cemitério judaico
A presença dos comerciantes judaicos na Madeira só se registou na época contemporânea, assumidamente nos finais da déc. de 40 do séc. XIX, não existindo até então possibilidades políticas e religiosas para que fosse de maneira diferente (Judeus na Madeira; Judeus e limpeza de sangue). Somente com a restauração da Carta Constitucional, em 1842, houve alguma possibilidade de instalação de judeus na Madeira e, mesmo assim, com um certo recato, atendendo ao alvoroço provocado pela perseguição ao reverendo metodista Robert Reid Kalley (1809-1888), entre 1843 e 1846, a qual deve ter constituído uma referência.
Desde a publicação da Constituição de 1822 que se advogava o princípio da liberdade religiosa, mantendo a Carta Constitucional esse princípio, mas também definindo o catolicismo como a religião de Estado, voltando a especificar que todas as outras religiões eram permitidas aos estrangeiros, com o seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, mas sem a forma exterior de templo. Tal vinha de muito antes, tendo os anglicanos cemitério próprio desde 1765 (Cemitério britânico), mas só construindo a sua igreja entre 1819 e 1820, sem “frontispício de templo”, nem “torre, nem sino, que anunciem a sua Religião”, como escreveu o governador, a 19 de agosto de 1819, quando enviou nova planta do templo para o Rio de Janeiro (ARM, Governo..., 202, fl. 123).
Os primeiros elementos da comunidade judaica devem ter ido para o Funchal na sequência da vaga do turismo terapêutico; a eles se terão juntado os judeus envolvidos na série de relações económicas estabelecidas com as comunidades comerciais das principais cidades marroquinas e das ilhas atlânticas, pois uma boa parte dos mesmos era natural de Marrocos, embora circulando por Gibraltar, Lisboa e Londres. Encontrando uma cidade cosmopolita e com boas oportunidades de negócio, foram-se fixando, embora nunca tenham constituído um grupo numeroso. No entanto, uma boa parte destes comerciantes, como Jacob Abudarham (1844-1903), já nascido no Funchal, ou Willy Schnitzer (1869-1930), de origem alemã, rapidamente se notabilizaram no meio comercial, integrando as direções da Associação Comercial do Funchal.
O estudo do cemitério judaico do Funchal foi realizado por Rui Santos (1921-2014) e publicado na revista Islenha, em 1992 (SANTOS, 1992). Para a leitura das inscrições e recolha de dados sobre quase todos os elementos ali sepultados, o investigador recorreu, inclusivamente, aos descendentes da comunidade judaica funchalense, grande parte já fora da ilha, e aos membros da comunidade judaica de Lisboa. Não podendo ir muito mais longe, vamos limitar-nos a seguir sumariamente as informações desse autor.
Os terrenos para o cemitério foram adquiridos por Judah Allof e Isaac Esnaty (1810-1894), em 19 de dezembro de 1850, pela importância de 40$100 réis, tendo arrematado os mesmos Jacob Pallace e Elias Benaim, segundo escritura que depois Samuel Esnaty, filho de Isaac, entregou ao Comité Israelita de Lisboa, a 21 de março de 1906. O terreno havia sido penhorado por Apolónia Alexandrina Marques, viúva do capitão José Marques Lino, por recurso que lhe movera a abadessa do convento da Encarnação do Funchal, Maria Emília do Empíreo. O valor da aludida penhora era de 922$240 réis, montante muito elevado para a época, tendo a arrematação sido um bom negócio (ibid., 128-129).
A localização era ideal para o cemitério, que se fixou fora da cidade, tendo como limite o Lg. da Forca, pois sendo a pena morte somente determinada por ordem régia, tinha de ser executada no exterior da cidade, embora não tenhamos qualquer informação sobre a sua realização ali no Funchal. O terreno encontrava-se ao longo do caminho do Lazareto, já na freguesia de São Gonçalo e sob a arriba do Toco. O primeiro enterramento parece só ter ocorrido entre 1850 e 1851, quando houve autorização governamental para a construção do cemitério (ibid., 128). Segundo o Elucidário Madeirense, na entrada do mesmo existia uma sugestiva inscrição em hebraico, significando, em português, “habitação da vida” (SILVA e MENEZES, 1998, I, 266).
A primeira descrição que existe do cemitério judaico deve-se a Isabella de frança (1795-1880), uma atenta e informada inglesa casada com o comerciante de origem madeirense José Henrique de frança (1802-1886), nascido em Londres; o casal esteve na Madeira em 1853 para vender as propriedades que o morgado ainda mantinha na ilha. No seu Jornal de uma Visita à Madeira, a atenta inglesa refere que, no dia em que tinha ido à Camacha, passara ao lado de um precipício rochoso coberto de babosas e catos. Na parte mais árida do caminho, avultava “um muro alto e espesso que cerca o cemitério dos judeus”. Escreve a autora que era “o sítio do velho mundo de aparência mais triste e sombria” que jamais vira, “a própria morada da desolação”. No entanto, acrescenta que era “um monumento ao grande progresso da tolerância”, pois cinquenta anos antes não se permitia a nenhum judeu viver na ilha, quanto mais ali ser sepultado (FRANÇA, 1970, 143).
