gramáticos
Num arquipélago como o da Madeira há algumas razões geográficas e de ordem político-cultural que justificam o exíguo número de gramáticos. De entre algumas das características do arquipélago, refira-se que a orografia da maior e mais habitada ilha, a Madeira, até há poucos anos, não permitia deslocações terrestres curtas e confortáveis, sendo na sua maior parte efetuadas por barcos entre as zonas costeiras, de difícil acesso. A geografia dificultava, por isso, o contacto com a realidade linguística madeirense e o seu estudo. O arquipélago, antes da autonomia, não possuía uma universidade cujo trabalho científico oferecesse uma visão de excelência sobre a realidade linguística madeirense. O ensino liceal era, então, vocacionado para o estudo do português padrão e não era acessível a todos. De igual modo, os indivíduos que enveredavam pelos estudos superiores faziam-no no continente e eram maioritariamente oriundos de uma elite que aderia, sem diferenças de relevo, à cultura e aos movimentos vanguardistas da metrópole. Os gramáticos madeirenses (que nasceram ou viveram na Madeira) são, assim, comuns entusiastas da língua e limitam-se a elaborar textos normativos e escolares sobre a língua portuguesa, latina, francesa e inglesa (Gramáticas madeirenses) com o propósito de servirem e complementarem a aprendizagem. Grande parte destas personagens está ligada ao clero, à docência e à advocacia. Da expressão “gramáticos madeirenses” devemos depreender que o adjetivo “madeirenses” é uma marca de pertença toponímica e não de distinção intelectual ou de tomada de posição em relação a um determinado desvio linguístico. Das personalidades madeirenses, poderemos estabelecer relações com grupos sociais dominantes: clero, P.e Manuel Álvares, P.e Fernando Augusto da Silva e o capelão anglicano Alexander J. D. D’Orsey; advocacia, Álvaro Rodrigues de Azevedo; docência, Francisco de Andrade Júnior, Marceliano Ribeiro de Mendonça, Abel Marques Caldeira (também jornalista), Francisco Manuel de Oliveira, Pierre Hector Clairouin. Poderemos também aferir outro tipo de agrupamentos, tendo em conta a produção de cada autor. Assim, temos os que elaboraram gramáticas da língua portuguesa (Francisco de Andrade Júnior e Álvaro Rodrigues de Azevedo), gramáticas de língua latina (Manuel Álvares e Marceliano Ribeiro de Mendonça), gramática de língua francesa (Pierre Hector Clairouin), gramática de língua inglesa (Francisco Manuel de Oliveira), gramática de língua portuguesa para anglófonos (Alexander J. D. D’Orsey), trabalhos sobre o léxico madeirense (Abel Marques Caldeira e Fernando Augusto da Silva). Com a exceção do P.e Manuel Álvares, todos os restantes autores exerceram a sua atividade na área do Funchal, indo ao encontro das necessidades educativas da cidade. É de notar que algumas destas personalidades se encontram ligadas à evolução do ensino no arquipélago, quer através do Colégio dos Jesuítas do Funchal, até à expulsão da Companhia de Jesus em 1759, quer das instituições que a sucederam. Por Carta Régia de 6 de novembro de 1772, são criadas três aulas de latim, uma de grego, uma de retórica e uma de filosofia, no Funchal, e, a partir do início o séc. XIX, de outras aulas (desenho e pintura, aritmética, geometria, francês e inglês) que culminaram com a fundação do Liceu do Funchal, por decreto régio de 17 de novembro de 1836, no qual se estabelecia o ensino liceal na capital de cada distrito e nos arquipélagos adjacentes ao continente português (Madeira e Açores). Entre os sécs. XVI e XIX existe um hiato de autores de gramáticas. Desde o aparecimento do P.e Manuel Álvares até ao séc. XIX não há notícia de gramáticas elaboradas por madeirenses. O P.e Manuel Álvares nasceu na Ribeira Brava, supostamente por volta de 1526, uma vez que, à data, aquela diocese não registava os nascimentos, e era filho de Brígida Gonçalves e João Mealheiro ou Malheiro, antigos fidalgos naquela zona da Madeira, segundo o Elucidário Madeirense (1978, I, 115), ou de Brígida Álvares e Sebastião Gonçalves, gente humilde, como refere J. Pereira da Costa na introdução à edição fac-similada da De Institutione Grammatica (1972). De acordo com a Synopsis Annalium Societatis Jesu in Lusitania, entrou para o instituto da Companhia de Jesus a 4 de julho de 1546, com 20 anos, e morreu em Évora a 30 de dezembro de 1583, com 57 anos. Desde cedo, Manuel Álvares revelou uma predisposição especial para o estudo das línguas latina, grega e hebraica, o que o levou a aperfeiçoar-se nestas matérias, com os resultados que conhecemos: a elaboração da reconhecidíssima De Institutione Grammatica, que foi editada várias vezes em língua latina e em outras línguas. Esta obra do P.e Manuel Álvares é, a seguir a’Os Lusíadas, a obra portuguesa mais traduzida e reeditada, desde a sua primeira edição, em 1572, e perdurou ao serviço do ensino da língua latina durante dois séculos, o que é prova irrefutável da dimensão humanista e pedagógica do padre. A contestação à De Institutione Grammatica adveio da edição, em 1753, do Novo Methodo da Grammatica Latina do P.e António Pereira de Figueiredo (1725-1797), em que defendia a simplificação do ensino da língua latina, fruto da evolução dos estudos sobre a língua, e do pedagogo e padre Luís António Verney (1713-1792), que criticava os excessos do método de ensino da Companhia de Jesus. Assim, a obra de Manuel Álvares começou a perder a autoridade pedagógica de que gozava, embora haja a registar as suas reedições em várias línguas até ao segundo quartel do séc. XIX. Por ter sido uma referência universal incontornável no campo pedagógico da Companhia de Jesus, o P.e Manuel Álvares merece sempre um apontamento especial. Com a evolução dos métodos de ensino e das orientações políticas e sociais, começou a ser dada maior importância às línguas nacionais, especialmente a partir do séc. XIX, em pleno Romantismo, altura em que se inculca a defesa da consciência nacional e a recuperação das raízes da literatura portuguesa. É também no período romântico que o Estado português começa a responsabilizar-se pela educação, e, como consequência, é criado o ensino liceal em todas as capitais de distrito e dos arquipélagos. A este facto associa-se a divulgação da imprensa pelos territórios lusófonos. Conjugados estes fatores, foi com naturalidade que surgiram na Madeira personalidades assinaláveis que produziram obras fundamentais para o apoio do ensino e divulgação da língua portuguesa. Francisco de Andrade Júnior, filho de Francisco de Andrade, nasceu no Funchal a 6 de junho de 1806, onde veio a falecer a 23 de fevereiro de 1881. Foi secretário e reitor do Liceu do Funchal, além de um distinto professor. É também digna de nota a sua ação política como vereador da CMF. No Funchal, cursou todas as aulas oferecidas pelo sistema de ensino do seu tempo. Após a criação do Liceu do Funchal, foi nomeado professor proprietário das cadeiras de gramática portuguesa e latina e clássicos portugueses e latinos, por dec. de 4 de setembro de 1838. Anteriormente já se encontrava ligado à educação e desempenhara as funções desse mesmo cargo por carta do Conselho Provincial de Instrução Pública, datada de 23 de março de 1838. O facto de ser uma figura que fez da docência a sua carreira permitiu-lhe o estudo mais pormenorizado da língua portuguesa. Em 1844, editou, no Funchal, os Principios de Grammatica Portuguesa ou Principios e Preceitos Compilados dos Mais Acreditados Autores que Sobre este Assumpto Tem Tratado Até o Presente, e Explicados de Modo a Serem Comprehendidos por Pessoas de Todas as Intelligencias (Typographia Nacional); em 1849, a Grammatica Portuguesa das Escholas Primarias (Typographia Nacional), reeditada cinco vezes até 1879. Outras obras, fora do âmbito da língua, fizeram igualmente parte do seu legado, como o Relatorio Sobre as Escholas Municipaes de Instrucção Primaria do Concelho do Funchal (Funchal, 1849). Outra figura incontornável, pelo seu legado humanístico, foi o advogado Álvaro Rodrigues de Azevedo. Filho de António Plácido de Azevedo e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo, nasceu em Vila Franca de Xira a 20 de março de 1825, com o nome de José Rodrigues de Azevedo. Para entrar na universidade, onde cursou direito, mudou de nome. Concluído o curso em 1849, estabeleceu-se em Lisboa durante seis anos. Pretendeu ser despachado para um lugar na magistratura judicial, embora sem sucesso. Passou para a ilha da Madeira, onde lecionou oratória, poética e literatura no Liceu do Funchal, por via de concurso público, distinguindo-se como professor de português e recitação. Durante 26 anos, regeu com grande empenho esta cadeira e retirou-se em janeiro de 1881 para Lisboa. Antes, fora ainda procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal. Em 1870 recusou o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Distinguiu-se igualmente como membro do Partido Reformista, revelando aspirações liberais aquando das lutas de 1868, na Madeira. Colaborou em muitos jornais e foi um dos redatores da Discussão e da Madeira, tendo publicado no primeiro destes periódicos um artigo de crítica literária sobre o Bosquejo Historico de Litteratura Classica, Grega, Latina e Portuguesa de António Cardoso Borges de Figueiredo. Publicou, também, nos números 181 a 183 do DN da Madeira um estudo intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”. Do seu legado bibliográfico devemos registar as seguintes obras: O Livro d’um Democrata (Coimbra, 1848), Esboço Critico-Literario (Funchal, 1866), Curso Elementar de Recitação (Funchal, 1869) e Romanceiro do Archipelago da Madeira (Funchal, 1880). Além destes títulos, Azevedo publicou A Família do Demerarista e o Almanach para a Ilha da Madeira, em 1867 e 1868, respetivamente. De entre as suas obras mais marcantes, destaca-se a publicação da parte do manuscrito de Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, dedicada à Madeira, cujas notas são de sua autoria, os artigos “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados no Diccionario Universal Portuguêz, dirigido por Fernandes Costa, e o drama intitulado Miguel de Vasconcellos, gerador de polémica com Inocêncio Francisco da Silva. Faleceu em Lisboa a 6 de janeiro de 1898. João de Nóbrega Soares, um dos mais conhecidos autores madeirenses, nasceu a 11 de junho de 1831, no Funchal, onde veio a falecer a 22 de setembro de 1890, com 59 anos. Durante a sua vida foi jornalista, escritor e professor. Da sua formação académica há a registar a frequência do Liceu do Funchal e da sua formação pessoal as viagens por África (1851 a 1853) e pela América do Norte (1854). Após estas viagens, dedicou-se ao ensino primário, vindo a ser nomeado escrivão da Santa Casa da Misericórdia e empregado da fiscalização dos tabacos. Na altura da sua morte era chefe de distrito da Guarda Fiscal. Na vida deste autor, houve duas fases distintas na vida do autor. Uma primeira fase, até ao final da vigem à América do Norte, em que investiu na sua formação e uma segunda em que investiu na sua produção escrita, deixando textos de diversa índole, desde literária a pedagógica, passando pela jornalística. Revelou-se, deste modo, como um dos escritores madeirenses que mais géneros cultivou. Da sua atividade jornalística destaca-se as colaborações nos periódicos madeirenses A Flor do Oceano, A Pátria, A Imprensa, Gazeta da Madeira, O Funchalense e Diário de Notícias. Fundou a Revista Semanal e dirigiu o Boletim Oficial. Das obras didáticas são de referir Introdução à Geografia para Uso das Escolas Primárias (1859), Primeiras Noções de Moral para Uso das Escolas Primárias (1861), Corografia da Madeira (1862) e Grammatica da Lingua Portugueza (1884). A sua produção literária inclui Lágrimas e Flores (1861), Qual dos Dois? (1862), Um Quarto com Duas Camas (1862), A Virtude