crónica
“História dos tempos por sua ordem”, a crónica tornou-se, com a explosão da imprensa periódica oitocentista, secção e género jornalístico-literário de caráter entre informativo e opinativo, até à extrema subjetividade de hoje. Enquanto historiografia e literatura, alternou (quando não se identificou) com designações como “anais”, “comentários”, “fastos”, “memórias”, “relações”, “epanáforas”, “anedotas”, “biografias”; nas crestomatias arcaicas, o vocábulo conhece várias grafias: “chronica”, “cronica”, “corónica”, “coroniqua”, “caronica”. Desta, provirá “caronista”: “cá o cronista há de ser muito certo em seu razoar”, reza a Crónica de D. João I (LOPES, II, 1949, 90). D. Francisco Manuel de Melo confessa-se, na Epanáfora Amorosa (1654), “medroso para Coronista” (CASTRO, 1975, 31). O Vocabulário Portuguez e Latino (1712) de Rafael Bluteau oferece “chrónica”, “chronico”, “chronista”, “chronologia” e manda ver “crónica”, etc. Admite já, portanto, a fórmula moderna, ainda hesitante no Diccionario da Lingua Portuguesa de Moraes (7.ª ed., 1877), que concede “chrónica”, naquele sentido e no de “secção das folhas periódicas destinada a notícias diversas do tempo presente”. Temos recolhas quatrocentistas, ou, de autoria confirmada, as de Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara, Fernão Lopes de Castanheda, Rui de Pina, Duarte Galvão, Fr. João Álvares, Garcia de Resende, João de Barros, Damião de Góis, António de Saldanha. A par da história pátria, transnacional e de monarcas ou nobres, deparamos com a “crónica da cidade ou crónica urbana” (AMADO, 2007, 25). Mas, se em Lopes temos “carrego de ordenar histórias”, após largo cuidado e diligências testemunhais, sem a preocupação de buscar “formosura e novidade de palavras” – di-lo no prólogo à crónica de D. João I (ibid.) –, são já diversas verdades e formosos entendimentos pátrios os que se nos deparam em crónicas novelescas, de um Clarimundo joanino à também quinhentista Crónica do Imperador Maximiliano, só editada em 1983. Significa que o género, de procurada metodologia historiográfica ou inçado de fantasia, pode ainda trazer-nos outras surpresas dessas eras pioneiras. Não escondendo ser “rrenenbrança” (lê-se em proémio dos Portugaliae Monumenta Historica, I, 22), isto é, lembrança, memória, logo, dentro do falível e do subjetivo, os textos coetâneos jogam-se na tensão entre o processo e método historiográficos, a situação de narrador com voz própria e os ares do tempo. Desde meados do séc.XVIII, em artigos mau grado longos e doutrinários (O Anonymo, n.º 9, 1752, 65-72), percebe-se um à-vontade de causerie, solto, subjetivo e cum grano salis, que lançará as raízes de uma espécie cada vez mais viçosa. Deve notar-se, entretanto, que a história e destino pátrios ainda animam graves colunas d’O Chronista garrettiano, “semanário de política, literatura, ciências e artes” (1827); que em muitas folhas, caso do Diário de Notícias (1865) lisboeta ‒ e tantas havia sem a cabeça “chronica” ‒, esta não passava do monótono informe de que “Suas Majestades e Altezas passam sem novidade em suas importantes saúdes”, seguindo-se o calendário litúrgico, nascimento e ocaso do sol, efemérides, despachos telegráficos e locais, etc. A Chronica funchalense, entre 22 de setembro de 1838 e 2 de março de 1839, dedica a mesma “chronica” à entrada e saída de vapores e informações práticas. Assim, a partir dos anos 1840, ela é modalidade folhetinesca, e aos rodapés se deve recorrer para a poética do género ‒ seja, o que se afirma do folhetim cabe à crónica ‒ e sua compreensão: fusão de útil e fútil, na imagem crescente de frivolidade e leveza associada ao colibri ou à borboleta, que sobre tudo esvoaçam. É uso olhar à definição de Eça de Queirós (Districto de Evora, 6 jan. 1867), um quarto de século mais tarde: “A crónica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que o leem: conta mil coisas, sem sistema, sem nexo; espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade; fala das festas, dos bailes, dos teatros, das modas, dos enfeites, fala em tudo, baixinho, como se faz ao serão, ao braseiro, ou ainda de verão, no campo, quando o ar está triste. Ela sabe anedotas, segredos, histórias de amores, crimes terríveis; espreita porque não lhe fica mal espreitar. Olha para tudo, [... a crónica tem uma doidice jovial, tem um estouvamento delicioso: confunde tudo, tristezas e facécias, enterros e atores ambulantes, um poema moderno e o pé da imperatriz da China; ela conta tudo o que pode interessar pelo espírito, pela beleza, pela mocidade; ela não tem opiniões, não sabe do resto do jornal; [... não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico; [...”. O que Eça diz devera aplicar-se ao folhetim; porque, no n.º 13, de 21 de fevereiro, entrevendo-se o que será propósito d’As Farpas, em maio de 1871, já olha a crónica diferentemente: “[...] digamos uma suprema e inatacável verdade: a crónica é de combate; há muita gente que se persuade que estas futilidades que se chamam crónica, folhetim, noticiário, variedades, não têm importância num jornal político, não pesam na opinião, não atacam e não combatem. É um erro. Num jornal de oposição a coisa que mais incomoda o governo é a crónica: ela é que é temida, evitada e seduzida; nos países bárbaros e pouco conhecidos, onde o jornalismo é uma especulação, e como tal comprado e vendido, um governo que na sua política procede por corrupção, a primeira coisa que faz é comprar os vários cronistas, folhetinistas, noticiaristas, escritores de variedades, os amenos, como se diz. // E tem razão: a crónica é para o jornalismo o que a caricatura é para a pintura: fere, rindo; espedaça, dando cambalhotas; não respeita nada daquilo que mais se respeita; procede pelo escárnio e pelo ridículo; e o ridículo em política é de boa, é de excelente guerra”. Assim viveu (e vive) entre estas duas atitudes, embora o tom do século se revisse, sobretudo, no Luís de Magalhães de Notas e Impressões (1890, 3), abrindo com imagem da crónica qual preciosa dos sécs. XVII e XVIII: “Ela tem a distinção, a allure graciosa, o capricho feminino, o espírito vivo, a erudição superficial e ligeira, a toilette provocadora e artística, bordada de imagens, guarnecida dos lavores rendilhados da palavra. Tem o malicioso sorriso mordente, [...]. Tem os assuntos finamente banais, [...]”. Já “rapariguita simpática, alta e boleada, branca, muito branca de olhos negros, [...] olhos a um tempo meigos e travessos que ora heis de ver relampagueando ironias, ora derramando lágrimas”, é assim, “Meridional, com frouxos de riso e transes nos quais a paixão redundará em pranto, casta e voluptuosa”, que se apresenta a “Chronica” d’O Pandemonio. Hebdomadario Charadistico (Lisboa, 11 jan. 1885). Seria pouco, sem a síntese de Victor Silva Lopes (1981, 103): “A crónica é um pequeno texto narrativo que se ocupa de um episódio (às vezes, banal ou insólito) do quotidiano. O cronista prevalece [sobre] o comentário, numa linguagem expressiva, por vezes poética, mas simples e clara”. Na variedade de assuntos, alguns tornam-se determinantes: 1. a primeira crónica, ou crónica-programa; 2. a metacrónica (que também se pode resolver na inaugural), quando a inspiração não chega, e se rebusca assunto, 2.1. o que pode redundar no anúncio tão comum da… falta de assunto, matéria-prima do dia, ou, 2.2., com algum esforço, mostrar-se-nos o artista no ato da invenção; 3. a crónica final, de despedida, cujo adeus nem sempre se cumpre. Os pontos 2.1. e 2.2. são os mais comuns. Um exemplo clássico n’A Revolução de Setembro, em que “folhetinista” subentende “cronista”: “O folhetinista português é talvez o primeiro escritor do século. Meio moralista e meio cortesão, só lhe é permitido ocupar-se dos assuntos que o público aceitou: não havendo assunto quase nunca, cumpre-lhe tratar semanalmente de coisa nenhuma.” (29 jun, 1865) Mas também na imprensa madeirense não falecem ecos: “O leitor tem já visto alguns folhetins, muitos talvez, em que o autor começa lamentando-se por não ter nada que dizer, e às vezes não diz muito mais do que isso até que acabe. Porém, se o leitor não esteve nunca em posição de soltar essas lamentações, mas só de ouvi-las ou de lê-las, mal compreenderá o que custa ter ao lado um tipógrafo intransigente, firme como um soldado russo, à espera do folhetim, e estar um homem de pena na mão, com o papel limpo diante de si, a olhar para o tipógrafo e para o papel, num dia de uma sublime estupidez. // Não há meio senão de descrever o tipógrafo, ou falar do papel” (Diário de Notícias, Funchal, 4 out. 1879). No mesmo diário, o título-tópico “A Semana”, de enigmático Rui, dá o tom e modo de ser de uma região ou psicógrafa um país: “Resume-se nesta palavra: ‒ Nada. // Nem um escandalozinho sequer. // Estes calores afugentam tudo, até os escândalos. Toda a gente boceja, toda a gente se abana, toda a gente fica mole. // Reina, por essas ruas, uma pasmaceira entorpecedora, por esses ares, uma fulguração imobilizadora e quente. // Capacetes brancos surgem, a cada esquina, como bandeiras de paz e de preguiça e, efetivamente, há uma paz excessivamente maçadora em tudo e em todos, menos entre a poderosa e miúda nação das moscas. A natureza previdente criou a mosca no verão, para não ficar a humanidade, durante o tempo de calor, no estado dos habitantes do palácio da história para meninos – a dormir. // Se não fossem as moscas, com os seus zumbidos insuportáveis e com os seus ainda mais insuportáveis e atrevidos passeios pela cara do rei da criação, estaria sua majestade, a esta hora, estendido na cama, dormindo e suando. // A mosca é a salvação da humanidade. // Podem capacitar-se disto, que o mais que lhes poderá acontecer é acharem que não é verdade. // Contudo, não suponham que esta minha asserção é imposta como um dogma. Não, senhores. Tenho razões para afirmar que a mosca é a salvação da humanidade e razões reais. // Não sei se estão lembrados daquela história ou lenda que nos ensina a grande verdade de que todo e qualquer bicho, inclusive o micróbio, é de utilidade para o homem. // Se não se recordam, vou contá-la, declarando, desde já, que não me responsabilizo pelo sono proveniente da leitura dela”. Resguardado na autoironia, calham outros processos: derivas, interpelação ao leitor, comentários de circunstância, um aparte localista (“hão de ter-se admirado de eu dizer que esta semana era um bagaço de cana-de-açúcar, uma coisa sem sumo, quando as novenas do Monte têm posto em agitação os moradores dos rés do chão da Rua das Queimadas e os das restantes ruas do Funchal”), conclui o afinal loquaz cronista: “Agora, se têm muito gosto em ver isso escrito, tenham a bondade de pegar na pena e de preencher este espaço, que me tem custado o suor do rosto, para não o deixar em branco. // E podem ficar certos que hei de ler com muita atenção as suas descrições. // E... boa noite” (ibid., 5 mai. 1885). Para responder a 2.2.,“Veremos o que sai”: “Meus queridos leitores. Vou tratar de qualquer coisa. Mas de que há de ser? Não sei de que vou tratar. // Torno a perguntar: de que assunto me ocuparei? Com isto vou ganhando tempo. Eu deveria ter pensado antes. // Isto é grave, gravíssimo. // Ah, já sei. Vou falar do tempo. Mas não. Talvez seja melhor do espaço. // Também não. O melhor é ocupar-me da questão das subsistências, da carestia dos víveres, ou, se não, dos melhoramentos materiais… enfim, com franqueza, eu não sei de que me hei de ocupar” (ibid., 17 abr. 1880). A falta de coesão temática não é forçosa, embora o género celebre a indeterminação, o que explica alguns protocolos: pôr-se nas mãos do leitor, cuja empatia e, simulada ou não, reação se espera ou circunscreve; recorrer ao trivial, falar do bom e mau tempo, a modos de uma familiaridade expedita. Mas o desenvolvimento reflexivo ou de comentário também pesa, e daí o aviso contra a ameaça da introdução de impostos n’A Voz do Povo (1867-1868). Se um bom governo não se faz sem impostos, urge, primeiro, que o povo tenha meios “com que trabalhar” (ibid., 28 mar. 1867), o que bem perceberam os emigrantes. Em verso corredio, que o mesmo Eça e outros experimentavam na redação da crónica, deparam-se-nos, a par de insondável autoria anónima, momentos de soltura e criatividade que os recomendam à grande antologia da sátira portuguesa. A imprensa oitocentista madeirense sofre, todavia, de um problema generalizado à província, no continente: “picar” (como se diz na gíria) peças das folhas de Lisboa e Porto. O Beija-flor (Funchal, 7 abr. e 29 set. 1842) extrai artigos da que é seu modelo, a Revista Universal Lisbonense. A Ordem (Funchal, 5 jan. 1852 e 11 ago. 1860) é dos títulos que mais reproduzem a imprensa continental, pelo que encontrar pepitas de assunto local é difícil, por vezes. Mais flagrante, O Clamor Público (Funchal, 22 mai. 1854 e 9 dez. 1857) socorre-se, ora do Braz Tizana portuense, ora de um excerto (12 mai. 1856) de “A Literatura e a Sociedade em Portugal”, por António Pedro Lopes de Mendonça, longa série em curso n’A Revolução de Setembro desde 10 de junho de 1855. No intervalo, A Discussão (Funchal, 8 fev. 1855 e 28 ago. 1856), resultante de cisão n’O Clamor Público, extrai da mesma fonte outro Lopes de Mendonça, “Da Origem, e Estabelecimento da Inquisição em Portugal – tentativa histórica por Alexandre Herculano – 1.º e 2.º volume” (17 jan. 1856), e, mais interessante, metafolhetiniza sobre a típica “chronica de NADA” (28 fev. 1856). N’A Justiça (Funchal, 27 mar. 1858 e 14 set. 1859), releve-se “O Brasil e os seus Poetas”, folhetim de F. Gomes de Amorim. A Reforma: Folha Política e Literária (Funchal, 14 out. 1858 e 5 jan. 1860) comporta útil “Revista do Funchal” e, para lá de muito Camilo Castelo Branco, teoriza sobre a revista enquanto género (21 out. 1858). A Revista Semanal: Propaganda e Vulgarização de Conhecimentos Úteis (Funchal, 2 jun. 1861 e 10 jul. 1862) vale pelo redator João de Nóbrega Soares e suas pequenas ficções com laivos cronísticos; em 1861, este edita Viagem ao Rabaçal (reed. 1998), sendo de 1867 Contos e Viagens. O Recreio: Periódico Litterário: Publicação Quinzenal dos Alumnos do Lyceu do Funchal (1 mai. 1863) reporta estudos sobre as artes no séc. XVI, com remake n’O Crepúsculo: Periódico Litetrário Quinzenal (Funchal, 15 fev. e 31 jul. 1865), igualmente animado por Luciano Cordeiro, que recuperava algum Camilo édito. Nesse espírito académico surge A Aurora Literária / Publicação quinzenal dos alunos do liceu do Funchal. / Revista literária, instrutiva e recreativa (1 fev. 1868), um dos vários títulos em falta na BNP, e, mais tarde, O Académico: Órgão da Associação Académica Funchalense (1884). Convirá, entretanto, rastrear algumas prosas nos seguintes: A Fusão: Jornal Político, Litterário e Commercial (Funchal, 25 jan e 6 mar. 1868; substitui O Correio do Funchal); A Madeira Liberal (Funchal, 24 jul. e 23 nov. 1872); A Lâmpada (Funchal, 21 nov. 1872 e 18 dez. 1873); A Vergasta (“Este jornal, por enquanto, não tem dia certo de publicação; aparecerá quando menos o esperarem”; Funchal, 15 out. 1873 e 1876), com muito folhetim-crónica não assinado; Eco de Santa Cruz (Santa Cruz, 24 set. 1877 e 30 mar. 1878); Diário do Funchal (5 nov. 1877; após 200 números, é Jornal do Comércio do Funchal a partir de 15 jun., até 18 nov. 1878); A Primavera: Jornal das Damas (Funchal, 1 out. e 2 nov. 1882). Para um quadro finissecular, ver, online, “O folhetim na Imprensa Madeirense entre 1880 e 1890”, historiando outros títulos ‒ de que destacaríamos O Direito, Diário Popular, [O] Diário do Comércio, A Madeira ‒, com sugestões de recolha e o importante nome de Luiz d’Ornelas Pinto Coelho. O Diário de Notícias (Funchal, 12 out. 1876) é o órgão mais completo, e há muito o radiografámos até 1901: no seu desejo de ser um jornal nacional, transcreveu das folhas de Lisboa o que havia de mais interessante. No seu caráter seletivo, permite entender a ideia de cânone literário no último quartel de Oitocentos. Antologia abrangente que já entra por este século, Crónica Madeirense (1900-2006) reúne 69 nomes sob a égide de um ausente suficientemente citado para ser septuagésimo, Herberto Helder. Alicerça-se em colunas d’O Athenista, Comércio do Funchal, Das Artes e da História da Madeira, Diário da Madeira, Diário de Notícias, Garajau, Heraldo da Madeira, Jornal da Madeira, Margem 2, Notícias da Madeira, Saber, Tribuna da Madeira, isto só para referir publicações ilhoas. José António Gonçalves, que se estreara em volume com o seu único livro de crónicas (Réstea de Qualquer Coisa, 1973, fruto da profissionalização no Jornal da Madeira) e José Viale Moutinho (citem-se A Sala dos Espelhos, 1993, e Os Sapatos do Defunto: Crónicas & Afins, 2000) haviam comparecido em Fernando Venâncio, Crónica Jornalística. Século XX (2004). Se este se não ativesse aos cem nomes, talvez acrescentasse Albino de Menezes, Helena Marques, Maria Aurora Carvalho Homem, Vicente Jorge Silva, pela projeção nacional que outros, entretanto ‒ Luzia, Isaura Jardim, o visconde do Porto da Cruz… ‒ vieram perdendo. Se olharmos, contudo, à produção cronística em trânsito para livro (sonho da mais singela prosa, mas critério duvidoso, numa alegada vitória sobre o efémero), poucos seriam dignos de citação, esquecidos na imprensa. Convém, ainda assim, inscrever Francisco de Freitas Branco, Francisco Fernandes, Carlos Nogueira Fino, João França (Mar e Céu por Companheiros: Crónicas Madeirenses, 