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sebastianismo

Tal como acontecia no Reino, também na Madeira, no rescaldo da derrota de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, surgiram lendas que evocavam a possibilidade do regresso do Rei para resgatar Portugal do domínio castelhano. Essas lendas, que, na Madeira, se misturam com o imaginário do ciclo arturiano, começaram por se manifestar logo nos inícios do século XVI, mas mantiveram-se presentes na imaginação popular de forma tão duradoura que ainda no século XX são objeto de referência por parte de autores madeirenses. Palavras-chave: D. Sebastião, a Ilha Encoberta, a Espada, Arguim, Rei Artur. O sebastianismo foi um sentimento de cariz messiânico que se divulgou em Portugal na sequência do desaparecimento do Rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir (1578), espalhando-se por todo o território nacional nos fins do séc. XVI e princípios do século seguinte. As razões da sua rápida propagação no todo nacional terão de ser procuradas na própria história de um país que se formou na luta contra os mouros e os Castelhanos, a quem habitualmente levou de vencida, ainda que com um ou outro contratempo traduzido em derrotas momentâneas, suplantadas, depois, por vitórias que permitiram não só a sua autonomia, mas até a sua dilatação sob a forma de grande império ultramarino. Lutadores convictos da sua independência, habituados a porfiar contra os inimigos, os Portugueses não conseguiam aceitar a ideia de que a sua pátria, forjada com tanto sacrifício, tivesse sido, de um só golpe, vencida pelos inimigos tradicionais – os mouros, que desfizeram o seu exército, e os Castelhanos, para quem sobrou o trono – e, para melhor enfrentar o infortúnio, socorreram-se da ideia de um inevitável regresso de D. Sebastião, estratégia messiânica que se inscreve numa tradição que, vinda do judaísmo, não deixara completamente de circular por entre os povos cristãos. Assim, ainda que se questionasse a impreparação e a irresponsabilidade do Monarca desaparecido, a nação ansiava pelo seu regresso, visto como condição sine qua non para a libertação do domínio castelhano; e o Rei, que já nascera com o cognome de “o Desejado”, tornava-se ainda mais desejado depois do seu desaparecimento no Norte de África. A força desse desejo nacional será, pois, o suporte do messiânico desígnio do sebastianismo. Esta crença é, em si mesma, indicativa da força da comunidade judaica em Portugal, no seio da qual nasceu Gonçalo Anes Bandarra, autor de umas trovas proféticas e dedicadas às dificuldades, mas também ao destino imperial de Portugal, nas quais se vem a inspirar o movimento sebástico. A comunidade cristã-nova, perseguida pela recém-criada Inquisição, encontrou na Madeira, num primeiro momento, um porto de abrigo onde se refugiou, julgando-se protegida pela inexistência local de uma delegação permanente do Santo Ofício, e seria ela, talvez, o veículo de divulgação regional das trovas de Bandarra. O acolhimento que, na Madeira, se dispensará à divulgação da mítica sebastianista radica, por sua vez, numa propensão para acolher o mito como elemento fundador da identidade insular, uma vez que algumas explicações para a origem da Ilha repousam em lendas que povoam o imaginário popular. Com efeito, a ilha da Madeira constituía, aos olhos dos seus habitantes, um espaço encantado que teria tido origem num momento em que, estando Nossa Senhora a chorar pelos pecados do mundo, deixara cair uma lágrima sobre o oceano. Dessa gota sagrada nascera uma pérola que se transformara em ilha – a da Madeira, que assim se assumia como território afortunado, bafejado por um clima ideal, águas abundantes, vegetação luxuriante, terra fértil e acolhedora. Esta lenda está, por sua vez, associada a uma outra – a da desaparecida Atlântida, continente afundado pela ira divina e do qual a Madeira teria ficado como memória (Lendas e mitos fundadores). Esta ideia de ilha encantada é, precisamente, recuperada por uma das lendas do sebastianismo insular, que reporta a existência de uma terra mítica que, em determinados dias, aparece no horizonte e onde se conta que vive um Rei que, um dia, de lá há de sair para vir libertar o seu povo, muito à semelhança do que aconteceu com o Rei Artur, que se refugiou na ilha de Avalon, de onde regressará para libertar os Bretões. As semelhanças entre o sebastianismo madeirense e o ciclo arturiano não se ficam por aqui, pois outras lendas madeirenses falam de uma espada – a versão insular de Excalibur –, enterrada pelo Rei desaparecido em vários locais da costa: uma fala da Penha de Águia, outra do cabo Girão, outra, ainda, da ponta da Galéria ou Galé, na Calheta, admitindo-se aí ter sido colocada por D. Sebastião, quando, a caminho de Arguim, teria passado pela Madeira. Esta suposta passagem do Monarca derrotado pela Ilha não tem, de facto, nenhum suporte efetivo, mas como o território da lenda não atende a estas circunstâncias, não é estranho que se afirme, a respeito da referida espada: “braço de rei a meteu e só braço de rei a pode tirar” (FREITAS, 1984, 69). Tornou-se, ainda, voz corrente que, em momentos especiais, com tempo claro, os pescadores a conseguem ver. A ilha de Arguim, local do exílio temporário do Rei, é um território que se situa no golfo da Guiné e pertenceu, inclusivamente, à Diocese do Funchal, tendo sido, para efeitos do mito, transformada também numa espécie de terra encantada, que tanto emerge como submerge, e onde a imaginação popular entrevê um Rei, ora novo e garboso, ora velho e desalentado, que recebe no seu pequeno reino missionários a quem promete regressar para ocupar o trono português, o que acontecerá depois de resgatar a espada que enterrou em solo madeirense. Segundo uma versão desta lenda, a retirada da espada implicará o afundamento total da Madeira; segundo outra, apenas se verificará uma submersão parcial, devendo o futuro cais ficar pela altura da igreja de N.ª Sr.ª do Monte. A sobreposição, um tanto surpreendente, entre os romances de cavalaria onde se inscreve a lenda do Rei Artur, e as versões insulares das lendas de D. Sebastião, tem, ainda, validação na capitania de Machico, entregue a um muito medieval Tristão Teixeira, que aí organizava justas e torneios, e onde se fundou uma povoação de nome Gaula, habitada por Lancelotes, Grismundas, Isoas e Galaazes. Na tradição oral madeirense encontram-se, também, narrativas de histórias multisseculares, onde se cruzam personagens oriundas de um universo medieval – reis, condes, princesas e donzelas –, que não poderão deixar de ter sido bebidas na tradição dos romances de cavalaria tão bem ilustrada pelas histórias arturianas. A retoma da independência nacional operada por D. João IV continua a inscrever-se no universo do messianismo sebástico que, confrontado com o não retorno de D. Sebastião, transfere para a figura do novo Monarca todo o capital de esperança que era património da lenda. Na Madeira, o anseio pela devolução de Portugal à qualidade de estado independente manifestou-se na figura do cónego Henrique Calaça que prometera edificar um mosteiro feminino caso esse desígnio se cumprisse. Este é, pois, o quadro em que se regista a fundação do Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação nos anos imediatos à Restauração, cumprindo-se, assim, a materialização do sonho sebástico. Outro indicador da identificação da figura de D. João IV como novo messias surgido para resgatar Portugal do domínio castelhano surge com a publicação, em 1643, de uma obra da autoria do padre madeirense António Veloso de Lira, intitulada Espelho de Lusitanos em o Cristal do Psalmo Quarenta e Três, Cuja Vista Representa este Reino em Três Estados. O Primeiro, desde os Seus Princípios, com todas as Felicidades e Grandezas até D. João o Terceiro. O Segundo, as Calamidades e Infortúnios Começados com El Rey D. Sebastião, e Continuados por todo o Governo Castelhano. O Terceiro Estado, as Maravilhas Obradas por Deus em a Feliz Aclamação e Restauração de El Rey Nosso Senhor D. João o Quarto, com os mais Raros Casos nella sucedidos, assim neste Reino como no de Castela. Nesta obra, o sacerdote, nascido na Calheta em 1516, considera os Portugueses como povo escolhido por Deus que, depois de um passado glorioso, se vira ignominiosamente sujeito a um domínio estrangeiro terminado em 1640, o que justifica, então, a exaltação nacionalista que subjaz à narrativa. A apresentação da figura do restaurador como responsável pelo concretizar da aspiração nacional latente desde o desaparecimento de D. Sebastião é, pois, um elemento mais a juntar ao processo que coroa a eclosão do movimento messiânico inaugurado com Alcácer Quibir, cujas repercussões ecoaram no país e também na Madeira, traduzidas tanto em narrativas do foro da lenda como em ações concretas de congratulação pelo seu ansiado fim. O anseio permanente que acompanha os Portugueses em geral, e os madeirenses em particular, de ver resgatada a antiga fortuna nacional, e de que a lenda sebástica é tradução, não desapareceu com o tempo, manifestando-se ainda no decorrer do séc. XX. A prová-lo pode citar-se uma obra vinda a público em 1954 e da autoria de Amadeu Mimozo, na qual o autor intercala capítulos de índole autobiográfica com outros em que aflora aspetos da vida e da história da Madeira. Incluídos nesta narrativa intermitente que mistura a história pessoal, por um lado, e a história do descobrimento da Ilha, por outro, com episódios ligados a Cristóvão Colombo, surgem, ainda, espaços narrativos consagrados à ilha encoberta e às lendas que a sustentam. De acordo com Mimozo, radica em Platão a ideia de que a Atlântida “pegava com a Península Ibérica”, tendo sido em parte submersa por um grande terramoto que isolou a Europa da América (MIMOZO, 1954, 113). Dessa catástrofe sobreviveu uma ilha na qual se refugiou Rodrigo, o último Rei godo, em fuga da invasão moura da península. Prosseguindo a fundamentação autoral em que ancora a descrição, Mimozo evoca D. Francisco Manuel de Melo, segundo o qual, em 1444, uma embarcação genovesa abordou a referida ilha, onde encontrou falantes de português. A ilha tinha sete cidades, cada uma com seu bispo, e mais de 300 vilas cujos habitantes teriam tido origem na cidade do Porto, que abandonaram quando o Rei Rodrigo foi derrotado pelos mouros. O mesmo território encantado teria sido visitado por dois religiosos que se dirigiam do Brasil para Lisboa, numa nau capitaneada por António de Sousa, em viagem interrompida por uma enorme tempestade. Quando os ventos amainaram, a tripulação vislumbrou, a sul, uma terra misteriosa que supôs ser a Madeira. Inseguros em relação ao que viam, pediram os tripulantes licença para desembarcar, e ao fazê-lo depararam com um palácio de onde saíram sete homens que falavam um vago português e trajavam à moda da Nazaré, que os conduziram ao interior do palácio onde lhes apresentaram um Rei idoso que lhes perguntou se eram portugueses. Certificado da origem dos visitantes, levou-os a uma sala onde se encontrava um quadro representando uma cena de batalha na qual figurava um exército quase derrotado ao lado de um outro, vitorioso, cujas tropas vestiam trajes mouros. Terminada a visita, os tripulantes regressaram a bordo e relataram vividamente a experiência. Atemorizado, o mestre da embarcação não arriscou viajar nessa noite, só o fazendo na manhã seguinte. Depois de quatro dias de navegação, os homens encontraram, então, de facto, a ilha da Madeira, na qual se demoraram quatro dias, contando o autor que “alguns habitantes madeirenses garantiam que esta ilha aparecia de tempos a tempos, o que juraram” (Id., Ibid., 126). Não chegando a afirmar que o Rei misterioso era D. Sebastião, Amadeu Mimozo atribui, no entanto, essa convicção ao povo madeirense, que, segundo ele “dá como encantado El-Rei D. Sebastião na Ilha Encantada”, embora acrescente que este facto se não pode afirmar historicamente. Segundo o autor, o destino do Monarca seria mais credivelmente rastreado em batalhas na Europa, onde teria defrontado infiéis, acabando por ser martirizado em Itália e Espanha, às ordens de um Filipe II de Espanha atemorizado pela perspetiva de perder o trono de Portugal caso se demonstrasse que D. Sebastião vivia ainda. Em abono desta tese, aponta as opiniões do P.e António Vieira que atestavam o martírio do soberano, confirmado pelo corpo diplomático espanhol, nomeadamente pelo duque de Medina Sidónia e sua mulher, que conseguiram identificar o Rei português pela descrição que este fizera de uma espada e de um anel que anteriormente lhes oferecera (Id., Ibid., 137-139). Os dados que enformam a parte mitificada desta narrativa, e as fontes nas quais se inspira, já tinham sido abordados por outro escritor madeirense, Abel Tiago de Sousa Vasconcelos, que em 1924, e sob o pseudónimo de “Lusitanus”, fizera publicar uma obra intitulada Sinais dos Tempos, onde consagrava vários capítulos à Ilha Encantada e ao possível destino de D. Sebastião, também aqui considerado como desenrolado na Europa. A obra em questão, integralmente consagrada ao Quinto Império e ao papel central que Portugal nele desempenha, não poderia deixar de abordar a figura do Rei como encarnação do renascer do reino, objetivo pelo qual teria dado a vida, sacrificado à vontade e às manobras políticas do Rei de Espanha. Ainda que, no caso presente, a narrativa seja muito mais pormenorizada, as semelhanças com o texto de Amadeu Mimozo podem autorizar a suposição de que Mimozo teria lido a prosa de Vasconcelos, nela se inspirando para a recolha da informação que depois utilizou em Ilha dos Sonhos. O facto de estas duas obras terem sido publicadas na primeira metade do séc. XX e de consagrarem uma parte dos seus textos à evocação de territórios misteriosos e à provação sebástica é, pois, demonstrativo de que a crença no mito perdurou, mantendo-se parte do imaginário insular quase 400 anos depois da suposta ocorrência dos factos.   Cristina Trindade

