas da Andaluzia e do Algarve. Os conflitos peninsulares e nos mares propiciavam esta situação, uma vez que também os Portugueses faziam corso nas Canárias. Esta situação gera algum receio e leva os moradores do Funchal, em 1476, a lembrar à infanta D. Beatriz a necessidade de acautelar a Ilha contra estas possíveis ameaças. Havia por parte das populações ribeirinhas um pensamento de permanente insegurança sobre o que poderia vir para além da linha do horizonte. O exemplo mais seguro desta situação é a passagem inesperada da armada de Colombo, em 1498, pelo Porto Santo, em que é confundida, no primeiro momento, com um corsário. Cedo os Franceses começaram a infestar os mares da Madeira (1550, 1566), seguidos dos Ingleses e dos Holandeses. A partir da União Peninsular, sucederam-se inúmeros assaltos franceses à Madeira, no que contaram com a pronta resposta de Tristão Vaz da Veiga. Este afirmara-se pelas façanhas bélicas no Oriente; contudo, ficou célebre pelo facto de ter entregado a Fortaleza de S. João da Barra aos Espanhóis, ato que lhe valeu benesses dos novos Monarcas: em 1582, recebeu a capitania de Machico, e, em 1585, o cargo de governador-geral do arquipélago. Em 1566, teve lugar o maior assalto francês a um espaço português: em outubro desse ano, Bertrand de Montluc, ao comando de uma armada composta por três embarcações, atacou a Vila Baleira e a cidade do Funchal, dominando a cidade durante 15 dias. O corsário roubou produtos da terra (vinho e açúcar), profanou igrejas (nomeadamente a Sé do Funchal), roubando alfaias religiosas, e fez bastantes escravos. Do assalto, ficaram alguns relatos e testemunhos presenciais, mas o mais pungente e pormenorizado é o de Gaspar Frutuoso, que, em As Saudades da Terra, dedicado à Madeira, descreve, de modo sucinto, os acontecimentos e condena o descuido das suas gentes, pois a cidade estava “mui rica de muitos açúcares e vinhos, e os moradores prósperos, com muitas alfaias e ricos enxovais, muito pacífica e abastada, sem temor nem receio do mal que não cuidavam” (FRUTUOSO, 1979, 328). Muito se tem dito sobre este ato dos Franceses, afirmando-se a motivação religiosa, por força da sua origem huguenote. Pode ter sido essa a motivação para a dureza da profanação dos espaços sagrados, como a Sé do Funchal, mas estes episódios têm normalmente origem em motivações de carácter político e económico. O corso tomou outro rumo a partir da déc. de 80, sendo as diversas iniciativas uma forma de represália à união das Coroas peninsulares, o que ficou expresso na intervenção de diversas armadas – Francis Drake (1581-1585), George Clifford, conde de Cumberland (1589), John Hawkins, Martin Frobisher, Thomas Howard, Richard Grenville e Robert Devereux, conde de Essex (1597) –, não se limitando ao assalto às embarcações peninsulares de regresso à Europa carregadas de ouro, prata, açúcar e especiarias. Esta ação estendeu-se à terra firme, à procura de um abastecimento de víveres e água ou do saque, como sucedeu em 1585, em Santiago (Cabo Verde), em 1587, na ilha das Flores, e em 1595, no Porto Santo. De um momento para o outro, o pânico acometeu as populações, e o medo de viajar entre a Ilha e os portos do reino era generalizado. Desta forma, em 1619, ao ser notificada para ir ao reino prestar contas das dívidas do marido à Fazenda Real, Constança Dinis negou-se a tal obrigação, alegando que “o mar e toda a costa de Portugal cheia de piratas e navios turcos que andam a furtar e cativar gente e têm cativado e tomado muitos navios que desta ilha vão para Lisboa e desta verdade não é sua Majestade informado” (CARITA, 1998, 266). Estamos na época em que o terror dos mares está representado nos corsários argelinos e turcos. Os primeiros tomaram de assalto o Porto Santo, em 1616, e retornaram, em 1626, à Fajã dos Padres, na Madeira, e, depois, ao Porto Santo, em 1667. Também os Franceses ali estiveram, em 1556, 1690 e 1708, fazendo dessa ilha mártir da guerra de pirataria e corso. Na carta de Constança Dinis de 1619, fala-se dos Turcos, apesar de estes apenas serem referidos no Porto Santo em 1641. Ao mesmo tempo, a instabilidade das potências europeias gera apreensão entre os mercadores, e o comércio ressente-se. O temor da guerra de corso está quase sempre presente no seu quotidiano, mas agrava-se em momentos de tensão política nos continentes, repercutindo-se nos mares. Esta situação é muito clara na correspondência privada, como é o caso de Diogo Fernandes Branco, mercador madeirense, e de William Bolton, mercador inglês. Há um risco, raras vezes calculado, que os leva a confiar, nestes momentos de tensão, na Providência Divina. O quase permanente clima de tensão dos impérios europeus e a persistência de piratas e corsários fazem com que William Bolton, como outro qualquer mercador, afirme, em 1701: “não sabemos como agir nesta situação, enquanto a paz e a guerra estiverem na balança” (Id., 1996, 432). Em abril de 1703, porém, quando atua na qualidade de cônsul inglês, a sua atitude é de regozijo por uma batalha bem sucedida de um barco com o pavilhão inglês face a outro de França, fortemente armado. As mudanças, no domínio político e económico, dos sécs. XVIII e XIX não retiraram às ilhas a função de escala e de espaço de disputa e controlo do mar oceano. A frequência de embarcações manteve-se associada a uma forte escalada do corso. Aos tradicionais corsários de França, Inglaterra e Holanda, juntaram-se os americanos do norte e sul. As ilhas estiveram, de novo, sujeitas a uma conjuntura de instabilidade, pautada pelo medo e pela guerra, que prejudicou o comércio e a segurança das populações. Entre 1763 e 1831, a Madeira e os Açores foram confrontados com as ameaças e intervenção do corso europeu (franceses, ingleses e espanhóis) e americano, salientando-se, relativamente aos últimos, a represália dos insurgentes argentinos. Ambos os arquipélagos se evidenciaram como encruzilhada de interceção do fogo da guerra de represália americana e europeia. As ações de corso no Atlântico articulam-se, de modo direto, com a dinâmica europeia de extensão colonial em que o Atlântico surge como via de ligação imprescindível para o evoluir do processo histórico