1979; O Prisioneiro do Ilhéu e outras Crónicas, póstumo, 1994), Alfredo Vieira de Freitas, João dos Reis Gomes, Ricardo França Jardim, Ricardo Nascimento Jardim, Carlos Lélis, Ana Teresa Pereira, Alberto da Veiga Pestana, José Luís Rodrigues, Artur Sarmento. Irene Lucília Andrade torna-se marcante na variedade de Crónica Breve da Cidade Anónima. À Hora do Tordo (2008); e, na sua peugada, outras vozes femininas tomam a dianteira, Luísa Paolinelli ou Diana Pimentel. Salientaríamos, entretanto, dois casos. De Nelson Veríssimo, Passos na Calçada, com novo fôlego online, já em 1998 convocava um passado a harmonizar com presente ainda desleixado, quando não em falsete. Esse dizer solto, à atenção dos poderes públicos, não surpreendia menos do que faúlhas à flor da memória. Mercearias dos anos 60, confeitarias, montras, revoltas populares, uma tão epistolar senhora Maria (verdadeira secretária de amantes), o fotógrafo do jardim ‒ eis argumentos de dias, situações quase fictas e figuras que em nós ancoram, como se pede ao verdadeiro cronista. Mas salientemos, enquanto modelo desta espécie, nome maior também na ficção. Horácio Bento de Gouveia é um repórter da cor à maneira do Raul Brandão de Os Pescadores e Ilhas Desconhecidas. Pelo exercício impressionista de nítida influência queirosiana, reúne, em Crónicas do Norte (póstumo organizado por José António Gonçalves, 1994), que sucede às Páginas de Jornalismo (1933) prefaciadas por Hernâni Cidade, o que a crónica tem de história ‒ desde Plínio e Plutarco ‒, de literatura e de jornalismo. Não imune aos acidentes de que nasce a metacrónica – veja-se “Como nasceu uma crónica” (GOUVEIA, 1994, 69) –, é moderno quando intercala diálogos de terceiros, numa contaminação ficcional agora tão costumada na cronística de António Lobo Antunes. A evocação, sob forma de diálogo, é um olhar de fora, que, a pouco e pouco, regressa à impositiva primeira pessoa. Reunião de 57 textos, maioritariamente no Diário de Notícias, entre 1935 e 1981, dividem-se em sete capítulos: “Vida e natureza”; “Ponta Delgada e a paisagem”; “Respigos de fonética”; “Do passado e do presente”; “Das festas e dos santos populares”; “Memórias da ilha”; “Roteiro sentimental”. Dá-se-nos um narrador desdobrado, aqui, em foneticista, acolá, em historiador local, rememorador, e, sempre, voz muito particular, que ora etnografa uma quadra festiva, reflete sobre um provérbio, opera analogias espácio-temporais. Sobressai a viva correnteza imagética do descritivista, em quem se admira o gesto de vocabulizar o fugidio, arriscar o instante que nos calha, no propósito de veicular uma “impressão”: “Vai-se alçando o nevoeiro pelo dia já crescido” (ibid., 11), “Grela a manhã. São cinco horas. O sol começa a escalar o céu” (ibid., 33). Assim visuais, sincopados, em sintaxe escorreita, borbulham inesperados sentidos. O artista insulado mostra endividar-se aos pequenos azulejos de alma, que pinta incessantemente, e mais se o espetáculo de fora é tão variado, e mutável, como no arquipélago. Nesta perspetiva, rompe, mesmo, um inesperado poeta, que o cronista tantas vezes é. Para leitor alheio a pormenores de vidas, lugares, nomes, fica também à vista a criação lexical de proveniência vária (vocabulário local, padronizado, fernão lopesino, etc.), instalando-se inventiva individual que contorna as facilidades de prosa de jornal. Bibliog.: AMADO, Teresa, O Passado e o Presente. Ler Fernão Lopes, Lisboa, Editorial Presença, 2007; O Anonymo Repartido pelas Semanas para Divertimento e Utilidade do Publico, n.º 9, Lisboa, Na Officina de Pedro Ferreira, 1752; O Beija-flor, Funchal, Na Typ. do Defensor, 1842; CASTRO, José Manuel de (ed.), Descobrimento da Ilha da Madeira. Ano 1420. Epanáfora Amorosa, s.l., 1975; A Chronica, Funchal, Na Typographia Nacional, 1838-1840; Diário de Notícias da Madeira, Funchal, 1879-1885; Diário de Notícias: Noticiario Universal, Lisboa, Typographia Universal, 1865; Districto de Evora, Evora, Imprensa do Districto d’Evora, 1867; FIGUEIREDO, Fernando et al. (orgs.), Crónica Madeirense (1900-2006), Porto, Campo das Letras, 2007; GARRETT, Almeida, O Chronista: Semanario de Politica, Litteratura, Sciencias e Artes, Lisboa, Impr. do Portuguez, 1827; GOUVEIA, Horácio Bento de, Crónicas do Norte, São Vicente, Câmara Municipal, 1994; HERCULANO, Alexandre (org.), Portugaliae Monumenta Historica, vol. 1, Olisipone, Typis Academicis, 1756; LOPES, Victor Silva, Iniciação ao Jornalismo, 2.ª ed., Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1981; MACEDO, Jorge Borges de, Cronicões, Crónicas e Cronistas na Torre do Tombo, Lisboa, ANTT, 1993; MACHADO, Bernardo Francisco Lorato, O Clamor Público, Funchal, Tipographia de B.F.L. Machado, 1854; MAGALHÃES, Luís de, Notas e Impressões. Artes e Letras-Politicas e Costumes, Porto, Livr. Portuense, 1890; MELO, José Marques, “A Crónica”, in AA. VV., Jornalismo e Literatura, Lisboa, Vega, 1988, pp. 41-53; A Ordem, Funchal, Typ. da Ordem, 1852-1860; O Pandemonio. Hebdomadario Charadistico, Lisboa, Typographia da Viuva Sousa Neves, 1885; RODRIGUES, Ernesto, Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal, Lisboa, Editorial Notícias, 1998; SÁ, Sebastião Ribeiro de, Revista Universal Lisbonense, Lisboa, Imprensa Nacional, 1841-1859; A Voz do Povo, Funchal, Typ. de Voz do Povo, 1860-1881; VENÂNCIO, Fernando, Crónica Jornalística. Século xx, Lisboa, Círculo de Leitores, 2004. Ernesto Rodrigues (atualizado a 29.01.2017)
fortaleza de são filipe do largo do pelourinho
[caption id="attachment_14885" align="alignleft" width="225"] Escavações da Fortaleza de São Filipe do Pelourinho. 2013.[/caption] O regimento de fortificação de 1572 enviado ao mestre das obras reais Mateus Fernandes (c.1520-1597) determinava a construção de uma muralha ao longo da ribeira de João Gomes e a construção de uma estância no ângulo formado por esta e pela muralha frente ao mar (ARM, CMF, RG, T2, 139 e ss.). Saliente-se que não era determinada uma fortaleza na verdadeira acepção da palavra, mas somente “uma estância”, ou seja uma construção muitas vezes provisoriamente em estacaria e posteriormente, conforme as disponibilidades e conveniências, passada a alvenaria e cantaria. No entanto, parece que foi logo decidido fazê-la com uma certa solidez e dentro dos esquemas defensivos dos anos 70 desse séc. XVI. O regimento de 1572 definia concretamente a posição e função da nova fortificação, “no calhau junto de Nossa Senhora, abaixo da ponte da parte da cidade”, “para dela se guardar o lanço do muro da fortaleza que ora está feita, e do través que a dita fortaleza tem da parte do mar, junto ao Cubelo Grande”. A “estância como vai ordenado na traça” devia fechar com uma porta, a fazer na travessa que ia da praça para o calhau. Deveria ter a altura de vinte palmos (4 m), a contarem do calhau da praia e os parapeitos deveriam ter 4 por 4 palmos (0,8 m.), “pera por cima deles se poder atirar ao mar e jogar artilharia por barba”. Acrescenta-se ainda que se houvesse necessidade de bombardeiras para alguma parte da fortificação, se deveriam fazer, com “suas mantas, para cobrirem e guardarem aos que com a artilharia atirarem” (Ibid.). Os primeiros trabalhos de que temos conhecimento respeitantes a esta construção referem a tomada de casas para a construção de uma “fortaleza”, a 20 de fevereiro de 1574, junto à ponte de Nossa Senhora do Calhau (ARM, CMF, Vereações 1574, 14v), ponte ainda existente, embora três ou quatro vezes maior. No entanto, alguns anos depois, em 1578, ainda não havia a completa certeza de se efetivar corretamente a construção. Assim, um tal António Álvares, por alcunha “o Nordeste”, mandou lavrar testamento em 11 de julho desse ano de 1578. Nesse documento deixava a sua mulher umas casas em que viviam, acrescentando “que se desmancharem por causa da fortaleza, o Provedor, com o dinheiro delas, comprará outra propriedade” (Ibid., 47). Mas por certo e até como se pode deduzir, nesse ano já estava em construção a nova fortaleza, pois em outubro de 1581, conforme explica o capitão Gaspar Luís de Melo a D. Francés de Alava y Belmont (1518/19-1586), fornecendo até desenhos (AGS, GA, M.P. XIX, 127 e 128), a nova fortaleza, denominada “castelo novo”, estava pronta e artilhada. Nesse verão, Filipe II mandara avançar das Canárias o conde de Lançarote com cerca de duzentos milicianos, reforçados com artilheiros tudescos de Sevilha (Presídio e Guarnição militar), que se instalaram em São Lourenço e despacharam para a fortaleza Nova da Praça as forças que guarneciam aquela fortaleza. Tinha então sido nomeado capitão do pessoal de São Lourenço o citado capitão Gaspar Luís Melo e da futura fortaleza de São Filipe, o capitão maiorquino Juan de León Cabrera, capitães que tinham acompanhado o licenciado João Leitão (ARM, CMF, RG, Tombo Velho, 193). Perante o conflito que opunha as forças de Filipe II às de D. António, Prior do Crato, envolvendo muitas centenas de homens de parte a parte, a pequena estância Nova da praça do Pelourinho do Funchal era mínima para as necessidades. A fortaleza era então uma pequena praça retangular, ocupando o espaço da foz das duas ribeiras, com uma bateria aberta sobre o mar e entestando para a cidade nas casas do largo do Pelourinho. Aliás, um outro testamento, datado de 5 de janeiro de 1589, do oleiro Gaspar Fernandes e de sua mulher Margarida Lopes, onde serve de testemunha o ourives Francisco Diniz, eram citadas as casas em que viviam, “junto à ponde de São Cidrão e que entestam com os muros da fortaleza Nova da banda do mar” (ARM, Mis. Funchal, 711, 105v e 207). A fortaleza tinha umas pequenas casas para a guarnição, calculada por Mateus Fernandes, dez anos antes, em 15 ou 20 homens, não mais e, com a chegada de D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598), conde de Lançarote, recebera mais de 40 (AGS, GA, 130-55). A fortaleza e o seu autor, o mestre das obras reais Mateus Fernandes, receberam então as mais duras críticas dos governadores e técnicos destes finais de século, dado não estar prevista para fazer frente a um conflito como o que se desenrolava. O conde de Lançarote, logo em 1583, queixava-se que “el castillo nuevo, que aqui dizem, sólo tiene el nombre. Porque es un pedazo de baluarte, donde sólo caben ocho piezas de artillería, que en él ai; y las casas de la ciudad están pegadas con su propia muralla, de suerte qui ni es castillo, ni ai para que ponerle tal nombre, sino que tubo gana de gastar dinero quien allí le fundó” (AGS, Ibid.). Nos anos seguintes e com a vitória das forças castelhanas, a pesada guarnição de 200 profissionais sediada no Funchal foi diminuindo, chegando aos finais do séc. XVI com 60 homens e as críticas desapareceram. A fortaleza Nova da Praça, como foi designada até aos finais desse século, ficou guarnecida, depois por forças insulares, sendo à sua porta que se estabeleciam as vigias e as rondas da cidade, nessa época a cargo do morgado dos Piornais, Fernão Favila de Vasconcelos (1536-1601). Efetivamente a cidade dos finais do séc. XVI e meados do XVII tinha como centro o largo do Pelourinho e repartia-se pela chamada rua Direita, sendo este efetivamente o ponto mais central. As rondas partiam daqui para Santiago e para os Ilhéus, pontos extremos de observação. O sistema de vigias a partir da Fortaleza Nova foi reorganizado pelo governador Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da), antigo governador de Macau e de São Julião da Barra, logo por meados de janeiro de 1585, depois de tomar posse da capitania do Funchal (ARM, CMF, T3, 162 v.-163; T Velho, 149; IAN/TT, PJRFF, 963, 176 e CC, I, 219). Neste sentido organizou uma "Ordem de vigias da cidade do Funchal", Assim, “os das vigias” juntavam-se na praça do Pelourinho às “Ave-Marias”, a partir de um rol das companhias de ordenanças da cidade que o governador organizara, cabendo rotativamente a cada companhia destacar dezoito homens por noite. Na primeira noite que tocava a cada companhia, repartiam esses soldados o capitão e, dali por diante, o sargento, e a cada um “sua noite enquanto durar a vigia que é da sua companhia". Estes dezoito homens, com o seu cabo, que iria com eles, repartir-se-iam, seis na Casa dos Ilhéus, seis na praça da Fortaleza Nova e seis em S. Tiago, junto da igreja, onde vigiariam dois por cada turno: um da “prima” até às onze da noite; outro da “modorra” até às duas, depois da meia-noite; e outro da “alva até ser dia claro”, quando se descobria o mar e se via se havia ali navios (IAN/TT, CC, I, 111-123, doc. E). Nos primeiros anos do séc. XVII, em 1604, era condestável da fortaleza Nova Gaspar Rodrigues (ARM, CMF, 322, 15v) e, nos anos seguintes, sabemos ter havido algumas obras, principalmente nas muralhas laterais da fortaleza e da Tintureira, ao longo da ribeira de Santa Luzia, onde logo nos primeiros anos do século aparecem a trabalhar os filhos do mestre Jerónimo Jorge (c. 1570-1618). Este mestre foi enviado de Lisboa, em 1595, até então a trabalhar nas obras de São Julião da Barra e do forte do Bugio e voltaria à Madeira em 1602, então com os filhos Bartolomeu João (c. 1590-1658) (João, Bartolomeu) e João Falcato. As férias dos trabalhadores da fortificação de 14 a 19 de junho de 1611, mencionam os filhos do mestre das obras reais a trabalharem no muro da Tintureira, na ribeira de Santa Luzis, área que se situava logo acima da fortaleza Nova. Em 1622 era condestável desta praça Francisco Anes, que testemunhou, perante o tabelião Manuel da Silva Pereira, a compra efetuada em Nª. Sª. da Graça, na Calheta, de umas terras de pão e pomar, efetuadas pelo castelhano Andreas de Monte Mayor, condestável da então fortaleza Velha, ou seja de São Lourenço. Um ano depois, em junho de 1623, sabemos morar perto desta fortaleza o ajudante do sargento-mor António Mendes Caldeira, pois decidiu-se utilizar a loja de sua casa para arrecadar o biscoito e as farinhas necessárias ao provimento desta fortaleza, quando o vice-rei avisou o Funchal que teriam saído da Holanda navios de guerra com destino aos domínios portugueses. Em 22 de março de 1641 foi nomeado condestável da “fortaleza nova da Praia”, por certo a do largo do Pelourinho, Manuel Soares Pinheiro e, no ano seguinte, sabemos terem sido efectuadas algumas pequenas obras na fortaleza. Em junho de 1642 pagou-se ao condestável Manuel Soares Pinheiro, $180 réis de tábua e meia de pinho, para cobrir as 3 selhas para a pólvora, assim como se pagou $050 réis a dois pretos que lavaram a praça da artilharia. Em setembro foi a vez de se reverem os reparos dos falcões desta fortaleza e do Pico, comprando-se uma tábua de til para “as bordas dos reparos”, que custou $200 réis, pagos ao condestável Jerónimo Gonçalves, da fortaleza de São Lourenço. Em finais de outubro fez-se uma guarita, provavelmente a que estava virada à foz da ribeira de Santa Luzia, pelo que se comprou a Luís Rodrigues, fanqueiro, duas madres de barbusano por 2$600 réis e a Pedro Nunes, mercador, mais uma madre da mesma madeira. Custou $200 réis o levar estas três madres à fortaleza, que se pagou a Pedro Gonçalves, boieiro. Para essas obras ainda se comprou uma dúzia de tabuado de til a José Ribeiro Carvalhal e 200 pregos, a Luzia de Almeida. No final do mês aparecem os pagamentos ao pedreiro Mateus Roiz, que vendeu também duas pedras, e aos 4 pretos que ajudaram à obra. Ainda na área da fortaleza e nessa altura se executaram as portas da ponte Nova (IAN/TT, JPRFF, 837, 50-55). Manuel Soares Pinheiro foi substituído em 1652, por ausência, altura em que foi atribuído a um seu artilheiro e substituto, Manuel Fernandes. O registo do alvará do novo condestável, de 1 de janeiro desse ano, refere que servia como bombardeiro da fortaleza da Praça havia 40 anos, com muita satisfação e, depois na ausência do condestável Manuel Soares Pinheiro, pelo que se lhe atribuía mais uma pipa de vinho anual com $600 réis de condestável. O desenho de Bartolomeu João desta fortaleza, em 1654 (col. herdeiros de Paul Alexander Zino), apresenta-a com uma forma retangular, com alguns edifícios a norte e que comunicava com a praça do Pelourinho por uma porta protegida por um muro interior à praça de armas. No conjunto de edifícios sobre a esplanada pode-se adivinhar a casa do condestável, totalmente dentro da fortaleza e com dois pisos, que se articula com um outro corpo de um só piso, provavelmente a casa da guarda, na qual existe a porta de acesso ao exterior, protegida por través. Aparece ainda o que parece ser uma torre, talvez de proteção à cisterna e um outro edifício, que não deve pertencer à fortaleza e teria sido usado como anteparo. Por detrás da fortaleza podem ver-se duas pontes de acesso ao largo do pelourinho: a ponte do Cidrão, sobre a ribeira de Santa Luzia e de Nossa Senhora do Calhau, sobre a de João Gomes. A muralha da frente mar apresenta 8 canhoneiras abertas com as respetivas bocas-de-fogo, embora uma das centrais vazia, com a boca-de-fogo recuada e uma estrutura de madeira, semi-improvisada, que parece ser uma latrina. Para poente e para nascente as muralhas apresentam duas canhoneiras com as suas bocas-de-fogo, mas a meio dos panos e, sobre a ribeira de santa Luzia aparece uma guarita, provavelmente a mandada fazer por Bartolomeu João, em 1641. No Livro de Carga da Fortificação, iniciado em 1724, esta fortaleza já aparece denominada por S. Filipe da Praça (ARM, GC, 418, 7). Tinha então por condestável Manuel Martins Pestana, que a 3 de outubro desse ano assina a carga de 15 peças de artilharia montadas, ou seja sobre reparo: 3 de bronze e 12 de ferro. Tinham calibres variados, de 4 a 24 libras. Esta carga ainda especifica que existiam apeadas mais 6 peças na praça e ainda mais duas, que peças se encontravam no través da Malta, ou seja na obra de apoio junto à muralha e que veio a dar origem à travessa da Malta ainda existente. Uma destas peças encontrava-se apeada e tinha “um bocado menos para o lado da boca”, por certo ocasionado por um rebentamento, mas que não deixou de ser carregada ao condestável. Para além de material vário para o tiro de artilharia, como soquetes “elanados”, saca-trapo, riscador, funil de folha-de-flandres, pé-de-cabra de ferro, lanterna, três guardas de cartucho de pau, machado, compasso de pontas, etc., ainda havia uma bandeira de filete, com as armas reais, o seu mastro, corda e caixão para ela. Em 1730 registam-se a saída de 6 peças deste forte: uma para o reduto de S. Sebastião do lugar de Câmara de Lobos; outra para o lugar da Madalena, não se especifica se já havia ali reduto; outra para o reduto da vila da Calheta, que pensamos ser o de S. Jorge; outra para o reduto do Porto do Moniz, onde poucos anos depois foi levantado o forte de S. João Baptista; e duas, para o reduto do Caniço (Ibid., 7v), que pode ser o da Atalaia ou dos Reis Magos. Esta data marca, assim, a passagem desta antiga fortaleza a simples forte ou reduto (Fortes), sendo a carga de bocas-de-fogo, nos meados do séc. XVIII, constituída por material de certa forma antiquado e até incapaz. A carga de 1754, segundo “Mapa do Presídio Militar pago da ilha da Madeira”, regista 2 meias colubrinas de calibre 12; 6 canhões ilegítimos de ferro, de calibre 30; 4 quartos de canhão de calibre 8, mas incapazes; 2 pedreiros de bronze de calibre 14 e um “barraco” de bronze, que pensamos também um pedreiro, de calibre 7, num total de 15 peças, mas 4 incapazes e 3 antigos, como seriam os canhões pedreiros, ou seja que ainda lançavam pelouros de pedra (AHU, 47). A peça denominada “barraco” é-nos desconhecida. Nesse ano de 1754 era condestável e governador deste forte o capitão Roque João Acciauoli (SILVA e MENESES, 1998, 47). Nos inícios do século XIX, em 1803, este forte foi parcialmente destruído pela aluvião de 9 de outubro, com se apresenta na planta do brigadeiro Reinaldo Oudinot (1747-1807), enviada em outubro do ano seguinte (IGP, 0539), mas sendo depois, sumariamente reconstruído (Ibid., 0540), inclusivamente utilizando-se a sua muralha poente para a da ribeira de Santa Luzia. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), cita o forte de S. Filipe na sua Descrição da Ilha da Madeira, de 1817 e queixa-se que “estava em boa posição, mas muito acanhado”, propondo uma ampliação que acompanha a mesma descrição, aumentando-lhe a esplanada e alinhando a muralha nascente pela da ribeira de João Gomes (BNP, cod. 6.705). Mais tarde, igualmente o engenheiro António Pedro de Azevedo (1812-1889) propôs a sua ampliação, face à ruina da parte nascente, mas que igualmente não foi sancionada (DSIE, GEAEM, 1302-2-22A-109, 5544-1A-12A-16 e 5577-1A-12A-16). O forte de São Filipe foi, entretanto ocupado com elementos do “batalhão de veteranos”, tendo sido nomeado governador, por decreto de 21 de outubro de 1851, o capitão reformado adido ao 1.º batalhão de Veteranos, João José de Sá Bettencourt. Até essa data, ocupara o lugar de governador interino do forte, o major graduado de infantaria Feliciano da Fonseca Castro e Solla, ao qual foram então concedidos sessenta dias de licença (ARM, AP., Tombo Militar, S. Filipe) Nos finais do século, pouco antes de ser vendido, foi comandante deste forte o futuro general João Alves Camacho (1859-1940), depois diretor do arsenal do exército, presidente do supremo tribunal militar e governador de Tomar (SAINZ-TRUEVA, 1994, 27). São Filipe chegou muito arruinada aos finais do séc. XIX, como registam algumas fotografias, tendo sido o terreno frente à esplanada entregue à câmara, em 1898 e os edifícios vendidos em hasta pública (SILVA e MENESES, 1998, 47). Após acertos vários, acabou por ser ali levantado um grande imóvel e instaladas dependências várias, como os Bombeiros Voluntários e, depois a Socarma. Um violento incêndio, em junho de 1978, veio a destruir completamente aquele importante imóvel e, em 1989, era demolido o que restava dessa estrutura. Toda a área foi sujeita nesse ano a completa remodelação, voltando-se a instalar ali o pelourinho do Funchal, em réplica, e restaurar o passo de procissão daquela praça. Nesta sequência se procedeu à remodelação do largo superior, montando-se inferiormente um parque de estacionamento. Nesses trabalhos, em fevereiro de 1992, procedeu-se a uma prospeção sumária arqueológica, como intervenção de emergência, tendo-se encontrado o que se pensavam ser algumas das estruturas do antigo forte, mas sem especial interesse. A 20 de fevereiro de 2010 o Funchal e a Madeira voltaram a sofrer uma terrível aluvião, que fustigou, muito especialmente a parte baixa da cidade. Nos anos seguintes procederam-se a obras de fundo nas muralhas das ribeiras e, em março de 2013, as obras colocavam a descoberto as estruturas do velho forte de S. Filipe, trabalho levado a efeito pelo arqueólogo Daniel Sousa, da DRAC, (Direção Regional dos Assuntos Culturais, hoje designada Direção Regional da Cultura) assunto largamente noticiado na comunicação social (CASTRO, 23 maio 2013). Em junho, as entidades oficiais superiores da RAM acordavam “tentar conservar ao máximo” as ruinas encontradas (Ibid., 2013), mas em outubro de 2014, a muralha do forte era desmontada e remontada ao nível da avenida do Mar, empoleirada sobre a ponte da ribeira de Santa Luzia, mantendo-se, entretanto as estruturas da parede norte da antiga estrutura fortificada no local da escavação, a céu aberto. [caption id="attachment_3468" align="aligncenter" width="364"] Ruínas do Forte de São Filipe do Pelourinho - 2013[/caption] Bibliog. impressa: CARITA, Rui, Paulo Dias de Almeida e a sua Descrição da ilha da Madeira de 1817/1827, Funchal, DRAC, 1982; Id., O Regimento de Fortificação de D. Sebastião, 1572 e a Carta de Bartolomeu João, 1654, SRE, Funchal, 1984; Id., História da Madeira (1600-1700), III vol., As dinastias Habsburgo e Bragança, Funchal, SRE, 1992; Id., A Arquitetura Militar na Madeira nos séculos XV a XVII, Funchal/Lisboa, EME e Universidade da Madeira, 1998; CASTRO, Zelia, “Achado relevante”, Diário de Notícias, Funchal, 23 maio 2013; “Ruínas do forte de São Filipe serão preservadas”, 5 jun. 2013; SAINZ-TRUEVA, José de, “João Francisco Camacho: Notas para a sua biografia”, Islenha n.º 15, dir. Nelson Veríssimo, Funchal, DRAC, jul.-dez. 1994, pp. 15-28; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Coleção História da Madeira, 1, DRAC, Funchal, 2000; manuscritos: Arquivo Geral de Simancas, Guerra Antiga, M.P, XIX, 127, 128 e 130-55; Arquivo Histórico Ultramarino, Mapa do Presídio Militar pago da ilha da Madeira; do das Milícias da Ordenança que guarnecem e vigiam; das suas Fortalezas, Armas, Munições e apetrechos de Guerra existentes, Ano de 1754, doc. 47; Arquivo Regional da Madeira, Arquivos Particulares, Tombo Militar, S. Filipe; Câmara Municipal do Funchal, cod. 322 e 421; Registo Geral, Tombo Velho, 2 e 3; Vereações 1574 e 1623/25; Governo Civil, Livro de Carga das Fortificações 1724-1730 (L. 3º), cod. 418 e 322; Juízo de Resíduos e Capelas, 2; Misericórdia do Funchal, 711; IAN/TT, Chancelaria D. Filipe I, livro 28; Corpo Cronológico, Parte I, 111-123, doc. E e 219; Junta da Provedoria da Real Fazenda do Funchal, 963 e 980; cartografia e iconografia: ALMEIDA, Paulo Dias de, Planta do Funchal, 1805 (Instituto Geográfico de Portugal, 0540), Perfil e Elevação pelo Mar, 1817 (c.) (BNP, Reservados, cod. 6.705); ARAÚJO, Vitor Manuel, “Esplanada do Forte de S. Filippe”, 18 dez. 1898 (DSIE, GEAEM, 5532-1A-12A-16); AZEVEDO, António Pedro de, Planta do Forte de S. Pedro e de S. Filippe, 1841, 1865 e ss. (DSIE, GEAEM, 5577-1A-12A.); HEARNE, Thomas, desenho panorâmico da cidade do Funchal, 1772 (Núcleo museológico da Cidade do Açúcar, Funchal); JOÃO, Bartolomeu, Descripção da Ilha da Madeira, Cidade do Funchal, Villas, Lugares, Portos e Enseadas, e mais secretos, feita por Bertolameu João Inginheiro della em tempo do Governador Bertolameu Vasconcelos da Cunha, capitão geral desta ilha no anno de 165[4]. Coleção dos Herdeiros de Paul Alexander Zino; OUDINOT, Reinaldo, Planta do Funchal, outubro de 1804 (IGP, 0539). Rui Carita (atualizado a 18.08.2016)
guerreiro, joão cosme santos
[caption id="attachment_7013" align="alignright" width="274"] João Cosme Santos GuerreiroFonte: Memória da Universidade,: http://memoria.ul.pt/index.php/Guerreiro,_Jo%C3%A3o_Cosme_Santos (acedido a 3 set 2015).[/caption] Filho de João Conceição Guerreiro e de Amélia Teixeira Santos Guerreiro, nasceu a 27 de setembro de 1923, na freguesia de Santa Luzia, concelho do Funchal, e faleceu a 5 de novembro de 1987, em Lisboa. O Prof. Doutor Santos Guerreiro foi um ilustre matemático português que detinha o dom especial de explicar o essencial de uma forma simples, coerente e atrativa, o que ajudou várias gerações de alunos, não só a descobrir a matemática, como também a compreendê-la, a amá-la e, inclusivamente, a investigá-la. De acordo com registos disponíveis no Arquivo Regional da Madeira, Santos Guerreiro frequentou a 1.ª classe do curso geral dos liceus no Liceu Jaime Moniz, no ano letivo de 1933/1934, tendo terminado a 4.ª classe deste curso no mesmo Liceu em 1937. Concluiu o curso liceal na mesma instituição de ensino com a classificação de 16 valores. Inscreveu-se na Faculdade de Ciências da Univ. de Lisboa (FCUL) nos preparatórios de engenharia militar, transitando, em 1945, para a licenciatura em ciências matemáticas. Nesse ano, segundo testemunho da sua irmã, Maria Elizabete Santos Guerreiro Guimarães Ferreira, interrompeu os seus estudos por ocasião do falecimento do pai. Regressou à Madeira para apoiar a família, nomeadamente a sua mãe, que se encontrava muito fragilizada. Por esta altura a família possuía a livraria Restituição, situada na R. de João Tavira, n.º 12. Nessa fase da sua vida, foi professor no Externato Nuno Álvares, instituição vulgarmente referenciada por “Colégio do Caroço” e, ao mesmo tempo, atendia aos múltiplos pedidos de apoio, dando aulas particulares de matemática. Retomou, na FCUL, os seus estudos no ano letivo de 1950/1951. Enquanto estudante universitário, foi vice-presidente da Associação de Estudantes da FCUL, tendo, em 1954, na qualidade de diretor da secção pedagógica, organizado a I Semana da Matemática. Nesse mesmo ano, concluiu a sua licenciatura com a classificação final de 15 valores. Iniciou a atividade de investigador em 1957, sob a orientação do Prof. Doutor José Sebastião e Silva, no Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa do Instituto para a Alta Cultura, Instituto que lhe concedera uma bolsa de investigação. Ainda neste ano redigiu o trabalho “Les Changements de Variable en Théorie des Distributions”, publicado pela revista Portugaliae Mathematica. Entre março de 1957 e outubro de 1958, foi 2.º assistente no Instituto Superior de Agronomia, onde o seu supervisor também lecionava. Além de ter lecionado aulas práticas, foi regente e docente das aulas teóricas das disciplinas de matemáticas gerais e de cálculo infinitesimal e das probabilidades. Nesta altura, foi bolseiro a tempo integral no Centro de Estudos Nucleares, onde conheceu o não menos importante matemático madeirense José Martins Vicente Gonçalves. Em 1959, Santos Guerreiro publicou, na revista Portugaliae Mathematica, o artigo “La Multiplication des Distributions comme Application Linéaire Continue” e, durante o ano letivo 1959/1960, a Associação Académica da FCUL editou as suas notas Elementos de Análise Funcional. Em novembro de 1960, foi contratado pela FCUL para assumir o cargo de 2.º assistente, onde, para além de continuar a investigar com o Prof. Sebastião e Silva, teve a oportunidade de trabalhar com o Prof. Vicente Gonçalves. Dois anos mais tarde, obteve, pela mesma universidade, o grau de doutor com a classificação de 18 valores, com a apresentação da dissertação subordinada ao tema Teoria Directa das Distribuições Sobre uma Variedade. Nesta tese foram generalizados, a uma variedade diferenciável arbitrária, resultados válidos no espaço IRn da Teoria Direta de Sebastião e Silva. Entretanto, em 1963, passou a 1.º assistente e a sua tese foi publicada na revista Portugaliae Mathematica, n.º 22, pp. 1-92. Na primeira metade do ano de 1962, ministrou lições sobre a teoria das distribuições nos cursos Mira Fernandes. Entre 1964 e 1967, publicou os trabalhos “Álgebra Homológica” e “Variedades Diferenciáveis” através do Centro de Estudos Matemáticos do Instituto para a Alta Cultura; “Uma Construção Axiomática do Integral de Lebesgue” pela Associação Académica da FCUL; “Secções-Distribuições num Espaço Fibrado” na revista da FCUL e o Curso de Matemáticas Gerais, vol. I, Conjuntos. Noções de Álgebra pela Livraria Escolar Editora. Colaborou com diversas instituições de ensino superior, tendo dado uma sequência de aulas na Escola Superior de Medicina Veterinária, nos anos letivos 1965/1966 e 1966/1967, que tinham por objetivo melhorar a formação matemática dos alunos e investigadores em medicina e ciências naturais. Em dezembro de 1968, submeteu-se a concurso para professor extraordinário do 1.º grupo (matemática pura) da 1.ª secção da FCUL, no qual foi aprovado por unanimidade. Ainda no mesmo ano, foi convidado pela direção da Mathematical Review para crítico desta revista. Ao longo da sua carreira universitária na FCUL, teve a seu cargo a regência e docência de diversas disciplinas, entre as quais se destacam: análise funcional, análise infinitesimal II, análise matemática I e II, análise superior, análise superior II, geometria diferencial, geometria superior, história da matemática, matemáticas gerais, topologia, variáveis complexas e variedades diferenciáveis. Entre 1968 e 1971, para além de ter dinamizado alguns seminários inseridos na licenciatura em matemática pura, publicou pela Escolar Editora os restantes volumes do Curso de Matemáticas Gerais: vol. II, Números Reais. Séries. Funções Contínuas; vol. III, Derivadas e Integrais das Funções Reais de Variável Real; vol. IV, Noções de Álgebra Linear. Também na FCUL, nos anos letivos 1969/1970 e 1970/1971, lecionou respetivamente os seguintes cursos para formação de investigadores: teorias de homologia; e espaços fibrados e Teoria-K. Em 1971, a convite do Centro de Estudos Matemáticos do Porto, lecionou, na Faculdade de Ciências do Porto, uma série de lições sobre formas diferenciais exteriores e o Teorema de De Rham. Nesse mesmo ano, e através desse Centro, publicou o trabalho “Formas Diferenciais Exteriores e Teorema de De Rham”. Entre 1970 e 1972, deu uma contribuição para os cursos de programação económica, através da organização e docência dos cursos matemática para economistas, cálculo matricial e teoria da otimização. No seu curriculum vitae, refere que organizou e realizou, no Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa, seminários sobre teoria das distribuições, topologia algébrica, teoria dos feixes, variedades e espaços fibrados. Acresce ainda o facto de os bolseiros cuja investigação incidia sobre estas áreas estarem à sua responsabilidade. Ali também orientou o projeto de investigação Análise Funcional em Ligação com a Geometria Diferencial e a Topologia Algébrica. Foi também na FCUL que o Prof. Santos Guerreiro e o seu grupo de assistentes, não só difundiram e continuaram o trabalho do Prof. Sebastião e Silva e da então chamada geração de 40 de matemáticos portugueses, como deram seguimento à tradição do Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa, que teve a sua continuação no Centro de Matemática e Aplicações Fundamentais (CMAF). Orientou as teses de doutoramento de Maria Higina Rendeiro Marques, defendida em 1972, sob o título Secções-Distribuições Vectoriais e Teorema dos Núcleos em Espaços Fibrados, e de Carlos Sarrico, que se intitulou Produtos Distribucionais Multiplicativos, arguida em 1988, alguns meses após a morte do Prof. Santos Guerreiro. Nos proceedings do Primeiro Encontro Matemático Luso-Espanhol que decorreu em Lisboa, em 1972, publicou os artigos “Cohomologia das Correntes numa Variedade com Bordo” e “Sobre as Distribuições Quase-Periódicas”. Em 1973, por decisão unânime, foi nomeado professor catedrático da secção de matemática da FCUL. Após a Revolução de Abril de 1974, Santos Guerreiro teve um papel preponderante na qualidade de secretário-geral na reedificação da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), onde se retomaram as atividades e se concretizaram os objetivos definidos pelos seus fundadores, contribuindo assim para a divulgação do conhecimento matemático, para a promoção da qualidade do ensino da matemática e para a difusão da investigação matemática portuguesa. A estreita colaboração dos Profs. João Paulo Carvalho Dias e Alfredo Pereira Gomes permitiu a reestruturação da revista científica Portugaliae Mathematica, a par da reedição do Boletim da SPM. Nos últimos anos de vida, o Prof. Santos Guerreiro foi presidente da assembleia geral da SPM. Em 1976, assumiu a primeira presidência da comissão diretiva do CMAF (cargo que manteve até ao seu falecimento) e passou a orientar uma das suas linhas de investigação. Em junho do mesmo ano, contraiu matrimónio com Maria Luísa Alvito Monteiro Peste, de quem teve dois filhos: Maria João Peste Santos Guerreiro e João Luís Peste Santos Guerreiro. A Revista de la Universidad de Santander publicou o seu artigo “Sobre as Distribuições Quase-Periódicas Vectoriais. Uma Aplicação à Equação das Ondas”, em 1979. No início dos anos 80, Santos Guerreiro deu uma colaboração determinante para a abertura do primeiro curso de mestrado em matemática aplicada do Instituto Superior Técnico (IST), onde lecionou a disciplina de análise funcional. Este curso foi uma pedra basilar para a criação, no final desta década, do também primeiro curso de pós-graduação em matemática aplicada e computação do IST. Posteriormente colaborou com outras universidades, nomeadamente a Univ. de Évora e a de Lisboa, com esta última através do Centro de Apoio da FCUL na RAM. Em Lisboa, no ano de 1987, realizou-se o Colóquio Internacional Anastácio da Cunha, o Matemático e o Poeta, cujo principal organizador e chairman foi Santos Guerreiro. No âmbito deste encontro, apresentou e publicou na BNP o artigo “Anastácio da Cunha e as Matemáticas em Portugal”. Este Colóquio desempenhou um papel fundamental na pesquisa e dinamização da história da matemática em Portugal. Traduziu com a colaboração da sua filha, Maria João Peste Santos Guerreiro, o livro História Concisa das Matemáticas do holandês Dirk Jan Struik, mas faleceu sem publicá-lo. Era sua intenção incluir na tradução uma nota sobre a história da matemática em Portugal. Este seu desejo foi concretizado pelos Profs. José Joaquim Dionísio e Augusto Franco de Oliveira na 2.