História Económica e Social História Política e Institucional

região autónoma

A divisão fundamental das formas de Estado, de há muito formulada pela doutrina, dá‑se entre Estados simples ou unitários e Estados compostos ou complexos. Critérios de distinção são: unidade ou pluralidade de poderes políticos (ou de poderes soberanos na ordem interna); unidade ou pluralidade de ordenamentos jurídicos originários ou de constituições; unidade ou pluralidade dos sistemas de funções e órgãos do Estado; unidade ou pluralidade de centros de decisão política a se. Apesar das diferenças de perspetivas, coincide‑se nos resultados. O Estado unitário tanto pode ser Estado unitário centralizado como Estado unitário descentralizado ou regional. Se todos ou quase todos os Estados do mundo admitem descentralização administrativa, quer de âmbito territorial – através de municípios ou comunas e através de circunscrições mais vastas –, quer de âmbito institucional ou funcional – através de associações, fundações, institutos ou outras entidades públicas –, só alguns Estados comportam descentralização política. E não é a descentralização administrativa, mas sim a política que aqui importa. Esta descentralização política é sempre a nível territorial: são províncias ou regiões que se tornam politicamente autónomas por os seus órgãos desempenharem funções políticas e participarem, ao lado dos órgãos estatais, no exercício de alguns poderes ou competências de carácter legislativo e governativo. Daí que se fale em Estado regional. A conceção constitucional específica e a elaboração teórica do regionalismo político são relativamente recentes, sem embargo de certas notas características se encontrarem antes. Aquelas remontam à Constituição espanhola de 1931 e à Constituição italiana de 1947. A doutrina dominante parece inclinar‑se para a sua inserção dentro do Estado unitário. Mas há também quem pense tratar‑se de um tertium genus e quem entenda que, por causa dele, fica posta em causa a distinção clássica entre Estados unitários e Estados federais. Podem ser apontadas várias categorias de Estados descentralizados. No Estado regional integral, todo o território se divide em regiões autónomas. No Estado regional parcial, encontram‑se regiões politicamente autónomas e regiões ou circunscrições só com descentralização administrativa, verificando‑se, pois, diversidade de condições jurídico‑políticas de região para região. Esta é também uma diferença clara em relação ao Estado federal, sempre integral por natureza (sempre formado, inteiramente, por um maior ou menor número de Estados federados). No Estado regional homogéneo, seja integral ou parcial, a organização das regiões é, senão uniforme, idêntica (a mesma no essencial para todos). No Estado regional heterogéneo, ela pode ser diferenciada ou haver regiões de estatuto comum e regiões de estatuto especial. Em geral, as regiões são criadas pela Constituição, mas conhecem‑se casos – ainda que de necessária relevância a nível de Constituição material – de regiões instituídas por lei (caso da Gronelândia) e até pelo direito internacional (caso do Alândia). Como exemplos de Estados regionais integrais apontem‑se o Brasil (no Império, após a revisão da Constituição em 1834), a Áustria (antes de 1918), a Itália, a Espanha (na vigência da Constituição de 1978) ou a África do Sul (com a Constituição de 1996). Como exemplos de Estados regionais parciais indiquem‑se a Finlândia (por causa da Alândia), a Espanha (aquando da Constituição de 1931), a Dinamarca (quanto às ilhas Feroé e à Gronelândia), Portugal (desde 1976, em virtude das regiões autónomas dos Açores e da Madeira), a Rússia, a Ucrânia (por causa da Crimeia), a China (sobretudo por causa de Hong Kong e de Macau), o Reino Unido (com a Irlanda do Norte, a Escócia e Gales, a partir de 1998 e de 1999) a Geórgia (com a Ajária e a Ossétia do Sul), ou São Tomé e Príncipe (em relação à ilha do Príncipe). Como exemplos de Estados regionais heterogéneos refiram‑se a Itália, com regiões de estatuto especial (Sicília, Sardenha, Vale de Aosta, Trentino-Alto Ádige e Friul-Veneza Júlia) e regiões de estatuto comum (as restantes), e a Espanha atual (com comunidades autónomas de regimes diversos). O grau de descentralização varia muitíssimo; compreende regiões que pouco mais parecem que coletividades administrativas e regiões que parecem Estados‑membros de uma federação. Geralmente, os estatutos são‑lhes outorgados pelo poder central, mas há casos (as regiões italianas, as regiões autónomas portuguesas) em que elas chegam a participar na elaboração e na revisão desses estatutos. A maior semelhança possível entre Estado regional e Estado federal dá‑se quando aquele é integral e as regiões, além de faculdades legislativas, possuem faculdades de auto‑organização. Mesmo assim, porém, cabe distinguir: porque o ato final, a vontade última na elaboração ou na alteração dos estatutos regionais pertence ao poder central (ou seja, as regiões não têm poder constituinte); porque as regiões tão-pouco participam na elaboração e na revisão da constituição do Estado, como unidades políticas distintas dele (ou seja, o poder constituinte do Estado é delas independente). Juridicamente, o Estado federal dir‑se‑ia criado pelos Estados componentes. Pelo contrário, as regiões são criadas pelo poder central e as atribuições políticas que têm tanto podem vir a ser alargadas como extintas por este. Mais ainda: se o Estado federal desaparecer, em princípio os Estados federados adquirem ou readquirem plena soberania de direito internacional; não assim as regiões autónomas, as quais, como quaisquer outras coletividades descentralizadas, ou desaparecem com o Estado ou carecem de um ato específico para obterem a soberania. Os desmembramentosno final do séc. XX, da União Soviética, da Jugoslávia e da Checoslováquia, com o acesso à plena soberania dos Estados que as compunham, mostra bem que, mesmo em federações politicamente fictícias, perdura um resíduo de “estatalidade” pronto a revivescer se as condições assim o permitem. Com a descentralização política regional não se confunde a regionalização, traduzida em desconcentração regional e, sobretudo, na criação de autarquias supramunicipais. Se a dimensão e alguns dos objetivos das regiões que assim se apresentam em alguns países podem ser semelhantes aos das regiões autónomas, os meios orgânicos e funcionais oferecem‑se bem diversos. Só as regiões autónomas possuem órgãos e funções de natureza política e, portanto, apenas estas afetam a forma do Estado. A par da autonomia regional, que é efeito da descentralização política ou político‑administrativa, conhece‑se a autonomia (ou talvez melhor, uma gama algo diversificada de formas de autonomia) de que são dotadas certas comunidades territoriais dependentes de outros Estados ou em regimes especiais. Trata‑se aqui de um conceito empírico destinado a descrever algo de situado entre a não autonomia territorial e o estatuto de Estado independente ou entre a não autonomia territorial e a integração em Estado independente, em igualdade com quaisquer outras comunidades que deste façam parte. São, designadamente, quatro os tipos de estatutos de autonomia de comunidades territoriais: autonomia derivada de antigos laços feudais (a ilha de Man e as ilhas Anglo‑Normandas em relação à Coroa britânica); autonomia ligada a vínculos coloniais, semicoloniais ou pós‑coloniais (as colónias autónomas e semiautónomas britânicas, como é o caso de quase todos os países da Commonwealth of Nations antes de acederem à independência e das Bermudas, de Gibraltar ou das ilhas Caimão, entre outros territórios; de certo modo, dos territórios ultramarinos franceses, como a Nova Caledónia ou a Polinésia; de Guame, das ilhas Marianas do Norte e da Samoa Americana, em relação aos Estados Unidos); autonomia com associação a outros Estados (as Antilhas Holandesas e Aruba em face da Holanda, Porto Rico perante os Estados Unidos, as ilhas Cook e Niue em relação à Nova Zelândia); autonomia ligada a situações internacionais especiais (Fiume entre 1919 e 1924, o Sarre entre 1919 e 1935 e entre 1945 e 1955, Danzig entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, Trieste entre 1947 e 1954, Berlim entre 1949 e 1990, Macau entre 1976 e 1999; numa fase de preparação para a autodeterminação, alguns territórios sob mandato ou sob tutela). A estrutura da autonomia das regiões autónomas e a das comunidades territoriais dependentes acabadas de enunciar dir‑se‑iam prima facie similares. Há autonomias mais extensas ou menos extensas num lado e noutro e também são variáveis os poderes de controlo e de intervenção das autoridades estatais. Mas a natureza e o sentido da autonomia são completamente diversos, consoante se trate da autonomia com integração ou sem integração. A autonomia própria das regiões autónomas é uma autonomia com integração. É a autonomia – sejam quais forem as razões em que se funde – de comunidades que compõem, com outras, um povo, ao qual corresponde um certo e determinado Estado e que, por essa via, têm pleno acesso à soberania desse mesmo Estado. Pelo contrário, a autonomia sem integração – resulte ela de laços feudais, coloniais, associativos, internacionais ou outros – implica uma separação e, ao mesmo tempo, uma subordinação. A comunidade que dela goza não se considera constitutiva do povo do Estado soberano a que se encontra vinculada e está, portanto, numa espécie de capitis deminutio perante ele; o seu território não é parte integrante do território desse Estado soberano (ou se, porventura, é declarado parte integrante, encontra‑se numa condição particular frente à metrópole); em virtude desta diferenciação, avulta a imperfeição do respetivo estatuto constitucional. É uma constante do direito constitucional português a unidade ou unicidade do poder político, com maior ou menor grau de descentralização e desconcentração (embora a locução “Estado unitário” só apareça desde a Constituição de 1911). Apenas a Constituição de 1822 esboçara algo diferente: uma união real com o Brasil – aliás, bastante imperfeita, por faltar uma assembleia própria do Brasil, e logo ultrapassada, por, ainda antes da aprovação final do texto constitucional, o Brasil se ter declarado independente. Para além disso, não houve senão a aplicação tendencial dos princípios da especialização e da descentralização legislativas aos territórios ultramarinos pelas Constituições de 1838, 1911 e 1933 e pelo Ato Adicional à Carta de 1852. O art. 6.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), em contrapartida, vem converter os Açores e a Madeira em regiões autónomas dotadas de estatutos político‑administrativos e de órgãos de governo próprio (CRP, art. 6.º, n.º 2). Esta é uma fortíssima alteração qualitativa, introduzida não somente na situação dos arquipélagos – cujos distritos, desde 1895, gozavam de maior autonomia administrativa do que os distritos continentais –, mas também na própria estrutura do Estado português – correspondente à nação portuguesa, no seu espaço europeu e atlântico –, que, pela primeira vez na história, confere assim poderes substancialmente políticos a órgãos regionais com titulares não designados pelo poder central. Não se adotou uma regionalização política integral: as regiões administrativas previstas para o continente – a existirem – constituirão meras autarquias locais (CRP, arts. 236.º, n.º 1, 255.º-262.º). Portugal não deixa, por isso, de ser um Estado unitário regional (apesar de esta designação não estar expressamente consagrada no texto constitucional). Se bem que situada no contexto de 1975‑1976 (com o país saindo do processo revolucionário, com o poder central enfraquecido e perante certos receios de separatismos), a decisão constituinte correspondeu a algo de muito profundo. Foi uma resposta adequada tanto às reivindicações de desenvolvimento e de autonomia das populações insulares como aos próprios princípios constitucionais proclamados (descentralização e participação). Três dos projetos de Constituição apresentados à Assembleia Constituinte já contemplavam um regime político‑administrativo, mas o impulso para a sua definição viria das “juntas regionais” (entretanto constituídas nos dois arquipélagos pelo Governo provisório) e, sobretudo, da 8.ª Comissão e dos debates travados no plenário da Assembleia Constituinte quase no termo dos seus trabalhos. Entrada em vigor a CRP, logo o Governo provisório publicou – em obediência ao seu art. 302.º – estatutos provisórios e leis eleitorais para as primeiras eleições regionais. Estes estatutos vigorariam até serem elaborados os estatutos definitivos (CRP, art. 302.º, n.º 3), o que aconteceria, quanto aos Açores, com a lei n.º 39/80, de 5 de agosto (depois alterada pela lei n.º 9/87, de 20 de março, pela lei n.º 61/98, de 27 de agosto, e pela lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro), e, quanto à Madeira, com a lei n.º 13/91, de 5 de junho. As revisões constitucionais – sobretudo a de 1997 e, muito mais ainda, a de 2004 – introduziram clarificações e modificações importantes, sempre no sentido de um aumento da autonomia. Em 1982, as regiões autónomas receberam poder tributário próprio, o poder de definir atos ilícitos de mera ordenação social, o poder de criar e extinguir autarquias locais e o poder de participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos (CRP, art. 229.º, posteriormente 227.º). Foram aperfeiçoadas as regras sobre a reserva de competência da Assembleia Regional e sobre o veto do ministro da República (CRP, arts. 234.º e 235.º, depois 232.º e 233.º). Desapareceu a possibilidade de suspensão dos órgãos regionais pelo Presidente da República (CRP, art. 234.º inicial). Foi extinta a comissão consultiva para os assuntos das regiões autónomas (CRP, art. 236.º inicial). Assimilou‑se o contencioso de legalidade de normas regionais ou perante os estatutos regionais ao contencioso de constitucionalidade (CRP, arts. 280.º e 281.º). Em 1989, reconheceu‑se às assembleias, posteriormente chamadas Assembleias Legislativas Regionais, o poder de desenvolver Leis de Bases. Admitiram‑se autorizações legislativas da Assembleia da República a essas Assembleias para efeito de derrogação de leis gerais da República em matérias não reservadas aos órgãos de soberania. Foram concedidos às regiões os poderes de estabelecer cooperação com entidades regionais estrangeiras e de participar em organizações que tenham por objeto fomentar o diálogo e a cooperação inter‑regionais (CRP, art. 229.º, posteriormente 227.º). Garantiram‑se direitos de informação à oposição nessas Assembleias (assim como, aliás, às oposições do poder local) (CRP, art. 117.º, depois 114.º, n.º 3). Em 1992 e em 2001, nenhum preceito sobre regiões autónomas foi modificado. A revisão constitucional de 1997 reforçou o poder legislativo das regiões, pela subordinação de respetivos decretos aos princípios fundamentais das leis gerais da República, e não simplesmente às leis gerais da República (quer dizer, aos preceitos, um a um, destas leis), e pela enunciação, a título exemplificativo, de matérias de interesse específico (CRP, arts. 