europeu colonial. A guerra de corso alia-se a esses vetores, e vai surgir uma área de passagem, abrangendo os Açores, a Madeira e as Canárias. É outra forma de guerra das potências beligerantes europeias e americanas, cujos conflitos circunscritos ao domínio terrestre se alargam ao mar, produzindo efeitos catastróficos para as áreas atingidas que apresentam uma economia de mercado fortemente dependente, como é o caso da Madeira. São disso exemplo as ações do corsário inglês Amyas Preston, em 1595, e doutros corsários ingleses, em 1601. Os conflitos europeus, como a guerra de sucessão da Casa de Áustria (1740-1748), as Guerras Napoleónicas (1784-1815) e o consequente bloqueio continental (1806-1809), são a expressão do confronto aberto entre os dois maiores potentados europeus – França e Inglaterra –, levando ao embate das duas esquadras mais poderosas da Europa. Se o período de 1713-1740 pode ser considerado como de paz longa entre França e Inglaterra, ao nível naval, o mesmo não se poderá dizer dos anos consequentes, num período que se arrasta até 1831. Entre 1740 e 1748, num momento de confronto bélico em todo o continente europeu, encontramos uma forte incidência do corso, especificamente na Madeira, onde os Ingleses investiram contra os Espanhóis e os Franceses. Seguiram-se os corsários franceses, em 1793, 1796, 1797 e 1798. Com o dealbar dos conflitos no período posterior à Revolução Francesa, surgem novas ações de corso na Madeira, entre 1793 e 1801, e entre 1804 e 1811. O momento de finais do séc. XVIII é particularmente importante, uma vez que foi o período de maior dimensão da guerra naval britânico-francesa. Até 1798, os Franceses tomaram aos Ingleses e seus aliados 3199 navios comerciais, enquanto estes apenas aprisionaram 934, tendo 513 deles sido retomados. Deste modo, ao nível dos navios de comércio, a situação foi favorável a França, o mesmo não sucedendo com os navios de guerra, onde era vincada a superioridade naval inglesa, demonstrada nas batalhas de Aboukir e Trafalgar. Os períodos de maior incidência do corso na área atlântica situaram-se, na Madeira, entre 1804 e 1811, abrangendo o momento do bloqueio continental e o momento da ocupação inglesa da Ilha; nos Açores, situaram-se entre 1814 e 1821. Das ações registadas, temos os corsários franceses em 1801 e 1806; os ingleses em 1801, 1805, 1806, 1807, 1810, 1813 e 1814; e os argelinos em 1806 e 1807. Os anos de 1818-1821, 1823-1826 e 1828-1831 são marcados por um ressurgir dessas atividades, de modo ativo, na Madeira, com ações esporádicas e de pouca importância em relação aos momentos de início do século, e poucas ou nenhumas foram as presas então feitas. Situada a meio caminho entre o colonizador e as colónias americanas, africanas e asiáticas, a Madeira encontra-se num eixo importante de apoio logístico das rotas coloniais. Primeiro, com a dinâmica colonial principiante, depois, com o período de apogeu, abrangendo assim o vasto período compreendido entre 1450 e 1850. Em razão desse polo de atração das rotas, aí se praticaram, ao longo dos sécs. XV e XVII, constantes ações de pirataria e corso contra as embarcações das rotas ou contra as terras insulanas, como realmente sucedeu na Madeira, em 1566, com os Franceses e, por diversas vezes, no Porto Santo e em Santa Maria, com os piratas argelinos. Para aí convergiam os piratas e corsários, à procura das naus das rotas das Índias, que aí faziam escala na ida e, por vezes, no regresso, servindo-se da conhecida rota dos ventos Alíseos de Nordeste. Esta dinâmica manteve-se e mais se acentuou nos sécs. XVIII e XIX, em razão do forte impulso dado ao comércio do vinho Madeira, o vinho do colonizador europeu nas Índias Ocidentais e Orientais. Várias são as referências à passagem desses comboios, de que podemos destacar o de 1740, com 42 navios com destino às Índias Ocidentais, o de 1769, o de 1799, com 108 embarcações, e o de 1815, que conduzia Napoleão para a ilha de Santa Helena. Mais referências se juntam nos anos imediatos de 1804, 1805 e 1807, onde se dá conta de que os navios comerciais seguiam em comboio, patrulhados por fragatas de guerra bem armadas, como a nau de guerra Malabar, com 50 peças, e a fragata Tiveed, com 24. Entretanto, os Ingleses precisavam de deter o controlo do mar das ilhas, única forma de manterem protegidos os comboios das Índias Ocidentais e Orientais das constantes investidas dos corsários franceses, espanhóis e argelinos, que se intensificaram nestas paragens nos momentos mais críticos das guerras europeias de 1740-1748 e de 1799-1814, conseguindo-o pela manutenção de esquadras permanentes de corsários e navios de guerra com base na Madeira. Destes, regista-se, em 1780, a ação da esquadra britânica sob o comando do comodoro George Johnstone, que andava cruzando a costa da Madeira, enquanto em 1814 se dá conta da saída de um navio inglês, Garland, a proteger um comboio de navios ingleses e portugueses. Era especialmente na área da Madeira que os Ingleses faziam incidir as suas ações de corso contra Espanhóis, Franceses e até mesmo Portugueses. A primeira referência é-nos fornecida em 1700, na qual se refere que, a 17 de novembro, chegaram à Ilha cinco navios comboiados por dois navios de guerra, rumo à costa da Guiné, os quais conduziam um navio francês carregado de “açúcares pretos, que aí venderam a bordo” (ANTT, Provedoria…, liv. 977, fls. 312v.-313). Entre 1740 e 1748, em face da Guerra de Sucessão da Áustria, aumenta a ação dos corsários nas águas da Madeira, destacando-se os Ingleses, “que se servem da ilha com mais proveito [...]