ª edição desta obra, em 1992. Postumamente, em 1990, na coleção Textos e Notas do CMAF, foi publicada a obra Espaços Vectoriais Topológicos. Esta publicação foi organizada e compilada pelos Profs. Jaime Campos Ferreira e J. Silva Oliveira, que recorreram a diversos trabalhos recolhidos no escritório da casa de Santos Guerreiro. Os organizadores testemunham, no prefácio, que Santos Guerreiro era o mais reputado especialista na área, à época, e que se disponibilizava para transmitir os seus conhecimentos a todos com grande abertura, segurança e clareza. Para além de se dedicar à investigação e à docência, Santos Guerreiro também se dedicou à causa desportiva, tendo integrado, em 1969, a direção do Sport Lisboa e Benfica, como presidente da mesa da assembleia. Existe alguma discrepância nas informações biográficas apresentadas nas várias fontes disponíveis, nomeadamente no que respeita a datas. Em tais casos, optamos por respeitar os registos indicados no curriculum vitae do Prof. Santos Guerreiro de 1971. Obras de João Cosme Santos Guerreiro: “Álgebra Homológica”; “Les Changements de Variable en Théorie des Distributions” (1957); Elementos de Análise Funcional (1959); “La Multiplication des Distributions comme Application Linéaire Continue” (1959); Curso de Geometria Superior, volume II (1964/65); “Uma Construção Axiomática do Integral de Lebesgue” (1964/65); “Secções-Distribuições num Espaço Fibrado” (1965/66); Curso de Matemáticas Gerais, vol. I (1967); Curso de Matemáticas Gerais, vol. II, (1967); Curso de Matemáticas Gerais, vol. III (1968); Curso de Matemáticas Gerais, vol. IV (1970); “Cohomologia das Correntes numa Variedade com Bordo” (1972); “Sobre as Distribuições Quase-Periódicas” (1972); “Sobre as Distribuições Quase-Periódicas Vectoriai. Uma Aplicação à Equação das Ondas” (1979); “Anastácio da Cunha e as Matemáticas em Portugal” (1987); Curso de Análise Matemática (1989); Espaços Vectoriais Topológicos (1990); Coleção Textos e Notas 45 (1990) (póstumo). Bibliog. impressa: SARAIVA, Luis, “Gallery: Outline of a Biography of Professor João Guerreiro”, CIM Bulletin, n.º 12, jun. 2002, pp. 24-27; STRUIK, Dirk J., História Concisa das Matemáticas, 2.ª ed., Lisboa, Gradiva, 1992; VIVEIROS, João, “Vida e Obra de Santos Guerreiro – Homenagem a um Grande Matemático Madeirense”, Choque Mate: Revista da Escola Secundária Jaime Moniz, ano vii, n.º 22, abr.-jun. 2001, p. 3; digital: “João Cosme Santos Guerreiro”, Wikipédia: A Enciclopédia Livre: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cosme_Santos_Guerreiro (acedido a 27 set. 2013); “João Cosme Santos Guerreiro”, Memória da Universidade: Enciclopédia do Ensino, Ciência e Cultura na História da Universidade de Lisboa: http://memoria.ul.pt/index.php/Guerreiro,_Jo%C3%A3o_Cosme_Santos (acedido a 24 out. 2013); “Sociedade Portuguesa de Matemática”, http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/e21.html (acedido a 27 set. 2013). Custódia Mercês Reis Rodrigues Drumond Maribel Gomes Gonçalves Gordon (atualizado a 29.12.2015)
gonçalves, josé vicente martins
Conhecido por Vicente Gonçalves, madeirense, foi professor universitário, matemático e autor de obras científicas. Notabilizou-se pelo rigor e modernidade que imprimiu aos seus cursos, pelo exemplo e contributo que deu para o desenvolvimento da investigação matemática em Portugal e pela sua divulgação junto da comunidade científica internacional e, ainda, pela relevância dos seus trabalhos científicos. Vicente Gonçalves nasceu no Funchal, na freguesia da Sé, a 26 de agosto de 1896, filho de Maria José Gonçalves (natural da freguesia de Santa Luzia, concelho do Funchal, filha de Carolina Augusta e de pai oculto, doméstica) e de José Gonçalves (natural da freguesia e concelho da Calheta, filho de pais ocultos, trabalhador). À data do nascimento do seu único filho Maria e José Gonçalves residiam na rua da Conceição, na freguesia da Sé. O batizado realizou-se no dia 30 de agosto do mesmo ano na igreja paroquial da Sé Catedral do concelho e diocese do Funchal. Foram padrinhos António Lourenço Gonçalves (empregado no comércio) e sua esposa Sara Maria Louça Gonçalves. Vicente Gonçalves frequentou a escola primária também na freguesia da Sé, tendo iniciado o curso complementar de ciências do ensino liceal, no ano letivo de 1907/08, no Liceu Nacional Central do Funchal. Este liceu, também designado Liceu Jaime Moniz, funcionava na altura na rua dos Ferreiros n.º 165. Este liceu era, à época, um espaço de dinamização sociocultural constituindo-se como um elemento enriquecedor da formação cívica e cultural dos seus alunos. O curso dos liceus que frequentou era constituído por seis classes. As 5 primeiras tinham o seguinte tronco comum de disciplinas: português, francês, geografia e história, ciências físicas e naturais, matemática e desenho. A estas disciplinas juntavam-se inglês na 2.ª classe e latim na 4.ª classe. Da 6.ª classe constavam as disciplinas: geografia, ciências naturais, matemática, física, química e inglês. A análise do seu processo neste liceu sugere-nos dois comentários. Há uma melhoria notória da média das classificações da 6.ª classe (15 valores) em relação à média das classes anteriores (11, 10, 11, 12, 12 valores). Aparece um número considerável de faltas às aulas, para as quais não conhecemos explicação. Em 29 de julho de 1913, Vicente Gonçalves concluiu o exame de saída do curso complementar de ciências (7.ª classe), com inglês, com a classificação final de 11 valores. Do grupo docente do liceu na época (1911) podemos referir António Augusto (reitor), Dr. António Feliciano Rodrigues (secretário), Joaquim Carlos de Sousa, Padre José Fernandes Leitão e Tenente Joaquim Gregório Gonçalves. Sobre esta fase da vida de Vicente Gonçalves são poucas as informações que conseguimos obter. A ausência de familiares diretos e a forma como eram feitos os registos nos finais do séc. XIX, limitou o conhecimento sobre a sua vida na ilha da Madeira. Vicente Gonçalves vem para o Continente para fazer os seus estudos universitários na Universidade de Coimbra, em 1913, com 17 anos de idade. Instala-se no n.º 14 da Avenida Dias da Silva, casa partilhada com outros colegas, nomeadamente com Manuel Esparteiro, amigo de toda a vida. Face aos dados biográficos do registo, supõe-se que Vicente Gonçalves provinha de uma família modesta. À data o analfabetismo no distrito do Funchal era de 90%, embora o 1.º grau (constituído por três classes) fosse escolaridade obrigatória. O ingresso de Vicente Gonçalves no liceu já seria um privilégio atendendo à situação económica dos pais. Há factos da sua vida pessoal que nos levam a supor que teve algum tipo de apoio. A vinda para o Continente e as despesas da sua estada em Coimbra seriam por si só bastante difíceis de suportar com o orçamento familiar dos pais. Não deu explicações (como aconteceu com outros colegas universitários) e apenas no ano letivo de 1916/17 foi admitido a bolsa de estudo pela Junta Administrativa. Nunca se lhe conheceu outro tipo de trabalho nesta fase dedicando-se, exclusivamente, ao estudo. A formação moral que sempre revelou impede-nos de aceitar que manteria esta atitude se tal sobrecarregasse os pais. A 14 de outubro de 1913 ingressa na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra onde frequenta o curso de Ciências Matemáticas. Durante este período foi aluno de José Bruno de Cabedo, João J. Souto Rodrigues, Francisco Miranda da Costa Lobo, Henrique Figueiredo, Luciano Pereira da Silva, Diogo Pacheco de Amorim, entre outros. Concluiu o bacharelato (atual licenciatura) com distinção e a classificação final de 19 valores em 1917. Nesta altura voltou à ilha da Madeira e supomos que tenha sido pela última vez. Em 1939 está documentado o seu desejo em lá voltar, porém não há conhecimento que tal tenha acontecido. De regresso a Coimbra, a 9 de outubro de 1917, toma posse do cargo de 2.º assistente provisório do 2.º grupo, para o qual foi indicado por Luciano Pereira da Silva. Foi o ponto de partida para uma carreira profissional de excelência. Entre janeiro e maio de 1919 cumpre serviço militar. A 22 de setembro de 1919 toma posse do cargo de 2.º assistente do 1.º grupo da 1.ª secção. A 23 de julho de 1921 doutora-se em Ciências Matemáticas com a classificação de Muito Bom – 19 valores. O exame de doutoramento constou da defesa da dissertação e realizou-se na Universidade de Coimbra perante um júri constituído pelos Professores Doutores João Souto Rodrigues (presidente), Diogo Pacheco d’ Amorim (arguente) e João Pereira da Silva Dias (arguente). A dissertação intitulada Sobre quatro proposições fundamentais da teoria das funções inteiras é um trabalho na área da análise (complexa) matemática, que surgiu da leitura das Leçons sur les fonctions entières de Émile Borel e apresenta alguns resultados e (todas as) demonstrações originais, onde se reconhece o apreço de Vicente Gonçalves por enunciados e demonstrações elegantes, breves, claros e rigorosos. A 27 de agosto do mesmo ano casa-se com Maria Teresa Teixeira da Silva Botelho da Costa. Deste casamento não houve descendentes. A 13 de fevereiro de 1922 toma posse do cargo de 1.º assistente. Em 1927 faz concurso de provas públicas para professor catedrático. A dissertação intitula-se Teoria Geral da Integrabilidade Riemanniana. Toma posse do cargo de professor catedrático a 6 de setembro de 1927. Vicente Gonçalves mantém-se na Universidade de Coimbra até outubro de 1942. Durante este período leciona várias disciplinas, entre estas: cálculo infinitesimal, análise superior, cálculo diferencial, matemáticas gerais, física matemática, geometria superior, complementos de álgebra e mecânica racional. Ocupou o cargo de Secretário Interino da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra de 17 de dezembro de 1928 a 6 de novembro de 1931. Em 4 de dezembro de 1941, Vicente Gonçalves foi eleito sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. A partir de 1 de novembro de 1942, Vicente Gonçalves muda para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde permanece como Professor Catedrático até à jubilação em 25 de janeiro de 1967. A 1 de março de 1945 Vicente Gonçalves passou a sócio efetivo da Academia de Ciências de Lisboa, ocupando a cadeira número três da Casa de Lafões. Sucedeu a Pedro José da Cunha. Nesta Academia desempenhou várias atividades. Presidiu à comissão para apreciação dos trabalhos concorrentes ao Prémio Artur Malheiro, em 1963 e 1964, e deu parecer sobre vários trabalhos de investigação. Ocupou o cargo de bibliotecário da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa a partir de 30 de janeiro de 1947 por dois biénios. No desempenho desta função procedeu ao intercâmbio de publicações com outras instituições congéneres, enriquecendo o espólio da biblioteca e promovendo a divulgação das publicações dos investigadores portugueses. A convite do Conselho Escolar do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), no ano letivo de 1947/48, Vicente Gonçalves passou a reger, neste Instituto e em acumulação de funções (o que não era comum na época), a 1.ª cadeira (Matemáticas Superiores: Álgebra. Princípios de Análise Infinitesimal. Geometria Analítica, mais tarde designada Matemáticas Gerais). Foi substituir Bento de Jesus Caraça, demitido, compulsivamente, em 1947. Lecionou esta disciplina até ao ano letivo de 1959/60, no entanto a sua colaboração com o ISCEF continuou através de outras atividades. Em 1961, fez parte da comissão organizadora dos pontos das provas escritas do exame de aptidão para a primeira matrícula no ISCEF; manteve-se no desempenho das suas funções na organização e direção do Curso Matemáticas Superiores Prof. Mira Fernandes, criado em 1956, com o objetivo de homenagear este professor aquando da sua jubilação. Colaborou ainda na publicação das obras completas do mesmo professor (projeto que só foi realizado parcialmente). O Curso Matemáticas Superiores Prof. Mira Fernandes é um dos exemplos das iniciativas de Vicente Gonçalves em prol do incentivo à investigação matemática junto dos mais jovens (alunos e professores universitários). É também no prefácio do volume II de Estudos de Matemática, Estatística e Econometria (publicação com cinco volumes onde foram compiladas as lições proferidas no Curso atrás referido, excetuando as do ano letivo de 1961/62) que Vicente Gonçalves deixa transparecer a sua postura no que respeita à investigação. Destaca duas fases, a primeira de recolha e atualização da informação científica (junto da comunidade matemática estrangeira) e a segunda de seleção e composição dessa informação, ao que se segue a produção científica original. Vicente Gonçalves, neste prefácio, usa a expressão “temos de investigar”, ou seja, é perentório quanto a este aspeto. A importância dada à investigação matemática, pela generalidade dos professores catedráticos dessa área, enquanto uma das vertentes da sua função de docentes universitários, até aos anos 30, 40 do séc. XX, era reduzida. Razão por que é tão relevante a atuação de José Vicente Gonçalves, bem como a de Aureliano de Mira Fernandes (1884-1958), para o envolvimento dos docentes mais jovens em atividades de investigação. A obra escrita de Vicente Gonçalves é vasta e diversificada, inclui manuais para o ensino liceal, para o ensino superior e artigos científicos. Escreveu cinco manuais de matemática para o ensino liceal, a saber: Compêndio de Álgebra para a 3.ª, 4.ª e 5.ª classes do curso dos liceus de 1935/36; Compêndio de Álgebra e Trigonometria para a 4.ª, 5.ª e 6.ª classes de 1937; Aritmética Prática e Álgebra para a 1.ª, 2.ª e 3.ª classes de 1937; Compêndio de Álgebra para o 3.º ciclo (7.ª classe) de 1937; Compêndio de Aritmética para o 3.º ciclo (7.ª classe) de 1939, todos editados pela livraria Cruz, em Braga, e todos com aprovação oficial. Em todos os manuais a linguagem usada é cuidada, rigorosa e precisa, porém mais simples nos manuais para as primeiras classes. A forma de expor é comum a todos os manuais. O leitor é encaminhado ao longo do texto, são apresentados muitos exemplos, exercícios com as respostas e problemas. O Compêndio de Aritmética para o 3.º ciclo é um livro particularmente interessante por várias razões. Em primeiro lugar porque se trata de um texto sobre aritmética racional muito bem redigido, de grande qualidade científica e, em particular, recheado de referências históricas pouco conhecidas. Por outro lado, porque apesar do seu valor, não vendeu. Foi considerado, pelo editor, um fracasso comercial, fruto de diversas vicissitudes. Vicente Gonçalves refere-se a este manual, com o refinado sentido de humor que o caracterizava, como a “Greta Garbo”. É ainda de referir a existência na Livraria Cruz de uma pasta com a correspondência comercial entre Vicente Gonçalves e o representante daquela editora, que permitiu perceber muito do processo de edição e de venda dos manuais, em especial, do último. Esta correspondência mostra o trabalho e empenho de Vicente Gonçalves na elaboração e posterior disseminação dos seus manuais. É ele quem coordena as operações, é ele quem decide o preço do manual, o número de ofertas, a forma e altura de divulgação, os locais e personalidades para quem devem ser enviados, etc.. Percebe-se a existência de uma certa preocupação pedagógica por parte do autor em melhorar os seus livros, chegando a ponderar a colaboração de alguém com prática de ensino para rever o livro que tinha em preparação (seria o sexto manual, mas que não chegou a ser publicado, nada se sabe sobre o paradeiro desse original). Nesta altura, entrou em vigor o regime do livro único para certas disciplinas, em particular para a Matemática, e, talvez, por isso Vicente Gonçalves terminou a sua atividade como autor de manuais para o ensino liceal. Para o ensino superior Vicente Gonçalves escreveu 2 manuais, a saber: Lições de Cálculo e Geometria, publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra em 1930; e Curso de Álgebra Superior, cuja 1.