Premiada (1863), Cenas e Comédias (1863), Contos e Viagens (1867) e Cenas e Fantasias (1868). No vasto legado deixado por João Nóbrega Soares há ainda a destacar um conjunto de obras que nunca saíram do prelo: Breves Noções de História de Portugal, Dicionário Português, Corografia de Portugal e Domínios e Aritmética. No seguimento das notas biográficas de João de Nóbrega Soares, devemos referir Ricardo Augusto Sequeira, revisor da Grammatica da Lingua Portugueza de Soares. Foi um presbítero e professor que nasceu no Funchal a 8 de junho de 1841 e faleceu a 27 de março de 1894. Além dos vários serviços prestados à Igreja, foi nomeado professor provisório de português e latim em 28 de fevereiro de 1868 no Liceu do Funchal e professor proprietário da cadeira de latim, por decreto de 10 de novembro de 1887. De Alfredo Bettencourt da Câmara sabe-se que nasceu no Funchal a 21 de abril de 1857 e que exerceu, por muitos anos, o magistério primário particular com assinalável notoriedade e dedicação, chegando a ser professor do Colégio Lisbonense. A partir da prática do exercício docente, do gosto e do entusiasmo pelo estudo produziu a Grammatica Portuguêsa, em Harmonia com a Reforma Ortografica Ultimamente Publicada (Funchal, 1912) e os Exercicios Sobre a Conjugação dos Verbos Regulares e Irregulares, em duas partes (Funchal, 1915). Não se conhecem muitas mais informações sobre a sua vida. Faleceu no Funchal a 26 de janeiro de 1921, com 63 anos. O seu irmão, José Bettencourt da Câmara, nasceu a 19 de abril de 1844 na Qt. do Descanso, propriedade do seu avô paterno, Tristão Joaquim Bettencourt da Câmara, na freguesia de Santa Luzia e faleceu na de Câmara de Lobos, a 19 de outubro de 1875, quando vinha de viagem do Estreito da Calheta para o Funchal, aos 31 anos de idade. É lembrado por ter sido o autor de valiosa colaboração em vários jornais, revelando notável aptidão para as letras. Dedicou-se em especial a estudos genealógicos e heráldicos, conhecendo largamente as linhagens das antigas famílias madeirenses. Pertencem-lhe algumas das notas das Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, que se ocupam de assuntos genealógicos. Sobre esta matéria preparava um trabalho valioso, que não chegou a concluir. É autor do artigo “A Philologia”, publicado n’O Recreio. Periódico Literário. Publicação Quinzenal dos Alunos do Liceu do Funchal (n.os 16, pp. 122-124; 20, pp. 155-156; 25, pp. 194-196), no qual está presente uma preocupação teórico-científica em torno das questões linguísticas, além das culturais e das literárias. Francisco José de Brito Figueiroa Júnior, autor dos Apontamentos de Grammatica e Conjugação de Verbos (Funchal, 1905), tal como consta do frontispício da obra, era professor primário oficial em São Vicente, tendo, talvez, preparado este manual para facilitar o ensino da língua aos alunos que frequentavam a 4.ª classe. Daniel Ferreira Pestana nasceu no Funchal a 13 de outubro de 1824 e morreu em Nova Goa no mês de novembro de 1906. Era filho de Manuel Ferreira Pestana e de D. Vicência Rosa de Jesus Guedes Pestana. Casou-se duas vezes, sendo que da segunda com a condessa de Torres Novas. Fez carreira militar na Índia, onde chegou, como ajudante de campo, na companhia de seu tio, o conselheiro José Ferreira Pestana. Aí gozou da maior consideração pela sua pessoa e foi muito estimado pelas várias e importantes comissões de serviço público. Em Portugal, chegou a ser ajudante de campo do marechal Saldanha. À data da sua morte, Daniel Pestana Ferreira era general. Colaborou com alguns jornais e publicou, na Índia, uma gramática de português, Principios de Grammatica Geral Applicada á Lingua Portguesa (1848), apontada no Diccionario Bibliographico Portuguez. Paulo Perestrelo da Câmara nasceu no Funchal em 1810 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro a 4 de fevereiro de 1854. Embora não se disponha de muitos dados biográficos, sabe-se que viveu em Lisboa e que em 1841 viajou para o Brasil. Regressou em 1853, mas permaneceu pouco tempo na Europa, regressando ao Rio de Janeiro, onde viria a falecer. Da sua obra literária, salientamos: Descripção Geral de Lisboa (Lisboa, 1839), Breve Notícia Sobre a Ilha da Madeira (Lisboa, 1841), Novo Tratado de Arithmética Comercial (Rio de Janeiro, 1846), Diccionário Geográphico, Histórico, Político (Rio de Janeiro, 1850, t. I e II) e Grammatica das Grammaticas da Língua Portuguêza (Rio de Janeiro, 1850). O capelão anglicano Alexander J. D. D’Orsey foi diretor de um colégio no Funchal. No âmbito do ensino, interessou-se pelas regras do português e do inglês e publicou Colloquial Portuguese, or the Words and Phrases of Every Day, com seis edições, a primeira de 1854 e a última de 1891. O seu segundo trabalho, com a colaboração de Marceliano Ribeiro de Mendonça, foi A Pratical Grammar of Portuguese and English, com três edições. Segundo informações do Elucidário Madeirense (1978, III, 371-372), Marceliano Ribeiro de Mendonça não possuía curso superior e também nunca viveu fora do arquipélago da Madeira, tendo sido brilhante, por ser intelectualmente dotado, e um assinalável e ilustre estudioso. Nascido no Funchal a 18 de abril de 1805, era filho de Jerónimo Ribeiro e de D. Julieta Rita de Mendonça. A finalização do seu curso secundário coincidiu com o tumultuoso período das guerras liberais entre os apoiantes de D. Miguel I e D. Pedro IV e com a subjugação da Madeira pelas forças do primeiro. Neste clima, Marceliano Ribeiro tornou-se um asilado na casa de um cidadão britânico durante seis anos, período em que se sentiu incentivado e motivado para o estudo das humanidades através do acesso a publicações pouco comuns no arquipélago, à época. Assim, dedicou-se ao estudo das línguas portuguesa e latina e da filosofia. O seu asilo findou em junho de 1834, com a implantação do governo constitucional. Distinguiu-se como professor, extravasando os limites ilhéus. Exerceu a docência nas aulas do antigo Pátio, até ser convidado e indicado, em 1836, para ser parte integrante do corpo docente do Liceu do Funchal, onde lecionou português, latim e filosofia. Foi nomeado reitor do Liceu e comissário dos Estudos do distrito do Funchal, função em que deu particular relevo à instrução primária, através dos novos métodos de ensino que introduziu, da criteriosa seleção de professores e da elaboração de relatórios, que foram depois publicados na revista científica O Instituto. Estes passos revelam a sua orientação para um ensino primário abrangente às populações, bem como o compromisso para com a figura do professor, através de constantes estímulos, cujo exemplo maior foi a criação da Associação de Conferências, onde se discutia e pensava os assuntos que interessavam à instrução popular. Como administrador público, Marceliano Mendonça exerceu os cargos de presidente da CMF, secretário-geral do Governo Civil e vogal do Conselho de Distrito. Faleceu a 5 de agosto de 1866, com 61 anos, na cidade do Funchal. Da sua obra, interessa-nos apontar a colaboração com periódicos madeirenses, a gramática Principios da Grammatica Geral Aplicados à Lingua Latina, a Philosophia, o Methodo Paralelo de Leitura e Escripta e o romance histórico Gaspar Borges. Francisco Manuel de Oliveira nasceu no Funchal no dia 1 de abril de 1741 e faleceu por volta de 1819. No seu tempo, foi um escritor e poeta relativamente afamado no Funchal, sendo considerado pelas traduções feitas de poemas orientais a partir do inglês. Teve à sua responsabilidade a aula pública de filosofia racional da cidade do Funchal, por carta régia de 5 de janeiro de 1774, tendo sido jubilado, em Lisboa, por portaria de 3 de abril de 1799. Proferiu o discurso de abertura das aulas no ano de 1786 no Seminário Diocesano do Funchal. No que respeita à relação das suas obras é dada notícia das seguintes: Escolha de Poesias Orientaes… Seguidas de Outras Varias Rimas (Lisboa, 1793), Collecção Poetica, t. II (Lisboa, 1794), Oração na Inauguração do Seminario do Funchal (Lisboa, 1787), Ensaio Poetico Sobre a Harmonia do Mundo (Lisboa, 1805), Principios Elementares da Lingua Inglesa (Lisboa, 1809) e a tradução de Avisos Interessantes á Humanidade (Lisboa, 1788) de Servington Savery. Pierre Hector Clairouin nasceu em França e veio para o Funchal em 1857, onde lecionou francês. Veio a falecer nesta cidade a 20 de novembro de 1882. Do seu legado, merece particular relevo o Methodo Michaelense para o Ensino da Lingua Francesa (Funchal, 1861), de que se regista uma segunda edição sob o título O Nec Plus Ultra das Grammaticas Methodicas para o Ensino da Lingua Franceza (Lisboa, 1874). António Gil Gomes nasceu na Madeira em 23 de junho de 1805. Em 1828, por ser afeto aos ideais liberais, emigrou para o Brasil, onde permaneceu seis anos, no Rio de Janeiro. Regressou, então, à Madeira, onde veio a falecer no dia 3 de julho de 1868. Durante a sua estadia no Brasil, foi professor e colaborador assíduo de vários jornais. É autor das Regras Elementares Sobre a Pontuação (Rio de Janeiro, 1831), da Refutação das Observações da Commissão Permanente da Pauta Geral das Alfandegas em Lisboa (Funchal, 1840) e da Compilação de Principios de Philosophia Racional (Funchal, 1843). Jordão Apolinário de Freitas nasceu a 23 de junho de 1866, no Funchal, e faleceu em Lisboa a 12 de junho de 1950. Foi médico, funcionário público e escritor. Dedicou-se às letras e à investigação histórica e foi considerado em Portugal e no estrangeiro um historiógrafo erudito. Em 1900, foi nomeado oficial da biblioteca da Sociedade de Geografia, onde permaneceu até ser nomeado oficial da Biblioteca da Ajuda, chegando ao cargo de diretor, em 1928. Colaborou em diversas revistas portuguesas. Mais filólogo do que gramático, do seu trabalho registamos a publicação de Subsidios para a Bibliographia Portugueza Relativa ao Estudo da Lingua Japoneza e para a Biographia de Fernão Mendes Pinto. Grammaticas. Vocabularios. Diccionários (1905). Ivo Xavier Fernandes nasceu no Funchal a 3 de dezembro de 1884 e faleceu em Lisboa a 27 de dezembro de 1966. Doutorou-se em filosofia e letras pela Univ. de Bruxelas e dedicou a sua atividade ao estudo de questões linguísticas, artísticas e históricas. Proferiu inúmeras conferências e manteve assídua e profícua colaboração em diversas revistas e jornais portugueses e brasileiros. Foi professor do ensino secundário e fez parte, em 1940, da comissão organizadora do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia de Ciências de Lisboa. Este filólogo, linguista e gramático madeirense do séc. XX publicou quatro trabalhos: Apontamentos de História da Arte Destinados aos Liceus e Escolas Técnicas (Porto, 1930), Estudos de Lingüística (Porto, 1939), Topónimos e Gentílicos (Porto, 1941 – vol. I e 1943 – vol. II), Questões de Língua Pátria (Lisboa, 1923 – vol. I e 1947 – vol. II). À relação dos gramáticos devemos acrescentar outras cinco personalidades relevantes do ponto de vista da dialetologia: Abel Marques Caldeira, Emanuel Ribeiro, Fernando Augusto da Silva, Maria de Lourdes de Oliveira Monteiro dos Santos Costa e Adão de Abreu Nunes. Abel Marques Caldeira nasceu no Funchal a 23 de maio de 1896 e faleceu a 3 de maio de 1964, na mesma cidade. Foi o primeiro jornalista madeirense a usufruir de carteira profissional e foi redator do Jornal da Madeira durante 30 anos. Entusiasta da aproximação entre os arquipélagos da Madeira e dos Açores, foi o mentor e executor de dois folhetos intitulado “Intercâmbio Insular” e “Notas de Viagem”, um conjunto de crónicas editadas em opúsculo pel’O Açoreano Oriental, denominado “Da Madeira ao Norte de Portugal”. Além de Falares da Ilha e de alguns contos e outras publicações em jornais e revistas, é o autor de O Funchal no 1.