. Aproveitando o Funchal como sustentáculo cómodo, corsários ingleses passam a alterar com grandes danos contra a navegação das potências inimigas, sendo especialmente vítimas os navios espanhóis que circulavam no tráfego das ilhas Canárias, Costa de África (de modo particular o norte), Espanha e Mediterrâneo ou América” (Ibid., fls. 87-88). Estes aparecem, então, com um total de 27 presas feitas, sendo 16 delas a embarcações espanholas e cinco a francesas. Das espanholas, 10 foram apresadas nas águas das Canárias, conjuntamente com as únicas duas portuguesas. Para a manutenção deste bloqueio oceânico, os Ingleses precisavam da ilha da Madeira e do apoio das autoridades locais, uma vez que aí estacionavam constantemente corsários ou navios de guerra. Destes, podemos destacar a balandra corsária do capitão Filipe Maré, que aí estacionou durante dois meses, tendo trazido ao porto três presas, e o corsário Rei Jorge, que entre novembro de 1746 e fevereiro de 1747 conseguiu fazer cinco presas. Da parte dos Espanhóis, encontramos uma reação em força, com o bergantim Santelmo e Nossa Senhora da Candelária, sob o comando do Cap. Pascoal de Sousa Verino, armado em corso a 24 de novembro de 1739. Este teve uma ação constante ao largo da Madeira e do Porto Santo. Em 1748, dedicava-se a apanhar presas locais inocentes para depois as apresentar como moeda de troca a Ingleses e Portugueses. A 14 de abril, foi apresada junto ao cabo Girão uma balandra inglesa, que foi atacada pela artilharia dos redutos de Câmara de Lobos e do Ilhéu, ao tentar vender essa presa na Ilha. O resultado foi o seu embargo pelas mãos do bispo governador, que acolheu a pretensão inglesa. Depois disso, o corsário espanhol ainda tomou uma escuna inglesa junto da Ponta do Sol; contudo, em maio, acabou aprisionado pela nau inglesa Chesterfield, sendo depois arrematado na Alfândega. O caso do corsário da Santelmo atesta, mais uma vez, o colaboracionismo das autoridades locais com os Ingleses, quando estes insistiam constantemente na sua pretensa neutralidade. Na segunda metade do séc. XVIII, mantiveram-se a posição privilegiada da força naval inglesa e o apertado bloqueio às Canárias, sem que, da parte de França ou de Espanha, houvesse uma reação em força, mas apenas manifestações esporádicas de represália em 1768 e 1799, com o apresamento de um navio inglês pelo corsário Santa Bárbara. Em 1762, face aos acontecimentos europeus, ordenava-se ao governador José Correia de Sá que se mantivesse neutral, ao mesmo tempo que se lhe ordenava que exercesse represálias sobre os navios espanhóis e franceses, facto que contribuiu para a manutenção da situação privilegiada dos Ingleses na área atlântica. Neste período conturbado, foram apreendidos os seguintes navios espanhóis no bloqueio das Canárias: um em 1756, dois em 1762, um em 1780, outro em 1799 e ainda outro em 1800. Em 1780, o governador da Ilha, em carta a Martinho de Mello e Castro, dá conta das proezas dos corsários ingleses, que atacavam os barcos que faziam os contactos entre os portos da Ilha ou andavam nas pescarias, de que se salientava o Cap. John Marshal, com o seu navio Júpiter. O mesmo havia tentado apresar um navio veneziano que fora até ao Funchal fazer aguada, sendo impedido pelos Portugueses e acabando por seguir rumo ao Porto Santo, onde, com o apoio de uma lancha de pescadores, atacou uma embarcação que aí se encontrava. O período de 1799 a 1815 é marcado pelos conflitos europeus advindos das Guerras Napoleónicas e pautado por um forte impulso da ação dos corsários nestas paragens, destacando-se a represália entre Franceses e Ingleses. Em 1796, uma galera da linha do Brasil é apresada por um corsário francês, sendo retomada pelo corsário Alcovora, que depois a deixou no porto do Funchal. Passados dois anos, sucedeu o mesmo com um bergantim da praça do Funchal, em viagem da Madeira para os Açores. A Madeira manteve-se como base das incursões inglesas nas Canárias, que levaram ao apresamento, em 1799, do navio Fama e, entre 1800 e 1801, de seis embarcações pelo corsário John Smith. Em 1805, os corsários ingleses apresaram vários navios espanhóis na Madeira, um em alto mar e dois junto das Canárias, a que se juntou depois outro no porto do Funchal. Tendo conduzido estas presas ao Funchal para as vender, viram-se impedidos pelo governador, que alegou estar tal ato proibido pelas leis de 30 de agosto de 1780 e de 3 de junho de 1803, onde se estipulavam as regras da neutralidade. A 17 de março, a nau inglesa Immortalité havia apresado o corsário espanhol El Intrépido Coruñés, do mestre Patricio Farto, que trazia a bordo os tripulantes de uma escuna portuguesa que havia apresado. Em julho, a fragata inglesa Venus havia tentado apresar o bergantim espanhol Nossa Senhora da Conceição no Porto do Funchal, sem êxito. Tal facto mereceu viva repulsa do cônsul espanhol, que invocou as regras da neutralidade. Em 1806, os Ingleses apresaram mais quatro navios espanhóis, enquanto em junho o brigue-escuna inglês Saracen, sob o comando de Prevot, lançou na Ilha a tripulação de uma fragata espanhola, levando consigo a presa. Em dezembro, a fragata inglesa Nereyde lançou na Ilha 13 prisioneiros das tripulações de um corsário e de uma corveta espanhola, procedentes, respetivamente, de Bilbau e Pontevedra, que apresara perto da Madeira. Entretanto, em fevereiro do ano seguinte, um brigue de guerra inglês havia tentado apresar um navio francês no porto do Funchal, provocando um protesto do cônsul francês, que argumentou com base no decreto de neutralidade de 3 de junho de 1803. Neste ano, vários navios de guerra (as fragatas Nereyde e Cambian e a escuna de guerra Quail) aportaram à Ilha e estiveram implicados no apresamento de três navios espanhóis. Em 1810, a galera inglesa The Valiant apresou a fragata francesa Cannonier, com fazendas da Índia avaliadas em três milhões de libras esterlinas, no que foi um dos saques mais vantajosos até então feitos nesta área. A rivalidade britânico-americana, acesa com a Guerra da Independência dos Estados Unidos, transferiu para a área atlântica insulana o embate das frotas dos beligerantes, com ações violentas muito destacadas, principalmente nos Açores. Na Madeira, apenas se registou uma ação de represália de um corsário inglês, em 1813, contra um bergantim americano, que conduzira à Ilha para vender, no que foi impedido, pois nesse momento e no período consequente à referida guerra, em 1778-1780, as autoridades locais preocupavam-se muito em manter a maior neutralidade. Por outro lado, persiste a lenda de que um pirata teria enterrado o saque de um roubo de navios mexicanos nas Selvagens. Em 1815, um facto insólito aconteceu na Madeira, em resultado desta constante ação de corso. A galera francesa Mercúrio, com destino à