ª edição é da Tipografia Atlântica de Coimbra em 1933. Curiosamente, no primeiro manual consta a indicação que se trata do volume I, mas não existiu volume II. Pequenas pistas levam-nos a pensar que este não era um livro que Vicente Gonçalves apreciasse. Já o Curso de Álgebra Superior o acompanha durante cerca de duas décadas. Este manual teve 3 edições: a 2.ª edição, com dois volumes (o 1.º de 1944/45 e o 2.º de 1950) da Tipografia Atlântida de Lisboa; e a 3.ª edição também com dois volumes (o 1.º de 1953) da Tipografia Delta de Lisboa. A análise das várias edições permite afirmar que se trata de textos significativamente diferentes, podendo ser considerados como novos livros. Da 1.ª para a 2.ª edição o manual foi globalmente reorganizado. Os temas foram agrupados em duas grandes áreas, a análise real e a álgebra superior, e redistribuídos pelos capítulos. Há temas que desaparecem e outros que surgem de novo de umas edições para as outras, tendo em conta quer aspetos pedagógicos, quer aspetos de atualização científica, incluindo a atualização da terminologia e notações matemáticas. Esta atualização concretizava-se na referência a matemáticos contemporâneos portugueses e estrangeiros, na introdução de tópicos e resultados recentes da investigação matemática que tanto apareciam no corpo do texto, como em exercícios. Tal como fazia com os manuais para o ensino liceal, Vicente Gonçalves enviava o seu Curso de Álgebra Superior a colegas portugueses e estrangeiros. Há correspondência que comprova este facto, assim como as referências elogiosas feitas à obra. A partir de uma carta de J. Sebastião e Silva de março de 1946, podem-se recolher as impressões deste matemático e pedagogo sobre a edição mais recente do Curso de Álgebra Superior, que recebeu em Roma, acompanhando uma carta de Vicente Gonçalves. Sebastião e Silva começa por indicar a sua impressão geral sobre o livro, bendiz esta iniciativa, embora dê a entender que talvez Vicente Gonçalves tenha ido um pouco longe de mais. Considera que “é uma vigorosa e audaz investida contra a rotina” e sugere que “Seria necessário entretanto ouvir os outros, os conservadores” para melhor decidir. Esta afirmação é muito curiosa, em virtude de contrariar a imagem de conservador que é atribuída por alguns a Vicente Gonçalves. Este manual é considerado por vários matemáticos como equiparável a outros cursos de álgebra redigidos por contemporâneos estrangeiros de Vicente Gonçalves de renome internacional (por exemplo, o Cours d’Algèbre de Niewenglowski). É de referir também que existiram e, eventualmente existem vozes discordantes desta posição, por exemplo Neves Real. Os cerca de 100 artigos científicos (não contando traduções ou reimpressões) de Vicente Gonçalves podem ser organizados em: artigos (47); notas de Historiæ ac Pedagogiæ de Minutiis (notas de HPM) (26); discursos, notas prefaciais e outros textos (20). Os artigos são maioritariamente escritos em francês e, publicados quase exclusivamente em revistas portuguesas. Por ordem decrescente de número de publicações, referimos: Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (RFCUL); Portugaliæ Mathematica; Memórias da Academia das Ciências de Lisboa; Estudos de Matemática, Estatística e Econometria; Boletim da Academia das Ciências de Lisboa; Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra; Ciência (Revista da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa); Anais Científicos da Academia Politécnica do Porto, Anais da Faculdade de Ciências do Porto; Las Ciencias (Madrid); O Instituto (Coimbra); Associacion Española para el Progresso de las Ciencias, (Actas) Congresso do Mundo Português; Estudos de Matemática em Homenagem ao Prof. Almeida e Costa. Os artigos científicos de Vicente Gonçalves enquadram-se, essencialmente, em três áreas da Matemática: a Análise, a Álgebra e a História da Matemática. Na sua obra existem ainda dois artigos sobre Programação Linear (decorrentes da arguição de trabalhos nesta área). As notas de HPM são uma secção da RFCUL e são constituídas por publicações curtas na área da Análise e da Álgebra, todas de Vicente Gonçalves, onde este apresenta, principalmente, melhoramentos, observações ou demonstrações mais curtas de resultados conhecidos. Os discursos, notas prefaciais e outros textos estão publicados em (por ordem decrescente de número de publicações): Memórias da Academia das Ciências de Lisboa; Boletim da Academia das Ciências de Lisboa; Estudos de Matemática, Estatística e Econometria; Obras Completas de Mira Fernandes; Ciência (Revista da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa); Gazeta de Matemática; Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências; Acta Universitatis Conimbrigensis; e Revista Matematica Hispano Americana. Na organização que estabelecemos, incluímos os seus estudos sobre História da Matemática nos discursos, porque vários deles surgem em discursos em congressos (nomeadamente no discurso inaugural da 1.ª secção do XXIII Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências de 1956) ou na Academia das Ciências. Note-se, no entanto, que estes escritos podem e devem ser considerados como artigos científicos, para além de primorosamente redigidos contêm conhecimento original. Há três textos que destacamos por se distinguirem dos outros, por razões diversas e que explicamos de seguida. O escrito “Henri Lebesgue e o conceito de integral L”, de 1942, é uma homenagem a este matemático aquando da sua morte. Trata-se de um texto belíssimo, recheado de metáforas e outras figuras de estilo que o tornam claramente diferente de um texto matemático e que ilustram como Vicente Gonçalves era multifacetado. “O espírito utilitário”, de 1948, onde Vicente Gonçalves analisa o estado do ensino universitário em Portugal. Lamentando o nosso atraso e o pouco interesse do Estado em mudar essa situação. O prefácio do volume II de Estudos de Matemática, Estatística e Econometria, de 1957/58, onde explicita a sua visão do que entende por investigação (matemática) e como fazer investigação (matemática). Existem ainda dois artigos de opinião publicados no jornal diário portuense O Primeiro de Janeiro, descobertos e estudados mais recentemente. São surpreendentes pelo facto de serem os únicos (e estão relacionados) dirigidos ao público em geral, por fazerem críticas muito fortes ao estado do ensino superior e numa altura, 1930, em que o Estado Novo estava a exercer represálias contra muitos professores universitários que discordavam das suas políticas. Vicente Gonçalves à data era um jovem professor, ainda não tinha o prestígio que foi alcançando ao longo da carreira e, mesmo assim, nesse artigo apontou de forma clara, precisa e acutilante os “Males do ensino superior”. Este era o título de uma secção do referido jornal assinada por Vicente Gonçalves, a qual teve vida curta (cerca de dois meses), o que não é de estranhar dado o conteúdo crítico e o contexto político da altura. O primeiro artigo é de 16 de abril de 1930, o qual provoca algumas reações publicadas na mesma secção em 25 e 26 de abril e 11 e 18 de junho de 1930. Vicente Gonçalves apenas contrapõe uma vez em 14 de maio de 1930. No primeiro artigo, o principal, o autor alerta para a corrupção, a incompetência, a falta de empenho, a falta de identidade profissional, a falta de iniciativa, a falta de vontade para mudar de muitos professores universitários. Nele, Vicente Gonçalves faz considerações de carácter geral relativamente ao estado do ensino superior em Portugal (por exemplo a fraca produção científica) e faz sugestões específicas do que seria necessário e urgente mudar, propondo mudanças concretas, como: dar mais seriedade aos concursos para lugares universitários eliminando “coeficientes pouco científicos”; concentrar o capital humano de maior qualidade, selecionado por um júri de reconhecido valor científico, numa só instituição universitária. Pensa-se que o que despoletou esta reação forte e pública de Vicente Gonçalves foi o concurso para professor catedrático da Faculdade de Ciências de Coimbra, aberto em 1929, a que foram candidatos Ruy Luís Gomes e Manuel dos Reis e que esteve envolto em grande polémica. Durante bastante tempo havia a ideia de que Vicente Gonçalves, apesar da postura política neutra que a maioria lhe reconhece, era apoiante do regime. Discordamos desta ideia e consideramos que se houvesse dúvidas sobre isso este artigo seria suficiente para as dissipar. Entre os estudos históricos encontram-se textos sobre, os seus contemporâneos, Henri Lebesgue, Aureliano de Mira Fernandes, Rey Pastor, Ramos e Costa, Pedro José da Cunha, Manuel dos Reis, J. Sebastião e Silva, António Almeida Costa e João Farinha. Nestes relata aspetos centrais da vida de cada matemático, destacando o que considera de mais relevante. Para além destes estudos existem outros relativos a matemáticos do séc. XVI e do séc. XVIII, respetivamente: André de Resende e Pedro Nunes; Anastácio da Cunha e Monteiro da Rocha. Todos estes estudos são originais e recorrem a fontes primárias. Para perscrutar muitas dessas fontes, foi-lhe de grande valia o latim que estudou cedo, ainda na sua terra natal, e o ser bibliófilo o que o levou a ter livros raros e antigos. Tiago Oliveira, em 1986, e Jaime Carvalho e Silva, uma década depois, alertam para a existência de dois textos inéditos de Vicente Gonçalves, estudos históricos, um sobre Pedro Nunes e outro sobre Francisco de Melo. Estes textos só foram encontrados quando o espólio de Vicente Gonçalves foi entregue pelos seus herdeiros, em 2005, ao Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (presentemente está à guarda do Arquivo da Universidade de Coimbra). Não são versões finais, mas textos quase terminados, cuja análise nos permite concluir que à data em que foram escritos traziam à discussão contributos originais que só décadas mais tarde (por exemplo, na tese de mestrado de L. Santos, de 2007) foram estabelecidos e publicados. Ainda agora há pequenos detalhes que se aclararam com estes textos. A forma como Vicente Gonçalves argumentava nos estudos históricos é muito peculiar e aproxima-se da forma de fazer matemática, como nos confidenciou um dos seus três sobrinhos (por afinidade). A relevância dos seus trabalhos de índole histórica surgiu logo no primeiro, o qual foi apresentado no Congresso do Mundo Português, em 1940, Análise do livro VIIII dos Princípios Mathematicos de José Anastácio da Cunha. É atribuído a este estudo o mérito de ter contribuído para conferir a Anastácio da Cunha a primazia no estabelecimento da definição de convergência de uma série. Ainda com o objetivo de divulgar este feito junto da comunidade internacional, Vicente Gonçalves colaborou na iniciativa de José Gaspar Teixeira de fazer chegar uma cópia de uma tradução francesa dos Principios Mathematicos a Adolfo P. Yuschkevitch, historiador da matemática, soviético, que posteriormente publicou os primeiros artigos que divulgaram a importância dos estudos de Anastácio da Cunha no estrangeiro. Vicente Gonçalves, bibliófilo, possuía um destes exemplares e, reconhecendo a importância para a História da Ciência e, em particular, para a da Matemática emprestou-o para que fosse feito um microfilme. No contexto político da época esta iniciativa era arriscada para os envolvidos e, mais uma vez, Vicente Gonçalves mostrou a força do seu traço de homem de ciência. Por último, o artigo também de cariz histórico Modernas investigações sobre Limites dos Módulos das Raízes é o único que trata, diretamente, de um tópico matemático. É o discurso de abertura proferido na sessão de abertura da primeira secção do XXXIII Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências, em 1956. Neste discurso é feita uma síntese sobre o que se sabia sobre este assunto até à data e encaminha-nos para percebermos a importância dos trabalhos de investigação matemática de Vicente Gonçalves, em particular neste tópico. A tradução francesa deste discurso é publicada em 1958 e está recenseada na Zentralblatt n.º 88, tendo sido Evelyne Frank a relatora. Esta matemática refere que se trata de um artigo de revisão onde se expõe e unifica a investigação sobre limites de raízes de polinómios. É referido que existem três tipos de problemas, a saber: encontrar fórmulas para os limites superiores das raízes de polinómios, usando os módulos dos coeficientes, usando os coeficientes, e encontrar fórmulas para os limites de determinadas raízes. Vicente Gonçalves está entre os poucos que trataram todos os tipos. No artigo L’ Inégalité de W. Specht, de 1950, Vicente Gonçalves estabelece uma desigualdade que é um melhoramento de outra de Specht e que é mais tarde, em 1960, retomada por A. M. Ostrowski no artigo On an inequality of J. Vicente Gonçalves, no qual faz algumas referências elogiosas ao trabalho de Vicente Gonçalves. Também Morris Marden, na primeira edição do seu livro Geometry of Polynomials, de 1949, inclui na bibliografia (p. 296) este artigo de Vicente Gonçalves, bem como outros dois: Quelques Limites pour les Modules des Zéros d'un Polynôme, de 1957 e Recherches Modernes sur les Limites de Racines des Polynômes, de 1958. Na 2.ª edição, de 1966, Marden dá ainda mais visibilidade ao trabalho de Vicente Gonçalves, mantendo as referências na bibliografia, mas também no corpo do texto como acontece na página 130, exercício 4. Conhecem-se outros casos de igual jaez e prevê-se que outros possam existir, pois ainda há muita investigação a fazer sobre a obra deste matemático. É ainda de destacar o facto de Vicente Gonçalves ter recebido, em 15 de dezembro de 1983, o Colar Académico pelos altos méritos científicos e pelos relevantes serviços prestados à Academia de Ciências de Lisboa, atribuído por unanimidade pelo plenário geral da Academia na sessão de 7 de dezembro de 1983 e entregue por sua Excelência o Presidente da República (à data General Ramalho Eanes) na sessão solene de encerramento das comemorações do II Centenário desta Academia. Este Colar Académico encontra-se no espólio de Vicente Gonçalves. Este espólio é um manancial de informação ainda pouco explorado e que, em nosso entender, importa continuar a analisar e que continuará a trazer contributos relevantes para a Matemática, sua história e ensino. Listamos em seguida os outros matemáticos que se debruçavam na época (uns mais cedo que outros) sobre a localização de zeros de polinómios, para complementar o que já foi referido sobre o nível científico de Vicente Gonçalves e demonstrar a sua pertença à comunidade científica internacional da época: Carmichael, Mason, Jensen, Birkhoff, Fujiwara, Kuniyeda, Berwald, Kojima, Walsh, Anghelutza, Westerfield, William, Wall, E. Frank, Brauer, Parodi, Landau, Fejer, Allerdice, Nagy, Markovitch, Montel, Vythoulskas, Van Vleck, Biernacki, Hayashi, Egerváry e Specht. Também a correspondência existente no espólio de Vicente Gonçalves comprova as relações entre este matemático e outros estrangeiros, nomeadamente, com: P. Montel, W. Kahan, M. Fréchet, O. Perron e K. Knopp. De realçar que Vicente Gonçalves dominava várias línguas, entre as quais: latim, francês, inglês e alemão. As primeiras aprendeu no liceu, sendo além disso fácil o contacto com as línguas francesa e inglesa, na sua juventude na ilha da Madeira, devido a esta ser procurada por muitos turistas ingleses e outros. Já em relação à língua alemã, presume-se, que tenha sido autodidata. Estas cartas constam, em geral, de troca de informações científicas diversas, ou sobre resultados em que estão a trabalhar. Percebe-se ainda que, em alguns casos, houve envio de artigos, do Curso de Álgebra Superior ou de volumes da Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, neste caso solicitando a troca com a homóloga da instituição a que o matemático pertencia. A carta de K. Knopp é um destes casos. Era uma prática comum em Vicente Gonçalves enviar os seus trabalhos a outros colegas. Acontecia com os manuais para o ensino liceal (que chegam por esse meio a Sá da Bandeira em Angola, ao Brasil e a Espanha); acontecia com o Curso de Álgebra Superior e acontecia com alguns dos seus artigos. Vicente Gonçalves possuía uma vasta rede de contactos, que incluía antigos colegas e amigos, ex-alunos, reitores de liceus e outras individualidades. Era a forma que privilegiava para dar a conhecer o seu trabalho. Agora, porquê enviar volumes da Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa? A razão é simples, mas de relevo. Em 1950, Vicente Gonçalves cria a 2.ª série A (Ciências Matemáticas) da Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Esta publicação era um jornal científico com publicação anual. Vicente Gonçalves foi o diretor e redator da Secção de Ciências Matemáticas até ao volume IX (inclusive), isto é, até 1962. Nos 14 volumes que foram publicados, constam 249 artigos. Há artigos de 74 matemáticos, dos quais 33 estrangeiros. Os artigos estão escritos, maioritariamente, em língua estrangeira: 99 em inglês, 89 em francês, 10 em italiano, 11 em alemão e 6 em espanhol. Os restantes estão escritos em português, mas normalmente contendo um resumo alargado em francês, inglês ou alemão. Este é outro aspeto que Vicente Gonçalves não descurou, nem nos seus artigos, nem no que respeita a esta Revista, uma vez que é fundamental para facilitar a comunicação. Trata-se de uma publicação de prestígio que contou com a colaboração de nomes relevantes da comunidade matemática portuguesa e estrangeira, entre outros: J. J. Dionísio, J. Tiago Oliveira, Peter Braumann, A. Almeida Costa, F. R. Dias Agudo, A. Mira Fernandes, J. Sebastião e Silva, Hugo Ribeiro, Ruy Luis Gomes, F. Veiga de Oliveira, A. César Freitas e Evelyn Frank, Hari Ballabh Mital, Ricardo San Juan, Kiyoshi Iseki, Herbert Knothe, J. Levitzki, Gumbel, E. G-Rodeja F., A.M. Ostrowski, Baltasar R.