º Quartel do Século XX (1964), obra importante para a descrição da capital madeirense no período compreendido entre 1900 e 1925. Emanuel Ribeiro nasceu no Porto e residiu durante alguns anos na Madeira, onde exerceu o professorado na Escola Industrial. Da sua vida pouco mais se conhece. Do seu legado, em relação à Madeira, merece destaque o opúsculo “Terra! Terra!”, referente à descoberta do arquipélago, e dois trabalhos na área da linguística: “Palavras do Arquipélago da Madeira”, artigo publicado na Revista Lusitana em 1920, e Palavras do Arquipélago da Madeira (1929). De Fernando Augusto da Silva há a registar os três volumes do importantíssimo Elucidário Madeirense. Nasceu no Funchal a 29 de setembro de 1863, onde veio a falecer a 19 de outubro de 1949. Da sua vida destaca-se o facto de ter sido padre, além de um reconhecido investigador, professor e escritor. A sua obra mais emblemática no que se refere ao registo de dados da língua falada na Madeira terá sido o Vocabulário Madeirense, publicado em 1950 pela Junta do Distrito do Funchal. No cômputo geral, dos gramáticos abordados, o P.e Manuel Álvares é o marco mais relevante das personalidades da Madeira ligadas à área da linguística, por ter publicado uma gramática da língua latina adotada por muitas instituições em diversos países, desde o séc. XVI até princípios do séc. XIX. Quanto aos restantes autores, a produção de manuais de apoio, ou gramáticas, decorre das necessidades encontradas no exercício de funções letivas. Os autores que registaram expressões não dicionarizadas em uso no português falado no arquipélago da Madeira merecem referência por terem contribuído para o conhecimento do(s) dialeto(s) do arquipélago, assinalando especificidades desconhecidas do resto do país. Bibliog. impressa: ANDRADE, Adriano Guerra, Dicionário de Pseudónimos e Iniciais de Escritores Portugueses, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1999; ANDRADE, António Alberto Banha de, Dicionário da História da Igreja em Portugal, vol.1, Lisboa, Resistência, 1979; CALDEIRA, Abel Marques, Falares da Ilha: Dicionário da Linguagem Popular Madeirense, 2.ª ed., Funchal, Editorial Eco do Funchal, 1993; CÂMARA, José Bettencourt da, “A Philologia”, O Recreio, Periódico Literário, Publicação Quinzenal dos Alunos do Liceu do Funchal, Funchal, n.º 16 (26 nov. 1863, pp. 122-124), n.º 20 (28 jan. 1864, pp155-156), n.º 25 (13 jul. 1864, pp 194-196); CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses: Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; FERNANDES, Rogério, Educação e Ensino Popular na Madeira (Séc. 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Paulo Figueira (atualizado a 12.08.2016)
alcunhas
Existem diferentes formas de nomear uma pessoa, quer na referenciação direta quer na referenciação indireta, ou seja, na ausência do indivíduo referido. Além do nome formal ou oficial dado pelos pais, e excluindo os pseudónimos criados pelo próprio indivíduo, as alcunhas, nomes informais com função distintiva de identificação social, são outra forma de nomeação atribuída por outros, a que a pessoa pode estar sujeita ao longo da vida. Destes dois sistemas paralelos de denominação antroponímica, muitas vezes, na vida social quotidiana, os nomes de registo dos indivíduos não são conhecidos nem usados, sobretudo nas localidades rurais, porque as alcunhas têm mais vivacidade, expressando a realidade histórica, geográfica, socioeconómica e cultural. Daí a sua importância como meio de conhecer a sociedade tradicional ou popular: os seus valores, maneira de viver, ocupações, usos, crenças, costumes e tradições. A alcunha enquanto instrumento de referenciação tem um importante papel na interação comunitária, facilitando a comunicação. Como elemento qualificativo ou caracterizador surge a partir de uma característica que se destaca, permitindo distinguir uma pessoa (mas também, um animal, objeto ou lugar) de forma rápida, fácil e inequívoca, na comunidade. Trata-se de nomes próprios delexicais, ou seja, palavras do vocabulário comum utilizadas como nomes de pessoas, com uma função descritiva, que qualifica e identifica um indivíduo socialmente. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o nome alcunha provém do árabe al-kunya (‘sobrenome’ ou ‘cognome’), termo antigo que se acrescentava ao nome próprio, sendo uma denominação que se usa em substituição do nome próprio de alguém ou em acréscimo a este. Vasconcelos (1928 e 1931) mostra como as alcunhas são denominações muito antigas que tornavam os nomes oficiais mais precisos, sendo sinónimo de sobrenome ou cognome, ou um nome social com valor distintivo. Explica que se trata de uma tradição antiga dos cidadãos romanos, que costumavam juntar ao praenomen, nome próprio da pessoa, um nomen gentilicium, nome de família, e um cognomen, sobrenome individual, designação originariamente tirada de uma qualidade ou circunstância, por exemplo: Marcus Aurelius Caracalla (porque distribuiu pela plebe um grande número de caracallas, túnicas com mangas e capuchas). Acrescenta que também havia exemplos de sobrenomes procedentes do lugar de origem do indivíduo, como Junius Juvenalis Aquinate (de Aquino). Este costume passou às línguas românicas, aplicando-se também aos reis de Portugal, como apostos ou adjunções nominais, por exemplo: o Conquistador, o Povoador, o Lavrador, tendência que se perpetuou no tempo, chegando até à atualidade. Vasconcelos (1928) afirma que usamos o termo alcunha como apodo, “comparação ridícula”, distinguindo apodo de alcunha e esta de apelido: o apodo é transitório e, às vezes, um passo para a alcunha, enquanto esta exprime um caráter mais duradouro, podendo vir a ser apelido. A alcunha passa a apelido quando é usada como nome identificador de todos os elementos de uma família porque a comunidade conhece os indivíduos pelos seus atributos, desconhecendo os nomes oficiais. O autor refere que, na Beira e no Norte de Portugal, se confunde sobrenome com apelido (nome de família), o que também acontece no Brasil, onde apelido significa alcunha. Acrescenta que o termo apelido também é usado com o sentido de alcunha em S. Miguel (Açores), sublinhando que, em documentos antigos, nem sempre é fácil distinguir alcunha de apelido. Estes dois termos também se confundem na Madeira (cf. Vocabulário popular da Madeira), tal como nos Açores e no Algarve (BARCELOS, 2008). Esta confusão pode ser explicada pelo facto de a alcunha, muitas vezes, se tornar nome de família, pois, como já referido, muitos apelidos têm origem em alcunhas. Vasconcelos (1928) explica que, com o declínio dos patronímicos (nomes indicativos da filiação paterna, formados a partir do nome do pai), nos fins do séc. XV, começam a desenvolver-se outras possibilidades de individualização: os nomes geográficos, geralmente associados à nobreza, e as alcunhas, mais frequentes entre o povo. Tanto as alcunhas como os nomes geográficos tinham uma função social muito importante na identificação dos indivíduos, dado que os patronímicos eram muito reduzidos, originando muitos homónimos. Por isso, desde o tempo dos patronímicos existiam já muitos apelidos ou nomes hereditários provenientes de alcunhas, embora algumas nunca tenham passado da tradição oral. As alcunhas foram de tal modo importantes que, na documentação histórica, faz-se alusão a pessoas que tinham um nome e eram conhecidas por outro, elemento que, muitas vezes, passa a integrar o nome oficial dos indivíduos e seus descendentes, originando novos nomes de família. No caso dos primeiros capitães donatários da ilha da Madeira, Gaspar Frutuoso, em Saudades da Terra, sobre a descendência de João Gonçalves, por alcunha o Zargo, ou João Gonçalves Zargo, no capítulo intitulado “Da vida e feitos do segundo capitão do Funchal, João Gonçalves de Câmara, segundo do nome, chamado da Porrinha”, ou seja, João Gonçalves de Câmara, o Porrinha, escreve: “Chamavam-lhe comummente João Gonçalves da Porrinha, por razão de um pau que costumava trazer na mão em sinal de castigo contra os malfeitores, e, por esta insígnia, se disse o da Porrinha.” (Liv. II, cap. 30 e 31, 91-92). A alcunha é por natureza individual, mas, justamente porque serve para identificar o indivíduo através de algum atributo pessoal, é suscetível de ser extensível à família, identificando a mulher, os filhos, os netos e mesmo outros familiares, sublinhando a sua relação com o portador original e podendo tornar-se um apelido hereditário. Segundo Vasconcelos (1928), foi efetivamente o que se passou com a progressiva assimilação de alcunhas que passaram a nomes de família, originando a grande riqueza e diversidade de apelidos utilizados hoje pelos portugueses. Para que a alcunha ganhe sentido como distintivo familiar, tem de se distinguir no contexto da comunidade e ganhar de forma intensa e extensiva um significado de identificação familiar e de transmissão genealógica. A tendência geral na tradição portuguesa e mesmo europeia mostra que quando as alcunhas se tornam apelidos hereditários, isto é, são transformados em nomes de família com valor legal, perdem a sua significação referencial. Ou seja, as alcunhas, que inicialmente descrevem características físicas, morais e sociais dos indivíduos, perdem o seu valor descritivo individualizante quando se tornam nomes fixos e hereditários, passando a indicar apenas relação de pertença do indivíduo nomeado ao seu grupo familiar. A alcunha, como nome qualificativo psicossociocultural, baseado num traço significativo da pessoa, que permite distingui-la de forma única e exclusiva na comunidade, é muito frequente nas sociedades rurais, mais isoladas e conservadoras, onde há menor número de população e maior proximidade entre as pessoas. Aqui a rede social e a atribuição de alcunhas é mais densa, pois quanto mais próximas e densas são as relações sociais maior é a variedade de alcunhas utilizadas. Estas surgem da criatividade do povo, sobretudo por analogia e por motivos de expressividade, duas características da linguagem popular (BOLÉO, 1942 e VERDELHO, 1982). Dada a natureza oral e popular das alcunhas, algumas são corruptelas, deturpações fonéticas ou variantes populares de formas linguísticas que existem na língua padrão (por exemplo: Alamão, Cramujo, Vingala e Zipela), ou seja, formas transmitidas oralmente (que não se escrevem), características do falar do povo. Daí, muitas vezes, a graça, o humor e a ironia que acompanham um grande número de alcunhas, que têm origem oral e popular (PINA CABRAL, 1984). Por isso, a alcunha, nome-outro, segundo BRITO (1998), é o “batismo do povo” porque retrata fielmente a pessoa aos olhos do grupo, cumprindo de forma exemplar a sua função social. Trata-se de nomes dados aos indivíduos da comunidade (assim como aos seres vivos e às coisas do quotidiano), sendo sobretudo denominações usadas pelo povo (supostamente a camada iletrada ou menos escolarizada da população). A tradição oral das alcunhas mostra bem a sua origem popular e o seu pendor sociocultural. TEIXEIRA (2007) menciona que as alcunhas são usadas sobretudo nas pequenas localidades e que, muitas vezes, neste processo cognitivo de referenciação são usadas metáforas e metonímias, um mecanismo sociológico que surge tradicionalmente ligado à ruralidade e ao interconhecimento total na comunidade. As alcunhas podem ser grosseiras, cómicas, sérias ou descritivas. São principalmente nomes trocistas ou jocosos que descrevem de forma caricatural particularidades físicas e morais das pessoas ou mesmo aspetos relacionais, podendo ser nomes ocasionais usados apenas num determinado grupo ou contexto, ou nomes localizados, que se prendem a uma atividade ou a determinadas relações interpessoais, com implicações sociais de familiaridade, igualitarismo ou subalternidade. Deste modo, segundo TEIXEIRA (2007), a alcunha salienta o pormenor acidental marcante, pois as alcunhas são construídas, frequentemente, através da referência a