Martinica, entrou no Funchal conjuntamente com um comboio inglês de sete navios, e à saída tinha-se passado para os Ingleses, arvorando a sua bandeira. Este facto deixou estupefactas, e ao mesmo tempo alarmadas, as autoridades locais, que não deram pela situação, que constituía uma violação do direito de asilo e soberania. Depois disto, só em 1822 temos referência de que o bergantim inglês Betsey foi abordado por dois corsários ingleses, que lhe roubaram vinho e presunto. As ações dos Franceses incidiam de modo especial sobre as embarcações portuguesas, menos seguras e protegidas que as inglesas, tornando-se assim presa fácil dos corsários franceses, que as justificavam pela política colaboracionista de Portugal, aliado dos Ingleses. O porto do Funchal esteve por várias vezes ameaçado pela sua ação, ou sob a expectativa da vinda da esquadra de Brest. Muitas dessas presas eram retomadas pelos corsários ingleses, como sucedeu em 1776 e 1798. A partir de maio de 1793, o panfletário corsário de Nantes Sans Cullotte esteve em atividade permanente nas águas da Madeira. Dada a Revolução Francesa e a consequente guerra, muitos navios franceses que se encontravam ou foram ter ao porto do Funchal acabaram por se naturalizar, como forma de fugirem ao corso inglês. Da ação de represália dos corsários franceses contra os navios ou nacionais, registam-se uma presa em 1797, 1798, 1801 e 1813 e quatro em 1814. Neste último ano, temos registo, primeiro, de duas fragatas francesas que apresaram um navio que trazia o conde das Galveias, as quais entregaram os tripulantes ao navio Comerçante, que fazia a patrulha das ilhas; e de mais duas fragatas – Arethuza e L’Yrienne – que apresaram a escuna espanhola Santa Bárbara, os navios portugueses Hércules e Carlota e o brigue Sociedade, que haviam saído do reino para o Brasil. As preocupações das autoridades locais em face destas ações são constantes nas duas últimas décadas do séc. xviii, coincidindo com um período de forte incidência das ações francesas. Em 1785, sob o comando do comandante do porto de Toulon, uma esquadra francesa composta por uma nau e fragatas, segundo lista fornecida pelo ajudante da esquadra, que entrara no Funchal com alguns navios, andava corseando nas águas do Porto Santo. Foi com grande apreensão que as autoridades locais tomaram conta do facto e procuraram em tudo manter a maior neutralidade, uma vez que faltavam à Ilha forças suficientes para lutar com os Franceses, e os Ingleses haviam desaparecido. Entre 1798 e 1799, intensificaram-se as ações dos corsários franceses junto da Madeira, de modo que estes se tornaram num forte transtorno para o comércio da Ilha, temendo-se, a todo o momento, o assalto de uma esquadra francesa ou a repetição dos acontecimentos de 1804. Os Franceses fizeram incidir a sua ação sobre os navios portugueses, mais desprotegidos e menos defendidos em relação a qualquer ameaça corsária, constituindo assim uma grande preocupação para as autoridades locais e um grave transtorno para as atividades comerciais da Ilha em finais do séc. XVIII. Além das presas referidas d navios portugueses, há a salientar, por parte dos Franceses, apenas a presa de uma embarcação não portuguesa, facto que se deu em 1797, altura em que apresaram uma galera americana – Virginia – conjuntamente com outra portuguesa – Aníbal. Os corsários argelinos, que ao longo dos sécs. XV e XVII se haviam tornado uma forte ameaça para estas paragens, nomeadamente nas ilhas do Porto Santo e Santa Maria, surgem, em plenos sécs. XVIII e XIX, com pouca importância e ações esporádicas. Assim, neste período, temos notícia de um saque do Porto Santo, em 1708, de algumas presas no alto mar em 1737, 1750 – neste ano levando cativo o cônsul francês, que se deslocava de Lisboa para a Madeira – e em 1771. Entre 1806 e 1867, andavam corseando nas águas da Madeira dois corsários argelinos, à caça de navios portugueses e espanhóis, surgindo depois, em 1827, uma forte ameaça, a qual foi cerceada por uma ação em bloco dos países europeus lesados com o bloqueio do porto de Argel, uma vez que todos os navios argelinos encontrados a navegar no Atlântico eram considerados à época corsários. A 30 de julho de 1827, a questão dos corsários argelinos estava resolvida, e havia boas relações com Portugal. No entanto, houve ações de corsários argelinos na primeira metade do séc. XIX, uma vez que, em 1811, estavam em Argel 610 Portugueses, 247 dos quais foram libertados a troco de 1021 pesos. Em fevereiro desse ano, Manuel Sardinha, da tripulação do brigue Lebre Pequena, esteve cativo em Argel e ficara inválido no combate que travara com um corsário 11 anos e 3 meses antes; em 1823, sabe-se que Diogo António Cabral estivera no cativeiro de Argel mais de 10 anos, pela tomada da fragata Cisne. Destaque-se ainda a ação de outros corsários não identificados, ou antes, de piratas que, entre 1804 e 1820, apresara, na área da Madeira, oito embarcações portuguesas, uma em 1804, outra em 1820 e seis em 1818. Em 1804, o mestre do bergantim português Conceição dizia ter sido apresado a 26 de maio por um corsário “que se dizia inglês, sem o parecer, por falar espanhol e italiano a gente da sua tripulação” (AHU, Madeira e Porto Santo, mç 8, doc. avulso), tendo roubado a carga que transportava. Em 1818, foram apresadas as galeras Luzia, Rainha dos Mares e Ninfa de Lisboa, a escuna Maria, e o bergantim Restaurador, da cidade do Porto. Por fim, em 1820, é apresado o brigue português Providência, por um brigue pirata de sete canhões à banda, sendo esta a única referência que temos sobre a ação dos piratas. Os beligerantes americanos surgem com particular incidência nas ilhas dos Açores, em épocas determinadas da conjuntura histórica setecentista ou oitocentista. No entanto, a Madeira foi igualmente um polo de atração, nomeadamente dos corsários americanos, que aí iam à procura dos seus rivais ingleses. Estas incursões dos corsários americanos inserem-se numa dinâmica própria saída da evolução da conjuntura e estrutura colonial, que alterou o posicionamento dos europeus em face do controlo e da disputa das rotas comerciais. Enquanto as ações dos Ingleses, dos Franceses e outros