-Salinas e A. Sade. Com esta iniciativa e as diligências para a divulgar, Vicente Gonçalves promoveu durante cerca de um quarto de século (de 1950 a 1974), a comunicação, intercâmbio e divulgação da ciência, em particular da matemática, produzida por matemáticos portugueses e estrangeiros. Permitiu, em particular, aos investigadores mais jovens a divulgação da sua investigação no exterior. Este foi um dos contributos de Vicente Gonçalves para a internacionalização da matemática (portuguesa) na segunda metade do séc. XX, mas não foi o único. Em toda a sua obra Vicente Gonçalves dá a conhecer trabalho de matemáticos portugueses, seus contemporâneos ou não. São exemplos as referências, no seu Curso de Álgebra Superior, a um seu antigo professor, José Bruno de Cabedo, a Aureliano de Mira Fernandes e a J. Sebastião e Silva. Para chegar à fase de haver produção científica em quantidade e qualidade para ser divulgada junto da comunidade internacional, foi necessário um trabalho prévio, persistente e cientificamente rigoroso no ensino universitário. Vicente Gonçalves foi também exemplar nisso. Em nossa opinião é o “ser professor”, ou seja, o modo como entende a profissão de professor universitário que mobiliza as vertentes de ensinante, investigador e autor. Vicente Gonçalves era um professor empenhado e interessado nas suas lições. Estas eram expositivas, recorrendo ao quadro negro, que enchia por várias vezes em cada aula com teoremas, demonstrações, exemplos, etc.. Neste contexto e também nos seus manuais, a referência a matemáticos portugueses e estrangeiros, contemporâneos e ao seu trabalho e a introdução de referências à história da matemática eram uma constante e uma postura original na época. Uma vez mais, o facto de ser bibliófilo enriquecia as notas históricas que fazia, entre outras minibiografias de matemáticos, história da origem das notações e terminologia, explorar visões alternativas do passado e exercícios antigos. Por vezes, no final da aula, havia alunos que se aproximavam de Vicente Gonçalves para solicitar esclarecimentos ou colocar questões, para o que este estava sempre disponível. Muitas vezes essas conversas sobre temas matemáticos prolongavam-se no caminho até casa de Vicente Gonçalves. Esta prática tinha-a vivido e aprendido, enquanto aluno, com o seu Professor José Bruno de Cabedo. Vicente Gonçalves preparava as suas lições cuidadosa e detalhadamente, orientando também o trabalho a realizar pelos seus assistentes (entre eles, J. J. Dionísio na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Fernando de Jesus no ISCEF). Existem notas (de aula) manuscritas por Vicente Gonçalves, onde registava os temas a tratar e a respetiva sequência, assim como o número de aulas a dedicar a cada um. Nelas aparecem esquemas e deduções analíticas. Estas notas datam de finais dos anos 50, o que faz pensar que a preparação das suas aulas era uma constante na sua atuação. É ainda de realçar que há notas de aula relativas às lições na Faculdade de Ciências de Lisboa e no ISCEF, o que leva a crer que Vicente Gonçalves preparava separadamente as lições. É também de referir que mesmo nos exames (orais) aproveitava para ensinar. Outro aspeto da sua prática docente era a atenção que dava aos sumários das lições, dando a entender que estes eram, ou deviam ser, um instrumento de trabalho do aluno. Para além de os escrever de forma legível, os numerar e datar (o que não acontecia com todos os professores), indicava uma lista pormenorizada dos tópicos abordados na lição e, numerava-os de acordo com a numeração dos capítulos, secções, itens, etc. do manual, maioritariamente, o Curso de Álgebra Superior. Subjacente a este aspeto logístico e também pedagógico, está aquela que consideramos a característica mais marcante de Vicente Gonçalves: “Existia uma proximidade temporal entre a matemática que o matemático Vicente Gonçalves fazia (e conhecia) e a que o professor Vicente Gonçalves ensinava” (Costa e Vitória, 1997, 23). Ou seja, os temas que abordava nas aulas sugeriam-lhe problemas de investigação que divulgava nos artigos científicos, mas que também introduzia nos seus manuais para o ensino superior e nas suas lições. Vai repetindo este ciclo ao longo do tempo. Os seus manuais surgem da preparação cuidada que faz das suas lições e, são revistos e reformulados fruto da pesquisa que vai desenvolvendo sobre os temas em foco, na tentativa de aprimorar os resultados, refinar as demonstrações e selecionar novos exemplos e exercícios. O facto de incluir nos seus manuais temas matemáticos recentes e apresentá-los aos alunos tem vantagens, entre outras: obrigar o aluno a pensar e a descobrir as passagens intermédias, que eram intencionalmente omitidas, e facultar exercícios (muitas vezes com soluções) com grau de dificuldade elevado. Estas são razões por que os seus manuais, nomeadamente o Curso de Álgebra Superior, não são considerados textos fáceis. Esta atitude promove o desenvolvimento de capacidades de resolução de problemas e o gosto pela investigação. Vicente Gonçalves procurava incutir nos mais jovens o gosto pela investigação matemática e levá-los a investigar. Muitos dos nossos mais conceituados matemáticos, professores (dos ensinos superior e secundário) e economistas (alguns figuras públicas da política nacional) foram seus alunos ou estudaram pelo seu Curso de Álgebra Superior, e referem a influência positiva e, por vezes decisiva, desse contacto com Vicente Gonçalves. É, claro que em contrapartida, vários alunos tinham muitas dificuldades, quer em acompanhar as suas lições, quer em estudar pelos seus manuais. Entre os jovens matemáticos portugueses que influenciou, referimo-nos a título ilustrativo a João Farinha, Ruy Luís Gomes e Fernando R. Dias Agudo. A João Farinha (1910-1957) sugeriu o tema inicial para os seus estudos com vista ao doutoramento: frações contínuas. Em virtude de ter falecido muito cedo, não teve oportunidade de continuar as suas investigações. Ruy Luís Gomes foi seu aluno na Universidade de Coimbra e, segundo as palavras de José Morgado Jr., Ruy Luís Gomes afirmava que foi com Vicente Gonçalves que aprendeu a investigar em análise. Vicente Gonçalves foi arguente no júri da sua tese de doutoramento e teve um papel ativo no concurso para professor catedrático a que Ruy Luís Gomes concorreu e a que já nos referimos. Os dois matemáticos mantiveram correspondência científica, em particular, nos períodos em que Ruy Luís Gomes esteve preso por motivos políticos. Dias Agudo foi seu aluno na Universidade de Lisboa e reconhece a sua influência no gosto que lhe incutiu em aprofundar assuntos matemáticos que já então o interessavam. Também professores do ensino secundário e economistas, seus antigos alunos, recordam Vicente Gonçalves como um mestre rigoroso, exigente e justo; referimos, mais uma vez apenas a título ilustrativo os madeirenses, Carmo Gomes, Sérgio Valentim Camacho e António Camacho Coelho. A atuação de Vicente Gonçalves no incentivo ao estudo da matemática e à sua investigação sentiu-se quer direta, quer indiretamente. A influência direta resume-se (no sentido de ser limitada no tempo) às suas lições e atuação em atividades científicas em que participava, designadamente em cursos, em centros de estudos e investigação (como é o caso do Centro de Matemáticas Aplicadas ao Estudo de Energia Nuclear, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa), em Congressos, etc.. É aqui também importante referir a sua atividade na Academia de Ciências de Lisboa, pois Vicente Gonçalves costumava ir mais cedo para as sessões de modo a poder conversar (sobre matemática) com os membros mais jovens. A influência indireta é, talvez mais relevante por ter perdurado no tempo, quer através dos seus escritos que são usados durante várias gerações de estudantes e matemáticos, quer através dos ensinamentos que perpassaram para os seus alunos, posteriormente, professores, investigadores ou economistas. Carmo Gomes confidenciou-nos, em entrevista de 27 de julho de 1998, que não foram só conhecimentos científicos que aprendeu com Vicente Gonçalves e que procura passar aos seus alunos também essas aprendizagens: “(…) um dia [Vicente Gonçalves] apelou aos alunos que ajudassem a descobrir aquilo que impedia de chegarmos ao tão desejado ‘q.e.d.’. (…) A aula estava a terminar e não se descobriu o pequeno ‘lapso’ responsável pelo incómodo… O Mestre apagou os quadros cheios até mais não e disse serenamente ‘amanhã recomeça-se’. E esta foi a maior e melhor lição que aprendi com o Professor Vicente Gonçalves! (…) Explico aos meus alunos que esta lição de humildade aprendi com um Grande Senhor. Falo-lhes desse Homem, nosso conterrâneo (…)” (Costa, 2001, 114). Vicente Gonçalves era, de facto, um homem excecional, tanto como professor, como investigador e como ser humano. Era um homem alto, magro, elegante, de porte senhorial. A sua vasta e diversificada cultura não passava despercebida aos que o rodeavam, nem o refinado sentido de humor, por vezes a tocar a ironia, que o caracterizava. Era uma pessoa serena, competente, muito exigente e justa. Os alunos apercebiam-se que tinham de trabalhar muito para poder acompanhar as suas lições. Dedicou a sua vida ao ensino e à investigação, embora isso não o impedisse de ter interesses culturais diversificados e passatempos. O gosto pela bibliofilia e pela filatelia levava-o a procurar ativamente os livros antigos e os selos que pretendia comprar para a sua extensa coleção. Ao longo da vida formou uma biblioteca valiosíssima com obras nacionais e estrangeiras. Era Vicente Gonçalves quem limpava e restaurava os livros e os selos. Tarefas delicadas e meticulosas. Estes aspetos combinam com a forma organizada e meticulosa como trabalhava no seu dia-a-dia, onde as rotinas eram a norma e necessárias ao seu bem-estar. Neste ponto, é de crucial importância o papel da sua esposa. Maria Teresa, natural da freguesia de São Mamede, em Lisboa, pertencia a uma família tradicional e numerosa (11 irmãos), era filha de Bernardo Botelho da Costa (natural da freguesia de Granja Nova, concelho de Trancoso, juiz da Relação de Lisboa) e de Olinda Teixeira da Silva Botelho da Costa (natural de Benguela, Angola, doméstica) e residiam em Coimbra. Maria Teresa casou-se com Vicente Gonçalves com 19 anos de idade e desde aí zelava para que a vida do marido decorresse regrada e tranquila. Em Coimbra residiram na Avenida Dias da Silva n.º 19 e, quando mudaram para Lisboa, por volta de 1939, foram residir para a avenida 5 de Outubro, n.º 153, 3.º d.to, onde permaneceram cerca de 30 anos. Após o que mudaram para a rua Gomes Freire n.º 3, 4.º esq.º. Recuperamos alguns detalhes das rotinas da vida pessoal de Vicente Gonçalves, a saber: as refeições eram servidas a horas certas e durante as longas horas que Vicente Gonçalves passava a estudar e a trabalhar no seu escritório, a esposa não permitia que alguém o incomodasse. Nem mesmo os sobrinhos, as crianças que lhes eram mais próximas, e com quem Vicente Gonçalves gostava de conviver e conversar, tinham permissão para o interromper. Fora dessas alturas Vicente Gonçalves apreciava estar em família e entre amigos, conversar, passear, principalmente junto à praia e ir à feira da ladra. A família possuía uma casa na praia de Santa Cruz, onde passava temporadas, muitas vezes com os sobrinhos e onde Vicente Gonçalves, protegido por um frondoso chapéu de palha dava largas a outro dos seus passatempos, a jardinagem. Plantava e cuidava de plantas e flores. Curiosamente, os resultados não eram brilhantes, pois, a procura de perfecionismo, levava-o a trocar várias vezes as flores e plantas de lugar, procurando as melhores condições de luz, terra, vento, etc.. Algumas dessas flores eram madeirenses, o que ajudava a matar as saudades da sua Ilha da Madeira. Embora Vicente Gonçalves tenha vivido a maior parte da sua vida no Continente onde tinha o seu trabalho, os seus estudos, a sua investigação, os amigos e a família da esposa, nunca esqueceu a ilha da Madeira onde viveu 17 anos. Temos vários motivos para fazer esta afirmação. A ligação à terra natal e às suas origens reconhece-se em detalhes da sua vida adulta, como o gosto pela jardinagem e por vinhos e frutos da Madeira. Perduram no tempo a linguagem e pronuncia madeirense. O apreço pelas frutas, vinhos e flores da sua terra manteve-se. As frutas da Madeira eram comuns nas suas refeições. Naquela época não era vulgar venderem-se no Continente, o que nos leva a pensar que alguém lhas trazia, talvez amigos ou alunos madeirenses que viessem estudar para o Continente. Também na sua coleção de vinhos não faltava aguardente de cana e vinhos da Madeira. Um elo mais forte que as flores, os frutos ou os vinhos são os seus pais. Sobre o pai temos a informação, não confirmada, de que faleceu cedo. Quanto à mãe sabemos que veio para o Continente viver com o filho e a nora, tendo falecido, em Lisboa, a 30 de maio de 1951. Vicente Gonçalves faleceu em Lisboa, a 3 de agosto de 1985. Os restos mortais encontram-se no ossário n.º 39238 do cemitério do Alto de São João em Lisboa. A Academia de Ciências de Lisboa organizou a 12 de novembro de 1987, uma sessão de homenagem a Vicente Gonçalves, realizada na Casa de Lafões. A cerimónia revestiu-se de grande pompa. O elogio histórico foi feito por Tiago de Oliveira que lhe sucedeu na cadeira da Casa de Lafões. A terminar, reafirmamos que a diversidade, a qualidade e a atualidade, à data e com o passar do tempo, da sua obra, o reconhecimento pelos seus pares (portugueses e estrangeiros), a influência junto de colegas e alunos e a coerência de percurso de vida que expusemos, é o que nos leva a afirmar que Vicente Gonçalves é uma figura notável e incontornável da História da Matemática em Portugal. Bibliog.: COSTA, Cecília & VITÓRIA, José (1997), Nótula sobre Zeros de Polinómios Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, 37, 21-34; COSTA, Cecília, “José Vicente Gonçalves: Matemático... porque Professor!”, Colecç. Memórias, n.º 37, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 2001; Id., “O processo de edição de manuais escolares, em Portugal, na década de 30: estudo de um caso: J. Vicente Gonçalves e a sua obra para o Ensino Liceal”, in D. Moreira & J.M. Matos (orgs.), História do Ensino da Matemática em Portugal, Beja, Secção de Educação Matemática da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, 2005, pp. 149-157; Id., “Males do Ensino Superior: a opinião de J. Vicente Gonçalves em 1930. Revista Brasileira de História da Matemática”, 7(14), 2007, pp. 155-162; Id., “J. Vicente Gonçalves and the ‘Journal of the Faculty of Sciences of Lisbon University’: a contribution to the dessimination of portuguese mathematical studies”, Proceedings of the History and Pedagogy of Mathematics Meeting – HPM2008, Cidade do México, México, CD-ROM, 2008; Id., “Sobre a correspondência epistolar de A. Mira Fernandes a matemáticos portugueses”, Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, n.º especial Mira Fernandes, 2010, 89-124; Id., “Iniciativas de Vicente Gonçalves para a divulgação da Matemática na segunda metade do século XX”, comunicação apresentada no 2.º Encontro Nacional de História das Ciências e da Tecnologia, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, de 26-28 jul. 2010; COSTA, Cecília & Malonek Helmuth, “Testemunhos de reconhecimento: cartas de Oskar Perron e Konrad Knopp a Vicente Gonçalves”, Atas do V Encontro Luso-Brasileiro de História da Matemática, Câmara Municipal de Castelo Branco, Castelo Branco, Portugal, 2011, pp. 99-109; COSTA, Cecília, COSTA, Teresa & Ramos, Anabela, “Sobre um original de Vicente Gonçalves relativo a Pedro Nunes”, Boletim da SPM, 64 (Suplemento), 2011, pp. 21-22; COSTA, Cecília “O Curso de Álgebra Superior de Vicente Gonçalves. Impressões de Sebastião e Silva”, comunicação apresentada no 24.º Encontro do Seminário Nacional de História da Matemática, Escola Naval, Lisboa, Portugal, em 17 e 18 jun. 2011; Id., Sinopse crítica dos estudos históricos sobre Vicente Gonçalves, Boletim da SPM, 67 (Suplemento), 2012, pp. 47-49; Sobre um original de Vicente Gonçalves relativo à escolaridade de Francisco de Melo, in S. Nobre, F. Bertato & L. Saraiva (Eds.) Anais do 6º Encontro Luso-Brasileiro de História da Matemática, São João Del-Rei: Sociedade Brasileira de História da Matemática, 2014, pp. 207-223. Cecília Costa (atualizado a 19.08.2016)
clifford, william kingdon