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º). Abriu caminho a um regime estável de finanças regionais, objeto de lei orgânica (CRP, arts. 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3). Consagrou a participação das regiões no processo de construção europeia (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas v) e x)). Eliminou a cláusula de vedações do art. 230.º inicial. Reduziu o conteúdo funcional do estatuto dos ministros da República, que deixaram de representar a soberania da República, de ter assento em Conselho de Ministros e de exercer funções administrativas, salvo, mediante delegação do Governo, poderes de superintendência nos serviços regionais do Estado, e cujos mandatos ficaram a coincidir com o do Presidente da República (CRP, art. 230.º). Atribuiu ao Governo regional um poder de auto‑organização (CRP, art. 231.º, n.º 5). Criou o referendo regional (CRP, art. 232.º, n.º 2). E passou a admitir a dissolução das Assembleias Legislativas apenas por prática de atos graves contrários à Constituição (CRP, art. 234.º). A revisão de 2004 iria muito mais longe, assimilando, para vários efeitos, o regime das Assembleias Legislativas das regiões autónomas (e não mais Assembleias Legislativas Regionais) ao regime da Assembleia da República (CRP, arts. 52.°, n.º 2 e 232.°, n.° 4); permitindo a delegação de competências do Governo da República aos Governos regionais, com a correspondente transferência de meios financeiros e os mecanismos de fiscalização aplicáveis (CRP, art. 229.°, n.° 4); substituindo os ministros da República para as regiões autónomas por representantes da República, nomeados e exonerados pelo Presidente da República, apenas ouvido o Governo (e não sob proposta do Governo) e sem poderem receber, por delegação do Governo, competências de superintendência nos serviços do Estado nas regiões (CRP, arts. 230.°; 134.°, alínea i) e 145.°, alínea c)); suprimindo o poder do Presidente da República de dissolver os órgãos de governo próprios das regiões por prática de atos graves contrários à Constituição (CRP, art. 234.°, n.° 1), passando a admitir-se, porém, a dissolução das Assembleias Legislativas em termos análogos aos da dissolução da Assembleia da República (CRP, arts. 234.°, n.os 1 e 3, e 133.°, alínea j)) e ficando, em caso de dissolução, os Governos regionais demitidos, mas com as funções de Governo de gestão (CRP, art. 234.°, n.° 2). Por outro lado, esta revisão constitucional: eliminou o interesse específico como critério definidor dos poderes legislativos regionais (CRP, arts. 112.°, n.° 4, e 227.°, n.° 1, alínea a)), bem como a referência a leis gerais da República (mesmos preceitos), embora estas não desapareçam, obviamente, porque continua a haver leis aplicáveis a todo o território nacional, quer no âmbito da reserva dos órgãos de soberania, quer quando falte legislação regional própria não reservada a estes órgãos (CRP, art. 228.°, n.° 2) – simplesmente, nesta segunda hipótese, novos decretos legislativos regionais prevalecem sempre no âmbito regional; remeteu para os estatutos político-administrativos as matérias não reservadas aos órgãos de soberania em que consiste a autonomia legislativa regional (CRP, art. 228.°, n.° 1), mas devendo os correspondentes preceitos estatutários ser aprovados, na Assembleia da República, por dois terços dos deputados presentes, desde que o seu número seja superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções (CRP, art. 168.º, n.º 6, alínea f)); reiterou o poder (perdido em 1997) de transposição de atos jurídicos da União Europeia que versem sobre matérias de autonomia legislativa (CRP, arts. 112.°, n.° 8, e 227.°, n.° 2, alínea x)); em vez da possibilidade de autorizações legislativas para derrogação de princípios fundamentais de leis gerais da República, previu a possibilidade de autorizações legislativas sobre a maior parte das matérias de reserva relativa da Assembleia da República, se bem que não das mais importantes no plano dos direitos fundamentais e dos órgãos de poder (CRP, art. 227.°, n.° 1, alínea b)); possibilitou o desenvolvimento por decreto legislativo regional, para o âmbito regional, dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam – de quaisquer leis, sem exceção, incluindo em matérias reservadas à Assembleia da República (CRP, art. 227.°, n.° 2, alínea d), em confronto com o anteriormente estipulado). O art. 225.º da CRP aponta os fundamentos, as finalidades e os limites da autonomia regional (parecendo, em parte, uma exposição de motivos): “1. O regime político‑administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira fundamenta‑se nas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares. – 2. A autonomia das regiões visa a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico‑social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses. – 3. A autonomia político‑administrativa regional não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce‑se no quadro da Constituição”. A despeito de ser muito denso, este artigo deve ser lido em conexão com os arts. 9.º, alínea g), 81.º, alínea d), 90.º e 229.º, n.º 1: é tarefa fundamental do Estado promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o “carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira” (CRP, art. 9.º, alínea g)); os órgãos de soberania asseguram, em cooperação com os órgãos do Governo regional, o desenvolvimento económico e social das regiões autónomas, “visando, em especial, a correção das desigualdades derivadas da insularidade” (CRP, art. 229.º, n.º 1). A par dos elementos estritamente políticos, põem‑se, assim, em foco elementos económicos e sociais. Para além da autonomia como valor em si e da maior e mais direta participação dos cidadãos na gestão dos assuntos que lhes dizem respeito, pretende‑se realizar a igualdade efetiva entre os Portugueses (CRP, art. 9.º, alínea d)). Porque a vida nas ilhas, mormente nas menores e mais afastadas, arrasta carências e obstáculos à plena fruição de direitos económicos, sociais e culturais, incumbe ao Estado e às regiões, em diálogo e obra comum, procurar remover tais carências e obstáculos através do desenvolvimento e da solidariedade. No essencial, o regime político‑administrativo da Madeira e dos Açores consiste em: atribuição de poderes atinentes ao tratamento das matérias de âmbito regional, designadamente poderes legislativos (CRP, arts. 227.º, n.º 1, alíneas a), b), c), i), l), m), p), 1.ª parte, e q), 112.º, n.º 8, e 228.º), regulamentares (CRP, art. 227.º, n.º 1, alínea d)) e executivos (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas g), h), m) e o)); atribuição também de poderes de participação em atos de órgãos do Estado que afetem especificamente as regiões (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas e), f), p), 2.ª parte, r), s), t), v) e x)); atribuição ainda de poderes adjetivos ou de garantia (CRP, arts. 281.º, n.º 2, alínea g), e 283.º, n.º 1); criação de uma assembleia representativa e de um governo perante ela responsável como órgãos de governo próprio (CRP, arts. 231.º e 232.º); reserva de iniciativa das Assembleias Legislativas Regionais quanto aos estatutos das respetivas regiões e quanto à eleição dos seus deputados (CRP, art. 226.º); articulação dos órgãos de soberania e dos órgãos de autonomia, através de vários poderes do Presidente da República (CRP, arts. 133.º, alíneas b), d), j) e l), e 234.º), dos poderes de participação das regiões, do Conselho de Estado (CRP, art. 242.º, alínea e)) e do representante da República (CRP, arts. 230.º, 231.º, nos 3 e 4, e 233.º); integração da produção legislativa regional no sistema legislativo nacional (CRP, arts. 112.º, 227.º, 228.º e 278.ºss.), bem como das finanças regionais no sistema financeiro nacional (CRP, arts. 106.º, n.º 3, alínea e), 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3). Em confronto com os sistemas regionais mais próximos (o italiano e o espanhol) depara‑se, como notas individualizadoras do sistema português, além do seu carácter parcial: a aprovação do estatuto de cada região por lei ordinária (CRP, art. 166.º, n.º 3) e não por lei constitucional, ainda que o seu processo ofereça significativas particularidades (CRP, art. 226.º); o valor reforçado do estatuto (CRP, arts. 280.º, n.º 2, alíneas b), c) e d), e 281.º, n.º 1, alíneas c) e d)); a explícita consagração constitucional de poderes de incidência internacional (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas s) a x)); a atribuição às regiões não só de poder tributário próprio mas também de todas as receitas tributárias nelas cobradas (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas i) e j)); o sistema de governo regional (CRP, art. 231.º), diferente do sistema de governo a nível nacional; a proibição de partidos regionais (CRP, art. 311.º, n.º 2, no texto inicial; 51.º, n.º 4, posteriormente). Até à revisão constitucional de 2004, também poderia ser referida a definição da autonomia legislativa com base em conceitos relativamente indeterminados – “interesse específico e leis gerais da República” (CRP, arts. 112.º, n.os 4 e 5, e 227.º, n.º 1, alíneas a), b) e c)). Ponto importante a dilucidar vem a ser o atinente ao sentido dos estatutos das regiões. A função de cada estatuto (note‑se, político‑administrativo) consiste em definir as atribuições regionais e os meios correspondentes (CRP, art. 227.º), bem como o sistema de órgãos de governo próprio da região, incluindo os estatutos dos respetivos titulares (CRP, art. 231.º); ou, em geral, em desenvolver, explicitar ou concretizar as normas do título vi da parte iii da Lei Fundamental, adequando‑as às especificidades e às circunstâncias mutáveis dessa região; não consiste em estabelecer os princípios de toda a vida política, económica, social e cultural que aí se desenrola, porque isso cabe à Constituição – que é a Constituição da República, e não só do continente. Há uma reserva de estatuto, com a necessária densificação (voltamos a dizer). Em contrapartida, ela define, concomitantemente, o objeto possível de cada estatuto em concreto. O estatuto não é uma constituição com amplitude potencialmente ilimitada. Cabe‑lhe definir o interesse específico, cerne da autonomia, mas não regular matérias de interesse específico. Cabe‑lhe assegurar um sistema político regional, mas não substituir‑se‑lhe ou substituir‑se aos órgãos de soberania. Por outro lado, competindo a iniciativa originária do estatuto ou das suas alterações à Assembleia Legislativa (CRP, art. 226.º), se o estatuto pudesse abarcar qualquer matéria, ficaria, por esse modo, limitado o poder de iniciativa dos deputados, dos grupos parlamentares, de grupos de cidadãos ou do Governo da República relativamente a essa matéria (CRP, art. 167.º). A Assembleia pode, certamente, apresentar propostas de lei, “no respeitante” à região, sobre qualquer objeto (CRP, art. 167.º, n.º 1, 2.ª parte), o que não justifica transformar essa matéria em matéria estatutária. Se um dos estatutos contiver normas sobre outras matérias que não as respeitantes às atribuições e aos órgãos e aos titulares dos órgãos regionais, essas normas não adquirirão a força jurídica específica das normas estatutárias. Por conseguinte, poderão ser modificadas ou revogadas, observadas as pertinentes regras gerais da Constituição; ou poderão, desde logo, ser inconstitucionais por invadirem domínios próprios de outras leis. Não custa pensar em exemplos de inconstitucionalidade de eventuais normas estatutárias por preterição da distribuição constitucional de formas e procedimentos legislativos. Seria o caso de normas sobre eleições dos titulares dos órgãos de governo próprio ou dos titulares dos órgãos do poder local na região (afetando o art. 164.º, alíneas j) e l), e o art. 166.º, n.º 2 da CRP), sobre criação, extinção ou modificação territorial de autarquias locais (infringindo o art. 164.º, alínea n) da CRP), ou sobre direitos, liberdades e garantias (contra o art. 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP), ou sobre reprivatizações (CRP, art. 296.º). Quanto às eleições, em especial, não se esqueça o tratamento homogéneo que recebem da Constituição, quer no plano dos grandes princípios substantivos (CRP, arts. 10.º, 49.º; e 113.º), quer no da regulamentação legislativa (CRP, arts. 164.º, alíneas a), j) e l), e 136.º, n.º 3, alínea c)), quer no da competência do Presidente da República (CRP, art. 133.º, alínea b)), quer ainda no plano dos limites materiais da revisão constitucional (CRP, art. 288.º, alínea h)). Esse tratamento unitário e reforçado – compreensível por causa da importância fulcral das eleições em democracia representativa (CRP, art. 10,º, n,º 1) – ficaria afetado se o regime das eleições regionais fosse repartido pelas leis eleitorais e pelos estatutos. Em escritos de há vários anos, tendíamos a reconduzir as situações a inconstitucionalidade formal por excesso de forma. Revendo a nossa posição, desdobrámo‑las agora em geral, em mera irrelevância e, em hipóteses como as acabadas de enunciar, em inconstitucionalidade – por insuficiência de forma, no caso das eleições, quando se não respeitem as regras próprias das leis orgânicas (CRP, arts. 136.º, n.º 3, 168.º, n.º 5, e 278.º, n.º 5); e, nos demais casos por desvio de forma (por se utilizar uma forma para fim diferente daquele para o qual está instituída). Por outro lado, sustentávamos que se a Assembleia da República viesse, subsequentemente, a legislar sobre matérias que não deviam constar dos estatutos, ocorreria um conflito entre constitucionalidade e legalidade: as normas estatutárias seriam inconstitucionais, as normas não estatutárias ilegais; e, solicitada a apreciação da legalidade em tribunal, poderia este suscitar ex officio a questão da constitucionalidade daquelas, visto que, para serem padrão de validade de outras normas, teriam de ser conformes com a Constituição. Mas hoje estimamos desnecessário raciocinar assim, porque só as normas sobre objeto próprio dos estatutos poderão determinar ilegalidade, não quaisquer outras, e, portanto, não se põe o problema. Contra a consideração de mera irrelevância, há quem pretenda que não seria razoável dar ao legislador comum a possibilidade de destacar as normas que entenda a seu bel‑prazer serem estatutárias e não estatutárias “por natureza”; e, contra a qualificação de certas normas estatutárias como inconstitucionais pelo próprio órgão legislativo, quem invoque o sistema de fiscalização, que não consente à Assembleia da República nenhuma decisão autónoma de constitucionalidade. Mas julgamos que as críticas não atingem o alvo, pois que não preconizamos que o legislador declare, explícita ou implicitamente, inconstitucional qualquer norma; o Parlamento agirá como tal, simplesmente legislando, por sua conta e risco – sobre eleições, como sobre qualquer outra matéria – e quem irá decidir, em última análise, da constitucionalidade e da legalidade de todas as normas será o Tribunal Constitucional.   Jorge Miranda (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Política e Institucional