se inserem no velho quadro da guerra de corso e são características dos momentos de guerras terrestres e da rivalidade e disputa das rotas e dos mercados comerciais, as ações dos corsários americanos e insurgentes inserem-se numa dinâmica de luta pela independência das regiões de forte dominação e exploração colonial no continente americano, como é o caso dos Estados Unidos, da Argentina e da Bolívia. A Guerra da Independência dos Estados Unidos da América (1770-1790) e o litígio permanente que daí adveio – mesmo depois das pazes celebradas em 1873, uma vez que este se alargou ao espírito de guerra latente, com as constantes incursões de corsários armados nas cidades americanas, isolados e em estreita colaboração, a partir de 1816, com os insurgentes, fazendo incidir particularmente esse confronto na área de forte atração do movimento naval e corsário, as ilhas da Madeira e dos Açores – causavam graves transtornos à vida das populações e ao movimento atlântico, sendo igualmente uma constante preocupação das autoridades insulanas, que se avolumou em 1814, com o célebre combate da Baía da Horta. Na ilha da Madeira, temos notícia da permanência destes corsários entre 1778 e 1780, tendo então bloqueado o Porto do Funchal, de modo que, em 1780, o governador se queixava de que os corsários americanos “infestam [...] continuadamente esta costa depois que à guerra da América Setentrional se juntou a de França, e de Espanha; causando os sobreditos corsários particulares e maior incómodo que é possível ao comércio deste porto, ou nas revistas dos navios” (AHU, Ibid., mç. 561, doc. avulso). No entanto, neste período não temos notícia de qualquer presa, surgindo essas referenciadas apenas em 1810, com o apresamento de um navio inglês, e em 1816, com o apresamento de três embarcações espanholas e três portuguesas. Francisco Borges, em carta ao conde das Galveias, dava conta da sua apreensão em face da evolução provável dos acontecimentos e das repercussões futuras, que de facto seriam funestas, como veremos: “Eu não posso sufocar os acontecimentos de desgosto que me possuem vendo suplantar as sábias reflexões de V. Exa. sobre a expedição de Buenos Aires e ver marchar o nosso exército sobre as margens do Panamá a envolver a nação em contendas cujos resultados poderão ser um dia assaz desastrosos à nação e ao Brasil, exaspero, quando recordo as sábias e poderosas razões com que V.ª Ex.ª apoiou esse voto sobre o comportamento, a delicadeza que a nossa corte devia conservar com Buenos Aires pensar diametralmente oposto à cogitação do génio que depois de ter semeado a confusão e a anarquia nas finanças e na Marinha foi de um golpe perder no Brasil o exército e ingerir-nos nas delicadas questões da América espanhola, no momento em que este anunciou, uma revolução espantosa” (AHU, Ibid., doc. avulso). Certamente que nesta carta não se pretendia aludir aos reflexos que o acontecimento veio a ter na dinâmica atlântica de inícios do séc. XIX, mas antes ao perigo de a luta independentista alastrar à rica região brasileira, não prevendo certamente a questão da ação corsária insurgente. O conflito opôs os Portugueses aos rebeldes argentinos, sob o comando de José Artigas, e manteve-se para além da batalha de 7 de janeiro de 1817, de onde estes saíram derrotados. Segundo declarações dos insurgentes, a sua ação de corso inseria-se numa ampla campanha de represália contra a ação portuguesa nos destinos da Argentina. Portugal em face do corso Perante as constantes incursões corsárias nesta importante área de passagem dominada pela Madeira e pelos Açores, a parte portuguesa era muito afetada, não só pelas presas que sofria, mas igualmente pelos constantes bloqueios das rotas, vendo o comércio das ilhas e do Brasil bastante onerado. A Madeira, e.g., com uma economia dependente do mercado externo, viveu algumas vezes momentos aflitivos face a esses bloqueios, que impediam a saída do vinho e o reabastecimento de comestíveis e manufaturas. Seria de esperar de imediato, e como forma de evitar esses transtornos, uma ação de represália pelos constantes prejuízos causados pelos piratas e os corsários ingleses, americanos, franceses e espanhóis. Tal represália começou pela armação de corsários portugueses, seguida pela organização de um acertado sistema de defesa costeira e de vigilância dos mares. Mas os Portugueses não foram apenas vítimas da ação de corso, também tiveram corsários, cuja ação não terá sido menos violenta que a dos franceses e dos argelinos. Já em inícios do séc. XV temos notícia de que João Gonçalves Zarco andava em corso aos espanhóis – era aliás considerado um corsário por Zurara e Duarte Pacheco Pereira – e que fora numa dessas ações que teria encontrado a ilha do Porto Santo. Ao mesmo navegador se atribui ainda a invenção da forma de montar a artilharia a bordo para disparos eficazes contra o inimigo. Em 1557, ordenava-se a Francisco Gonçalves da Câmara que fizesse aprestar um navio para se juntar a um corsário que andava investindo ao longo da costa da Ilha, e em 1571 a Madeira dispunha de uma armada para a defesa da Ilha contra os corsários, paga pela Real Fazenda. Em 1575, Simão Gonçalves da Câmara recebia ordem para auxiliar a guerra de corso, sendo os particulares autorizados a armar navios, para que “todos os corsários e navios que achar de suspeita e mau título meta ao fundo sem dos tais navios ficar viva pessoa alguma por nenhum caso e que faça fazer outros em segredo por uma pessoa de confiança e com testemunho de como são corsários e por tais havidos, os quais autos vos entregará para mos vós entregardes” (ANTT, Miscelanias Manuscriptas, liv. 1104, 43). Em 1730, há à armação de um corsário na Ilha para se juntar a um corsário de mouros que vagueava ao longo da costa. Desse ato, existe o requerimento e o termo de fiança do seu promotor, Pantaleão de Faria e Abreu. São também conhecidas informações sobre outros corsários marroquinos, em 1781 e 1793. Segundo o alvará de 1758, o corso não podia ser feito por Portugueses sem a devida autorização régia, facto que vem comprovar que, nesta época, se passavam patentes de corso. Outra forma de resposta à guerra ou ao corso era interditar