[caption id="attachment_5515" align="alignleft" width="250"] Retrato de Clifford publicado na contracapa de "Lectures and Essays" (editores Leslie Stephen e Fredick Pollock)[/caption] Nasceu a 4 de maio de 1845 na cidade de Exeter, em Inglaterra. Era filho de William Clifford e de Fanny Kingdon. Os seus primeiros anos de vida foram passados nessa cidade, onde frequentou a escola local. Em 1860, com apenas 15 anos, ganhou uma bolsa de matemática para o King's College de Londres e, em 1863, uma bolsa que lhe permitiu frequentar o Trinity College, em Cambridge. Em 1868, com 23 anos de idade, foi eleito fellow do Trinity College e em 1871 tornou-se professor de mecânica e matemática aplicada no University College de Londres, posição que ocupou até à data da sua morte, em 1879. Em 1866, tornou-se membro da London Mathematical Society e em 1874 da Royal Society. Em 1873, conheceu e apaixonou-se por Sophia Lucy Jane Lane, com quem veio a casar em 1875. Tiveram duas filhas: Ethel Lucy, que nasceu a 26 de janeiro de 1876 e Alice Margaret, que nasceu a 11 de abril de 1877. A sua casa em Londres tornou-se o ponto de encontro de um numeroso grupo de amigos, representando um vasto leque de áreas e opiniões. O círculo de relações do casal incluía, entre outras personalidades, Thomas Henry Huxley, Robert Louis Stevenson, Frederick Pollock, James Clerk Maxwell, Thomas Hardy e George Eliot. Na primavera de 1876, foram detetados indícios graves de doença pulmonar em William Clifford, mas o próprio não ligou muito ao caso e continuou a trabalhar. Entretanto, os seus amigos Huxley e Pollock, apercebendo-se de que, sem passar um período num clima mais temperado, Clifford estaria com a sua vida em risco, conseguiram angariar financiamento para uma viagem pelo Mediterrâneo de forma a ajudar na recuperação de Clifford. Foi assim que, em 1876, William e Lucy passaram seis meses na Argélia e na Espanha. Em abril de 1878, apesar de os médicos terem indicado a Clifford que evitasse quaisquer riscos, ele continuou a trabalhar pelas noites dentro, convicto de que, agindo deste modo, estava a reforçar as suas resistências. Huxley, depois de se aconselhar com os médicos, familiares e amigos, comprou bilhetes para uma nova viagem do casal pelo Mediterrâneo. Nos finais do séc. XIX, o tratamento da tuberculose fazia-se geralmente no calor do Mediterrâneo, sob o sol seco da Espanha e da Argélia, ou em sanatórios no alto das montanhas onde o ar era mais puro. Existia ainda uma terceira possibilidade. Com efeito, após a publicação em 1840 do Invalid’s Guide to Madeira, os médicos recomendavam a ilha da Madeira e o seu clima para a recuperação de doenças como a tuberculose. Assim, a 10 de janeiro de 1879, William e Lucy deixaram, pela terceira vez, as suas duas filhas ao cuidado de terceiros e partiram de Dartmouth (no sul de Inglaterra) com destino ao Funchal, a bordo do Balmoral Castle, na esperança de que William conseguisse sobreviver à viagem e viesse a recuperar na Madeira. No dia 15, o navio deixou seis passageiros no Funchal, entre eles, o casal Clifford e o pintor John Collier. À data, o Funchal não tinha verdadeiramente um porto. Os passageiros desembarcavam para pequenas barcas a remos que os levavam até à costa onde eram recebidos por funcionários dos respetivos hotéis, encarregues do transporte final de passageiros e bagagens. William, provavelmente, foi levado até ao hotel num carro de bois. Lucy e William e alguns daqueles passageiros ficaram no Miles Carmo Hotel, situado na R. do Carmo, um dos melhores hotéis nas imediações do porto da cidade. Nessa época do ano, a temperatura oscilava entre os 15 ºC e os 21 ºC e foi neste clima mais ameno que William ganhou algum conforto, chegando mesmo a recuperar um pouco. [caption id="attachment_5523" align="alignleft" width="272"] "Pintura de Collier feita a partir do hotel onde ficaram alojados os Clifford no Funchal. No canto superior esquerdo podemos ver Clifford a espreitar pela janela do seu quarto." Imagem publicada em CHISHOLM, Monty, Such Silver Currents – The Story of William and Lucy Clifford 1849-1929, Cambridge, Lutterworth Press, 2002.[/caption] O pintor John Collier tinha conhecido Clifford por intermédio de Thomas Huxley quando este lhe pediu para pintar o seu retrato. Collier começou o trabalho provavelmente em 1876, mas só o terminou em 1878, com Clifford já bastante doente. Durante este período, William e Collier tornaram-se amigos, a ponto de Collier, recentemente comprometido em noivado, embarcar com o casal para a Madeira de forma a dar o seu apoio na difícil viagem de barco. Collier trouxe consigo os seus óleos, pincéis e caderno de desenho. Antes de regressar a Inglaterra, no dia 24 de janeiro de 1879, teve tempo para fazer pelo menos duas pinturas a óleo a partir dos jardins do hotel. Aparentemente, estava a terminar uma das pinturas quando William colocou a cabeça fora da janela do seu quarto. Collier aproveitou o momento para adicionar a cabeça de William a espreitar pela janela. Nessa época, vivia na Madeira o historiador, poeta e professor inglês William Cory. Ao tomar conhecimento da presença de Clifford no Funchal, através do amigo comum Frederick Pollock, Cory acabou por visitar algumas vezes Clifford. No dia 4 de março de 1879, data em que Clifford faleceu, Cory escreveu a Georgina Pollock uma carta comovente onde descreve os últimos dias de vida de William Clifford. Menciona que Clifford esteve interessado nas notícias diárias até ao derradeiro dia e que, ao saber que o fim estava próximo, empenhou-se em escrever algumas mensagens. Numa delas deixou instruções detalhadas a Frederick Pollock sobre o seu trabalho académico, que ele considerava a única coisa importante da sua vida. Embora ainda não existissem comunicações rádio na altura, havia um cabo submarino que ligava a Madeira ao Brasil e a Portugal continental desde 1865, e a partir do continente existiam eficientes ligações por terra a Inglaterra. Assim, os detalhes da morte de William Clifford foram recebidos em Londres a tempo de ser publicado um obituário na edição de 7 de março de 1879 da revista Nature. O cabo transatlântico foi instalado sob a supervisão de William Thomson (mais tarde Lord Kelvin). Ele e Clifford tinham como amigos comuns James Clerk Maxwell e Thomas Huxley. Por coincidência, Thomson tinha estabelecido laços familiares na Madeira. Com efeito, durante os 16 dias que passou no Funchal, em 1873, em trabalhos de reparação do equipamento “lança-cabos”, acabou por se apaixonar por Frances Anne Blandy, uma das filhas do poderoso e rico Charles R. Blandy, tendo voltado à ilha no ano seguinte para celebrar o casamento. É pouco provável que Thomson estivesse no Funchal durante a estadia de Clifford, mas tudo indica que interveio junto de Blandy para que este ajudasse na repatriação do corpo daquele. William Clifford pedira para que o seu corpo fosse repatriado para Inglaterra, o que não era procedimento comum na altura. Com efeito, voltou para Inglaterra num barco de guerra que havia feito escala no Funchal depois de ter participado na guerra com os zulus. Foi sepultado no cemitério de Highgate, num terreno alto, junto de uma árvore, como era seu desejo. Lucy Clifford permaneceu no Funchal durante mais alguns dias, tendo embarcado no Balmoral Castle rumo a Plymouth a 15 de março. Depois de um período de recuperação, Lucy voltou para a sua casa em Londres e retomou a carreira de escritora que havia abandonado quando se casou com William. Lucy faleceu em 1929, tendo sido sepultada junto do marido. Embora tenha falecido ainda bastante jovem, Clifford deixou-nos um trabalho notável, tanto no campo da matemática como no da filosofia. Em 1870, Clifford apresentou um artigo intitulado “On the Space Theory of Matter”, onde avança com a ideia de que matéria e energia do campo eram simplesmente manifestações da curvatura do espaço. Torna-se quase obrigatório reconhecer que, com este artigo, Clifford antecipou a Teoria da Relatividade Geral de Einstein, que viria a ser publicada apenas em 1915. Em 1875, Clifford escreveu dois capítulos completos e algumas partes de outros com a intenção de elaborar um livro intitulado The First Principles of the Mathematical Sciences Explained to the Non-Mathematical, que não teve tempo de terminar. Pouco antes de falecer escolheu como novo título Common Sense of the Exact Sciences, deixando instruções precisas sobre a forma como queria que fosse terminado e publicado. A obra acabou por ser publicada em 1885, tornando-se um clássico. No início de 1875, Clifford escreveu alguns ensaios intitulados On the Scientific Basis of Morals and Right and Wrong, que eram um pouco radicais para a época, mas não muito violentos ou controversos. Depois do regresso da viagem pelo Mediterrâneo, Clifford, com os seus pontos de vista éticos e filosóficos muito mais abalados e críticos, escreveu dois novos ensaios, Ethics of Belief e Ethics of Religion, os quais eram altamente destrutivos em relação ao pensamento e práticas religiosas da época. Clifford argumentava que, se a ciência e o senso comum são baseados nos mesmos princípios, então o pensamento científico deveria ser aplicado a todas as questões práticas do quotidiano, incluindo a ética e a religião. Entre os anos de 1867 e 1878, desenvolveu uma série de trabalhos no campo da matemática que viriam a ser publicados, em 1882, numa compilação designada Mathematical Papers. São cerca de 50 artigos que constituem um autêntico monumento ao intelecto excecional de Clifford. Muitos deles referem-se a diferentes ramos da geometria e alguns dizem respeito a espaços curvos, que Clifford classificava com fisicamente importantes. Determinados trabalhos desenvolvem aquilo que hoje é conhecido como “álgebra de Clifford”, uma extensão da álgebra dos quaterniões de William Rowan Hamilton a um número arbitrário de dimensões. Em 1928, Paul Dirac descreveu matematicamente o eletrão utilizando uma estrutura que ficou designada como “álgebra de Dirac”. Apenas 25 anos depois, compreendeu-se que estávamos perante um caso particular das álgebras de Clifford: aquele que está relacionado com o espaço-tempo da relatividade restrita. Parece, assim, que Clifford antecipou em 50 anos os ingredientes essenciais para aquilo que veio a ser a revolução da descoberta da teoria matemática do eletrão. A equação de onda do eletrão é descrita em termos de spinors que são as quantidades sobre as quais os elementos das álgebras de Clifford atuam. Já em 1959, Marcel Riesz destacou, em algumas comunicações, as propriedades geométricas das álgebras de Clifford e David Hestenes centrou-se na relação entre a álgebra de Dirac e a teoria das partículas elementares. Em 1960, Michael Atiyah e colaboradores mostraram que as álgebras de Clifford são fundamentalmente uma classe da geometria que veio a ser designada por topologia. Ainda em 1960, Richard Delanghe e David Hestenes mostraram de forma independente que, utilizando as álgebras de Clifford, podemos estender a teoria dos números complexos para qualquer número de dimensões, e Folke Bolinder aplicou as álgebras de Clifford à teoria das redes neurais. Nos anos 90 do séc. XX, Roy Chisholm e Ruth Farwell estenderam as álgebras de Clifford ao espaço-tempo curvo. Embora Clifford não o tenha feito, é conhecido o seu interesse em relação ao conceito de curvatura do espaço, ao ponto de ter traduzido, em 1873, para a revista Nature, a tese de doutoramento de Riemann, publicada em alemão em 1868, na qual foi introduzida a noção de espaços curvos. No presente, as álgebras de Clifford têm aplicações na matemática, na Física e em problemas de engenharia. Existe, desde 1990, um jornal inteiramente dedicado à publicação de artigos relacionados com álgebras de Clifford. Foi feita uma compilação de diversas páginas soltas do trabalho de Clifford sobre a representação gráfica de invariantes e covariantes que veio a ser publicada por Macmillan, em 1881, sob o título Mathematical Fragments Relating to the Theory of Graphs. Quando Sir Roger Penrose, mais de 100 anos depois, teve acesso a um dos poucos exemplares existentes, descobriu, para sua surpresa, que Clifford utilizava uma notação diagramática para a teoria de invariantes muito semelhante à que ele próprio julgava ter inventado cerca de 75 anos mais tarde. Clifford conjeturou ainda que as partículas de matéria são apenas uma parte muito peculiar da estrutura do espaço. Até a presente data não existe nenhuma teoria convincente unificando partículas e espaço. Contudo, esta ideia permanece como uma das pistas possíveis para a descoberta da Grande Teoria da Unificação (GUT). Durante o seu tempo de vida, Clifford foi reconhecido como um matemático de classe mundial e era famoso pelas suas palestras e publicações em ciência e filosofia. No entanto, com o passar do tempo, o seu trabalho e a sua memória caíram no esquecimento. Ao longo dos anos, apenas uma mão cheia de matemáticos estava ao corrente do legado de Clifford. Entretanto, em 21 de fevereiro de 1970, o professor John Archibald Wheeler, da Universidade de Princeton, organizou uma conferência internacional, para a qual convidou um grupo de 30 físicos e matemáticos, para assinalar os 100 anos da apresentação, por Clifford, do artigo “Space Theory of Matter”, o qual veio a dar origem ao nascimento da área da geometrodinâmica. Em 1985, teve lugar na Universidade de Kent, em Canterbury, na Inglaterra, a primeira conferência inteiramente dedicada às álgebras de Clifford e suas aplicações. Desde então, sobre a mesma temática, decorreram conferências em França, Bélgica, Alemanha, México e EUA. Em particular, durante o ano de 1995, passados 150 do nascimento de Clifford, foram organizados encontros internacionais em Canterbury, México, Canadá, Madeira e Cambridge. A conferência realizada na Madeira decorreu entre os dias 30 de julho e 5 de agosto de 1995. Os trabalhos decorreram na UMa, bem no centro do Funchal, não muito longe da localização do antigo Miles Carmo Hotel. A conferência, intitulada “New Trends in Geometrical and Topological Methods”, teve como principal responsável a Professora Doutora Hanna Nencka, do departamento de física da UMa. Um dos objetivos do encontro foi colocar em contacto cientistas (em particular matemáticos e físicos) que trabalhavam em campos relacionados com o legado de Clifford. A conferência contou com 64 participantes (regionais, nacionais e internacionais), tendo sido feitas 46 comunicações orais e duas em póster. Muitas das apresentações então feitas foram publicadas no volume 203 da série “Comtemporary Mathematics” da American Mathematical Society. [caption id="attachment_3462" align="aligncenter" width="326"] Monty Chisholm and Roy Chisholm[/caption] Monty Chisholm e Roy Chisholm aproveitaram a sua presença na conferência para fazerem uma pesquisa histórica sobre a passagem dos Clifford na Madeira. Tinham a esperança de encontrar o local onde o casal tinha ficado instalado. Descobriram, no entanto, que um incêndio havia destruído grande parte dos registos oficiais da cidade do Funchal e que não sobrara qualquer documento sobre a visita dos Cliffords e sobre a doença e morte de William. Uma cópia do quadro de Collier foi exposta nos corredores da UMa durante a conferência, na esperança de que alguém conseguisse identificar o local, mas os resultados foram negativos. Foi então que Monty Chysholm andou pelas ruas do Funchal com o quadro de Collier nas mãos. O detalhe da paisagem de fundo que o pintor gostava de dar aos seus quadros acabou por conduzir a investigadora até às portas de uma casa de artesanato na R. do Carmo. O proprietário revelou que aquele edifício tinha sido outrora um hotel: o original Miles Hotel. A pesquisa de alguns registos de navios permitiu encontrar a referência da chegada de William e Lucy Clifford à Madeira. Para mais detalhes sobre a vida e obra de William e Lucy Clifford, vejam-se as referências bibliográficas. Bibliog.: CHISHOLM, Monty, Such Silver Currents: the Story of William and Lucy Clifford 1849-1929, Cambridge, Lutterworth Press, 2002; id., “Science and Literature Linked: the Story of William and Lucy Clifford 1845–1929”, Advances in Applied Clifford Algebras, vol. 19, n.os 3-4, 2009, pp. 657-671; NENCKA, Hanna e BOURGUIGNON, Jean-Pierre (eds.), Geometry and Nature in Memory of W.K. Clifford: a Conference on New Trends in Geometrical and Topological Methods in Memory of William Kingdon Clifford, July 30-August 5, 1995, Madeira, Portugal, Providence, Rhode Island, American Mathemathic Society, 1997; SÍLVIA, Ornelas, “Clifford, o Matemático”, Revista do Diário de Notícias do Funchal, 30 abr.-6 mai. 2000, pp. 26-27; STEPHEN, Leslie e POLLOCK, Frederick (eds.), Lectures and Essays, vol. 2, Cambridge, Cambridge University Press, 2011; digital: “William and Lucy Clifford. A Story of Two Lives”: http://www.williamandlucyclifford.com (acedido a 4 fev. 2015). José Laurindo de Góis Nóbrega Sobrinho (atualizado a 29.01.2017)
trinidad y tobago
