cemitérios

02 Jan 2017 por "Cesar"

Os enterramentos dos povoadores iniciais da Madeira não devem ter ocorrido em igrejas e capelas, que ainda as não havia em condições para tal, mas talvez esta prática já se verificasse duas décadas depois, embora só haja registos que a comprovem a partir de meados do c. XVI. A organização efetiva das freguesias deve datar apenas das últimas décadas do c. XV, especialmente a partir da colocação de Fr. Nuno Cão (c. 1470-1530) no Funchal, quando se começou a equacionar a construção da “igreja grande” e a sua transformação em sé de diocese.

A organização do futuro bispado parece ter sido discutida ao longo de 1512, com a presença do bacharel Rui Pires, o primeiro juiz de fora do Funchal, na Madeira; ela está de alguma forma patente na correspondência de D. Manuel sobre os enterramentos, datada do final desse ano, esclarecendo que a “esmola” em dinheiro das “covas em que se sepultavam” os fregueses deveria reverter para as fábricas das igrejas. O juiz de fora do Funchal teria comunicado que os vigários e capelães se apropriavam de metade do dinheiro das covas e entendiam tal como um direito, o que lhe havia suscitado dúvidas (Arquivo Histórico da Madeira, XVIII, 552-553).

O assunto dos enterramentos foi logo objeto de alvará do então vigário de Tomar, D. Diogo Pinheiro (c. 1450-1525), a 5 de janeiro de 1513, um diploma dirigido a todos os vigários, capelães e curas para que o dinheiro dos enterramentos passasse a reverter por inteiro para as fábricas das igrejas. O vigário de Tomar determinou ainda que se escolhesse um “homem bom”, eleito pelos fregueses, para arrecadar esse dinheiro juntamente com um escrivão, distribuindo-o depois, por acordo com os mesmos fregueses, mas “com o parecer dos vigários e curas” de cada freguesia (ib.).

A dúvida colocada pelo juiz de fora do Funchal sobre as verbas cobradas nos enterramentos envolvia a questão do pagamento do corpo da igreja, pois que sendo pago pelos fregueses, tal implicaria, em princípio, o direito de ali serem sepultados. O assunto, extensivo a todas as igrejas matrizes, foi por certo abordado com a instalação da nova igreja matriz do Funchal e a cativação de espaço para os enterramentos pelas famílias mais importantes da cidade. Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) escreveu, a este respeito, que o rei consultou então o vigário de Tomar e “resolveu que todas pertenciam à fábrica de cada uma das tais igrejas, cujo corpo, dizia, era obrigado o povo a sustentar”, acrescentando o cronista “o que por ora não discutimos”, parecendo que não concordava com a decisão, o que também poderá justificar a utilização do eufemismo “esmola” nos documentos (NORONHA, 1997, 316).

[caption id="attachment_5070" align="alignright" width="197"]Machico(BF)3 Cemitério Municipal de Machico.[/caption]

Este dinheiro passou a ser um dos principais suportes das fábricas das igrejas matrizes, ou seja, do conjunto de verbas que suportavam as obras de manutenção do edifício e o culto, para o que passou a haver escrituração e, na generalidade, uma comissão de fregueses, a chamada “comissão fabriqueira”, à frente da qual estava quase sempre o vigário. A dotação inicial das fábricas das igrejas da Madeira foi logo estabelecida em 1488, por D. Manuel, ainda como duque, fixando-se no valor de cinco mil réis anuais para cada igreja matriz de freguesia, verba sucessivamente ajustada ao longo dos anos seguintes e de acordo com o número de fregueses, o peso económico da mesma freguesia, etc.

O assunto dos enterramentos nas igrejas surgiu mais tarde, com a ocorrência de uma epidemia na Madeira, nos inícios de 1768, devida a um surto de sarampo que afetou a cidade e os campos, matando um elevado número de pessoas. Segundo viria a explicar depois o governador João António de Sá Pereira (1719-1804), o surto ficou a dever-se, em parte, à falta de assistência médica e a maior parte dos óbitos ocorreu em crianças e pobres. Infelizmente, com a chegada do verão, os madeirenses sofreram um novo surto epidémico, então de “disenteria de sangue”, manifestamente mais grave do que o anterior e de que resultou um maior número de mortes, principalmente no campo. Pelo mesmo governador, sabemos que os sacerdotes, preocupados com a “encomendação das almas dos seus paroquianos” e esquecendo a debilidade dos enfermos, os faziam “conduzir em redes e lençóis para dentro das igrejas”, onde quase todos faleciam por falta de cuidados, de assistência médica e medicamentosa, mais fácil de conseguir nos domicílios do que nos templos. A agravar a situação terá estado ainda o consumo de inhame, base alimentar da população rural madeirense e que se crê ser contraindicado nestes casos. Calcula-se que terão morrido cerca de 2000 pessoas com esta epidemia.