pormenores físicos ou comportamentais de uma forma, por vezes, bastante cruel. Esta crueldade pode aparecer disfarçada, ou seja, ser irónica (o que nem sempre é menos cruel), por referencialidade oposta e ser humorística (por exemplo, o Pestanas porque não as tem e o Pestaninhas por as ter muito salientes). Assim, o que caracteriza a alcunha é o “princípio da caricatura”, que se define como resultante de um processo que consiste em salientar uma particularidade do indivíduo, mesmo que exagerada, para identificação rápida. Por isso, segundo ROWLAND (2008), a sociabilidade é fundamental na constituição de significado partilhado, pois não se pode “batizar” uma pessoa para a qual não haja clareza sobre a sua identidade social, devendo esta estar claramente distinguida na comunidade. Trata-se de um novo processo de reconhecimento da pessoa, através do papel de reminiscência e classificador, mas também evocador das alcunhas porque os nomes atribuídos citam e evocam a realidade ou situação que originou a sua atribuição, qualificando as pessoas como meio/forma de individuação. Logo, como qualificativo distintivo, a alcunha é um “signo linguístico motivado, identificador e evocador” (ARANDA, 2000). Segundo VASCONCELOS (1928), existem alcunhas com duas valorações distintas: uma boa e uma depreciativa, ou seja, as alcunhas podem ser positivas ou sérias, no sentido de serem reveladoras do reconhecimento de valores individuais, mas também, como anteriormente referido, negativas, jocosas ou insultuosas, traduzindo muitas vezes o humor da visão da própria sociedade. O autor explica que as alcunhas, embora sejam em grande parte de “feição zombeteira” e até, por vezes, ofensivas e ultrajantes, como Ratazana, também podem ser honrosas, como Leal e Penteado. Acrescenta que é sobretudo pela primeira feição que elas têm importância como definidoras do nosso génio nacional, esclarecendo que o gosto pelas alcunhas é tal que, além de se darem/atribuírem a pessoas, a povos e a localidades, dão-se também a coisas e a animais, por exemplo o Pimpão, alcunha de um vaso, por ser o mais vistoso de todos, e Pio nono, alcunha de um porco. A alcunha pode funcionar como sinal de acolhimento e/ou de integração no grupo. Pois, nas famílias e grupos em geral, atribuir uma alcunha a um dos seus membros propicia maior integração e aproximação. Porém, mesmo no meio familiar, pode acontecer a alcunha surgir com o propósito depreciativo de humilhar alguém, pois também aqui ocorrem disputas e conflitos de poder. A expansão da alcunha pode estar relacionada com a importância social do indivíduo, pois não são os pais que distribuem os epítetos de família pelos filhos, mas os vizinhos (POLANAH, 1986). Uma pessoa pode acumular uma nova alcunha individual ou pessoal a uma alcunha familiar ou hereditária, devido a particularidades físicas ou de comportamento moral e/ou social, por exemplo: um indivíduo com o nome oficial José Alves Grilo (alcunha hereditária) conhecido pelo “apelido” de o Rei (por ser um homem alto, grande e cheio de força). Pode também adquirir ou acumular diferentes nomes caracterizadores ao longo da vida e em diferentes grupos como sinal de pertença e integração no grupo familiar, no grupo desportivo e no grupo de trabalho. Deste modo, as funções sociais da alcunha são/ traduzem-se por uma perfeita identificação do indivíduo alcunhado e uma correta tipificação dentro do grupo. O cariz social da alcunha faz com que possa ser alargada à sociedade local, regional e/ou nacional. As alcunhas são, sobretudo, locais: cada casa, cada família, cada sítio, cada freguesia, concelho e região tem as suas alcunhas e histórias. Porém, as alcunhas também podem ser regionais, por exemplo, na ilha da Madeira: Manuel Gonçalves, o Feiticeiro do Norte (poeta popular madeirense, natural do Arco de S. Jorge, que terá conservado a alcunha dos seus antepassados e terá se tornado conhecido a nível regional devido à difusão da sua literatura popular vendida nas festas e arraiais madeirenses) e o João das Festas (nome atribuído ao popular ex-presidente do governo regional do Arquipélago da Madeira, Alberto João Jardim). As alcunhas existem porque ficam marcadas na vida e na memória das populações como referência social. Nas localidades rurais madeirenses, as pessoas são conhecidas por alcunhas que, muitas vezes, se repetem em várias freguesias, mas que, por serem locais, não se confundem, tendo um valor individualizante dentro de cada comunidade. Além disso, as alcunhas podem ser as mesmas em várias localidades, porque um mesmo nome pode ter referencialidades e motivações distintas, por exemplo a atribuição do nome Galo a um homem pode ser motivada pelo facto de ter muitas mulheres (e/ou filhos de várias mulheres) ou Galinho, quando é baixo e vermelho. Porém, muitas são as alcunhas cuja referencialidade é a mesma, sendo rara a freguesia que não tenha, por exemplo, uma família de alcunha Bacalhau ou Bacalhaus (indivíduos muito magros e secos ou queimados pelo sol), ou ainda as alcunhas atribuídas a mulheres, na sociedade rural, como por exemplo: a Rancheira (porque tinha muitos filhos) e a Peca (porque não tinha peito). Se consultarmos estudos de outras regiões de Portugal, onde podemos encontrar levantamentos de alcunhas, em localidades do Minho e dos Açores, por exemplo, encontramos muitos nomes semelhantes com a mesma função de identificação social porque se trata da mesma realidade humana, apenas diferindo na condição geográfica e etnográfica ou sociocultural, sobretudo serrana ou marítima, interior ou litoral. Estas semelhanças não invalidam que as alcunhas tenham um importante valor distintivo na comunidade local ou regional, dada a pobreza onomástica dos apelidos oficiais. Neste sentido, as alcunhas são os antropónimos que melhor expressam ou traduzem a relação entre a língua e a sociedade. Marrão (indivíduo que trabalhava com um marrão, instrumento pesado de ferro de partir pedra grossa numa pedreira), por exemplo, é uma alcunha associada a uma determinada realidade geográfica e socioeconómica local e/ou regional. Assim, as alcunhas dão-nos informações preciosas sobre a evolução da sociedade, nomeadamente profissões que já foram importantes e desapareceram e outras que continuam (TEIXEIRA, 2007). Tal como Vasconcelos (1928), Cortesão (1912) mostra como as alcunhas medievais - tais como, Baralha (século XV), Barata (1258), Barbas (séc. XV), Barreta (1220), Barreteiro (séc. XV), Barreto (1258), Bota (1220), Brava (séc. XV), Bucho (1258), Cabeça (1258), Calvo (1258), Cao (séc. XIII), Çapata (séc. XV), Capelo (1258), Carne Azeda (1258), Carnes (século XV), Carneira (1258), Carneiro (séc. XV), Carpenteiro e Carpinteiro (séc. XV), Malho (séc. XV), Manco (1050), Peido e Pardo (1220), Solteiro (séc. XV) e Somizo (1258) - são as mesmas ou semelhantes às que ocorrem ao longo dos tempos, incluindo na atualidade. Estes exemplos revelam outra característica social das alcunhas: o facto de, desde a Idade Média, os homens receberem muito mais alcunhas do que as mulheres. Tal deve-se, provavelmente, ao facto da condição da mulher, ao contrário dos homens, não lhe permitia ter profissão, o que não lhes dava visibilidade social, e daí não terem necessidade de identificação social. Teixeira (2007), ao se questionar sobre as razões desta desigualdade, põe ainda a hipóteses das mulheres comandarem o processo da atribuição de alcunhas, batizando mais os homens do que elas mesmas. Segundo Ramos (1990), as alcunhas são maioritariamente atribuídas aos indivíduos do sexo masculino, a sua maior difusão está relacionada com o estatuto social e a importância ou projeção do seu possuidor na sociedade. Refere que há indivíduos que nunca herdam ou adquirem uma alcunha. A sua justificação poderá residir no facto de possuírem nomes ou apelidos pouco usuais; outra razão poderá estar relacionada com a sua postura discreta na vida social. As alcunhas são tão naturais nas sociedades rurais madeirenses, que, muitas vezes, em vez de serem ofensivas podem ser motivo de graça social e de proximidade humana. A literatura de cariz regional madeirense é muito rica em alcunhas que seriam frequentes na linguagem popular das diferentes localidades da Madeira. Ao fazerem o retrato da realidade de uma localidade ou da região, inclusive da emigração, vários escritores registam a naturalidade e a expressividade das alcunhas populares madeirenses. Santos (2008) chama a atenção para esta tendência popular representada na literatura madeirense, nomeadamente através do registo de alcunhas que desempenham um papel relevante como reflexo do contexto histórico e sociocultural. A propósito do romance social Ilhéus/Canga de Horácio Bento de Gouveia, Santos (2011) escreve que, na freguesia de Ponta Delgada, todas as famílias camponesas e pesqueiras têm o seu “sobrenome” que substitui o apelido. É o caso do colono João Miséria, nome que retratada a Madeira pobre e rural da época. Este autor refere ainda o Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal (1853-1854) de Isabella de França, como um texto possuidor de anotações muito perspicazes da diversidade de alcunhas existentes na sociedade madeirense. Não só distingue as alcunhas pessoais das hereditárias, mas também menciona que estas designações são tão comuns entre a classe média como entre o povo, chamando a atenção para as alcunhas atribuídas a mulheres, representando claramente o ambiente sociocultural funchalense, nomeadamente das famílias inglesas residentes na cidade, como a Galinha Cozida (por causa da brancura da pele), a Grã-Bretanha (inglesa grande e avantajada) e a Rainha de Demerara (inglesa de tez escura). (Autor? 1970, 93-95). Não foi ainda realizado até ao momento nenhum trabalho de levantamento e estudo ou tratamento sistemático das alcunhas regionais. Temos conhecimento apenas da existência de alguns pequenos levantamentos ou listagens de alcunhas em antigas monografias de licenciatura e publicados em jornais e/ou revistas de âmbito regional e livros de temática cultural. Nascimento (1937, 151-152) tem o mérito de ter sido um dos primeiros estudiosos a escrever sobre a questão das alcunhas na Madeira, indicando que estas geraram novos nomes de família, enriquecendo o léxico e favorecendo a variedade onomástica. Gomes (1949) também se interessou pelo tema das alcunhas na Madeira, propondo a sua classificação em função dos termos depreciativos atribuídos as pessoas pelo seu aspeto físico e moral. Em 1956, Vieira Santos regista alguns exemplos de alcunhas existentes na Lombada de Santa Cruz, referindo que todos os indivíduos têm a sua alcunha ou pelo menos todas as famílias. Nas monografias dialectais, o tema das alcunhas na Madeira foi tratado de forma esporádica. Assim, em 1945, na sua monografia sobre o Porto Santo, Monteiro apresenta nomes e alcunhas da população local, afirmando que não há um único casal no Porto Santo que não tenha o seu apelido e que as mulheres, na sua maioria, escaparam a este segundo batismo, e só uma ou outra tem/é possuidora de alcunha. Em Subsídios para o estudo da linguagem dos bamboteiros, Pestana (1954) estuda as alcunhas desta camada social popular residente no calhau de Santa Maria, na cidade do Funchal, mencionando que todos os bamboteiros são conhecidos e tratados por alcunhas, reconhecidas por todos. Em relação às mulheres, acrescenta que só quando se tornam muito populares é que recebem alcunhas. Muitas destas alcunhas são nomes de peixes e de aves marinhas - Abrótea, Arenque, Bodião, Boga, Besugo, Cagarra, Cavala, Foca, Pota, Sardinha, entre outros -, tal como acontece nas comunidades de pescadores. Em 1996, Santos publica, em Crónicas de outros tempos, relatos da vida da cidade do Funchal nos primeiros quartéis do séc. XX, referindo figuras conhecidas por alcunhas. Regista também algumas alcunhas existentes no Porto Santo, que considera revelarem o caráter do porto-santense. Sobre esta ilha, os alunos do 11.