os navios da nação inimiga de entrar nos portos e apresar os que aí permaneciam no momento da declaração da guerra. Assim sucedeu em 1762, face à declaração de guerra feita pela França, em que o governador da Madeira, Francisco Correia de Sá, recebeu ordem para exercer represálias sobre os navios franceses, tendo apresado o bergantim francês Ruby, que aportara ao Funchal a pedir refresco, para evitar uma pretensa batalha naval com uma fragata inglesa que se encontrava ancorada. Desde janeiro de 1793 que a Revolução Francesa e a Convenção havia autorizado os oficiais da marinha mercante a armar navios de corso, tendo-se iniciado uma ação de represália, de que apenas temos notícia do apresamento da galera francesa Le Comerçant, em julho de 1793, junto do Porto Santo, e de um corsário francês, em julho de 1798, junto de Mogador, pelo bergantim português Lebre. Em 1815, em face dos acontecimentos de França, refere-se a possibilidade de se armarem novamente corsários para corsear os navios de bandeira tricolor. Embora seja notório o movimento de corso de navios portugueses, entre 1792-1793 e 1815, não temos qualquer referência a uma carta de corso. Somente em 1820, já em fase tardia, surge uma carta de marca dada a Manuel de Sousa Lobo, comerciante da praça de Lisboa, para armar em guerra o seu navio Harmonia com 18 peças e 2 obuses para “correr sobre os piratas, inimigos da minha real coroa, os quais, infestando os mares e perturbando o comércio de meus fiéis vassalos, têm causado a detração, danos, prejuízos e hostilidades manifestas a todas as nações da Europa, apreendendo e represando as suas embarcações. [...] Possa o referido navio [...] atacar, render, e fazer prisioneiros todos os corsários de piratas e inimigos que encontrar em todas aquelas embarcações sobre que houver suspeita, ou falta de legalidade, com todos os efeitos que elas contiverem” (AHU, Madeira e Porto Santo, mç 13, doc. avulso). Por outro lado, estavam regulamentadas medidas proibitivas da ação dos corsários, tais como a proibição de venda das presas das nações aliadas ou amigas em portos nacionais, e legislara-se as normas a ter em conta na hospitalidade a conceder aos corsários. Dessas leis, destaque-se as de 30 de agosto de 1780, de 17 de setembro de 1796 e de 3 de junho de 1803. Em 1805, confrontado com a entrada no porto da fragata inglesa L’Egyptian, com três embarcações espanholas apresadas, o governador da Madeira dizia acerca dos decretos de 30 de agosto de 1780 e de 3 de junho de 1803, dizia: “Fixou um inviolável sistema de neutralidade e as regras que se devem praticar, proibindo que os corsários das potências beligerantes, não sejam admitidos nos portos dos seus estados e domínios, nem as presas, que por eles ou naus, fragatas, ou quaisquer outras embarcações de guerra se fizerem sem outra exceção, que a dos casos em que os direitos das gentes fazem indispensável a hospitalidade, com a condição, porém, que nos mesmos portos se lhes não consinta vender, ou descarregar as ditas presas, nem demorarem-se por mais tempo, que o necessário para evitarem o perigo, ou conseguirem os inocentes socorros, que lhes forem necessários” (AHU, Ibid., doc. 1898). Quanto ao decreto de 30 de agosto de 1780, dizia ainda o governador: “Havendo recebido pelo expediente do Conselho da Guerra um decreto de Sua Majestade de 30 de agosto de 1780, que proíbe o serem admitidos nos portos deste reino os corsários das nações atualmente beligerantes, nem as presas que estes, ou as naus e fragatas de guerra fizerem e sem outra exceção que a do caso da hospitalidade, nem venderem, ou descarregarem as ditas presas, ainda nos referidos casos, o qual fiz logo expedir cópias aos comandantes das fortalezas que guardem os portos destas ilhas (AHU, Ibid., doc. 1558). A resposta prática e visível passava por medidas de fortificação para defesa dos núcleos populacionais e por impedir qualquer assalto. Se a orgânica defensiva costeira procurava atender à segurança de pessoas e haveres e manter os portos ao abrigo das investidas corsárias, a defesa e vigilância dos mares procurava manter as rotas limpas dos corsários, de modo que a navegação mercantil se fizesse com segurança. Nesta época, esta última dimensão assumia grande importância, uma vez que a ação corsária caminhava cada vez mais para o alto mar, fora do alcance das fortificações costeiras. O balanço do assalto francês de 1566 fora trágico: 200 mortos e perdas financeiras de mais de $500.000 rs. Por outro lado, confirmara-se aquilo para que os madeirenses sempre tinham alertado: a ineficácia das fortificações e a reivindicação de uma maior atenção por parte das autoridades. Uma das consequências principais deste assalto foi o maior empenho da Coroa e das autoridades locais nos problemas da defesa da Ilha e, principalmente, da sua cidade, que, por estar cada vez mais rica e engalanada, despertava a cobiça dos corsários. O desleixo na arte de fortificar e organizar as hostes custara caro aos madeirenses, pelo que a defesa da Ilha era um desejo premente. Assim, reativaram-se os planos e recomendações anteriores, no sentido de definir uma defesa eficaz da cidade a qualquer ameaça. O regimento das ordenanças do reino (1549) teve aplicação na Ilha a partir de 1559, enquanto a fortificação teve regimentos (1567 e 1572) e um novo mestre-de-obras, Mateus Fernandes. Perante a incessante investida de corsários no mar e em terra firme, houve necessidade de definir uma estratégia de defesa adequada. No mar, optou-se pelo necessário artilhamento das embarcações comerciais e pela criação de uma armada de defesa das naus em trânsito. Em terra, foi o delinear de uma incipiente linha de defesa dos principais portos, ancoradouros e baías, capaz de travar o possível desembarque destes intrusos. O plano de defesa completou-se, no período da União Peninsular, com a construção da fortaleza de Santiago (1614-1621), o consequente aumento do troço de muralha costeira, e a construção do castelo de São Filipe do Pico (1582-1637). A defesa costeira e dos portos de abrigo é encarada como um meio de preservação e resguardo do espaço territorial das investidas dos corsários, mas a sua utilidade nesta época