Nessa altura, o governador informou ter enviado para as zonas mais atingidas cirurgiões instruídos por um médico inglês radicado na ilha, juntamente com provisões e remédios, o que permitiu aos doentes “com algumas forças, escaparem”. O médico em causa, o Dr. Thomas Heberden (1703-1769), membro da Royal Society de Londres, foi largamente elogiado por João António de Sá Pereira, que referiu que o mesmo “tem feito maravilhas”. O governador oficiou ainda a todos os párocos das zonas rurais mais atingidas, ordenando a observância de rigorosas medidas com os enterramentos, proibindo-os no interior das igrejas e exigindo a desinfeção das mesmas, dos seus adros e locais contíguos.

Assim, não podemos deixar de sublinhar a ação do governador José António de Sá Pereira e, principalmente, a sua carta aos párocos das freguesias rurais, a 10 de julho de 1768, sobre os enterramentos nas igrejas. Salienta-se, então, “a pouca cautela no enterramento dos corpos”, que ficavam a “corromper os ares, com infecionados vapores dos mesmos corpos”, determinando-se os enterramentos fora das igrejas. Para os enterramentos já efetuados no interior, dever-se-iam colocar novamente “os pavimentos e calcar bem a terra, abrir continuadamente as janelas, ou vidraças das portas, perfumá-la e borrifá-la de vinagre e fazer com que só fora e nos lugares bentos, se continuassem os enterros”. Além disso, acrescentou: “E quando ainda assim se não extinguir o mau cheiro, Vossa Mercê logo me avisará, para que eu mande a cal que for bastante para cobrir o dito pavimento, ou as sepulturas que precisarem” (ARM, Governo..., 526, fls. 31-32, 147-147v, 149v-151; ib., 530, fls. 41v-48; AHU, Madeira, 340-342).

Saliente-se, no entanto, que o médico Thomas Heberden, que faleceu no ano seguinte, foi enterrado segundo os antigos costumes, no interior de igreja, por vontade expressa no seu testamento, em frente ao antigo altar de S. José, na sé do funchal, por certo, por interferência da “Ilustríssima Senhora Dona” Guiomar de Vilhena (1705-1789), então juiz dessa confraria. Segundo uma carta enviada pelo comerciante Robert Bisset ao seu correspondente em Filadélfia, datada de 2 de junho de 1769, o corpo do médico inglês foi acompanhado pelos juízes camarários e pela melhor sociedade funchalense, demonstrando assim a alta estima em que era tido (RIBEIRO, 1993, 393).

[caption id="attachment_5067" align="alignleft" width="300"]Machico(BF)2 Ossário do Cemitério Municipal de Machico.[/caption]

Parece que, ao longo do c. XVIII, quase não se utilizou o caixão; baseamos a nossa opinião na falta de referências a artífices desta área e no facto de os registos da sé, p. ex., só possuírem referência a uma estrangeira, em 1743, a ser enterrada em caixão: “sepultura de uma inglesa, ama de Diogo Gordon, em caixão”, o que levou a uma doação de 1$000 réis (ANTT, Cabido..., liv. 10, fl. 56v). Tal suposição parece ser confirmada por Maria Ridell, em 1788, que descreve os funerais portugueses como decorrendo com o cadáver transportado em rede, sem caixão, sendo, depois de partidos os ossos, depositado numa cova na igreja, em seguida coberta com pedras. Mais tarde, segundo o autor do Traveller's Guide, de 1819, os corpos eram lançados em covas, “sem cerimónias”, cobertos de cal e sobre a sepultura era colocada uma grande laje. No entanto, no mesmo ano, o autor de An Historical Sketch, referindo, por certo, alguma cerimónia a que assistiu no novo cemitério da SCM do Funchal, construído dois anos antes no sítio das Angústias, mostra “o acompanhamento de frades e mendigos, com tochas” (apud SILVA, 1994, 160).

O assunto dos enterramentos dentro das igrejas não foi ultrapassado de imediato na Madeira com as determinações de 1768, embora uma parte dos sepultamentos deva ter passado a realizar-se nos adros, pois em escavações pontuais de emergência no adro da sé do funchal, ocorridas em meados de 2004, p. ex., quando se procedia à abertura de valas para nova cablagem elétrica, detetaram-se vários enterramentos. O primeiro cemitério da Madeira fora das áreas das igrejas e capelas foi o da SCM do Funchal (Cemitério das Angústias), projetado em 1817 pelo major Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), por determinação do bispo de Meliapor, D. Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828), então administrador apostólico da diocese e provedor da misericórdia; situava-se na área abaixo da antiga Qt. das Angústias, onde hoje se encontra o Prq. de Santa Catarina e foi ampliado a partir de 1836 para servir toda a freguesia da Sé e de São Pedro.