As crises agrícolas, o sistema de colónia vigente na ilha da Madeira, o excesso demográfico, a Guerra Civil entre 1820-1834, e um recrutamento militar obrigatório sem precedentes, afetaram o quotidiano dos madeirenses. Também a indústria do vinho, âncora da economia de exportação vinícola insular, entrou em declínio na segunda metade do séc. XIX, originando graves crises de subsistência. Todo este panorama contribuiu para uma onda emigratória dos insulares madeirenses. [caption id="attachment_3389" align="alignright" width="300"] "Mapa da Ilha de Trinidad, 1809, " - Fonte : BESSON, Gerard, BRERETON, Bridget, The Book of Trinidad, Port-of-Spain, Paria Publishing, 1992.[/caption] Na ilha existia uma colónia de mercadores ingleses e a ínsula era um importante interposto comercial britânico, nas rotas atlânticas das embarcações para as Índias Ocidentais. Na sequência da crise de mão-de-obra nas Antilhas Britânicas, com as proprietários a procurarem colonos para substituírem os antigos escravos, emancipados em 1834, os madeirenses eram vistos como bons candidatos, descritos como excelentes trabalhadores e artífices competentes. Surgiu, desde cedo, um sistema de aliciamento dos ilhéus para as plantações inglesas do Caribe. Em 1834-35 ocorreram as primeiras levas para a Ilha de Trinidad, viagens garantidas pelo armador João de Freitas Martins e financiadas pelos proprietários da possessão inglesa. Entre 1834-47 saiu o maior número de madeirenses, em toda a centúria oitocentista. [caption id="attachment_3369" align="alignleft" width="241"] "Porto de Port-of-Spain - Trinidad - 1904" - Fonte : BESSON, Gerard, BRERETON, Bridget, The Book of Trinidad, Port-of-Spain, Paria Publishing, 1992, pág. 7.[/caption] [caption id="attachment_3438" align="alignright" width="300"] Pontão do Farol, Port-of-Spain, Trinidad[/caption] Em 1834 chegaram os primeiros emigrantes madeirenses a Trinidad, vindos da Madeira e da ilha açoriana do Faial. A experiência madeirense na ilha de Trinidad começará nos primeiros meses de 1834. Assim, a 20 de julho de 1834, chegava o Watchful, com quarenta e quatro açorianos, que também desembarcariam em Las Cuevas, a norte da ilha. Mais tarde, a 31 de outubro de 1834, saíam do Faial mais vinte e oito açorianos, homens, mulheres e crianças. O primeiro registo oficial madeirense da saída de vinte e oito insulares para a ilha de Trinidad, vinte e cinco homens e três mulheres, informação devidamente registada num mapa documentativo do número de pessoas que haviam emigrado legalmente a 12 de novembro de 1834. Estes emigrantes madeirenses saíram na Galera Inglesa Stralhista. Registava-se os vinte e oito nomes dos passageiros, neste caso, especificando-se também a sua localidade. Para sermos mais precisos, partiram vinte e dois homens, três mulheres e três rapazes menores. Na sua maioria, eram das freguesias do Funchal, mas também de outras localidades como Machico, Santa Cruz, Calheta e Porto Santo. [caption id="attachment_3444" align="aligncenter" width="300"] Frederick Street[/caption] No Arquivo Regional da Madeira, nos Registos Notariais, Livro n.º 3224, f. 54-55v.º., preserva-se um contrato datado de 23 de novembro de 1834, «Obrigação que fazem os prezos da cadêa a Thomaz Reynoldes», entre um grupo de dezasseis madeirenses, e o dito capitão da Galera Inglesa “Eweretta”, representante do grande proprietário da ilha de Trindade, William Burnley, dono de várias plantações, Presidente da Associação de Agricultura e Emigração na colónia Britânica. O contrato foi celebrado com a presença do contratante, capitão Thomas Reynoldes e os dezasseis madeirenses contratados, oriundos de várias freguesias da ilha da Madeira. O grupo era composto por catorze homens e duas mulheres, que ali confirmavam e assinavam conhecerem e aceitarem as condições de transporte e de trabalho na colónia britânica. [caption id="attachment_3342" align="aligncenter" width="497"] "Naufrágio do Brigue Freitas e Irmão, 1871 (Quadro patente na Sacristia da Igreja do Monte)" - Fonte : Foto da coleção privada do fotógrafo Rui Camacho.[/caption] Todos estes contratados tinham algo em comum, estavam presos na cadeia no Funchal. No entanto, “livres” naquele dia, assinavam um contrato de serviços para o estrangeiro. Outorgava o contrato o recém-nomeado Juiz de Fora Doutor Daniel de Ornellas e Vasconcellos, assinava o documento e transmitia aos dezasseis presos, agora bafejados pela liberdade. [caption id="attachment_3453" align="alignright" width="300"] Santa Cruz Valley - Trinidad[/caption] A intervenção e atitude do Doutor Daniel de Ornellas e Vasconcellos eram singulares. Fora nomeado para o cargo de Juiz de Fora a 13 de outubro de 1834. Um mês depois autorizava o contrato e apresentava aos detidos, agora emigrantes legais, as vantagens de tal locação no estrangeiro. Estes presos, que se tornaram emigrantes, nunca foram contabilizados, nem mencionados nos registos oficiais do Governo Civil. A bem da verdade histórica, em 1834, partiram quarenta emigrantes para a Trinidad, vinte e oito na Galera Inglesa Stralhista, segundo o registo do Governo Civil, mas também dezasseis madeirenses na Galera Inglesa Eweretta, que foram amnistiados e soltos da cadeia do Funchal, e partiram para Trinidad. [caption id="attachment_3450" align="alignleft" width="300"] Parque Queen´s Savannah[/caption] Este contrato levanta algumas questões, bem como não podemos olvidar a altura e as circunstâncias em que é feito. A celebração de um contrato de serviços para o estrangeiro com um grupo de presos não seria comum. O contrato era realizado num período único, poucos meses depois da instauração do liberalismo na Madeira, depois de profundas lutas políticas, entre liberais e absolutistas. Seria este contrato uma espécie de degredo para homens e mulheres que escolheram o local errado da barricada nessas lutas? Um degredo para uma colónia britânica nas Índias Ocidentais, para o estrangeiro, para Trinidad, era caso único. No ano seguinte, a 11 de fevereiro de 1835, trinta e duas pessoas obtiveram passaporte para a Ilha de Trinidad, viajando na barca Inglesa Portland. Eram trinta e dois passageiros, vinte e nove homens, e três mulheres. Assim, na década 30 do séc. XIX, saíram da ilha da Madeira setenta e seis emigrantes para Trinidad. Na década de 40 acontecerá a maior saída de sempre de Madeirenses para a ilha de Trinidad, na sequência de um plano inglês de recrutamento de emigrantes. No que diz respeito ao processo de angariação, desencadeado pelo governo colonial britânico, foram utilizadas várias embarcações no transporte dos madeirenses. A 16 de abril de 1846, zarpou do Funchal a Galera Inglesa Senator, com 222 colonos madeirenses, havendo 50 menores nesse grupo. Aportaram a 9 de maio na ilha de Trinidad. Meses mais tarde, a Galera inglesa William of Glasgow saiu a 23 de agosto de 1846, com 199 trabalhadores madeirenses, e chegou a Trinidad a 16 de setembro. Seguiu-se o Lord Seaton, que saiu a 19 de setembro, levando 190 madeirenses, dos quais 12 eram menores. O brigue Peru chegava a 8 de novembro a Trinidad, com 160 insulares. A barca inglesa Dalhousie, com 208 colonos, partiu a 17 de outubro, e chegou a 13 de novembro de 1846. No ano seguinte, em novembro de 1847, regressava a barca Dalhousie, desta vez com 267 trabalhadores madeirenses. Como podemos constatar, nestas levas dos barcos, emigraram 1246 madeirenses para Trinidad. [caption id="attachment_3346" align="alignright" width="232"] "ARM, Periódico, O Defensor, 29.08-1846" - Fonte : Arquivo Regional da Madeira, Periódico, O Defensor, 29-08-1846[/caption] [caption id="attachment_3349" align="alignnone" width="294"] "ARM, Periódico, O Defensor, 17-10-1846" - Fonte : Arquivo Regional da Madeira, Periódico, O Defensor, 17-10-1846.[/caption] No início do séc. XIX, a par de uma forte crise económica e social na ilha da Madeira, a situação foi agravada pela tensão religiosa resultante do surgimento dum grupo de convertidos presbiterianos numa ilha tradicionalmente católica. O plano inglês de angariação de emigrantes madeirenses coincidirá com os incidentes que tiveram lugar na ilha, envolvendo Robert Reid Kalley e os seus seguidores, uma odisseia de Kalley que começou na Madeira, de onde viria a sair disfarçado, perante a ira dos madeirenses, com destino a Trinidad. Duas vagas de madeirenses emigraram para a Trinidad a partir de 1846, e por razões muito diferentes. Até certo ponto, ambos os grupos eram refugiados - um grupo composto de camponeses, vitimados pela ruína da economia madeirense, e o outro composto por protestantes fugindo à perseguição religiosa. [caption id="attachment_3435" align="alignright" width="300"] Corte e transporte de cana de açúcar[/caption] As condições nas fazendas de cana-de-açúcar em Trinidad, sob o intenso sol tropical, revelaram-se esmagadoras para os portugueses. Muitos faleceram e outros mudaram-se para as fazendas de cacau, mais protegidas, ao passo que outros abandonaram definitivamente este tipo de trabalho braçal, e viraram-se para o mundo do comércio lojista. A lei não obrigou os portugueses a permanecerem sob contrato. Do ponto de vista da Trinidad, a Madeira não constituiu uma fonte viável da mão-de-obra, e depois de 1847, a imigração portuguesa não foi considerada como uma solução possível para a situação difícil dos agricultores. As contratações cessaram em 1847, mas os madeirenses continuaram a emigrar para a Trinidad até ao nosso século, sobretudo para se juntarem a outros portugueses, familiares ou negociantes, já estabelecidos na ilha. Embora essa imigração fosse esporádica e em pequena escala, o consulado honorário de Portugal em Port-of-Spain conseguiu conservar alguns registos de emigração, com pormenores relativos à proveniência e filiação dos imigrantes. [caption id="attachment_3380" align="alignleft" width="267"] "Poteegee shop / Loja de portugueses, de Alfred Antonio Codallo "Fonte: FERNANDES, Ferreira, Madeirenses Errantes, Lisboa, Oficina do Livro, 2004, página 131.[/caption] Estes emigrantes chegaram a Trinidad em estado de indigência. Depois de sentirem dificuldades em encontrar emprego, tendo alguns sido forçados a trabalhar sob contrato após a sua chegada, conseguiram empreender uma nova vida começando empresas de pequeno porte. A primeira loja portuguesa (cujo proprietário se desconhece) abriu em 1846, o ano da chegada tanto dos emigrantes católicos como dos refugiados protestantes. Em geral, parece que os protestantes abriram as melhores lojas, principalmente em Port-of-Spain e Arouca, especializadas em fazendas e artigos de drogaria e retrosaria, mas também em profissões como barbeiro, sapateiro, alfaiates, carpinteiros, trabalhando muitos outros como jardineiros e governantas. Muitos emigrantes encontraram empregos como gerentes das lojas nas plantações e nas cidades. Estes espalharam-se por toda a ilha e tornaram-se negociantes de vinhos e de runs e donos de mercearias contíguas às vendas de álcool. As sociedades e as empresas familiares não foram caso raro. [caption id="attachment_3456" align="alignright" width="300"] Farol da vizinha Tobago[/caption] Numa tradição de boa vontade e com espírito comunitário, os primeiros portugueses católicos que se estabeleceram como negociantes contrataram, sem demora, os recém-chegados da Madeira no séc. XX. Nas lojas portuguesas os recém-chegados, que não podiam falar inglês e, portanto, não podiam obter trabalho noutro sítio, conseguiram emprego como empregados de balcão. No seu todo, a comunidade ganhou fama pela sua capacidade de iniciativa e pelos seus hábitos empreendedores. Antes da última década do séc. XIX, a comunidade presbiteriana de Trinidad e a comunidade católica na ilha acabariam por se unir, em virtude das ligações ancestrais fortes ao nível da língua e da cultura. Os católicos excederam em número os presbiterianos, os quais foram absorvidos pela comunidade católica, da qual faziam parte não só portugueses como também colonos franceses, espanhóis, irlandeses e ingleses. [caption id="attachment_3386" align="alignleft" width="300"] "Manuel Fernandes, fundador do rum Fernandes (no meio, de branco) " - Fonte : FERNANDES, Ferreira, Madeirenses Errantes, Lisboa, Oficina do Livro, 2004, página 138.[/caption] Depois do «êxodo de 1846» (das primeiras duas vagas), os madeirenses católicos foram chegando aos poucos até meados do séc. XX. Nos finais do séc. XIX, a comunidade portuguesa no seu todo contaria com aproximadamente 2000 pessoas. Os madeirenses continuaram a emigrar voluntariamente para Trinidad em busca de melhores condições de vida. Famílias inteiras madeirenses emigraram para se reunirem com os familiares que já se haviam instalado em Trinidad. Os descendentes dos portugueses assimilaram-se completamente. Os seus antepassados devem ter sido um espetáculo curioso ao desembarcarem em Port-of-Spain, com alguns dos homens usando os seus barretes de vilão e botas típicas da Madeira. Tornaram-se famosos como lojistas de rum, retalhistas e merceeiros, negócios que viriam a transformar em empresas comerciais de grande escala. [caption id="attachment_3383" align="alignright" width="363"] "Empresa de Rum Fernandes e Cª" - Fonte : FERNANDES, Ferreira, Madeirenses Errantes, Lisboa, Oficina do Livro, 2004, página 138.[/caption] Ficaram também conhecidos pela sua preferência pelo bacalhau, os caldos e as sopas, o azeite e, sobretudo, pela carne vinha-d`alhos, o prato de Natal que se tornou no símbolo duradouro da cultura madeirense em Trinidad. O seu amor pela música e pela dança é tanto português quanto próprio da Trinidad. Os dois clubes portugueses em Port-of-Spain são a testemunha duma comunidade outrora viva e unida. Em 1904, alguns portugueses de Trinidad, com o objetivo de unir a comunidade madeirense, e aumentar o seu prestígio na colónia inglesa, levaram a cabo algumas reuniões, com o desígnio de criar um Clube Português naquele território. O espírito associativo, que sempre caracterizou e uniu os emigrantes portugueses, aparecia naquela comunidade. À volta de um objetivo comum, numa concentração de esforços, a comunidade madeirense organizava-se naquele território. Assim, em 1905, no pequeno grupo de trabalhadores madeirenses, destacou-se o senhor José Hedwiges Macedo, que tomou a iniciativa de convidar alguns amigos para uma reunião em sua casa, para formar um Clube Dramático. A primeira reunião teve lugar a 16 de Julho de 1906, na residência do senhor Macedo, na duque Street, n.º 77, em Port-of-Spain. [caption id="attachment_3374" align="alignright" width="270"] "Jantar de Beneficência na Associação Portuguesa Primeiro de Dezembro" - Fonte: FERNANDES, Ferreira, Madeirenses Errantes, Lisboa, Oficina do Livro, 2004, página 137.[/caption] [caption id="attachment_3365" align="alignnone" width="407"] "Direção da Associação Portuguesa Primeiro de Dezembro (1926)."- Fonte : REIS, Charles -Brief History of the Associação Portuguesa Primeiro de Dezembro, Port-of-Spain, Franklin´s Electric Printery, 1926, pág. 7[/caption] Explicado o objectivo da reunião pelo anfitrião Macedo, decidiram produzir um conjunto de peças, para angariar fundos para auxiliar os madeirenses mais pobres da comunidade, realçando-se o valor moral do movimento que surgia naquela reunião. Formava-se assim o Grupo Dramático Português 1.º de Dezembro. E logo se acordou fixar a estreia de uma peça musical para o dia 27 de setembro de 1905, primeira apresentação ao público português de Trinidad. No que diz respeito à designação da coletividade, em 10 de maio de 1909, o Grupo registava-se na Friendly Societies Ordinance, com o nome de Portuguese Dramatic Association 1st of December, tradução inglesa de Grupo Dramático 1.º de Dezembro. Apareceria, mais tarde, a 18 de novembro de 1910, com um nome português, nomeando-se como Associação Portugueza Primeiro de Dezembro, designação que manteve até a atualidade. [caption id="attachment_3392" align="alignright" width="300"] "Récita na Associação Portuguesa Primeiro de Dezembro"- Fonte: FERNANDES, Ferreira, Madeirenses Errantes, Lisboa, Oficina do Livro, 2004, página 137.[/caption] [caption id="attachment_3377" align="alignnone" width="300"] "Dia da Bandeira Portuguesa na Associação Portuguesa Primeiro de Dezembro" - Fonte : FERNANDES, Ferreira, Madeirenses Errantes, Lisboa, Oficina do Livro, 2004, página 137.[/caption] À exceção de muitos apelidos portugueses, que continuam a enfeitar as lojas e empresas, ou que polvilham as páginas dos livros de história da Trinidad, e que os descendentes sentem orgulho em referir e descobrir, não restam muitas mais lembranças culturais da comunidade em Trinidad. Apelidos como Camacho, Coelho, Correia, Fernandes, Ferreira, Pereira, Reis, Ribeiro e Sá Gomes figuram entre os mais notáveis no sector dos negócios, tanto no passado como hoje. [caption id="attachment_3432" align="aligncenter" width="203"] Estátua de Cristovão Colombo[/caption] São símbolos de uma ascensão surpreendentemente rápida. A sua eminência é indubitavelmente o resultado duma combinação eficaz de ambição, diligência e perseverança. Um elo com o passado, um tributo aos antepassados que fizeram um séc. XIX de presença madeirense na Ilha de Trinidad, e uma homenagem aos descendentes que continuaram a caminhada no séc. XX. [caption id="attachment_3447" align="alignright" width="300"] Frederick Street[/caption] [caption id="attachment_3441" align="alignnone" width="300"] Frederick Street[/caption] Bibiliog. impressa: Correio da Madeira; Defensor (O); Diário de Notícias; Direito (O); Direito do; Funchal (O); Funchalense (O); Flor do Oceano (A); Jornal (O); Jornal da Madeira; Justiça (A); Heraldo da Madeira; Imparcial (O); Lucta (A); Madeira (A); Progressista (O); Voz Pública (A); manuscrita: Arquivo Regional da Madeira, Administração do Concelho do Funchal, n.os 6, 129, 130, 131, 132, 303, 304, 311, 315, e 351; Alfândega do Funchal, livros 285, 286, 707 (antigo 37); Câmara Municipal do Porto Santo, Registo de Editais, liv. 1, n.º 27; Governo Civil, n.os 122, 141, 248, 249, 464, 621, 643, 644, 645, 654, 657, 748, 981 e 1077, Inventário dos Passaportes do Governo Civil, n.os 109 e 749; Registos Notariais, livros n.os 3208 e 3224. Jo-Anne Ferreira Vítor Paulo Teixeira (atualizado a 19.08.2016)