ºano da Escola local, no ano letivo 2002-2003, recolheram algumas alcunhas do Porto Santo e o seu significado (cf. Xarabanda, nº14, 2003). Em O Humor no folclore madeirense, que regista versos regionais de várias localidades da ilha da Madeira, o autor aponta algumas alcunhas, tais como, por exemplo: o Borrachão (“Por ser amigo do vinho, chamaram-lhe o Borrachão”, cf. FREITAS, 1988, 21-23). Clemente Tavares (1999), ao narrar histórias de Gaula, averba também várias alcunhas desta freguesia do concelho de Santa Cruz (o Jaqué, de vinho jaqué), incluindo alcunhas resultantes de empréstimos do inglês (nomeadamente o Bossa e o Mane(i)ja, respetivamente de Boss e Manager, assim como o Hintes, provavelmente porque trabalhava ou enviava cana-de-açúcar para o engenho Hinton). Também Freitas (2000, 85), ao abordar as “tradições, lendas, usos e costumes” da freguesia de Gaula, explica que os vizinhos preferem tratar-se por alcunhas (“apelidos”), por haver muitos nomes iguais. Ribeiro (2001) regista alcunhas presentes na documentação histórica de Machico do séc. XVIII, que diz serem indispensáveis para a referenciação dos indivíduos, dada a homonímia de nomes próprios e de nomes de família. Em 2002, o mesmo autor reúne alcunhas da freguesia de Santana, de fins do séc. XVI até ao final do XVIII das quais apenas sete são de mulheres. Tal como já observado, este autor considera que as alcunhas eram vulgares nos homens e raras nas mulheres. Conclui que, no Arquipélago da Madeira, são muito variadas, distinguindo-se sobretudo entre a população costeira e a de altitude. Segundo Kremer (1992, 470-471), as alcunhas constituem uma individualização social suplementar e necessária, tendo como categorias lexicais mais importantes os adjetivos (Curto, Pardo), que assinalam uma característica física ou moral e os nomes, que muitas vezes caracterizam determinados aspetos de uma pessoa como pars-pro-toto, sendo utilizados em áreas semânticas como a descrição de partes do corpo (Barriga, Dente), roupas, objetos que servem de confronto ou que, por exemplo, evocam determinadas funções (Botija, Espada), nomes de animais (Abelha, Porco), classificações de plantas (Cabaça, Alho), víveres (Manteiga, Pimenta), nomes abstratos (Amor, Beleza e outros)”. No entanto, também encontramos alcunhas formadas a partir de verbos nominalizados, antecedidos por um artigo definido, como, por exemplo, “o Falarás” e “Manuel Falarás” (SILVA, 1989, 89-90), assim como o Marra (alcunha com origem no verbo marrar), a par de o Marrão (nome do pesado instrumento de trabalho da pessoa que marra para extrair pedra de uma pedreira ou rocha), o Agacha, o Espera e o Foge. Quando o individuo é identificado apenas pela alcunha, esta é antecedida por um artigo definido, que indica o género e o número (a Canhota, o Malhado, o Inchado, o Furado, o Cinquenta), substituindo completamente o nome do indivíduo. Trata-se de formas usadas, geralmente, na referenciação indireta, ou seja, quando a pessoa alcunhada não está presente. Se as alcunhas visam ofender, são usadas no tratamento direto, o que também acontece quando os indivíduos aceitam o seu nome comunitário, sendo este usado em tom sério ou de brincadeira. A alcunha confunde-se com o apelido quando segue o nome próprio sem artigo, como em Pero Velho. Embora as alcunhas hereditárias sejam sobretudo formas masculinas, porque são transmitidas por linha paterna, existem algumas que são formas femininas, como podemos ver em apelidos atuais: João Serena, Luís Loura, Paulo Alva e Jorge Moura. Estas podem ser nomes que sofreram feminizações, ou seja, adaptação ao género feminino, ao passarem do homem para a mulher, uso tradicional entre o povo (por exemplo, o Chaveco e a Chaveca). Assim, as alcunhas são usadas para indicação marital, da filiação em particular e descendência em geral, através da contração da preposição de com o artigo que antecede a alcunha, como complemento determinativo do nome e indicativo de pertença: a mulher do Cachorro, o João da Viúva, o filho do Furna (vivia numa furna). A preposição de, além de expressar relação de parentesco, também traduz relação entre a pessoa e as coisas ou objetos, ou seja, algo cuja posse ajuda a identificação do indivíduo, por exemplo: Agostinho da Semilha, João das Vacas, João da Bezerra, Zé dos Bailinhos, Branco dos Doces (indivíduo albino que faz e/ou vende doces), neste último uso temos a combinação de duas alcunhas associadas através da preposição de. As alcunhas podem também ser constituídas por nomes no plural, por exemplo, Testas e Cabeças, por terem testa e cabeça tão grandes que é como se tivessem duas, daí a pluralidade com sentido cómico destas alcunhas. As formas plurais também indicam que a alcunha se aplica aos vários elementos da família, por exemplo: Rato e Ratos (por serem muito pequenos e espertos), Coelho e Coelhos, Furão e Furões (bisbilhoteiros, pessoas que comem pouco ou que vivem num buraco como os animais), a Tampa, os Tampas (filhos) e o Tampinha (neto). Atualmente, como nomes hereditários ou nomes de família, ocorrem muitas formas no plural, provenientes de alcunhas (Adegas, Alturas, Brigas, Chagas, Peças). Algumas alcunhas podem ocorrer na forma diminutiva, característica de origem popular e rural, indicando pequenez, com valor depreciativo ou afetivo, ou ainda por ironia do grande como pequeno - por exemplo, Batata e Batatinha, Biscoito e Biscoitinho, Cagado e Cagadinho, Cambado e Cambadinho, Casca e Casquinha, Graxinha, Palheiro e Palheirinho (indivíduo pequeno e atrevido, sendo estas duas das características do galináceo de raça pequena, assim denominado na Madeira), Seco e Sequinho - a par de formas normais e aumentativas do mesmo nome, para identificar indivíduos diferentes, muitas vezes da mesma família, como em Mija, Mijadinho e Mijão (que mija muitas vezes, mas também “medroso” (SILVA, 1950), Estas formas diminutivas não devem ser confundidas com os hipocorísticos, diminutivos afetivos ou repetição de sílabas (geralmente formas reduzidas do nome próprio do indivíduo) que se distinguem das alcunhas pelo seu uso ser familiar e não de cariz social. No entanto, as formas hipocorísticas, como Zeca, Zé, Zezinho e Zezinha, embora sejam nomes familiares, podem ser usadas como alcunhas, se tiverem função social distintiva entre indivíduos com os mesmos nomes e residentes na mesma localidade. A par das alcunhas simples, ocorrem algumas alcunhas compostas que, de acordo com a sua estrutura interna, podem ser constituídas por: (a) Nome + Adjetivo, tal como Boca-Negra (nome de um peixe), Calça Larga, Cabeça Torta, Cu Grande, Pé Leve, Pé-Curto, Pão Seco, Rei Pobre, Cara Velha, Pata Laja, Pescoço Rente; (b) Adjetivo + Nome, de que é exemplo Má-Carne (qualidade física e/ou moral, pessoa ruim); (c) Nome + Preposição + Nome, como, por exemplo, Milho com Couves (porque gostava muito de milho com couves quando era pequeno, (MATA, 2002), Milhinhe com Açúcar (estas duas alcunhas revelam a importância do milho na alimentação da população madeirense, cujo conduto muitas vezes era o açúcar e não peixe ou carne), Pau da Poncha e Língua de Cabra (porque falava muito alto). Algumas alcunhas são expressas por sintagmas, as chamadas alcunhas sintagmáticas ou alcunhas frásicas, que apresentam os seguintes tipos de estrutura interna: (a) Verbo + Artigo + Nome, por exemplo, Baixa a bola (indivíduo que era muito convencido ou que usava muito esta expressão) e Larga-o-capote Vá com Deus; (b) Verbo + Nome, como em Caga Sal, Camba Burros, Capa Porcos, Pica Semilhas, Rouba Azeite, Caça Ratos, Bate-Folha, Cheira-Anona, Cheira-Merda, Fura-Bardos, Ganha-Pão, Mata-Mouros, Fura-Bolos, Papa-Arroz, Calca-Ruas, Papa-Unhas, Mata-Gatos, Defeca-Sangue, Espalha-Merda (indivíduo que criava gado e estava sempre a espalhar o estrume dos animais na terra), Papa-Açorda (imagem usada para nomear um malandro) e Papa-Novenas (pessoa que fala muito e é falsa), e que constituem o tipo mais frequente. No caso de Água-Vai, temos primeiro o nome e depois o verbo, provavelmente por ser uma expressão dita ao atirar água para a rua; (c) Verbo + Advérbio de quantidade, exemplificadas pot Faz-Tudo, Pode Pouco, Merca Tudo, Paga Tudo. Como podemos ver, as alcunhas são formas linguísticas diversas, provenientes da expressividade popular, em que um vocábulo simples ou composto pode traduzir vários valores semânticos. Nesse sentido, além da classificação gramatical ou formal, é importante conhecermos os diferentes tipos de alcunhas, segundo a sua origem ou significado. VASCONCELOS (1928, 176) considera que as alcunhas são de três espécies principais: geográficas, étnicas e pessoais, sendo que as duas primeiras podem ser agrupadas em geográfico-étnicas ou étnico-geográficas. Trata especialmente das alcunhas pessoais, nomes designativos de características físicas e morais, nomes resultantes de algum episódio da vida do indivíduo, relações de parentesco, de nascimento, idade, fases de vida e estado, bem como nomes de profissões ou cargos. Porém, incluímos neste grupo também os nomes étnico-geográficos (derivados do nome da região de origem ou residência dos indivíduos na ilha e do país de emigração) e acrescentámos ainda os nomes fonéticos, dado que estes também funcionam como nomes individualizantes, qualificativos ou caracterizadores na identificação social dos indivíduos. Partimos, assim, da classificação semântica de Vasconcelos (1928), fazendo algumas adaptações à tipificação proposta, para melhor sistematizar e ao mesmo tempo simplificar e distinguir de forma clara as alcunhas, de acordo com a sua motivação. Deste modo, tendo em conta o significado, as alcunhas podem ser classificadas do seguinte modo: (a) alusivas ao estado ou posição social, cargos, nomes de profissão e navegação ou ofícios e instrumentos relacionados, também por metonímia com utensílios de trabalho e matérias-primas, incluindo comidas e bebidas: Cavaleiro, Conde, Fidalgo e Nobre (apelidos de origem aristocrática); Bispo, Prior, Abade, Vigário, Frade (relacionados com a igreja); Moedeiro, Carpinteiro, Capador, Ferreiro, Levadeiro, Moleiro e Moleira, Malheiro (de malho), Milheiro e Milho (cultivava e/ou vendia milho), Mestre (artífice), Serralheiro, Serrão (serrador), Tanoeiro, Cesteiro, Parteira, Alambiqueiro (alcunhas provenientes de nomes de profissão ou ofícios mecânicos); Maioral, Sargento e Soldado (militares); outras profissões – Guarda (era guarda-florestal), Eletricista (era eletricista), Paneleiro e Pastor. Por metonímia com instrumentos de trabalho, utensílios e matérias-primas: Malho, Marrão, Bigorna, Machado (seria o que fabricava ou vendia machados), Sovela (sapateiro), Verga, Panelas, Ferro (era ferreiro ou trabalhava com ferro), Trolha (indivíduo mal ajeitado, que trabalha na construção civil, o servente do mestre, por contiguidade com o nome de instrumento utilizado, mas também no sentido moral, pessoa que não sabe fazer nada, mentiroso); Moedas, Pataca, Tostão, Vintém (dinheiro e medidas); Farelo, Marmelada, Farinha, Pão, Trigo (alimentação); Aguardente, Meio Grogue e Poncha (bebidas); (b) alusivas a qualidades físicas e hábitos dos indivíduos, incluindo metonímias com partes do corpo, vestuário e episódios ou circunstâncias de vida, muito frequentes, dado que as qualidades físicas são as mais apelativas: Alto, Barbaças (com grandes barbas), Beiçudo, Bigodes, Calvo, Casacão, Catarro, Cebola e Cebolinho (cultiva e vende cebolas), Cego, Churrica ou Chorrica (alteração fonética de forrica, alguém que se “chorricou”, que teve um episódio de diarreia em público), Claro, Comprido, Corado, Coto (maneta), Descalço, Gordo, Engraçada, Enjeitado, Fanha (defeituoso da fala), Farto, Feio, Gago, Guedelha (cabelo grande e