Por essa data já estava levantado o cemitério da freguesia de São Roque, o primeiro iniciado mesmo antes da ampliação do das Angústias, embora tenha sido desativado pouco depois e o serviço transferido para o de São Gonçalo. Construíram-se, de seguida, o de Santa Luzia, em 1840, levantado na que veio a ser a Trav. da Saudade, onde mais tarde a CMF construiu um armazém para o serviço de camionagem (CALDEIRA, 1964, 56), e o cemitério de São Gonçalo, em 1841, no Funchal; em 1838; também já se encontrava a funcionar o do porto santo. Em 1840, o tenente engenheiro Tibério Augusto Blanc (c. 1810-1875) foi encarregado de vistoriar os cemitérios de Machico, Água de Pena, Santo António da Serra e Caniçal, certificando-se de que estavam de acordo com as determinações dos decretos de 21 de setembro e de 8 de outubro de 1835, vindo, no final desse ano de 1840, a vistoriar ainda um terreno em Machico, no sentido de avaliar se tinha condições para servir de cemitério àquela vila, embora a sua autorização para ser destacado para o serviço do governo civil só tivesse chegado no ano seguinte (ARM, Governo, 111, fls. 22-23v; ib., 6, fls. 3-3v).

[caption id="attachment_5063" align="alignleft" width="300"]Machico(BF) Cemitério Municipal de Machico.[/caption]

O assunto dos enterramentos fora das igrejas e em cemitérios independentes, muitos dos quais depois levantados quase anexos às matrizes das freguesias, como ainda hoje se mantêm, arrastou-se pelos anos seguintes. O governador José Silvestre Ribeiro (1807-1891), p. ex., em ofícios de 19 de agosto e de 26 de outubro de 1850 para as câmaras municipais rurais, voltava a recomendar a construção de cemitérios, visto existir em muitos pontos do distrito “a prática supersticiosa de enterrar os mortos dentro dos templos” (SILVA e MENEZES, 1998, I, 266).

Os cemitérios da costa norte foram mais tardios, posteriores a 22 de março de 1861, em princípio, pois é dessa data o ofício do governador civil Joaquim Pedro Quintela (1823-1882), 2.º conde de Farrobo, para o administrador do concelho de santana, interrogando se “os enterramentos dos finados no concelho têm lugar no cemitério” (ARM, Governo..., 9, fl. 1v). Além disso, em 1862, um jornal da época referia que as freguesias de São Jorge e do Arco de São Jorge ainda não possuíam “recintos destinados à inumação dos cadáveres” (SILVA e MENEZES, 1998, I, 266).

Bibliog.: manuscrita: AHU, Madeira, 340-342; ANTT, Cabido da sé do funchal, liv. 10; ARM, Governo Civil, 6, 9, 111 e 526; impressa: Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVIII, Funchal, Junta Geral, 1974; CALDEIRA, Abel Marques, O Funchal no Primeiro Quartel do culo XX, 1900-1925, 3.ª ed., Funchal, Eco do Funchal, 2007; CARITA, Rui, História da Madeira, vols. 5 e 7, Funchal, SRE, 1999 e 2008; MENEZES, rvulo Drummond de, Collecção de Documentos Relativos à Construção da Ponte do Ribeiro Sêcco na Ilha da Madeira, Funchal, Typ. L. Vianna Junior, 1848; id., Uma Epoca Administrativa da Madeira e porto santo, a Contar do dia 7 de Outubro de 1846, 3 vols., Funchal, Typ. Nacional, 1849-1852; NORONHA, Henrique Henriques, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; RIBEIRO, Jorge Martins, “Alguns Aspectos do comércio da Madeira com a América do Norte na Segunda Metade do culo XVIII”, III Colóquio Internacional de História da Madeira. Atas, Funchal, SRTC, CEHA, 1993, pp. 389-401; SANTOS, Rui, “Um Capitão de Engenheiros”, Jornal da Madeira, 25 dez 1991 e 5 jan. 1992; SILVA, António Ribeiro Marques da, Apontamentos sobre o Quotidiano Madeirense (1750-1900), Lisboa, Caminho, 1994; SILVA, Fernando Augusto da e MENEZES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC, 1998.

Rui Carita

(atualizado a 11.07.2016)