radiodifusão portuguesa / rdp - madeira

A 28 de maio de 1941, o Diário de Notícias da Madeira, citando o Diário dos Açores, com uns dias de atraso, compreensível para a época, anunciava na 1.ª página que “um emissor regional da Emissora Nacional está a ser instalado na cidade de Ponta Delgada”. O matutino da rua da Alfândega acrescentava que “a Madeira também espera igual melhoramento’’. Estava então em marcha um plano do Ministério das Obras Públicas e Comunicações “para remodelar amplamente os serviços de radiodifusão”, que incluía a Madeira entre as terras que vão ser dotadas com um emissor regional. ‘‘Embora ainda nada conste sobre essa instalação” – adianta a notícia –, “é de admitir que ela venha a ser um facto palpável num próximo futuro, tanto mais que a Madeira representa um alto valor no quadro dos domínios da soberania portuguesa” (“Um Emissor…”, DNM, 28 maio 1941, 1). Só que o futuro, que se desejava breve, tardou 26 anos. Na costa norte, com o auxílio de grandes antenas, era possível ouvir a Emissora Nacional e o Rádio Clube Português com alguma qualidade, o que não acontecia no sul e sudoeste. Face à deficiente eletrificação nos concelhos rurais, os poucos aparelhos de rádio (telefonias) aí existentes eram, em muitos casos, alimentados por baterias de automóveis. Mais tarde, com a regionalização da Empresa de Eletricidade da Madeira (EEM), através do dec.-lei n.º 31/79, de 24 de fevereiro, ‘‘são lançadas as grandes obras com vista à completa eletrificação da ilha da Madeira’’ que só se veio a atingir nos anos 80. Sem rádio nem televisão, e com imensas carências de múltipla ordem, nomeadamente ao nível da rede rodoviária, a Madeira sentia-se limitada pela sua secular insularidade. A chamada “pérola do Atlântico” dividia-se de forma vincada em cidade e campo; dê-se como exemplo o aeroporto, inaugurado apenas a 8 de julho de 1964, com uma pista de 1600 metros e sem capacidade para receber voos intercontinentais. A grande porta dos madeirenses era o mar, mas o alargamento do porto só ficou concluído em 1961, 48 anos depois de ter sido criada a Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal, a 13 de agosto de 1913. A Emissora Nacional de Radiodifusão (EN), inaugurada oficialmente a 4 de agosto de 1935, instalou o Emissor Regional da Madeira a 22 de outubro de 1967, quase 26 anos depois do início da radiodifusão nos Açores que ocorreu a 28 de maio de 1941. Um ano antes, fora publicada a primeira Lei Orgânica da EN (dec.-lei n.º 30.572), que consagrou a criação dos emissores regionais do Porto, Coimbra e Faro. O Funchal ficou esquecido durante quase três décadas até que, finalmente entrou em funcionamento um emissor de 1 kW em onda média (OM), na frequência de 1332 quilociclos por segundo, na Escola do Tanque, na freguesia do Monte, para a cobertura da cidade durante um período experimental. Rui Ivo Nunes Pereira foi o primeiro diretor (designado por Intendente), tendo sido empossado, em Lisboa, com mais de dois anos de antecedência, a 28 de maio de 1965. A abertura da primeira emissão coube ao locutor Virgílio Gonçalves. Os estúdios ficavam na rua dos Netos, n.º 27, havendo dois pequenos períodos diários de emissão: de segunda-feira a sábado das 11.30 h às 14.00 h e das 19.00 h às 23.00 h; e aos domingos, entre as 12.00 h e as 23.00 h. Na altura, o país ouviu pela primeira vez a reportagem em direto da passagem do ano na Madeira. A 24 de março de 1968, assistiu-se à transmissão do primeiro relato de um jogo futebol (entre o Marítimo e o Lusitânia dos Açores) por Artur Agostinho e Armindo Abreu, no Estádio dos Barreiros, a contar para a Taça de Portugal. Em 1969, teve lugar a ampliação dos estúdios e entrou em funcionamento uma Central Técnica, procedendo-se ao aumento da potência para 10 kW, na Estação do Monte. Fez-se a primeira emissão em frequência modelada (FM) (na frequência de 96.0) para o Funchal com um emissor de 50 W, instalado nos estúdios. Em 1971, alargou-se ligeiramente o tempo de programação, normalmente preenchido com gravações vindas em bobinas do Serviço de Intercâmbio de Lisboa, passando-se a emitir um espaço regional de produção própria, apresentado por Armindo Abreu, entre as 10.00 h e as 11.30 h, de segunda a sexta-feira. Em 1974 a EN consegue outro estatuto, abrindo-se a antena entre as 07.00 h e as 24.00 h. No dia 25 de abril de 1974 (o dia da Revolução dos Cravos), e igualmente no dia seguinte, o responsável pelo Emissor Regional da Madeira da EN, revelando incerteza ou desconfiança sobre o que se passava na capital, mas que já se refletia bastante nas ruas do Funchal, não aderiu prontamente ao Movimento das Forças Armadas (MFA), para o que lhe bastava transmitir em cadeia com a emissão a nível nacional. Em consequência dessa tomada de posição, e depois de os funcionários terem enviado um telegrama ao MFA, alertando para a situação, verificou-se o afastamento do Intendente, António Vermelho Corral, substituído pelo locutor de 2.ª classe Duarte Manuel da Câmara Brito Gomes (Duarte Canavial), conforme noticiou, na abertura, o Diário Sonoro das 20.00 h do dia 27 de Abril. Tempos depois, no decorrer do chamado Verão Quente de 1975, período de grande tensão política entre a esquerda e a direita, houve um atentado bombista no centro emissor do Monte, a 22 de agosto, que provocou a interrupção da emissão em OM durante dez dias. A 7 de outubro, os estúdios são ocupados durante cerca de quatro horas por um grupo que se intitulou de “retornados” (portugueses regressados das antigas províncias ultramarinas) que exigia uma emissora livre, fora do controlo de fações esquerdistas, e a readmissão dos locutores Armindo Abreu, Duarte Canavial e Juvenal Xavier; horas depois, deu-se uma contrainvasão por um grupo do Sindicato da Construção Civil, que ficava nas traseiras do prédio do Emissor Regional. O Comando Militar da Madeira ordenou a desocupação das instalações, garantindo a sua vigilância durante um mês. A 2 de dezembro de 1975, o governo de Pinheiro de Azevedo nacionalizou a rádio “no território continental” (decreto-lei n.º 674-C/75) e foi constituída uma empresa pública de radiodifusão (EPR), depois denominada Radiodifusão Portuguesa, EP (RDP), com o objetivo de “reconduzir a atividade de radiodifusão às dimensões e características de um serviço público que sirva o povo e a Revolução”. Por não haver qualquer referência às ilhas adjacentes por parte do legislador (era ministro da Comunicação Social Almeida Santos), não são abrangidos pelo diploma o Posto Emissor do Funchal e a Estação Rádio da Madeira. A 24 de maio de 1980, a delegação da Madeira tornou-se um Centro Regional (dec.-lei n.º 155/80), funcionando como representação descentralizada, dotada de autonomia de gestão e financeira. Segundo o artigo 6.º, o diretor era nomeado pelo conselho de gerência da RDP, precedendo acordo do governo regional que, por sua vez, através do departamento competente, poderia propor, também, a sua exoneração. A 1 de julho de 1982, com a inauguração do centro emissor do Arieiro, atingiu-se a cobertura total do arquipélago em OM (10 kW) e em FM (5 kW). Em 1983, principiaram as emissões em estereofonia. Data de 1984 a construção de um estúdio que possibilitou o desdobramento da programação em OM e FM. Em 1986, ocorre a ampliação da rede de FM com a estação do Paul da Serra, estendendo-se o sinal a parte da costa oeste. Com a instalação da estação do Porto Santo, em 1987, reforçou-se a penetração nesta ilha e também na costa norte da Madeira. Com a entrada em atividade de um estúdio auto-operado, em 1988, foi criado o 2.º Canal, com a designação de Super FM, que emitia entre as 10.00 h e as 02.00 h. Em 1989, prossegue a ampliação da rede de FM com a estação de Gaula (300 kW). Em 1990, houve novo aumento da potência do Monte para 500 W e do Paul da Serra para 200 W. Em 1991, arrancaram as obras do novo centro de produção do Funchal, na rua tenente-coronel Sarmento, num terreno com 1 265 m2 que fora adquirido em 1977. Em 1992, leva-se a efeito a ampliação da rede de FM do Canal 2, através das estações do Cabo Girão, Ribeira Brava, Pico do Facho (Machico) e Achadas da Cruz. Em dezembro, o mesmo sucedeu com a rede de FM do Canal 1, com as estações do Cabo Girão e do Monte. Em 1993, coloca-se um novo feixe hertziano em direção ao Pico do Arieiro e amplia-se a rede de FM do Canal 1, a partir do centro emissor do Monte e das estações do Paul da Serra, Achadas da Cruz, Ponta do Pargo, Pico do Facho (Machico), Porto Santo e Ribeira Brava. Em 1994, são montadas as estações de Gaula e da Encumeada. A abertura de um novo centro de produção era uma grande aspiração do Centro Regional da Madeira, sob a direção de Manuel Correia. A rádio pública funcionava num edifício da baixa da cidade, sem qualidade e sem condições, que sofreu uma série de obras de adaptação para se obter uma maior funcionalidade. O processo iniciou-se em maio de 1987, quando a RDP apresentou uma candidatura ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) para a edificação do novo centro. Em dezembro de 1988, a Comissão das Comunidades Europeias aprovou a concessão de um financiamento para o projeto, da autoria dos arquitetos Pedro Santos Costa e José Calheiros, celebrado a 9 de abril de 1990 (a primeira pedra foi lançada a 1 de setembro) e concluído no início de 1991. O edifício compunha-se de dois elementos contíguos de quatro e cinco pisos, interligados por uma galeria e terminando numa torre na zona oposta à entrada, para a colocação de antenas de feixes hertzianos. A área total de construção correspondia a 2985 m2. O centro foi equipado com três estúdios auto-operados, dois convencionais e um de média produção, além de uma central técnica de programas automática, programável e de comutação digital. A inauguração do primeiro centro de produção de rádio em Portugal construído de raiz registou-se a 14 de abril de 1993. A 28 de maio de 2011, e uma vez que se tinha efetivado, em 2004, a incorporação da RTP e da RDP na Rádio e Televisão de Portugal, a rádio transferiu-se para o edifício do Centro Regional da Televisão. A 5 de dezembro de 2012, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, “legítima representante dos cidadãos da Madeira e do Porto Santo, recomenda ao Governo da República que a verba referente à alienação das antigas instalações da RDP-M, à rua Tenente Coronel Sarmento, no Funchal, que se encontram encerradas desde 28 de Maio de 2011, reverta inteiramente em favor do reequipamento da RTP-M e da RDP-M”. A resolução n.º 2/2013/M da Assembleia Legislativa da Madeira foi publicada no Diário da República, I Série, n.º 6, de 9 de janeiro de 2013. A rádio do Estado mudou de residência pela terceira vez, passando a coabitar com a televisão, em Santo António. Com o aparecimento da televisão, a rádio deixou de ser a protagonista dos serões que reuniam a família à sua volta, embora na Madeira, onde as novidades demoravam muito mais tempo a entrar na moda, a sua idade da fama tenha sido mais prolongada, atingindo e porventura ultrapassando os anos 80 do séc. XX ainda com considerável vigor e penetração no tecido social. O transístor das grandes vozes foi perdendo audiências, mas continuou a ser uma força fundamental e indispensável no campo da nova informação, sobretudo pela sua inegável mobilidade e rapidez. Com o mundo novo da internet, a rádio mundializou-se, globalizou-se, deixou a aldeia e ganhou outra gama de ouvintes, que redescobriu a intimidade de um som antigo. No caso tipicamente madeirense, devido à orografia bastante acidentada que dificulta a propagação das ondas, a RDP teve de transformar-se, lançando uma vasta rede de emissores de FM para garantir a cobertura, que é assegurada na sua totalidade por 31 frequências MHz: Antena 1 (13 frequências): 90.2 (Ponta do Pargo), 92.0 (Massapez), 93.1 (Encumeada/Pico do Facho), 95.5 (Pico do Arieiro), 96.7 (Cabo Girão), 98.5 (Gaula), 100.5 (Porto Santo), 101.6 (Caniço), 101.9 (Paul da Serra), 104.3 (Achadas da Cruz), 104.6 (Monte/Santa Clara/Funchal), 105.4 (Calheta), 105.6 (Ribeira Brava); Antena 2 (5 frequências): 99.0 (Caniço), 99.4 (Cabo Girão), 102.4 (Funchal), 103.3 (Porto Santo), 106.3 (Gaula); Antena 3 (13 frequências): 89.3 (Caniço), 89.8 (Monte/Santa Clara/Funchal), 90.8 (Encumeada/Pico do Facho), 91.3 (Gaula), 93.3 (Paul da Serra), 94.1 (Pico do Arieiro), 94.6 (Ponta do Pargo), 94.8 (Cabo Girão), 95.7 (Massapez), 96.5 (Porto Santo), 103.1 (Ribeira Brava), 105.0 (Achadas da Cruz), 107.5 (Calheta). Mesmo com toda esta substantiva rede de emissores por vales e serras, a rádio deparou com uma grande e intransponível “parede” à sua transmissão com a construção, a partir de 1989, de 116 túneis rodoviários, que atingiram uma extensão de quase 80 km. Em setembro de 1997, o Serviço Técnico da RDPM, chefiado por Paulo Brazão, elaborou um estudo técnico-científico para a cobertura radiofónica do túnel da via rápida entre o Funchal e a Ribeira Brava. O projeto contemplava spotes (pequenas antenas de emissão) e traçados de cabos radiantes, capazes de difundir vários programas de FM e comunicações de um ou mais operadores. A administração da RDP autorizou a sua instalação nos túneis de Santa Clara, do Cabo Girão e da Ribeira Brava. Depois de autorizado pela Câmara Municipal do Funchal, em 22 de outubro de 1999, teve início a instalação desse sistema, que começou a funcionar a 5 de maio de 2000, sendo o túnel de Santa Clara o primeiro a possuir este tipo de cobertura no país. Alguns programas da rádio pública, sobretudo das décs. de 80 e 90 do séc. XX, têm um lugar especial no baú das recordações dos madeirenses que os ouviam: “Quotidiano”, “Duche da Manhã”, “Interferências de Verão”, “Quatro Linhas”, “AZERT” e a radionovela “Neto Herói”.   Estação Rádio da Madeira CSB 90 A Estação Rádio da Madeira (ERM), que teve origem no Rádio Clube da Madeira, calou-se definitivamente no dia 6 de agosto de 2000; a sua casa, no Pico dos Barcelos, foi demolida em agosto de 2013, encerrando a história de mais de meio século da chamada “emissora do cambado”. O seu fundador, Mário de Sousa Portela Ribeiro, vivera o aparecimento, em 1930, do Rádio Clube Português (RCP), propriedade de Botelho Moniz, onde exercera o cargo de diretor técnico; a mulher, Isabella Ferreira, fora locutora nas emissões da noite em inglês, em 1936, no início da Guerra Civil em Espanha. Contudo, divergências com Botelho Moniz fizeram-no partir para a Índia em 1940, regressando à Madeira depois da Segunda Guerra Mundial. Influenciado pelo facto de a Emissora Nacional não ser ouvida nas melhores condições, Mário de Sousa Portela Ribeiro pôs em marcha a ERM juntamente com o filho, Manuel Dayrell Marrecas Portela Ribeiro. Começaram pela construção artesanal de um pequeno emissor tecnicamente rudimentar em casa, depois mudaram-se para uma vivenda ali perto. As emissões experimentais dão os primeiros passos no dia 6 de janeiro de 1946, com Portela Ribeiro, Isabella Ferreira e os filhos, Edgar e Manuel. A cabina de locução era forrada com sacas de serapilheira para melhorar as condições de acústica. Mas havia um grave problema – não tinham licença dos Serviços Radioelétricos. Na resolução da situação, empenhou-se o governador do distrito autónomo do Funchal, João Abel de Freitas, que aprovara os estatutos do Rádio Clube da Madeira a 31 de dezembro de 1947, em conformidade com o parecer do Conselho Permanente da Ação Educativa, homologado pelo subsecretário de Estado da Educação Nacional. O Rádio Clube da Madeira tinha como fim “reunir os amadores que se interessam pela radiotécnica, promovendo assim o desenvolvimento da radiodifusão em Portugal”. Segundo a alínea b) do art. 2.