A data que encima o portão é 5611, ano de 1852 da era cristã, e indica que o cemitério foi construído no governo de José Silvestre Ribeiro (Ribeiro, José Silvestre), em funções entre outubro de 1846 e novembro de 1852, mas não se conseguiu localizar, até ao momento, qualquer processo de obras referente ao mesmo na CMF ou no Governo Civil. Os cemitérios mereceram particular atenção deste governador, até por ter estado suspenso de funções na Madeira na sequência da revolta da Maria da Fonte, ocorrida nos inícios de 1846, cujos ecos, a Patuleia e a implantação de juntas governativas pelo país, chegaram à ilha apenas no final do ano. Efetivamente, a Maria da Fonte tinha tido, entre outros motivos, a proibição dos enterramentos nas igrejas.
O cemitério deve ter registado cerca de 38 enterramentos, o primeiro dos quais, em princípio, entre fevereiro e março de 1854, de Reina Pariente Abudarham, mãe do comerciante José Abudarham (1807-1869), que publicou em A Ordem, em março de 1854, um agradecimento às pessoas que haviam tido “a bondade de acompanhar o funeral da sua muito presada Mãe” (apud SANTOS, 1992, 134). Regista Rui Santos que os israelitas seriam muito fechados e, nos meados do séc. XIX, por certo, temerosos e desconfiados em relação a qualquer abertura ao exterior. Pelo que, só depois de 1868, inclusivamente, apareceram inscrições em português, sendo as restantes em hebraico, como também muitas das seguintes (ibid., 133-134).
O cemitério ainda registou enterramentos durante a Segunda Guerra Mundial, quando se fixou uma grande comunidade de gibraltinos no Funchal, alguns dos quais israelitas. Calcula-se que tenham sido enterrados então nove indivíduos, quatro dos quais depois transladados para Gibraltar, mas a não existência de registos dificulta outras conclusões (ibid., 136). O último enterramento registado neste cemitério foi o de Joana Abudarham da Câmara (1880-1976), viúva do tenente-coronel António Bettencourt da Câmara (1879-1927), falecida na Qt. de S. Roque.
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Quando do trabalho de Rui Santos já o cemitério apresentava algum abandono, tendo sido o mesmo e alguns amigos, como o fotógrafo Duarte Gomes, que andaram a recolher os fragmentos das lápides sepulcrais para as fotografar e depois enviar para Lisboa para serem lidas. Uma das sepulturas já tinha sido arrastada falésia abaixo, não tendo resistido o canto sudeste do cemitério ao terramoto ocorrido a 26 de maio de 1975. Desde a sua construção que o cemitério esteve sempre a cargo de elementos da comunidade judaica do Funchal, principalmente da família Abudarham. Tendo sido D. Lisbeth Brendle, D. Vera Abudarham da Câmara Araújo e D. Isabel Vieira de Castro Câmara as últimas pessoas que possuíram a chave e zelaram pelo local. O cemitério dos judeus, face ao abalizado trabalho de Rui Santos, foi classificado, em 1993, como Património Cultural da região autónoma da Madeira, mas a antiga comunidade judaica, entretanto, extinguiu-se no arquipélago.
Desde 2004 que ocorrem alertas na comunicação social, inclusivamente, noticiando as visitas dos sucessivos embaixadores de Israel em Lisboa, em 2006, 2008 e 2014, após as quais foram sempre anunciadas medidas para a resolução da situação a breve trecho. Todavia, ainda não foi encontrada uma solução definitiva para o caso, que passa obrigatoriamente pela exumação das sepulturas face à instabilidade da arriba. Em 2008, a CMF disponibilizou um terreno anexo ao cemitério das Angústias, em São Martinho, que ficaria murado em relação ao existente, mas, em 2012, a comunidade israelita, logicamente demarcou-se dessa solução.
Bibliog.: manuscrita: ARM, Governo Civil, 202; impressa: CARITA, Rui e MELO, Luís Francisco de Sousa, Associação Comercial e Industrial do Funchal / Câmara de comércio da Madeira. Esboço Histórico (1836-1933), Funchal, Edicarte, 2002; Agência Lusa, “Cemitério no Funchal em Ruínas Devido ao Desinteresse da Comunidade Judaica e Embaixada de Israel”, Diário de Notícias, Funchal, 3 mar. 2012; ib., “Cemitério Judaico à Espera da Embaixada de Israel”, Diário de Notícias, Funchal, 7 nov. 2012; FRANÇA, Isabella de, Jornal de Uma Visita à Madeira e a Portugal, 1853-1854, Funchal, JGDAF, 1970; SANTOS, Rui, “O Cemitério Israelita do Funchal”, Islenha, n.º 10, jan.-jun. 1992, pp. 125-164; ibid., “A Família Abudarham do Funchal”, Islenha, n.º 12, jan.-jun. 1993, pp. 106-139; SILVA, Fernando Augusto da, e MENEZES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC. 1998; VERÍSSIMO, Nelson, “O Cemitério dos Judeus do Funchal”, Diário de Notícias. Revista, Funchal, 28 mar. 2004.
Rui Carita
(atualizado a 11.07.2016)