foi quase nula, uma vez que os corsários, cientes da forte barreira que oferecia a rede de fortificações costeiras, não se aventuravam a entrar em terra e, quando o faziam, era de modo sub-reptício, para fazer aguada. A ação da engenharia militar foi mais intensa nos períodos de maior incidência da pirataria e do corso, entre 1793-1801, 1804-1810 e 1814-1820, sendo de destacar os levantamentos feitos por Pedro de Azevedo e Paulo Dias de Almeida. Em face das ameaças dos corsários, organizaram-se nas ilhas formas diversificadas de defesa adequadas ao embate de qualquer esquadra naval ou de corsário. Essas medidas surgem na sequência da notícia da guerra ou da organização de esquadras estrangeiras para sair aos mares, como sucedeu em 1762, 1797 e 1805, na Madeira, e, em 1818, na Madeira e nos Açores. A defesa dos mares desta importante área de passagem atraiu a atenção das autoridades locais durante este momento e foi o único meio capaz de assegurar o controlo e apaziguamento dos efeitos do corso. Em 1638, estava disponível uma embarcação no Funchal, sob o comando de Matos de Mendonça e Vasconcelos. Depois, o Gov. Duarte Sodré Pereira concedeu cartas de corso em nome do Rei, para afugentar o corso e a pirataria. Para a defesa dos mares, em 1820, foi enviado o bergantim Infante D. Miguel, para atuar contra os corsários entre a Madeira e as Canárias; em 1821, a fragata Pérola; e em 1824, o bergantim Tejo. Em 1823, referia-se que a área de atuação dos corsários na Madeira incidia até 10 léguas ao norte do Porto Santo, e entre o cabo de São Vicente e o cabo de Santa Maria. Essas embarcações destacadas para as ilhas tanto patrulhavam a área, como comboiavam as embarcações comerciais a porto seguro. Os próprios comerciantes e consignatários dos navios de comércio solicitavam constantemente esse apoio. O mar das ilhas foi, desta forma, um dos grandes centros da guerra de corso no Atlântico, onde atuaram Franceses, Castelhanos, Ingleses e Marroquinos. Alguns viram a sua posição reforçada pela sua presença em solo insular, outros, como os corsários de Salé, pela proximidade da sua base continental atlântica de atuação. Atente-se no facto de os Ingleses assumirem a sua posição e presença na sociedade madeirense através de mecanismos legitimados por tratados, que lhes facultavam uma posição estratégica nesta guerra de corso atlântico, contribuindo para que o Funchal se visse envolvido em conflitos para os quais não era chamado. O Tratado Luso-Britânico de 1793 é claro na cooperação de ambas as armadas e na defesa das embarcações de bandeira de ambos os países, e recorde-se a ocupação inglesa do arquipélago, em 1801 e 1807. O corso francês atua contra o arquipélago e as embarcações portuguesas que o servem, mais no séc. XVI que nas centúrias seguintes, não obstante a investida ao Porto Santo, em 1794, e depois na Madeira, em 1798. Parece-nos haver aqui evidência de uma guerra religiosa, que não é fácil detetar no assalto francês de 1566, embora protagonizado por huguenotes. Um dos aspetos que marcam a atuação dos Franceses na déc. de 90 do séc. XIX é o bloqueio que estabelecem ao porto do Funchal como represália aos Ingleses, mas que tem pronta e permanente resposta inglesa, o que não impede a continuidade do movimento do porto do Funchal. O que está aqui presente é o interesse económico e político, que atua de forma desfavorável na economia do arquipélago, não apenas pelo volume das presas e pela quebra do movimento, mas, antes de tudo, com a ansiedade e inquietação que geram nos agentes comerciantes, uma vez que permanece sempre uma nova possibilidade de perda, que se vem juntar aos naufrágios e que surge sob a forma de avisos e temores da guerra. É por isso que, tirando a situação particular do assalto francês de 1566, as perdas para a Madeira desta guerra de corso não resultam de uma ação direta, mas sim das consequências, quase sempre indiretas, das mesmas no movimento portuário e na circulação das mercadorias.     Alberto Vieira (atualizado a 01.02.2017)

História Económica e Social

energia elétrica

Antes de se poder usar eletricidade para a iluminação, o azeite era o combustível mais utilizado para esse fim. Até ao final do séc. XIX, os madeirenses utilizaram velas ou candeeiros alimentados a azeite (e posteriormente a petróleo) para a iluminação. À noite, as ruas e os espaços públicos mergulhavam numa completa escuridão. “De longe em longe, um traço de luz coado pelas vidraças das habitações ou uma lanterna guiando algum transeunte noctívago, vinham quebrar momentaneamente as trevas em que a cidade [do Funchal] se achava sepultada” (SILVA e MENESES, 1998, II, 268). A iluminação pública do Funchal surgiu em 1846, numa iniciativa do governador civil José Silvestre Ribeiro, que mandou colocar alguns candeeiros a azeite em pontos centrais da cidade, como forma de melhorar a segurança da população madeirense. A esta iniciativa juntaram-se outras de carácter privado, de pessoas abastadas e de alguns britânicos estabelecidos no Funchal, que contribuíram para a iluminação das ruas com candeeiros instalados nas suas próprias habitações. Os candeeiros teriam dois ou três bicos e tinham como combustível o azeite, o óleo de peixe ou de purgueira. Em 1849, chegaram a existir cerca de 70 candeeiros para a iluminação da cidade do Funchal. Mais tarde, em 1870, a Câmara do Funchal assumiu os encargos com a iluminação e instalou candeeiros em mais alguns pontos da cidade. “Da extremidade de umas hastes de ferro horizontais, de pouco mais de um metro de comprimento, pendiam os candeeiros, sendo os mais antigos amarrados a uma corrente, que, ao longo da haste e da parede, se vinha prender numa fechadura que era aberta para fazer subir ou descer o depósito do combustível e assim proceder-se à sua limpeza e também acender-se ou apagar-se o candeeiro. Depois passaram a estar fixos na extremidade de varas de ferro, sendo preciso o auxílio de escadas para todo o serviço de iluminação” (SILVA e MENESES, 1998, II, 138). Por esta altura, o petróleo começou a ser utilizado como alternativa ao azeite, por gerar uma chama mais intensa. Acompanhando o desejo de progresso que se verificava noutras cidades