º dos Estatutos, um desses fins seria “construir ou adquirir uma estação emissora de amador no Funchal e todas as outras que as circunstâncias aconselharem e permitirem” (ARM, GC, “Estatutos…”, cx. 3, 57, 1947). De início, funcionaria na referida sede do RCM, com 300 W. O alvará foi entregue a 3 de janeiro de 1948 e a tomada de posse sucedeu a 30 de março, na Associação Protetora dos Estudantes Pobres do Funchal. A primeira Assembleia Geral, sob a presidência do capitão Carlos Silva, realizou-se no Ateneu Comercial do Funchal a 14 março de 1948, tendo sido eleita a seguinte direção: Mário Portela Ribeiro, José Rafael Basto Machado, Vasco Paiva Brites, Mário Matos, Carlos Silva, Jaime Albuquerque Gonçalves e Luís Sacadura. Como suplentes, Pedro Pires e Carlos Santos. Em dezembro de 1959, começaram as obras de construção da nova sede, no Pico dos Barcelos. Para financiar o investimento, em grande parte suportado pelas economias da família, surgiu a ideia de transmitir um programa de discos pedidos que ocupava uma grande fatia da programação entre as 10.00 h e as 24.00 h, pagando os ouvintes 2$50 por cada vez que a música tocasse. Chegavam a ser 200 por dia, sendo as mais conhecidas para várias pessoas ao mesmo tempo. O rei dos discos pedidos era o brasileiro Teixeirinha – um gaúcho que não parava de cantar “Coração de Luto” e “Canarinho Cantador”. O auditório pedia cantigas para celebrar aniversários, casamentos e batizados; e muitas vezes os emigrantes dedicavam discos à família. Outra fonte de receita era, sem dúvida, os anúncios publicitários, a 15$00 por cada leitura. A programação procurou ter um papel de relevo na defesa dos interesses locais, com ênfase na divulgação de temas sobre agricultura, a cargo da revista Frutas da Madeira e da Junta Nacional dos Lacticínios. A história da Estação Rádio da Madeira CSB 90, comprimento de onda de 202 m e frequência de 1484 quilociclos por segundo, foi marcada por vários diferendos familiares entre Mário de Sousa Portela Ribeiro e os filhos. Mais tarde, com a legalização das rádios locais e a consequente distribuição de novas licenças, a ERM, que já possuía a frequência 96.0, motivou o interesse de José Paulo Ribeiro Moura e de Pedro Cirílio Freitas Gonçalves, que adquiriram o respetivo alvará e todos os meios técnicos. Porém, a nova empresa não conseguiu encontrar uma sede no Funchal, pelo que a Rádio Madeira – como era conhecida na sua fase final – acabou por desligar o seu emissor a 6 de agosto de 2000. Ficará lembrada como a estação jovem que abriu os seus microfones a estudantes e a produtores particulares. Na memória permanecerão programas como “Funchal-65”, “Quando o Telefone Toca”, “Comboio da Noite” e “Rádio Totobola” – o mais antigo em Portugal (com início em 1974).   Posto Emissor do Funchal C.S.3U.A. Em 1946, Eduardo António Santos Pereira propôs ao Conselho Diretivo da Sociedade de Concertos da Madeira que se criasse no Funchal uma emissora regional, proposta que foi aprovada por unanimidade, tendo-se dado todos os passos para se obter a respetiva autorização. A Direção dos Serviços Radioelétricos, entidade que concedia a licença para o funcionamento dos postos emissores, sugeriu que, uma vez que se encontrava pendente outro pedido feito no mesmo sentido pela firma Ramos & Ramos, se juntassem, criando-se uma só estação de radiodifusão particular no Funchal e evitando-se a dispersão de despesas. A 4 de julho de 1947, o projeto mereceu a aprovação do ministro das Comunicações; seria a primeira estação de rádio devidamente autorizada. Assim – depois de um período experimental –, em 28 de maio de 1948, às 18.00 h, com a presença de autoridades civis e militares da Madeira, eram oficialmente lançadas para o éter as palavras: “Aqui Funchal, Posto Emissor C.S.3U.A. a transmitir na frequência de 1529 quilociclos dos seus estúdios no Teatro Baltazar Dias” (CLODE, 2000, 154). Nascia assim o Posto Emissor do Funchal C.S.3 U.A. (PEF). No entanto, segundo a imprensa do dia 30, a data e a hora desta primeira emissão não foram as referidas. Com efeito, O Jornal (antecessor do Jornal da Madeira) escrevia que “fazendo parte das comemorações da data gloriosa da Revolução Nacional, realizou-se ontem às 12 horas a inauguração solene do Emissor Regional do Funchal, propriedade da Sociedade de Concertos da Madeira e da firma Ramos & Ramos” (O Jornal, 30 maio 1948,). Para o Diário de Notícias, a cerimónia teve lugar no dia 29, “integrada no programa comemorativo da data do 28 de maio, constituindo, sem dúvida, um dos números de maior audiência para o público” (“O acto inaugural…”, DN, 30 maio 1948, 6). Após a cerimónia, houve a transmissão de um concerto por Wera da Cunha Teles (canto), Lizetta Zarone (piano) e Pedro Lamy dos Reis (violino), professores da Academia de Música da Madeira. A insuficiente cobertura da Madeira pela Emissora Nacional, que “a maioria das vezes, transmitia mais ruídos do que novidades” (CLODE, 2000, 153), provocava o descontentamento dos ouvintes. Era preciso fazer alguma coisa para acompanhar a evolução da nova tecnologia da rádio. Impunha-se congregar esforços, conhecimentos e técnicas. Corriam então os primeiros meses de 1947. Um encontro de quem se dedicava à música e à sua divulgação (William Edward Clode e Luís Peter Clode) com quem estava ligado pelo saber e pelo comércio à eletrotecnia (Herculano Ramos e Arlindo Ramos) propiciou o nascimento do Posto Emissor de Radiodifusão do Funchal. Um técnico de rádio e rádio amador de reconhecido mérito nacional e internacional (João Higínio Acciaioly Ferraz) deu uma apreciável colaboração a esta iniciativa, à qual se juntou também, com entusiasmo, um apaixonado homem de teatro (Mário Basílio de Abreu), que foi o primeiro locutor. A primeira locutora do PEF, Maria Guida Gonçalves Câmara, era estudante da Escola Industrial e Comercial António Augusto Aguiar tendo sido “notada pela sua bela dicção” numa festa de alunos no Teatro Municipal. Guida Câmara “achava mais difícil falar ao microfone do que em palco em frente de toda a gente” (ANA MARIA, 1952, 14). Durante três anos, estúdios e emissor (este com a potência de150 W) estiveram localizados num dos camarins do Teatro Baltazar Dias. As emissões eram às terças, quintas e sábados das 20.00 h às 23.00 h, e aos domingos das 16.00 h às 19.30 h. Em 1952, os estúdios foram transferidos para a rua Fernão de Ornelas e a potência aumentou para 500 W. A 27 de abril de 1958, assinalou-se a primeira transmissão direta de um relato de futebol do Continente para a Madeira, por Joaquim Santos: tratou-se do encontro entre o Futebol Clube do Porto e o Club Sport Marítimo, no Estádio das Antas, para a 2.ª mão dos quartos de final da Taça de Portugal. Em 1959, o PEF instalou-se na rua da Ponte São Lázaro, subindo a potência para 1 KW e emitindo do centro instalado no Livramento, na freguesia do Monte. Em Lisboa já tinham começado as emissões regulares da RTP e o PEF tornou-se seu acionista, sendo depois eleito Presidente da Assembleia Geral. Em 1964, foi outorgada a escritura pública da Sociedade. Em 1967, formou-se a primeira estação de FM com 250 W, matrícula CSB 220, na frequência de 91.9 MHz, colocando-se o emissor no mesmo local dos estúdios. Com o aumento da potência para 1 KW (quatro vezes mais), saltou no quadrante para 92.0 MHz Em 1972, abriu novo centro nas Encruzilhadas (Santo António), onde foi montado o emissor de OM, substituído por outro de 10 KW em 30 de abril de 1987. O emissor de FM esteve no sítio da Barreira (Santo António), com a potência alterada para 2 KW. A 23 de abril de 2013, operou-se a concentração destes emissores no Chão da Lagoa. No seu Estatuto Editorial, constante do art. 34.º da lei 54/2010, o PEF, sob a direção de Teresa Clode, John Ramos, Luís Clode e António Ramos, define-se como “uma rádio privada, independente de quaisquer poderes políticos, económicos ou sociais, inspirando a sua atividade no quadro de valores e princípios da doutrina cristã”. Segundo o ponto 4 do mesmo Estatuto, “procura informar de forma isenta, rigorosa e pluralista, com respeito pelos princípios da ética e da deontologia, privilegiando os factos, os temas e as questões próprias da Região Autónoma da Madeira ou os que a ela se referem, sem prejuízo da restante informação de caráter nacional e internacional” (“A Rádio”, Posto Emissor do Funchal). Dezenas de programas enriqueceram a sua existência, como: “A Semana Passada Aconteceu”, “Enciclopédia Sonora”, “Paralelo 32”, “Vamos Todos Cirandar”, “Meia Hora dos Estudantes” e “Ao Cantar do Galo”. Membro da Associação de Rádios de Inspiração Cristã, o PEF passou a ser uma sociedade por quotas, com um capital social de 115.500 euros, distribuído pelo Seminário Maior de Nossa Senhora de Fátima (50.000), a Diocese do Funchal (50.000), Maria Francisca Teresa Clode (15.000) e a Sociedade de Concertos da Madeira (500).   Das rádios piratas às rádios locais A Rádio SOLMAR – Cooperativa de Radiodifusão CRL, fundada por Luís Ornelas Vasconcelos, surgiu como primeira “rádio pirata” da Madeira a 16 de junho de 1987, tendo o seu Conselho de Administração informado o diretor regional dos Serviços de Radiocomunicações, a 14 de outubro desse ano, de que passava a emitir na frequência de 88.8 MHz, todos os dias, com caráter experimental, utilizando um equipamento da marca RVR, modelo PTX 20. A 9 de janeiro de 1988, a SOLMAR solicitou o licenciamento de uma estação de radiodifusão em FM e estereofonia. Com um pequeno emissor de 15 W, emitiu inicialmente entre as 19.00 h e as 24.00 h e depois entre as 08.00 h e as 24.00 h, na freguesia do Imaculado Coração de Maria, no concelho do Funchal. Mas, por imperativos legais, as emissões terminaram a 24 de dezembro, durante o XI Governo Constitucional de Cavaco Silva, que mandou encerrar todas as «piratas» – um movimento que acabara com o monopólio do Estado. Escreveu-se uma breve história somente com 18 meses, porque a SOLMAR foi excluída dos concursos. Com a lei n.º 87/88, de 30 de julho (a lei da rádio), foram legalizadas as rádios locais, cabendo à Região Autónoma da Madeira 13 frequências. A 6 de março de 1989, são atribuídas apenas 8, 3 das quais para o Funchal – Estação de Rádio/Jornal da Madeira (88.8), Clube Desportivo Nacional/Rádio Clube (106.8) e Estação Rádio da Madeira FM (96.0) – e 5 aos concelhos rurais de Câmara de Lobos (Grupo Desportivo do Estreito/Rádio Girão 98.8), Machico (Rádio Zarco 89.6), Ponta do Sol (Rádio Sol 103.7), Ribeira Brava (Rádio Brava 98.4) e Santa Cruz (Rádio Palmeira 96.1). Em 2000, foram legalizadas as 5 restantes: Rádio S. Vicente (89.2), propriedade dos Bombeiros Voluntários de São Vicente e do Porto Moniz; Rádio Porto Moniz (102.9) da Associação de Desenvolvimento da Costa Norte da Madeira-IPSS (ADENORMA); Rádiourbe (91.6/Calheta), da Empresa de Produção e Comércio de Publicidade Lda.; Rádio Santana (92.1), da Empresa de Radiodifusão e Publicidade Lda; e Rádio Praia (91.6/Porto Santo), da Betamar Lda/Grupo Porto Santo Line. A Estação Rádio da Madeira, que já transmitia em OM desde 6 de janeiro de 1947, arrancou com as emissões em FM a 1 de setembro de 1989. Seguiram-se a Girão, no dia seguinte (a primeira fora do Funchal); a 6, a Jornal da Madeira; e a 9 de dezembro, o Rádio Clube. A 30 de maio de 1990, foi a vez da Rádio Zarco e da Rádio Palmeira; e a 15 de janeiro de 1993, da Rádio Brava e da Rádio Sol. A lei “sobre o exercício de atividade de radiodifusão” estabelece, no seu art. n.º 2, que a mesma pode ser exercida, também, por entidades privadas ou cooperativas. No entanto, o art. n.º 3 proíbe essa atividade aos “partidos ou associações políticas, organizações sindicais, patronais e profissionais, bem como autarquias locais, por si ou através de entidades em que detenham participação de capital”. Aprovado em 31 de maio de 1988, o concurso público para a atribuição das frequências foi lançado em janeiro de 1989. Passados 25 anos, observavam-se várias alterações em relação ao panorama inicial. A Girão, do Grupo Desportivo do Estreito, foi adquirida, em setembro de 1997, pelo Diário de Notícias e pela TSF, sendo autorizada a alteração da frequência 98.8 para 101.0. Com o decorrer das emissões, a Rádio Diário/TSF, verificando que a cobertura do Funchal, através de uma frequência de Câmara de Lobos, não tinha a qualidade desejada, vendeu a 101.0 ao Rádio Clube e comprou a 96.0 à Estação Rádio da Madeira, tendo sido alterada para 100.0. A Comunicamadeira-SGPS, SA adquiriu a totalidade do capital social do operador Brum Pacheco e Filhos, Unipessoal, Lda e a SPN-Sociedade Produtora de Notícias, Lda., detentora da Rádio Popular da Madeira (101.0), em Câmara de Lobos. A frequência 98.4 (ex-Rádio Brava) mudou para a Girão, que se tornou a Rádio Festival do Grupo RMV (Ramos, Marques & Vasconcelos, Lda.), dono da Zarco, Palmeira e Sol. Numa nova vaga de concursos, Manuel Pedro da Silva Freitas, utilizando a denominação Rádio Girão, de que foi diretor e um dos seus fundadores, ganhou a Rádio Santana FM (92.5), com o objetivo de colocar estrategicamente a antena no Pico do Arieiro (concelho de Santana) e deste modo chegar ao Funchal e a Câmara de Lobos. A Rádio do Clube Desportivo Nacional (106.8) passou para o Rádio Clube (Madeira), Lda., com a denominação de Rádio Clube, pertencendo a totalidade do capital social à Comunicamadeira que tem uma participação no Grupo RMV e assim atinge o limite das seis licenças. A 11 de maio de 2001, principiam as emissões da Rádio Porto Moniz e a 14 da Rádio S. Vicente, com microcoberturas para Boaventura e Ponta Delgada (99.2). A Rádiurbe, cujo capital social pertencia à SOSOL, passou para o Grupo AFA (AFAVIAS - Engenharia e Construções, SA), que fundou a Rádio Calheta a 10 de agosto de 2001, com três microcoberturas para Ponta do Pargo e Fajã de Ovelha (107.1), Paul do Mar e Jardim do Mar (104.3) e a zona baixa do concelho (102.7). No ano seguinte, este Grupo comprou a Santana FM, fundada por Manuel Pedro da Silva Freitas, que havia formado uma sociedade com Filomena Pereira Pestana Figueira de Freitas e João da Silva de Azevedo Freitas, que era titular do alvará desde 1 de setembro de 2001. A Santana FM, de 4 de maio de 2002, possui uma microcobertura para o Arco de São Jorge, São Jorge e Ilha (105.5 MHz).   Rádio Renascença Por causa da necessidade da ocupação legal de duas frequências na Madeira, propriedade da Rádio Renascença, as suas emissões – RR (88.0) e RFM (93.6) – tiveram início, a 19 de julho de 2010, através do centro emissor do Pico da Silva, na Camacha. Para o presidente do Grupo r/com, Cón. João Aguiar Campos, foi o culminar de um projeto antigo, “que vai permitir servir melhor os madeirenses que querem acompanhar as emissões da Renascença” (“Madeira: Renascença…”, Diário Digital, 21 jul 2010). Acrescente-se que o Posto Emissor do Funchal e a Rádio Jornal da Madeira já transmitiam, em simultâneo, alguns programas da Emissora Católica Portuguesa.   TSF-Madeira 100 FM A Rádio DIÁRIO-TSF, mais tarde TSF-Madeira, abriu os microfones no Funchal, no dia 4 de novembro de 1977, sob a direção do ex-jornalista da RDP-Madeira António Ivo Caldeira. Posteriormente, a Telefonia Sem Fios passou a ser dirigida por Ricardo Miguel Oliveira, também diretor do Diário de Notícias do Funchal, tendo como sócios José Bettencourt da Câmara, membro executivo do Conselho de Gerência da Empresa do Diário de Notícias, Lda., e Carlos Alberto Batalha de Oliveira, que possui a participação total no capital social da Rádio Comercial dos Açores, Lda., em Ponta Delgada. A Notícias 2000 FM – Atividade de Radiodifusão Sonora, Lda. – possui o alvará para a cobertura local desde 6 de março de 1989, estando o serviço de programas registado sob a denominação Rádio Notícias TSF Madeira, frequência 100.00 MHz, no concelho do Funchal. Em 2015, os estúdios estavam integrados nas instalações do Diário de Notícias. A emissão da TSF é preenchida, na segunda década de 2000, com produção regional e simultâneos com a TSF nacional, desenvolvendo um projeto centrado mais no jornalismo do que no entretenimento.   Juvenal Xavier (atualizado a 17.13.2017)