esfrangalhado), Manco, Maneta, Marmita (por estar sempre esfomeado e comer o que sobejava dos outros ou porque usava uma marmita), Marreco, Mouco, Mudo, Patudo (de pés grandes), Pencudo (por ter nariz comprido), Penteado, Pequeno, Perna e Perneta (cambado), Pisco (porque pisca muito os olhos), Pobre, Queimado, Redondo, Roído (por fazer barulho ou, no sentido moral, “roído de inveja”), Rosado, Rouco, Ruço, Ruivo, Sovento (de sebento, imundo, sujo) ou Nojento (sujo, mas também pode ocorrer no sentido moral, como manhoso, invejoso), Torto (por ser corcovado), Vermelho, Vesgo (por ter deficiência ou desvio num olho), Zarolho (o mesmo que vesgo), Zaralha (mal vestida ou mal arranjada, desleixada); (c) alusivas a qualidades morais, também por metáfora ou metonímia: Alegria, Alegre, Arriscado, Bizarro, Bom, Bravo, Briguento, Calado, Calisto (“causador de má sorte”, (VASCONCELOS, 1928, 198-203), Chorão, Diabo (mulher muito má), Franco, Leal, Maduro, Manso, Mao, Mimoso, Modesto, Felizardo, Firme e Firmeza, Galante, Garganta e Guelra (por falar muito e só ter garganta), Língua (talvez também por falar muito), Prudente, Ronha (manhoso), Subtil, Temido, Valente; (d) alusivas a características físicas e psicológicas expressas indiretamente, através de metonímias (por contiguidade) e de metáforas (por similaridade), analogias por comparação com objetos, animais e vegetais, mas também com fenómenos atmosféricos, astros e estações do ano, muito frequentes na linguagem popular e quotidiana: Abelha, Aço, Alho, Cenoura (por ter cabelo desta tonalidade), Aranha, Balaia (de balaio, cesto redondo e largo), Barrica e Barril (por ser gordo), Batoneira (indivíduo gordo e que fala muito), Bezerra, Bichana, Bicudo (com nariz grande), Bisalho (por ser pequeno, triste e desgraçado) e Bisalha (por ter muitos filhos, como galinha com bisalhos), Bogas (porque andava sempre com “bogas” no nariz, talvez por metáfora com o peixe boga, muito comum no mar da Madeira), Bolota, Bombo, Bucho, Burreca e Burreco (de “burro fraco, ordinário”), Cabelo (denominação metafórica com o sentido de delgado ou magro), Cabrito e Cabrita, Cachorro (por cão, como no Brasil é um insulto, “pessoa má, que não presta”), Cagarra, Canário, Canzana (“homem alto e mal ajeitado”, SILVA, 1950), Cão (“magro como um cão”), Capão (galo grande), Cobra (por ser pessoa venenosa ou má), Cordeiro (manso), Corisco (por ser como um corisco), Craca (“conversador incómodo”, (SILVA, 1950, 36) nome de crustáceo que se agarra a rochas e ao costado de navios, (NUNES, 1994), Eiró (iró ou enguia), Espeto (talvez por ser muito magro), Fava, Feijão-Rasteiro (por ser uma pessoa baixa), Francelho (ave de rapina que nidifica na Madeira),Gafanhoto, Inverno, Jarra, Lago, Laranja (por ser avermelhado), Leitão, Leite (com aceção metafórica de ‘brancura’ da pele ou ‘suavidade’ do caráter), Melro (Preto), Morganho ou Murganho (rato pequeno), Nabo (por ser calvo ou não ter nada na cabeça), Noite, Palhaça (de “casa palhaça”, de palha), Pardal, Pavão (vaidoso), Pedra, Peixe, Pempinela, Peru (vaidoso e por ser grande e forte), Pião (por ser baixinho), Pinheiro (alto como um pinheiro), Pote (por ter a aparência deste objeto), Tabaibo, Terra, Toco, Tramoço, Trovão, Vinagre; (e) nomes fonéticos, construídos a partir de sílabas que se repetem ou conjugam na produção de sentido fonético. Constroem-se a partir de uma lógica estritamente fonética, criando combinações originais ou nomes singulares a partir de sílabas curtas: o Ai Ai, o Aió ou Aiú, o Bibi, o Cacá, o Cháchá, o Cró, o Ei-Ei, a Fi-Fi, o Fu-Fu, o Fum-Fum, o Gum-Gum (de gungunar, resmungar, falar para dentro), o Lé-Lé, o Lulu, o Pá-pi-pó, o Quiqui, o Si-ó-Có, o Tim-Bim, o Xé-Xé, o Zaizai ou Fai-Fai. Geralmente, trata-se de alcunhas expressivas pela sua própria configuração fónica (VERDELHO, 1982, 184). A criatividade na sua formação e a sua vitalidade devem-se ao facto de terem origem popular; (f) cognomes ou epítetos com valor distintivo, distinguindo dois membros de uma família com o mesmo nome e incluindo nomes designativos de relações de parentesco: Pai, Filho, Sobrinho e Neto também se tornaram apelidos ou nomes de família, perdendo o seu valor semântico primitivo. A estes podem juntar-se nomes como Morgado, Colaço e Parente, tal como Velho, por oposição a Moço e Novo. De alcunhas relativas ao estado civil, temos hoje os apelidos Noivo, Solteiro e Casado; (g) nomes étnico-geográficos relativos à proveniência do indivíduo ou de algum antepassado de fora da ilha, à localidade de origem na ilha e à indicação de residência (através da referenciação de pequenos lugares ou microtoponímia), mas também à terra de emigração: Alentejano, Americano ou Amaricano (homem emigrado para a América do Norte), Brasileiro e Brasileira, Caniceiro e Caniceira (do Caniço), Canheiro (dos Canhas), o Francês e a Francesa (por estarem ou terem estado emigrados em França), da Fonte, do Janeiro (com preposição de + o nome da localidade onde vive), da Ladeira, da Ribeira ou o Ribeira (do indicativo de residência pode formar-se o designativo), Leste, Serrano (da serra), Venezuelano e Venezuelana (emigrados de torna-viagem da Venezuela e os seus filhos), Inglês (por estarem emigrados em Inglaterra ou trabalharem para um residente inglês na Madeira) (BAZENGA, RIBEIRO E SEQUEIRA, 2012); (h) várias e/ou de significado obscuro, por exemplo: o Tracis, o Bajeca (cf. SANTOS, 2011, que remete para Artur Bívar: “indivíduo falador e linguareiro, incapaz de guardar segredo”), o Parruca, o Bichanga, o Garipo, o Maranhoto, o Nuja, o Parão, o Perolho, o Cacuja, o Cassaca, o Cambrolo, o Frisa, o Talassa, o Galdino, o Galério, o Gorjão, o Tota, o Lela, o Farruco. Neste último tipo, incluímos as alcunhas de difícil classificação, por serem termos obscuros e/ou por serem já remotas e desconhecidas as suas motivações, factos ou circunstâncias que as ocasionaram, enquanto em relação a outras ainda se conhecem os motivos que lhes deram origem. Pedro Cunha Serra (1965) menciona que é difícil estabelecer uma relação entre o nome comum e a alcunha, pois se nalguns casos tal relação é transparente, noutros a relação pode ser nula. A este propósito, Kremer (1997) escreve que é impossível definir o sentido concreto de uma alcunha e que apenas em casos muito raros sabemos a sua motivação real, pois são várias as significações possíveis. Deste modo, a classificação das alcunhas pode ser enganadora porque podemos ser levados a uma interpretação errada da sua motivação semântica, dado que podem pertencer a mais do que um tipo. Foram muitos os autores que propuseram classificações ou tipologias de alcunhas, alguns portugueses e outros estrangeiros, dos quais merecem destaque os seguintes: Gonçalves (1988 [1971]) que segue, no geral, a classificação de Vasconcelos (1928), mostrando a variedade da antroponímia alentejana do séc. XV; Brito (1998), que também classifica as alcunhas com base na sua origem ou motivação semântica; Santos (2011), que, além dos tipos tradicionais de alcunhas, refere as alcunhas emprestadas da terminologia local que ilustram a vida e o ambiente rural, acrescentando que algumas alcunhas pela sua própria natureza rural serão comuns a várias regiões do país; e Rebollo Torío (s.d.), que reagrupa as alcunhas em “intrínsecas” (qualidades físicas e psíquicas), “extrínsecas” (ofícios, vestimenta e origem), “herdadas” (de antepassados e por alteração fonética do nome ou apelido) e “indefinidas”. As alcunhas pessoais podem originar alcunhas coletivas ou gentílicos, de que são exemplo Borquilha ou Bruquilha (pessoa rude) como designativo dos habitantes do Porto da Cruz e os Lanchas (de lancha, por metonímia, alcunha dada pelas pessoas da Ribeira Brava aos funchalenses, provavelmente por se deslocarem de lancha). Os gentílicos podem igualmente funcionar como alcunhas. Tal acontece quando, numa localidade, um indivíduo (e, consequentemente, também a sua descendência) passa a ser identificado e conhecido na comunidade por esse nome, por exemplo: a Camacheira, a par de a Camacha (mulher da Camacha que reside noutra localidade ou concelho); a/o Profeta (indivíduo do Porto Santo que reside na ilha da Madeira), a Quinteira (mulher natural da Quinta Grande que vive noutra localidade). Trata-se de indivíduos deslocados da sua localidade e identificados socialmente na comunidade de acolhimento com o nome gentílico ou alcunha coletiva de origem, passando esta a ser usada como alcunha pessoal porque é atribuída a um indivíduo, sendo usada no singular. No que se refere à toponímia, muitas vezes, a microtoponímia é formada por nomes de pessoas provenientes de alcunhas, como Terra do Madruga, Pomar do Gato e Porta do Canário, correspondendo hoje a topónimos, ou nomes que referem sítios dentro das localidades. Para o seu conhecimento, é preciso recorrer à memória popular e ao estudo da história local. Em Ponta Delgada, por exemplo, alguns topónimos são constituídos por nomes provenientes de alcunhas de residentes e/ou proprietários locais: Poio do Balanco (“A origem da designação deve-se ao facto de por ali ter sido proprietário um homem conhecido pela alcunha de Balanco”, MENDES, 2008, 179), tal como na Fajã da Ovelha, Cerrado dos Bizarros (“assim designado por ter pertencido a uma família de apelido Bizarro”, (MENDES, 2010, 181-183). Os populares também podem atribuir alcunhas aos lugares, que, como as pessoas, em vez de serem designados pelo seu nome oficial, passam a ser denominados por alcunhas, por exemplo o sítio da Serra de Água, na Ribeira Brava, é conhecido pelos locais como o Iraque, por ultimamente ali terem acontecido vários episódios de violência e mortos. O caráter rural e popular das alcunhas faz com que sejam palavras da linguagem tradicional da região, podendo algumas ser regionalismos madeirenses, como por exemplo: Conca (“Artífice ou operário pouco perito, desleixado”, SILVA, 1950), Jaca (espécie de caranguejo de cor escura, muito miúdo, NUNES, 1994, 265; mas também “Pessoa muito nutrida”, CALDEIRA, 1993, 79), Pelhancas (“homem ou animal muito magro, muito pobre, escanzelado”, SILVA, 1950), Pergana ou Pregana (“impertinente, importuno”, SILVA, 1950), Pitafenta (pessoa que vê e põe defeitos em tudo, de pitafe “mania”, SILVA, 1950). Como anteriormente referido, faltam estudos sistemáticos de âmbito regional sobre as alcunhas que permitam conhecer as diferenças e/ou semelhanças existentes por localidades e concelhos. A investigação neste domínio contribuiria e pode reverter, se vier a ser realizada, para o conhecimento do significado de alguns populismos e regionalismos madeirenses, permitindo identificar possíveis localismos dentro do Arquipélago da Madeira. As alcunhas constituem um património histórico, linguístico e sociocultural, sobretudo rural, caracterizado por grande riqueza e diversidade lexical, como resultado da criatividade e expressividade popular, que importa recolher e salvaguardar, visto que tende a desaparecer nas sociedades atuais. Bibliog. impressa: “As alcunhas do Porto Santo e o seu porquê”, Xarabanda: Revista da Associação Musical e Cultural Xarabanda, n.º 14, trabalho dos alunos do 11.º ano, agrup. 3, ano letivo de 2002-2003, da escola B + S Prof. Dr. Francisco Freitas Branco, Funchal, 2003, p. 7-10; BARCELOS, J. M. Soares de, Dicionário de falares dos Açores. 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batalhão de voluntários