europeias, houve algumas tentativas, aliás sem sucesso, de mobilização para a implementação da iluminação pública do Funchal a gás. No entanto, o passo decisivo, em termos de progresso, deu-se com a instalação da luz elétrica. A 22 de maio de 1895, a Câmara fez uma concessão ao engenheiro portuense Eduardo Augusto Kopke para a iluminação pública do Funchal. Passado um ano, este engenheiro transferiu o seu contrato para a empresa inglesa The Madeira Electric Lighting Company Limited, conhecida na Madeira como Companhia da Luz Elétrica. Esta empresa implementou a primeira rede de iluminação elétrica e procedeu à instalação da Central Térmica do Funchal, para a produção de energia elétrica. Em 1897 inaugurava-se a luz elétrica no Funchal. A primeira central tinha apenas um grupo gerador a vapor, com potência de 35 cv. No período de 20 anos que se seguiu à inauguração da Central Térmica do Funchal, o uso da energia elétrica foi-se tornando essencial no quotidiano dos madeirenses. O objetivo do contrato de concessão com a empresa inglesa foi totalmente cumprido. Existiam “em toda a cidade e subúrbios 14 arcos voltaicos e 1400 lâmpadas, estendendo-se a mesma iluminação até o Lazareto, quinta Reid, no Caminho do Meio, Conceição, em S. Roque, Quinta do Leme, em Santo António, Nazaré, em São Martinho, e Confeiteira, no Monte” (SILVA e MENESES, 1998, II,269). Para dar resposta às exigências do crescente consumo de eletricidade, a empresa inglesa ampliou, por diversas vezes, a pequena central elétrica do Funchal, já conhecida como Casa da Luz. Em 1925, foi alargado o prazo do contrato de concessão à Madeira Electric Light Company, de 45 para 50 anos. A empresa construiu uma nova central, num espaço contíguo ao anterior, onde foram instalados, ao longo de 11 anos, 6 grupos eletrogéneos. A potência total nominal era, então, de 1890 kW. Mas a Segunda Guerra Mundial trouxe muitas dificuldades à empresa inglesa no que diz respeito ao abastecimento de combustível. Um pouco por toda a Ilha, nasciam iniciativas privadas para a produção hidroelétrica, com vista a responder às necessidades de energia elétrica em locais mais remotos. Entretanto, o Governo português enviou à Madeira uma missão técnica, liderada pelo Eng.º Rafael Amaro da Costa, para estudar o aproveitamento das águas da Ilha para rega e energia elétrica. Foi aprovado em 1943 o plano dos novos aproveitamentos hidráulicos da Madeira e constituída a Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (CAAHM), que se instalou no Funchal em 1944 e deu imediatamente início à execução do novo plano. Findo o prazo do contrato de concessão à empresa inglesa, e apesar do seu manifestado interesse em não a renovar, aquele foi novamente alargado por mais cinco anos. Em abril de 1949, o município do Funchal assumiu a substituição das funções da Madeira Electric Lighting Company pelos Serviços Municipalizados de Eletricidade. A produção e o fornecimento de energia elétrica do arquipélago, essenciais para o seu desenvolvimento, são assim transferidos para o sector público. Nos anos 50, foram atribuídas à CAAHM as funções de produção, transporte e distribuição de energia elétrica em toda a Ilha. Em 1953, começaram a funcionar as centrais hidroelétricas da Serra de Água e da Calheta, que garantiram energia elétrica a zonas rurais. A Ribeira Brava foi a primeira vila a receber energia elétrica. A aprovação do plano de eletrificação rural, que se veio a estender à ilha do Porto Santo, alargou a rede elétrica a todo o arquipélago. No Funchal, foi construída a sede da CAAHM, na Av. do Mar, e reequipou-se a sua central térmica com novo grupo eletrogéneo de 1000 kW. Edificou-se a Central Térmica do Porto Santo, que foi inaugurada a 9 de agosto de 1954. O consumo crescente de energia elétrica esteve na origem da construção de uma nova sala de máquinas, que ficava localizada a leste da anterior, onde foram colocados três grupos, um de 5145 e dois de 4320 kW. Na déc. de 70, conquistada a autonomia para a Madeira, o Governo regional transformou a CAAHM, então responsável pela produção, transporte e distribuição de eletricidade, numa empresa pública, a Empresa de Electricidade da Madeira (EEM). A EEM lançou-se a grandes obras com vista à eletrificação de toda a ilha da Madeira: foi construída a Central da Vitória, em 1980; a rede de baixa tensão estendeu-se por 456 km; e foram instalados 786 postos de transformação e 8498 focos de iluminação pública. Foram também criados mais três grupos de 5145 e 4329 kW para dar resposta à maior necessidade de consumo derivada do acelerado ritmo de desenvolvimento socioeconómico da Região. A produção de energia hidroelétrica, a partir de 1951, e a produção de outras energias renováveis, em finais do séc. XX, fizeram do arquipélago da Madeira um exemplo de inovação na diversificação de fontes de energia e de sustentabilidade energética. Nos anos 90, a EEM passou a sociedade anónima de capitais exclusivamente púbicos (dec. leg. regional n.º 14/94/M, de 3 de junho).   Casa da Luz O edifício sede da EEM, situado na Av. do Mar, foi sempre conhecido pelos madeirenses como Casa da Luz. Este edifício foi construído em 1956, tendo sido projetado pelo Arqt. Chorão Ramalho. Nele funcionam os serviços administrativos e técnicos da EEM e a subestação do Funchal. É frequente ouvir a população falar da necessidade de ir à Casa da Luz para tratar de demandas administrativas relacionadas com a conta da eletricidade. Neste edifício estava situada a Central Térmica do Funchal, que foi desativada em 1989, após um século de funcionamento. Para não deixar cair no esquecimento o esforço de muitos madeirenses que, desde o fim do séc. XIX, se empenharam nos primeiros passos da eletrificação da ilha da Madeira, foi inaugurado o Museu Casa da Luz, a 24 de novembro de 1997, por altura das celebrações do centenário da introdução da eletricidade na Ilha. Este Museu, situado no antigo espaço da Central Térmica do Funchal, ocupa cerca de 2000 m2 de exposição e concentra uma valiosa coleção de materiais e equipamentos, que contam a história da eletricidade na Madeira.     Ana Londral Cátia Teles (atualizado a 23.03.2017)

Física, Química e Engenharia