Sociedade e Comunicação Social

raddi, guiseppe

Giuseppe Raddi, um dos maiores botânicos italianos, nasceu em Florença, a 9 de julho de 1770. Devido à precária situação económica da sua família, começou a trabalhar muito jovem como empregado numa farmácia. Ottaviano Targioni Tozzetti, médico, botânico e mineralogista, foi seu protetor, proporcionando-lhe as primeiras lições de botânica, disciplina na qual Raddi se destacou rapidamente. Em 1785, começou a trabalhar no Orto Botanico em Florença, onde permaneceu até 1795, como assistente de outro ilustre médico e botânico, Attilio Zuccagni. Em seguida, foi diretor e cossecretário do Museu de História Natural em Florença. Os primeiros escritos de Raddi foram publicados em 1806. Em 1817, fez uma expedição exploratória ao Brasil, organizada conjuntamente pelo Grão-Ducado da Toscana e por França. O material recolhido durante a viagem foi catalogado e colocado em herbários que tornaram famoso o seu nome. A sua última viagem, em 1827, foi ao Egito, onde contraiu disenteria; ao tentar voltar para a Itália, morreu em Rhodes, a 6 de setembro de 1829. Raddi esteve na Madeira de 11 a 13 de setembro de 1817. Tendo partido a 13 de agosto de Livorno, “a bordo do navio português S. Sebastião”, passou brevemente pela Ilha, e prosseguiu depois para o Brasil. Aí teve origem a memória Breve osservazione sull’isola di Madera fatta nel tragitto da Livorno a Rio-Janeiro [Breve Observação da Ilha da Madeira Feita no Trajeto de Livorno para o Rio de Janeiro], inicialmente publicada em Florença, no n.º 5, de maio de 1821, da revista Antologia. “Uma visita tão curta e passageira àquela Ilha não pode, como é da natureza das coisas, permitir dar informações completas da mesma, especialmente no que diz respeito aos seus produtos, ao solo e ao clima, ou à indústria dos seus habitantes […]” (RADDI, 1821, 4) – declara com toda a honestidade; no entanto, as notícias que dá na sua obra são diversas e precisas, acabando por revelar mais do que o típico relatório objetivo de um botânico. O seu estilo é rápido, direto, literário, de uma forma moderna, e aproxima-se da escrita apropriada às reportagens. Através dele, Raddi relata as particularidades históricas (“diz-se que a Madeira foi descoberta pelos Portugueses em 1420 e por eles mesmos assim chamada Madeira por a terem encontrado inteiramente coberta de árvores” (Id., Ibid., 5)), geográficas e económicas, descrevendo a Ilha como um lugar fértil, mas não muito habitado. À semelhança de outros visitantes, admira-se com o facto de as árvores “quase” formarem “uma única e mesma floresta” – daí o nome do lugar – e de as águas, caindo das montanhas, causarem “inundações, as quais deitam abaixo e transportam pontes, e casas”. Apesar de a estadia na Madeira ter durado apenas dois dias, Raddi concluiu, com base na análise do solo, que este era “inteiramente vulcânico” e rico em rochas basálticas derivadas de uma “verdadeira erupção de lama vulcânica-subaquática”. Admirou-se, em particular, com o seguinte facto: “As montanhas próximas são tão férteis como parece pela visão que se consegue ter, sendo cultivadas como as planícies” (Id., Ibid., 5). Depois de descrever o território, trata do vinho, produto em que se baseava uma grande parte da economia local, descrevendo as pérgulas de videiras, os tempos de poda e os métodos de cultivo e de colheita das uvas: “A vindima geralmente é feita por aqueles ilhéus na primeira quinzena de setembro, a altura em que as uvas estão bem maduras” (Id., Ibid., 8). Seguidamente, concentra-se noutros produtos cultivados como, por exemplo, a batata e o inhame egípcio, e procede à minuciosa, e mais técnica, descrição botânica das flores e plantas da Madeira.   Obras de Giuseppe Raddi: Breve osservazione sull’isola di Madera fatta nel tragitto da Livorno a Rio de Janeiro (1821).     Chiara Tommasi (atualizado a 17.12.2017)

Biologia Terrestre

juiz de fora

O juiz de fora esteve presente na orgânica administrativa insular entre 1645 e 1834, na qualidade de presidente da Câmara Municipal do Funchal. Era um funcionário integrado na administração periférica da Coroa; a sua ida para a Ilha ter-se-ia justificado com a necessidade de implementar uma melhor administração da justiça e de presidir ao município sediado no mais importante centro urbano do arquipélago da Madeira. O juiz de fora teria de ser, necessariamente, um indivíduo letrado, com título de bacharel em Direito romano pela Universidade de Coimbra, e era designado pelo Rei para exercer um mandato com a duração de três anos, o qual poderia ser prorrogado por vontade régia. Por norma, essa nomeação ocorria na sequência da aprovação num exame promovido pelo Desembargo do Paço, destinado a aferir as capacidades dos candidatos para o exercício de uma determinada função no âmbito da magistratura régia. Chegado ao Funchal, o juiz de fora deveria apresentar, junto da Câmara Municipal, o documento de que constava a sua nomeação, para que deste ficasse registo no tombo adequado. De seguida, comparecia perante a vereação funchalense e demais autoridades, para o protocolar ato de juramento e posse que se realizava nas instalações camarárias. O juiz de fora auferia de um ordenado, com os respetivos próis e percalços, e de uma aposentadoria, no valor de 20$000 réis, paga pelos rendimentos do município do Funchal. Tinha, de igual modo, a faculdade de cobrar 4$000 réis pela realização das eleições municipais. A jurisdição do juiz de fora compreendia, de acordo com o “Título LXV” do “Livro I” das Ordenações Filipinas: o despacho, em audiência, de casos de injúrias verbais ou de agressões entre moradores; o despacho, em audiência, de contendas relativas a bens móveis ou de raiz; a aplicação de penas aos réus; a realização de devassas sobre os crimes cometidos; a defesa da jurisdição do Rei contra eventuais abusos perpetrados por eclesiásticos ou leigos; a fiscalização da atuação dos oficiais municipais. O juiz de fora não estava sujeito à inquirição do corregedor da comarca, contrariamente ao que sucedia com os demais membros do município. Como juiz de primeira instância nas causas cíveis e crimes, cabia-lhe zelar pela aplicação do direito oficial e régio. Servia o cargo de provedor da Fazenda dos defuntos e ausentes e tinha poder para agir no âmbito do juízo dos órfãos, em caso de suspeita de atuação irregular por parte dos seus titulares. Para além deste vasto conjunto de atribuições, desempenhava o cargo de juiz conservador da Companhia Geral do Comércio do Brasil, em virtude de muitas embarcações fazerem escala no Funchal para se abastecerem de vinho, e o de auditor da gente da guerra. Na sequência da expulsão da Companhia de Jesus, em 1760, o juiz de fora ficou encarregue da administração de todos os bens e rendas, confiscados em nome do Rei pelas autoridades insulares, que aquela ordem possuía na Madeira. A atuação do juiz de fora foi visível sobretudo no contexto da presidência da Câmara do Funchal. Foi uma presença regular nas reuniões da vereação e destacou-se por ser o responsável pela realização das eleições municipais, pela elaboração da pauta eleitoral e pelo respetivo envio para o Desembargo do Paço. De igual modo, foi a entidade portadora do conhecimento sobre o direito oficial e letrado e a responsável pela sua divulgação junto da vereação funchalense. A necessidade da presença deste magistrado era sentida pelos próprios membros da Câmara do Funchal, conscientes das suas limitações no exercício adequado da justiça, em virtude das relações de parentesco e amizade existentes entre os habitantes, uma realidade suscitadora de inúmeras queixas das partes litigantes. Em 1762, nomeadamente, estando o lugar de juiz de fora sem provimento, a vereação apelou ao Monarca para que mandasse para o Funchal um magistrado versado e douto na prática forense, em razão dos muitos e intrincados pleitos que existiam naquela cidade. Auxiliar jurídico de importância reconhecida pela vereação funchalense, o juiz de fora só saiu da orgânica administrativa municipal em 1834. Com efeito, a cerimónia de juramento da Rainha D. Maria I e da Carta Constitucional, numa reunião extraordinária do município funchalense em 6 de junho de 1834, representou o último ato institucional do juiz de fora. Com a implantação definitiva do Liberalismo, o município deixou de ter qualquer competência no âmbito da administração da justiça em primeira instância, conforme tivera até então. O estabelecimento de uma nova organização judicial, programado pelo poder central logo em 1834, seria uma das importantes consequências da nova divisão territorial implementada em 1835. [table id=100 /]   Ana Madalena Trigo de Sousa (atualizado a 26.12.2015)