[caption id="attachment_14501" align="aligncenter" width="401"] Fig 1 – Fotografia de imagem de um Voluntário Real a cavalo.Fonte: Arquivo Histórico Militar de Lisboa.[/caption] [caption id="attachment_2658" align="alignleft" width="297"] Fig 2 - Armas de José Lúcio Travassos Valdez, 1828[/caption] A formação dos Batalhões de Voluntários enquadra-se na complexa situação de confronto entre liberais e absolutistas no contexto da guerra civil portuguesa de 1828-1834. A primeira força foi determinada pelo governador José Lúcio Travassos Valdês (1787-1862), futuro conde do Bonfim, por portaria de 28 de junho de 1828, com denominação de Batalhão de Voluntários Reais de D. Pedro IV, composto por seis companhias de 100 praças cada e dotado entretanto de algumas armas e munições, inclusivamente vindas posteriormente de Londres. O comando foi depois entregue ao major do Real Corpo de Engenheiros, Jerónimo Martins Salgado, uma vez que na sua formação estava a cargo do futuro conde de Carvalhal (1778-1837), naquela altura sem condições de saúde para o assumir. Como alferes da 1.ª companhia tinha-se alistado um dos filhos do governador, José Bento Travassos Valdês (1814-1881), depois 2.º conde, então com 14 anos, com carta patente de 16 de julho de 1828 (ARM, Arquivos Particulares), logo pouco tempo depois da portaria que determinou a formação do batalhão. Anexa ao batalhão alguns dias depois de este ser formado e por portaria de 8 de julho, tinha sido igualmente criada a Companhia de Voluntários de Cavalaria, comandada pelo capitão João José de Bettencourt e Freitas. Teria então cerca de 64 voluntários, metade dos quais devidamente equipados e montados, mas à custa dos próprios, tendo conseguido também receber armamento de Londres. No entanto, eram voluntários e o seu rendimento militar seria sempre condicionado. Neste conjunto, havia ainda a contar 26 peças, entre as quais alguns obuses de calibre grosso, que se encontravam “em parque” no trem de São Lourenço. [caption id="attachment_2649" align="alignleft" width="332"] Fig 3 - Patente de alferes dos Voluntários Reais de D. Pedro IV para José Bento Travassos Valdez-1828[/caption] À data, a população da Madeira não excedia os 110.000 habitantes e, militarmente, dividia-se em três regimentos de milícias: mal armados, mal equipados e sem qualquer disciplina. Olhando ainda para o conde de Carvalhal como seu coronel, embora há muito a seu pedido afastado, dadas as já precárias condições de saúde, o regimento do Funchal possuía ainda algum fardamento e armamento. Era então comandado pelo tenente-coronel Valentim de Freitas Leal (1790-1879). O regimento da Calheta era comandado pelo coronel João Agostinho de Figueiroa e Albuquerque e o de São Vicente pelo coronel João Lício de Lagos de Teixeira de Vilhena, ambos sem qualquer força senão a vagamente dissuasória. O batalhão do Funchal, misto de infantaria e artilharia, era então comandado pelo coronel Francisco Manuel Patrone, recentemente regressado à ilha, e pelo tenente-coronel António Fernandes Camacho. Tinha um efetivo oficial de cerca de 850 praças, reduzidas então a 200, 100 das quais recrutas. Restava ainda a velha e estropiada companhia do regimento de Artilharia 2, com quartel no Algarve, que fora para a Madeira com a alçada de 1823. Teria então 68 artilheiros comandados pelo major Joaquim Guilherme da Costa. As guarnições das fortalezas, salvo as do Funchal, que ainda faziam exercícios, embora envolvessem quase 1000 homens dispersos por mais de 26 fortes e redutos, com 220 bocas-de-fogo, também não ofereciam qualquer garantia, pois tratava-se de milícias sem qualquer preparação militar ou ideológica, pelo que ao primeiro tiro debandariam, como veio a acontecer. [caption id="attachment_2655" align="alignleft" width="351"] Fig 4 - Pistola de fechos de silex ingleses-1820[/caption] Conforme previsto pelo governador, a 25 de junho de 1828 aparecia em frente ao porto do Funchal a fragata realista Princesa Real, transportando a bordo o novo governador e capitão-general, capitão-de-mar-e-guerra José Maria Monteiro, assim como um novo corregedor para a comarca e demais magistrados de uma alçada de Justiça, munidos de poderes discricionários, como havia acontecido em 1823. O governador Travassos Valdês enviou a bordo um emissário comunicando o estado de espírito na ilha, que se oporia a qualquer desembarque e intimando a fragata à saída imediata das águas da Madeira. De imediato, o governador enviou ordens a todas as tropas de 1.ª e 2.ª Linhas, assim como ao sargento-mor do Funchal e aos comandantes dos fortes e redutos da linha costeira, para fazerem face à situação. No mês seguinte, chegava nova esquadra “realista” e o governador preparava a defesa da ilha, essencialmente com base no Batalhão de Voluntários, que, segundo o governador do Porto Santo, o brigadeiro João José da Cunha Fidié (c. 1790-1856), teria 600 homens. As forças do Rei D. Miguel haveriam de desembarcar em Machico e, avançando para o Funchal, beneficiaram do rebentamento do paiol do forte do Porto Novo, onde se haviam concentrado os principais meios de defesa, que lhes abriu o caminho para a cidade, não tendo havido qualquer outra força que especialmente as enfrentasse. [caption id="attachment_2652" align="alignleft" width="245"] Fig 5 - Armas de D. Álvaro da Costa de Sousa Macedo, 1831[/caption] No regime seguinte, absolutista, determinou o governador José Maria Monteiro, a 6 de setembro de 1828, o alistamento para um corpo de Voluntários Realistas Urbanos da Madeira, com um major comandante e quatro companhias, devendo cada uma ter um tenente, um alferes, 10 sargentos, um furriel, dois cabos, duas praças anspeçadas e 52 soldados. Com data de 1 de setembro, já tinha nomeado o tenente de Artilharia Policarpo António Teives para comandar os Voluntários, que seria graduado em major, “atendendo à reconhecida honra e fidelidade” do mesmo (ABM, Governo Civil, 798, fl. 35v.). Segundo os ofícios do seguinte governador, D. Álvaro da Costa de Sousa de Macedo (1789-1835), para o conde de Basto, de 30 de agosto e 9 de setembro de 1831, esse corpo só chegara a ter uma companhia, embora para o mesmo o governador reclamasse os privilégios e regalias concedidos aos voluntários do reino pelo decreto de 26 de setembro de 1828. À data, era capitão e comandante dos Realistas Urbanos Pedro Agostinho Teixeira de Vasconcelos, que a 8 de novembro de 1831 requeria para si e para os seus oficiais subalternos a honra de usar “a medalha de ouro com a Efígie Real” de D. Miguel (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 11955 e 11956). Com a chegada das forças constitucionais de D. Pedro IV, em julho de 1834, não se registou sequer qualquer movimento deste corpo de voluntários realistas urbanos. Bibliog.: manuscrita: AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 10723, 10724, 10787, 10788, 11955, 11956 e 12817; ABM, Arquivos Particulares; ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 6; ABM, Governo Civil, 178, 192 e 798; impressa: CARITA, Rui, Paulo Dias de Almeida, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros, e a sua Descrição da Ilha da Madeira de 1817/1827, Funchal, DRAC, 1982; Id., História da Madeira, vol. v, Funchal, Secretaria Regional da Educação, Juventude e Emprego, 2003; FREITAS, Lourenço de, “A Batalha das Voltas”, Islenha, n.º 13, jul.-dez. 1993, pp. 138-150; SILVA, Fernando Augusto da e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998. Rui Carita (atualizado a 22.02.2017)
armamento
O armamento foi fulcral na expansão portuguesa, equipando as forças dos novos domínios e os navios que faziam a ligação entre o continente, as ilhas e as novas praças militares, embora o desenvolvimento em Portugal da tecnologia das armas-de-fogo, e.g., muito especialmente as “armas pesadas”, depois chamadas "artilharia", não conseguisse acompanhar de início as técnicas de fortificação, o que só veio a ocorrer com a montagem das tercenas e novos arsenais de Lisboa, nos reinados de D. Manuel e de D. João III. No entanto, desde D. João II que se incentivaram essas estruturas, criando-se então as chamadas “salas de armas”, fábricas de pólvora, oficinas várias e armazéns, no sentido de se equiparem as Armadas e as fortalezas. A sala de armas do Funchal deve datar dos finais do século XV, nessa altura provavelmente sem local ainda bem definido, sedeada por certo na casa do capitão do Funchal. Pelo alvará de 2 de março de 1497, temos conhecimento que de já haver salas de armas na Ilha, pelo que o rei mandou que se lançassem impostos sobre o uso de “gibonetes”, as pequenas armaduras e os “corpos de couraça”, e que se fizessem iguais aos que se faziam na "nossa casa de armas da vila de Santarém", sob o controlo de Agostinho Caldeira, armador-mor e de Fernão Álvares, recebedor e feitor da dita casa (ARM, CMF, T1, 68v-69). [caption id="attachment_2633" align="alignleft" width="351"] Peitilho-1660 MM Madeira[/caption] A contínua atividade militar dos madeirenses no Norte de África, não podia, com certeza dispensar a existência de salas de armas nas casas das famílias da Madeira, cujos principais elementos continuamente para ali se deslocaram acompanhados de forças armadas (Guarnição militar). Até então o armeiro do Funchal, responsável pela manutenção desse material, era pago pela câmara através da renda auferida pelo aluguer das lojas da sede da mesma. A primeira informação advém da reunião camarária de 27 de abril de 1492, quando se acordou que “por serviço de Deus e bem da terra”, ocupasse o ofício Pero de Palença, armeiro, que já usava desse ofício e pelo que deveria usufruir 3$000 réis anuais a começarem a ser pagos a partir do dia de São João, ou seja de 24 de junho seguinte (COSTA, 1995, 323). [caption id="attachment_2627" align="alignright" width="327"] Dinamometro de pólvora_1850[/caption] O primeiro armeiro real na Madeira de que temos notícia apareceu bastante mais tarde, quase 100 anos depois, já na época de D. Sebastião. A sua nomeação correspondeu à oficialização da situação vigente, que passou então ao controlo régio através do provedor da Fazenda. Esta nomeação data de 1572, citando o alvará que era "criado o ofício de Armeiro Real, mandando a esta ilha, Henrique de Bruxelas, flamengo, para fazer fechos de espingardas, e os mais concertos necessários". Determina ainda o alvará “que enquanto se conservasse no dito emprego, se lhe dessem 4$000 réis de ordenado anual e uma casa para morar, à custa da Real Fazenda” (BNL, IRAPRFF, 15-15v.). Entretanto, em 1532, na sequência da nomeação do Anadel-mor de espingardeiros, ou seja do comandante dos mesmos e do regimento de 12 de dezembro de 1526, aparece a nomeação no Funchal de Rui Dias de Aguiar, como anadel da capitania do Funchal, que desempenhava do anterior a função de anadel-mor de besteiros da capitania e, inclusivamente, provedor da Alfândega. Nessas primeiras funções, antes de 1526, acompanhara por várias vezes forças da Madeira ao Norte de África, procedendo localmente aos mandados de pagamento dos besteiros e espingardeiros, tendo, entretanto designado, e.g, o besteiro Afonso Fernandes e o espingardeiro Anes Barbuzano para receberem os mantimentos do pessoal que ia para Safim. Algum tempo depois, em 1542, o anadel-mor do reino apresentou reclamação contra a nomeação de anadel para as capitanias do Funchal e de Machico, reclamação despachada favoravelmente por D. João III, admitindo que não tinha sido corretamente informado. Apresentou-se então no Funchal um seu delegado, João Colaço, com uma nova nomeação e a invalidação da anterior, a delegação e uma cópia do Regimento de Espingardeiros, a que se deu execução. Foi então nomeado Jorge de Brito como anadel do Funchal e a 4 de novembro de 1542, foi apresentado na câmara do Funchal um rol de espingardeiros para a cidade e seu termo. As coisas não terão corrido conforme previsto e no ano seguinte foi feito novo rol. Mais tarde, em 1553, Diogo Cabral, quando na Calheta aguardava a Armada que o levaria uma vez mais à Índia, escreveria ao rei relatando que as coisas deste âmbito ainda não se encontravam bem assentes. Nos finais do século XVI voltamos a ter referências ao armeiro real do Funchal, tendo sido nomeado em 1575 o também flamengo João de Areja e, em 1606, Francisco Annes, com a