Direito e Política História Política e Institucional

quotidiano e sociabilidades

Tudo o que se prende com o quotidiano da sociedade madeirense tem de ser encontrado de forma indireta na documentação, tendo em conta que, no que respeita a épocas recuadas, faltam testemunhos que nos permitam descobrir como as pessoas ocupavam as 24 horas do dia e os escassos anos de vida que as condições sociais e materiais da sociedade do seu tempo lhes propiciavam. Um dos recursos mais comummente usados são os diários pessoais e os retratos do quotidiano traçados por visitantes, alguém que, em busca de um clima ameno capaz de curar as suas doenças ou de passagem fugaz rumo a outros destinos, em missão política ou científica, fica impressionado com a realidade com que se depara, diferente da sua. Mas em que medida estes testemunhos referentes à nossa sociedade são fiéis? Muitos destes testemunhos resumem-se quase só ao espaço urbano, sendo raros os que apontam para um retrato, ainda que fugaz, do mundo rural, pois que a sua observação era feita de passagem e apenas durante os percursos, mais ou menos estabelecidos, pelo interior da Ilha. No Funchal, a presença era mais demorada, mas circunscrevia-se às quintas, depois aos hotéis, às casas, quase sempre mais abastadas, aos clubes, casinos e cafés e, raras vezes, se cruzavam com a maioria da população funchalense; apenas uma parte da sociedade e do quotidiano de alguns que, certamente, não se confundiam com a maioria dos madeirenses. São poucos os testemunhos de madeirenses sobre a sua realidade quotidiana e espelham, quase sempre, uma leitura a partir da sua posição social. Neste quadro, importa refletir sobre o quanto o olhar apresentado por Horácio Bento de Gouveia, considerado o retratista da vivência madeirense, a partir de 1948, com a publicação de Ilhéus, depois renomeado para Canga, em 1975, poderá ser o retrato fiel do mundo rural madeirense ou apenas um olhar enviesado de um filho de senhorio, das bandas de Ponta Delgada. Perguntamos, assim, em que momento esta personagem se alheia da sua posição social e se integra, de forma participante, no quotidiano dos caseiros e demais homens do meio rural madeirense. A Madeira estava longe dos progressos da Revolução Industrial e o analfabetismo dominante conduzia aqueles que atuam no processo produtivo, uma intervenção apenas por força da tradição e nunca fruto de uma sabedoria acumulada e vivenciada. A orografia da Ilha tanto dificultava qualquer tarefa produtiva como condicionava a criação de condições que favorecessem a valorização do magro resultado do trabalho do madeirense, por falta de vias de comunicação e de meios de transporte adequados. A situação não favorecia qualquer mudança, nem tão pouco o progresso técnico e o conhecimento batiam à porta de muitos destes protagonistas. Havia muito pouco para inventar no quotidiano deste ilhéu, que se pautava quase sempre pelo ritmo das estações do ano, do calendário religioso e de um ou outro acontecimento de índole política, cuja repercussão era mais acentuada no meio urbano. Ao madeirense que foi obrigado a construir a sua casa e sustento sobre um penhasco e a viver em permanente sobressalto à beira do abismo, faltaram tempo e meios para que o quotidiano se pudesse dividir entre os momentos de lazer e de trabalho e que, entre ambos, fosse visível uma interação. O descanso e o trabalho são repartidos e definidos pela própria natureza, como o nascer e o pôr do sol, a chuva e o tempo soalheiro. As tarefas são árduas, os meios técnicos reduzidos e pouco eficazes, pelo que não sobrava tempo para além daquele indispensável e imposto com a chegada da noite ou algo de anormal que acontecesse e obrigasse a uma paragem forçada. A Igreja impôs o seu ritmo do tempo através do relógio do campanário dos templos, que ecoava por todos os recantos da Ilha. Definiu a regra para o ócio e para o lazer, impondo-o relativamente ao encontro do ritual de evocação dos santos e dos passos mais significativos da intromissão do ritual religioso na vivência e quotidiano. É o preceito religioso de que o domingo é “o dia do Senhor” que implica esta paragem semanal, mas que impõe a obrigação de longas caminhadas do seu local de assentamento até às igrejas e capelas para que o ritual seja cumprido. Depois, serão as festas dos oragos a definir outras paragens, quase sempre na época estival, após as colheitas, momentos em que o trabalho é menor e a natureza impõe uma pausa para descanso das terras à espera de novo momento de lavra e sementeira. Na cidade, por exemplo, as procissões dos Passos do Senhor, do Corpo de Deus e do Santíssimo Sacramento são consideradas um misto de manifestação de fé, espetáculo e diversão para todos os madeirenses e motivo de espanto para os forasteiros. Fora do controlo da Igreja, estavam os carnavais, tempos de grande folia e liberdade, aos quais apenas a política conseguiu impor regras. Os desfiles de Terça-feira de Carnaval ficaram célebres e transformaram-se num momento de grande animação da cidade. A isto juntam-se os saraus e bailes em diversos clubes e associações que atraíam as classes mais abastadas, na medida em que o Carnaval do povo era na rua. Tudo é uma imposição que amordaça o ilhéu a um quotidiano e a uma forma de vida, deixando pouco ou nenhum espaço para descobrir o ócio e o lazer. Na verdade, nesta sociedade pré-industrial, trabalho e lazer misturavam-se nas atividades de colheita e plantação. O trabalho fazia parte do ritmo e ciclos das estações e dos dias, sendo alterado por pausas para repouso, descanso, jogos, competições, danças e cerimónias, que, em momento algum, constituíram um tempo determinado para o lazer. São muitos os estrangeiros que testemunham esta situação. Quanto nos embrenhamos na Ilha, no sentido de estabelecer os ritmos que pautaram o lazer, a primeira ideia que importa reter é a da necessidade de diferenciar os ritmos que comandam o quotidiano nos espaços urbano e rural. No meio rural, tudo acontece de forma cadenciada e de acordo com os ritmos da própria natureza e da intervenção formal do homem, melhor dizendo da Igreja, através do calendário religioso. As estações do ano, as atividades do campo e as festividades religiosas moldam e expressam o quotidiano do homem rural. Já a cidade estava sujeita a outros fatores que determinavam um compasso distinto para o quotidiano. Para além disso, no caso do Funchal, pelo facto de ser uma cidade portuária, esses ritmos estarão, muitas vezes, alinhados de acordo com o movimento do porto. Em muitos aspetos, o porto comanda a vida do burgo. A cidade vive de olhos postos nele e na linha do horizonte. Qualquer movimento que a retina alcançasse gerava, de imediato, um burburinho desusado nas ruas e no calhau. Em pouco tempo, as ruas da cidade ganhavam outra animação, com a chegada dos forasteiros e os residentes em permanente rodopio. O porto dominava quase por completo as expectativas dos funchalenses e das lojas comerciais que se anichavam nas proximidades da alfândega e do cais. São os barcos de comércio que movimentam o calhau e o cabrestante com a carga e descarga de produtos que se trocam por vinho ou outras riquezas da terra. São os navios das rotas coloniais, que ligam as capitais europeias às principais cidades das colónias respetivas, com passageiros em trânsito e turistas de temporada, que trazem o movimento e animação ao comércio e às ruas da cidade. São as esquadras militares que fazem aumentar as expectativas do negócio, nas lojas ou nas casas de diversão e ainda transportam a animação para as ruas, com demonstração ou desfile das suas fanfarras. São os navios de expedições científicas que fazem desembarcar cientistas sedentos de descobertas no campo da botânica e demais ciências e que por isso se embrenham, no pouco tempo de estadia, pelo interior da Ilha, em cavalgadas de descoberta dos segredos infindáveis que esta natureza, quase virgem, lhes reservava. Parece que todos eles alteram a pacatez do quotidiano do burgo e arredores. Na visão de muitos visitantes, a cidade acorda para um burburinho inusitado. As lojas de comércio, os cafés, os restaurantes, os hotéis abrem as suas portas para os receber e, muitas vezes, venerar. As casas das vilas e quintas arejam os seus quartos para receber os novos hóspedes. Os carreiros e quadrilhas de cavalos andam em permanente rodopio para poder satisfazer a demanda de serviço. É nesta altura que a animação se volta para os espaços interiores das quintas e vilas. Os salões de dança, os clubes e os casinos são os locais mais usuais para quebrar a monotonia e o tédio desta sociedade e daqueles que permanecem por longas temporadas. Desta forma, a presença destes navios e forasteiros trazia a vida ao burgo, dando novo colorido à cidade e aos arredores. Os salões de dança, os clubes e os casinos serão o meio mais usual de quebrar a chamada monotonia e o tédio. Tudo isto até que, na linha do horizonte, se vislumbre um outro navio com novidades, mais gentes e a tão desejada animação para o burgo. Será assim, para estes, o ritmo quotidiano de uma sociedade portuária como o Funchal. Contudo, para quem vivencia este quotidiano desde o momento que vê a luz do dia as impressões são distintas. O quotidiano não para, dia e noite. Apenas diminui o movimento de pessoas e viaturas. É certo que o Funchal se constituiu, desde o séc. XV, como uma cidade portuária. Abriu as portas do calhau às gentes e aos produtos de fora, franqueou as casas do burgo, das quintas e das vilas da encosta e fez construir altaneiras torres avista-navios e mirantes, com o propósito de alcançar o mais distante da linha do horizonte e de reencontrar, de novo, o barco que traz a mercadoria de que necessita, ou os porões vazios e disponíveis para o embarque do seu açúcar, vinho ou outro produto qualquer. Ao longo do processo histórico do espaço atlântico, apercebemo-nos que as ilhas passaram de escalas de navegação e comércio a centros de apoio e laboratórios da ciência. Os cientistas cruzaram-se com mercadores e seguiram as rotas delineadas pelos aventureiros e descobridores desde o séc. XV. Juntaram-se, depois, os turistas, que afluíram desde o séc. XVIII em busca de cura para a tísica pulmonar ou à descoberta da sua natureza. A Madeira pode muito bem ser considerada uma das mais destacadas salas de visita do espaço atlântico, pois foi, desde os primórdios da ocupação europeia, um espaço aberto à presença quase assídua de forasteiros. A chamada hospitalidade madeirense, que muitas vezes se confunde com servilismo, é considerada uma constante da História que os aventureiros, marinheiros, mercadores, aristocratas, políticos, artistas, escritores e cientistas nunca se cansam de assinalar. Na verdade, na perspetiva de quem chega, todos os inusitados mimos podem ser considerados como hospitalidade, mas para quem está e tem de oferecer os seus préstimos e serviços é apenas uma questão de oportunidade e de sobrevivência. Os momentos de lazer, diversão ou ócio são definidos pelos acontecimentos, já programados anualmente, por força do calendário litúrgico (as festas do santos populares e dos oragos das freguesias, o Natal, o Carnaval e a Semana Santa), aos quais se juntam as efemérides relacionadas com alguma data significativa, como o nascimento, a morte e a aclamação dos monarcas, e, também, por força destas circunstâncias, algumas eventuais festividades ou acontecimentos que mobilizam toda a cidade e a Ilha. A visita do Rei D. Carlos, em 1901, foi um dos acontecimentos mobilizadores de toda a sociedade madeirense, dando azo a múltiplas manifestações populares com desfiles, espetáculos, bailes e banquetes associados a luminárias e decorações nas principais artérias próximas do cais da cidade. Todos, residentes e forasteiros, participaram a seu modo nestes eventos. Entretanto, entre 29 de dezembro de 1922 e 4 de janeiro de 1923, celebraram-se as Festas do quinto centenário do descobrimento da Madeira, também com espetáculos, recitais, desfiles, desfiles, iluminações e decorações, jogos hípicos e desportivos, no Campo de Almirante Reis. Outro momento de grande interesse foi as Festas das Vindimas, celebradas em 1938 e 1940, no Campo de Almirante Reis, onde as tradições e cantares populares fizeram, pela primeira vez, parte do programa, por iniciativa de Carlos Maria dos Santos. Outros momentos aconteceram na Ilha que implicaram uma grande mobilização popular e, por isso, a quebra da rotina diária. Assim, entre fevereiro e maio de 1931, aconteceram as Revoltas da Farinha e da Madeira que atraíram multidões ao centro do Funchal, facilmente manipuladas para assaltos a moagens ou para “gritar vivas” ao novo Regime. As manifestações públicas, desde desfiles, procissões e fanfarras de música, estavam franqueadas a todos os presentes, na cidade e no meio rural, que, muitas vezes, vinham de propósito para assistir a tais eventos. Já os espetáculos, os bailes, as receções e banquetes estavam limitados a um grupo restrito da sociedade e aos forasteiros. O movimento desusado de passageiros, em trânsito e turistas, obrigou as autoridades a cuidar das ruas e praças da cidade, de forma a criar as condições de conforto adequadas a estes transeuntes. O calcetamento das ruas principais e, depois, a melhoria dos espaços públicos, como as Praças da Rainha (em frente ao Palácio de S. Lourenço), da Constituição (que posteriormente se tornou parte do espaço da Restauração) e da Académica (posteriormente Campo de Almirante Reis), criaram as condições espaciais para inúmeras manifestações de diversão. Alguns estrangeiros queixam-se do tédio permanente das estadias no Funchal, por falta de locais de diversão, pela má qualidade dos músicos e pela pouca variedade dos repositórios musicais. Disso se queixava, em 1853, Isabella de França: “Não posso dizer muito em louvor da música destes bailes, porque só há uma no Funchal e o público não fica mais bem servido do que noutro monopólio qualquer. Outra consequência é que, durante a temporada, se tocam sempre os mesmos números. São eles, como em toda a parte, uma ou outra quadrilha, por mera formalidade, e muitas polcas, valsas, mazurcas, etc. - tantas quanto possível” (FRANÇA, 1969, 173). Outros ainda, como Dennis Embleton, em 1882, apontavam a pouca veia musical dos madeirenses. Talvez por isso a presença de uma banda a bordo de um navio de passagem era motivo de interesse e curiosidade, providenciando-se a sua participação em bailes oficiais ou organizados pelos clubes. Em 1853, a banda de um barco americano foi convidada a atuar num baile no Palácio de S. Lourenço, como conta de novo Isabella de França: “Na mesma sala dos quadros tocava a banda do navio americano surto no porto e cujo comodoro tivera a gentileza de a ceder para aquela ocasião. A música, de que o instrumento mais importante era o bombo, devia soar bem no mar alto mas ensurdecia muito debaixo de um teto” (Id., Ibid., 203). A noite era um momento importante para o convívio e animação nas casas das principais famílias da Ilha e da comunidade britânica. Todos, nos seus solares apalaçados do espaço urbano ou quintas dos arredores da cidade, dispunham de amplos aposentos servidos com sala de jantar e de dança para muitos convidados. Entre estes, contavam-se sempre estrangeiros de diversas nacionalidades, que ocupavam o tempo de estadia na Ilha, pulando de festa em festa. Estes saraus eram marcados por grande animação de música e dança para servir os diversos convidados em que se incluíam sempre