indicação que se lhe devia dar casa para guarda das armas. Em 1610 era substituído pelo filho, Sebastião Luís e passava para condestável da fortaleza de S. Lourenço e que, tendo falecido entretanto e não pretendendo os seus filhos o lugar, dada a “qualidade de mercadores”, em 1647 era nomeado Manuel dos Santos, com 12$000 réis como os anteriores tinham e mais 4$000 “para pagamento do aluguer da casa para guarda das armas”, sinal de ficarem então fora da fortaleza de S. Lourenço. Este posto manteve-se até aos meados do séc. XVIII (BNL, Ibid., 15-16). Não subsistiu, infelizmente, quase nenhum dos exemplares do armamento dos séculos XV ao XVII na Ilha, dada a centralização desses serviços militares ao longo do séc. XIX em Lisboa, para onde era evacuado o material entendido como obsoleto do trem de S. Lourenço. Com a montagem do Museu Militar da Madeira (Museu Militar da Madeira), reuniu-se uma pequena amostragem com exemplares do principal armamento que equipou as forças armadas portuguesas ao longo da época moderna, com destaque para a expansão, mas que não incluía, em princípio, o que teria existido na ilha. [caption id="attachment_2630" align="alignleft" width="460"] MM Madeira[/caption] Refira-se especialmente um magnífico montante do séc. XVI, propriedade da Câmara do Funchal, que foi dado como tendo pertencido a João Gonçalves Zargo (c. 1390-c. 1471); contudo, visto estar assinado por Pedro de Belmonte, armeiro que trabalhou para os duques de Bragança na segunda metade do séc. XVI, não é possível que tenha pertencido a Zargo. Também não possuímos muita documentação sobre o armamento militar na Ilha durante os sécs. XVII e XVIII, mas ao longo desses séculos, a Madeira recrutou, fardou e armou inúmeras companhias para acompanharem os governadores destinados às diversas capitanias do Brasil e à de Angola, função geralmente entregue ao tenente-general, sinal de haver uma certa disponibilidade insular, não só em armas como em armamento e fardamento. Aliás, desde os finais do séc. XVI que se divulgou o costume do uso público de armas pessoais, inclusivamente na criadagem, o que não deixou de espantar muitos viajantes, como o capelão John Ovington (1653-1731) ou o médico naturalista sir Hans Sloane (1660-1753). As informações oficiais são mais precisas sobre o armamento militar a partir dos finais do séc. XVIII, com as revistas às companhias de ordenanças (Ordenanças) e, no séc. XIX, quando o governo liberal começa a implantar uma estrutura de forças nacionais (Guarnição militar). [caption id="attachment_2636" align="aligncenter" width="479"] Relacão Anno 1754[/caption] Bibliog.: manuscrita: ANTT, Chancelaria de D. João III, liv. 16; Ibid., Corpo Cronológico, Parte II, 4-43, 115-105, 116-85 e 243-9; ARM, CMF, Registo Geral, tombo 1; BNP, reservados, cod. 8391, Index Geral do registo da antiga Provedoria da Real Fazenda, acrescentado com algumas notícias e sucessos da Ilha da Madeira desde o ano de 1419 do seu descobrimento até o de 1775 da extinção da mesma Provedoria; impressa: ARAGÃO, António, A Madeira vista por Estrangeiros, 1455-1700, Funchal, DRAC, 1981; CARITA, Rui, A Espingarda e os Uniformes. 1.ª Exposição do Museu Militar da Madeira, catálogo de exposição realizada no átrio da Câmara Municipal do Funchal em 1979, Funchal, SREC, 1979; Id., História da Madeira, vol. i, Funchal, SRE, 1999; Id., História da Madeira, vol. iii, Funchal, SRE, 1991; Id., A Fortaleza de São Lourenço, Catálogo da Exposição Permanente da Fortaleza-Palácio de São Lourenço, Funchal/ Lisboa, Zona Militar da Madeira, 1994; Id., Arquitectura Militar na Madeira, Séculos XV a XVII, Lisboa/Funchal, Universidade da Madeira, 1998; COSTA, José Pereira da, Vereações da Câmara Municipal do Funchal, Século XV, Funchal, CEHA, 1995; OVINGTON, John, A Voyage to Suratt in the Year 1689, Londres, Jacb Tonson, 1696; SLOANE, Hans, A Voyage to the Islands Madera, Barbadoes, Nieves, St. Christoferes and Jamaica [...], 2 vols., Londres, ed. do Autor, 1725; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000 Rui Carita (atualizado a 23.09.2016)
alferes - mor
A designação “alferes” indica um oficial que leva a bandeira, representando o posto imediatamente abaixo de tenente e de capitão. Na Idade Média e até à criação do cargo de condestável do reino, o alferes-mor era também comandante-chefe dos exércitos reais. A partir de então, passou a porta-bandeira real, cargo que se tornou, no séc. XVI, essencialmente honorífico, cabendo-lhe o desenrolar da bandeira para a aclamação de novos reis. A sua presença na Madeira aparece apenas na pessoa de Tristão Gomes de Castro (1539-1611), não havendo, contudo, documentação específica relativa à sua nomeação e sendo referido exclusivamente pelo genealogista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730), que por ele nutria grande admiração, até por ser também escritor e seu parente. [caption id="attachment_2623" align="alignleft" width="198"] Possivelmente a Imagem de Tristão Gomes de Castro, Arqui. Rui Carita.[/caption] Tristão Gomes de Castro era filho de Cristóvão Martins de Agrilhão e Vargas, fidalgo da casa do duque D. Jaime de Bragança, tal como seu pai, que viera para Portugal na comitiva de D. Leonor de Mendonça, filha dos duques de Medina Sidónia, quando a mesma casou com o duque de Bragança. Com o assassinato da duquesa D. Leonor pelo marido, Cristóvão Martins de Agrilhão e Vargas, natural de Sevilha, passou pelo Peru, mais especificamente pelas Índias de Castela, onde teria feito fortuna, indo dali para a Madeira. Casou no Funchal com Joana Gomes de Castro, filha de Bárbaro Gomes (c. 1480-1544), que fora vedor da sé do Funchal. Consta que estava de novo no Peru quando nasceu o seu filho e que, tendo a sua mulher morrido no parto, não terá já voltado à Madeira. O filho terá nascido como Francisco, mas mudar-lhe-iam o nome, alguns dias depois do falecimento de sua mãe, para Tristão, de acordo com a tradição familiar citada por Henrique Henriques de Noronha (NORONHA, 1948, 313-314). Este viria a ser criado em Portugal continental, servindo no paço e tendo tido o hábito de Cristo e foro de fidalgo. Casou em Lisboa com Isabel de Andrade (c. 1540-1568), dama da rainha D. Catarina, filha de Rui Gonçalves de Andrade e Isabel Rodrigues Berenguer (Ibid.). Deve ter sido após o casamento com tal dama da rainha pertencente a uma das mais importantes famílias madeirenses da época que acabou por fixar residência no Funchal, tendo, por certo, dado o importante património de que era herdeiro, sido agraciado com o título honorífico de alferes-mor. Por volta de 1590, Gaspar Frutuoso refere-o como residindo na R. do Sabão, numas casas ricas de dois sobrados, com poço dentro e portas de serventia com muitos “abrolhos de ferro da banda de fora”, descrição que deve indicar as decorações das grades de ferro ao gosto sevilhano que lembram plantas espinhosas. Não o refere pelo nome completo, mas somente como “um Tristão Gomes, que chamam o Peru” (FRUTUOSO, 1968, 112-113), nome que, por essa época, também se estende à rua, por vezes referida como R. do Peru ou R. dos Perus. Tristão Gomes de Castro deixou alguns livros de cavalaria, com especial destaque para Argonáutica da Cavalaria, recentemente localizado e estudado. Bibliog.: DÍAZ-TOLEDO, Aurélio Vargas, “Apontamentos sobre um Livro de Cavalarias Desconhecido: A Argonáutica da Cavalaria de Tristão Gomes de Castro, escritor madeirense do século XVI”, Islenha, n.º 43, Funchal, DRAC, jul.-dez. 2008, pp. 5-22; FRUTUOSO, Gaspar, Saudades da Terra, Livro II, Ponta Delgada, ICPD, 1968; NORONHA, Henrique Henriques, Nobiliário Genealógico das Famílias que Passarão a Viver a esta Ilha da Madeira Depois do seu Descobrimento, que foi no Ano de 1420, São Paulo, Revista Genealógica Brasileira, 1948; Id., Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA/DRAC, 1997. Rui Carita (atualizado a 07.03.2016)
alcaide - mor
A designação “alcaide” abrangeu um conjunto alargado de elementos com jurisdição militar e civil que, no início do povoamento da Ilha, estava totalmente a cargo dos capitães do donatário, os quais superintendiam sobre os aspetos militares e sobre os postos alfandegários e presidiam às emergentes Câmaras dos concelhos. Como os aspetos gerais de segurança estavam a cargo do capitão, competindo-lhe, depois, apresentar os nomes para alcaide da sede da capitania, este assume o título de alcaide-mor quando os concelhos se começam a autonomizar dos capitães, em finais do séc. XV. Com a construção da fortaleza do Funchal, o inicial baluarte joanino construído junto das casas do capitão, sobre as fontes de João Dinis, entre 1540 e 1542, foi ainda igualmente nomeado um alcaide para a fortaleza. [caption id="attachment_2619" align="alignleft" width="308"] Palácio de S. Lourenço, Baluarte Joanino, 1540-1542, Arqui. Rui Carita.[/caption] O primeiro alcaide da fortaleza foi Jerónimo Cabreira, moço de câmara do capitão do Funchal que teve nomeação a 9 de novembro de 1542, com um ordenado de 8$000 e a incumbência de zelar pela conservação do mesmo baluarte (ARM, CMF, Registo Geral, t. 2, fls. 7v.-8). Acompanhando o capitão à corte de Lisboa, foi substituído por João de Ornelas de Magalhães, que tomou posse como alcaide da fortaleza do Funchal a 14 de maio de 1555 (Ibid., fls. 31-31v.) e que deverá ter levantado, pouco tempo depois, o chamado solar de D. Mécia, que ostenta as armas desses apelidos. A nomeação de Ornelas de Magalhães foi feita no sentido da coordenação da guarda à fortaleza, de “alcaide”, como vem citado no documento supracitado, cabendo-lhe a nomeação dos bombardeiros e do pessoal de guarda e de manutenção do baluarte, pelo menos até 1551, data em que há notícia da existência de um condestável dos bombardeiros da fortaleza. O capitão do Funchal fixou-se então em Lisboa, vindo pontualmente ao Funchal, e passou a usar, entre os seus títulos, o de alcaide-mor da fortaleza – posteriormente, das fortalezas –, mas somente como título honorífico, dado que a partir de 1582 já o não era efetivamente, na medida em que passou a haver um encarregado das coisas da guerra e, depois, um governador instalado na fortaleza. A partir de 1580, quer pelo falecimento do quinto capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1512-1580), quer pelo falecimento, três meses depois, de seu filho e herdeiro João Gonçalves da Câmara (1541-1580), em Almeirim, na sequência da peste, foi nomeado um encarregado das coisas da guerra, o corregedor João Leitão, a quem se seguiu D. Agostinho de Herrera, conde de Lançarote (Ibid., t. 3, fl. 163). Enquanto encarregados das coisas da guerra, desempenharam as funções gerais de alcaides-mores, embora em articulação com os capitães do presídio castelhano do Funchal, instalados na mesma fortaleza. Em 1585, com a nomeação de Tristão Vaz da Veiga, um descendente de Zarco, como governador e capitão general de ambas as capitanias e alcaide-mor da fortaleza do Funchal, designação abreviada à época como “capitão-geral” (Ibid., 162v.-163), as funções do alcaide-mor ainda ficaram mais bem definidas, até pelo facto de o governador se assumir também como capitão-donatário de Machico. O capitão-donatário do Funchal manteve, no entanto, a mercê honorífica do título de alcaide-mor, os respetivos proventos e o direito de apresentação do alcaide da cidade e das demais vilas da sua capitania. As donatarias foram extintas em 1766, bem como o título de alcaide-mor, tendo, no entanto, os antigos donatários sido bem compensados pela extinção das antigas capitanias. Bibliog. manuscrita: ARM, CMF, Registo Geral, t. 2 e 3; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. I, SRE, 1999; SILVA, Fernando Augusto da e MENESES, Carlos de Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, colç. História da Madeira, 1, Funchal, DRAC, 2000. Rui Carita (atualizado a 09.08.2016)