muitos forasteiros. Disso nos dá conta de novo Isabella de França: “A reunião não teve muita concorrência, mas incluiu várias nações. Havia uma dama russa, três ou quatro alemães, além de ingleses, franceses e portugueses. Depois do chá, houve música nacional, para nossa distração: machete primorosamente tocado, viola e cavaquinho (machete de seis cordas em vez de quatro, peculiar ao Porto). Estes instrumentos foram todos bem tangidos e harmonizaram-se na perfeição em músicas que lhes são próprias. Gostei bastante” (Id., Ibid., 182). O quadro dos espaços de lazer completava-se com os cafés e restaurantes, lojas comerciais e quiosques. Assim, de acordo com um roteiro de 1910, as ruas do Aljube e praças da Constituição e da Rainha reuniam o maior número de cafés, restaurantes e lojas de venda de artefactos da Ilha. A entrada da cidade era, assim, servida pelos cafés do Rio, Mónaco, Golden Gate e Restaurante Central, que estavam de portas abertas para receber todos os que desembarcavam no cais. Em muitos destes cafés e clubes (Ritz Café, Kit Cat, Theo’s Capitolio, Club Restauração, Club Inglês, Monte Stranger Club), a música ao vivo marcava presença para gáudio de forasteiros e de muitos residentes a quem estavam franqueadas as portas. Muitos dos hotéis da cidade ofereciam, igualmente, aos seus clientes animação musical com a organização de saraus dançantes animados por orquestra própria. Era este ambiente de animação que se oferecia, na déc. de 30, aos hóspedes e a alguns residentes, nos hotéis Savoy, Atlantic, Continental, Miramar e Golden Gate. Para além de toda esta animação de rua que acontecia de forma calendarizada ou eventual e que concentrava as atenções de todos, temos, ainda, que considerar aquela que acontecia em recintos fechados e que não permitia a entrada de todos. Neste caso, temos as representações dramáticas, os espetáculos, saraus dançantes e concertos de música. Durante muito tempo, as representações dramáticas foram públicas e abertas a todos, pois faziam-se nas igrejas e durante as procissões religiosas. A Misericórdia do Funchal celebrava o seu dia, a 1 de julho, com representações de comédias e autos retirados da Bíblia. O mesmo sucedia em muitas das igrejas e conventos da Ilha. Já o séc. XIX pode ser considerado o grande momento do teatro, do circo e da ópera. Surgiram novas casas de espetáculo que mantiveram uma atividade permanente, trazendo à Ilha personalidades de destaque do belo canto, concertos, récitas, festas de beneficência, circo e teatro. A aposta das autoridades foi sendo, no entanto, adiada e mantinha-se a insistente reclamação da imprensa e dos forasteiros pela falta de uma casa de espetáculos. O Funchal era uma cidade cosmopolita que fervilhava com forasteiros de passagem ou doentes em busca da cura para a tísica, como referimos anteriormente. Alguns lamentavam-se, mesmo assim, mencionando que as diversões eram poucas; a falta de teatro, de ópera ou de outras diversões europeias eram substituídas pelos passeios a pé ou de barco e pelos piqueniques. Perante isto, foi preocupação de vários governadores, desde José Silvestre Ribeiro, avançar com este projeto. Todavia, só na déc. de 80, a pertinácia de João da Câmara Leme venceu a inércia das autoridades centrais. Assim, em 25 de fevereiro de 1880, constituiu-se a Companhia Edificadora do Teatro Funchalense, mas a decisão da sua construção, por parte da Câmara, só ocorreu em 9 de fevereiro de 1882, tendo este aberto as suas portas ao espetáculo cinco anos depois com o nome de Teatro D. Maria Pia. Com a República, passou a ser chamado, em 1911, “Manuel de Arriaga”, mas, face à recusa do mesmo, ficou como “Teatro Funchalense” até à sua morte, em 1917. Já na déc. de 30, com Fernão Ornelas, presidente da Câmara do Funchal, passou para “Baltasar Dias”, como forma de homenagear o maior dramaturgo madeirense do séc. XVI. Os momentos mais destacados de representações teatrais, no Funchal, aconteceram nas décs. de 20 e de 30, tendo sido nesta última década que começaram as chamadas “Revistas” que deram muita animação à cidade. A partir dos anos 30, o Teatro passa a funcionar como uma sala regular de projeção de cinema. A arte cinematográfica havia vencido as artes dramáticas. Tudo aconteceu, em 1863, com o cosmorama universal, o antecedente do animatógrafo. Note-se que a primeira apresentação do animatógrafo ocorreu, na Madeira, em 1897. A partir dessa, outras experiências se seguiram com o cinema mudo, que foi ganhando a adesão do público. Os filmes eram exibidos a par de outros espetáculos musicais. Só a partir de 1907 ocorre o lançamento do cinema em termos comerciais. A sua popularidade levou à construção de pavilhões e novas salas de projeção que vieram juntar-se ao Teatro Municipal e ao Teatro Circo. No primeiro quartel do séc. XX, as sessões de cinema intercalam com os espetáculos de variedades, mas, paulatinamente, o fascínio do cinema acaba por conquistar o público. No primeiro quartel do séc. XX, o Funchal estava servido por diversos espaços para o cinema (Cine Jardim, Almirante Reis, Victoria, Pavilhão Paris, Sallão Central, Salão Ideal, Salão Teatro Variedades, Teatro Águia de Ouro, Teatro Canavial, Teatro Circo) que atraíam a atenção dos entusiastas da sétima arte, certamente um público urbano. Aos poucos, esta animação chegou ao meio rural, com a criação de casas de espetáculos: Teatro Gil Vicente em S. Vicente (1931), Salão Cultural de Câmara de Lobos (1931) e Cinema da Ponta de Sol (1932). A animação e o lazer encontraram novas formas de expressão para as elites locais. Os clubes de diversão e de recreio são uma realidade a partir da déc. de 30 do século XIX. Entre estes, destacaram-se o Clube União (1836-1879) e o Clube Funchalense (1839-1899). Este último ficou célebre pelos bailes e soirées, afirmando-se, ainda, como um dos principais espaços de receção aos visitantes. Algumas das homenagens prestadas a personalidades de passagem tinham lugar aí. Assim, em 1885, a Câmara do Funchal homenageou Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, que estavam de visita à cidade, com um baile neste clube. Outros clubes animaram a cidade, como o Clube Recreio Musical (1900), Turt Club (1900), Sports Club (1910), Clube Republicano da Madeira (1911), Club Naval Madeirense (1917), Clube Recreio e Restauração, Novo Clube Renascença, Clube Funchalense, Commercial Rooms. Em todos, a animação e a diversão eram constantes. Mas quem afluía a estes espaços, muitas vezes, reservados? Quem teria condições materiais e tempo disponível, nesta época, para o ócio? Aos clubes e aos hotéis, juntam-se os casinos como locais privilegiados de diversão e de jogo. O Casino da Quinta Vigia (1895), sobranceiro ao porto, era um dos mais visitados e conhecidos pelos saraus dançantes que se faziam todos os dias. A música tinha uma expressão elitista, nos concertos à porta fechada, nos bailes dos casinos e nas quintas, e uma outra, popular, através de filarmónicas que desfilavam ou tocavam em espaços públicos para todos. A primeira banda de música surgiu, no Funchal, em 1850 e ficou conhecida como a Filarmónica dos Artistas Funchalenses. A segunda de que temos conhecimento foi a Filarmónica Recreio União Faialense, que surgiu, no Faial, em 1855. A déc. de 70 marca o incremento de novas bandas em toda a Ilha: Câmara de Lobos (1872), Calheta (1874), S. Jorge (1877), Camacha (1873) e Ribeira Brava (1875). O interesse por este tipo de música ganhou a adesão da população madeirense. Na cidade, os desfiles e os assaltos de Carnaval não dispensavam a sua presença, os domingos e os dias festivos contavam com exibições no passeio público e as tradicionais romarias ganharam mais animação. Deste modo, o período de finais do séc. XIX e princípios do seguinte é definido por um aumento do número de bandas em toda a Ilha. Neste período, assinalam-se mais no Funchal (1898, 1913, 1920, 1923, 1933), em Câmara de Lobos (1910), Calheta (1923), na Ponta do Pargo (1911), em Santana (1926), no Arco de São Jorge (1933), na Camacha (1887, 1922), na Ribeira Brava (1912) e no Campanário (1923). Desta forma, estamos perante uma significativa divulgação da cultura musical no espaço rural, fazendo com que o colorido sonoro das notas não se fique apenas pelo rajão, braguinha ou machete. As festas dos oragos das freguesias tornaram-se os principais palcos de atuação, não havendo festa sem um ou mais coretos que, à sua volta, acolhiam inúmeros populares de ouvido bem atento às novas marchas populares que o reportório das bandas ia revelando. Ao visitante de passagem ou de estadia temporária restavam, ainda, outras diversões. As atividades desportivas são assinaladas no decurso do séc. XIX e afirmam-se, de forma clara, na primeira metade do séc. XX, como a corrida de cavalos, o futebol, o ténis, o criquet e o bilhar. Este último foi o mais popular de todos e transformou-se numa das principais atrações dos clubes de receio da cidade. Por fim, para os mais destemidos, restava, ainda, a caça à codorniz, ao coelho, à galinhola e à perdiz, que tanto poderia ter lugar no Santo da Serra, no Caniçal, no Paul da Serra, ou no Porto Santo e nas Desertas. A prática de diversas modalidades desportivas começa por ser uma criação dos ingleses, para seu usufruto e dos seus hóspedes. Desta forma, em 1875, Harry Hinton está ligado à prática de futebol, na Camacha. O cricket foi, igualmente, uma modalidade de grande impacto, com dois grupos, The Madeira Cricket Club e Excelsior Madeira Cricket Club, de renome, onde se destacavam os ingleses. Outra modalidade de elite foi a esgrima, que atraia muitos praticantes e público à Quinta Pavão, Casino Victoria e Reid’s Hotel. Outra forma de prática desportiva, também de elite, prende-se com o automobilismo, no quadro das festas do fim do ano, entre 1935 e 1937. O Campo de Almirante Reis foi palco de diversos festivais desportivos: em 24 de fevereiro de 1911, teve lugar um para comemorar o fim da cholera morbus; entre os dias 7 e 8 de dezembro desse mesmo ano, realizaram-se os Jogos Olímpicos; a 27 de julho de 1924, conta-se um jogo de futebol entre os banqueiros e os doutores para angariar fundos para o Asilo de Mendicidade e os Órfãos do Funchal. A popularização da atividade desportiva acontece com a República. O futebol acabou por tornar-se na modalidade mais popular e naquela que cativava maior número de adeptos. Talvez tenha sido, de entre todas as modalidades, a mais democrática, por acolher, nas suas fileiras, gentes de diversos estratos sociais. O primeiro clube surgiu a 5 de novembro de 1909, sob a designação de Club Sport Madeira. Nas vésperas da República, foi criado o Clube Sport Marítimo (18 de setembro de 1910) e, depois, o Club Desportivo Nacional (8 de dezembro de 1910), União Futebol Club (1 de novembro de 1913) e o Sports Club Madeira (9 de junho de 1934). Desta forma, em 1925, desaparece o cricket como modalidade por falta de praticantes, mas o futebol havia já conquistado um lugar cimeiro na prática desportiva, fazendo do Campo de Almirante Reis o centro desta modalidade na Ilha. Não sabemos, porque não há estudos sobre a composição social dos dirigentes e dos atletas destes clubes, qual o grau de participação dos diversos estratos sociais, sendo, no entanto, certo que, aos poucos, tal desporto se transformou naquele que abrangeu um leque maior da sociedade de então. Na Madeira, a segunda metade do séc. XIX foi marcada por uma conjuntura difícil para as diversas classes socioprofissionais, mas foi o momento do despoletar de uma consciência das mesmas para o associativismo ou da busca de soluções que propiciassem a assistência e a proteção aos trabalhadores nos acidentes, na doença e na velhice. A tudo isto acresce o filantropismo social de ajuda aos mendigos, crianças e viúvas. Deste modo, a partir de meados da centúria, o mutualismo, o cooperativismo e o associativismo socioprofissional foram a solução capaz de minorar as dificuldades com que se debatia a população. Às associações de classe, juntaram-se as filantrópicas e as de diversão. Foi, então, nessa altura que se generalizou a criação de clubes destinados ao recreio e à distração dos sócios. Constituíam uma forma de quebrar a monotonia do quotidiano e enquadravam-se no espírito de associativismo que marcou o século. Estes clubes primavam pela realização de bailes e soirées que contavam com a participação de residentes e forasteiros. Aliás, era tradição destes clubes receber, nas suas instalações, as personalidades ilustres que passavam pela Ilha. Assim, em 1885, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens foram aclamados no Clube Funchalense e, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram obsequiados pelo Club Sport Madeira. Dos inúmeros clubes que organizaram o folguedo dos madeirenses, entre a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do seguinte, podemos salientar os seguintes: Clube Económico (1856), Sociedade Club Económico (1856), Clube Recreativo (1856), Clube Aliança (1867), Sociedade Clube Funchalense (1872), Clube Restauração (1879), Novo Clube Restauração (1908), Clube Washington (1882), Clube dos Estrangeiros (1897), Clube União (1888), Clube Recreativo Musical (?-1900), Clube Recreio e Instrução (1892), Turf Club (1900), Clube Internacional do Funchal (1896), Stranger's Club-Casino Pavão (1906), The Sports Club (1901), Clube Sports da Madeira (1910), Clube Sport Marítimo (1911), Clube Republicano da Madeira (1911) e Clube Naval Madeirense (1917). De entre todas as atividades de animação do burgo, aquela que podemos considerar mais elitista surge a partir de 1880 com as esquadras de navegação terrestre, uma novidade na diversão que veio animar as ruas da cidade e as amplas quintas dos arredores do Funchal. Estas esquadras acabaram por monopolizar o lazer dos proprietários das principais quintas. Organizaram-se esquadras militares, fardadas a rigor, que, em momentos determinados, realizavam assaltos entre si. Mas estas eram formas de entretenimento das chamadas gentes da sociedade, os boémios de dominó dos subúrbios do Funchal, que viviam em quintas. O seu espírito, porém, é muito anterior, pois, desde a déc. de 40 da referida centúria, sucediam este tipo de confrontos lúdicos, tendo como base as disputas entre miguelistas e pedristas. Aqui, não estamos perante estruturas militares, mas sim de boémios que se juntavam sob a capa do ritual da marinha. Nas quintas, sobranceiras ou não, ao mar ergueram-se os mastros engalanados com “bandeirinhas” e uma peça de fogo. Ficaram célebres as quatro esquadras: Esquadra Torpedeira, Esquadra Submarina, Esquadra Couraçada e Esquadra Independente. O espírito era levado a sério, aparecendo os associados, em atos públicos, fardados a rigor. As atividades resumiam-se a alguns desfiles dominicais e nos dias feriados, passeios a pé, por vezes ao longo da costa, e, acima de tudo, aos assaltos combinados às adegas para o tão esperado repasto. O espírito da marinharia portuguesa em terra era assumido na sua plenitude e conduziu a alguns equívocos, em 1901, aquando da visita do Rei D. Carlos. A partir de 1914, as dificuldades sentidas com a guerra conduziram ao refrear da iniciativa das esquadras até ao seu desaparecimento. Acabou o aparato de rua e o movimento, em torno dos mastros e miradouros, transferiu-se para espaços recatados. As associações de boémios assumem este caráter interior, por vezes fechado e elitista. A grande aposta ficou para a mesa e os jogos de fortuna e azar que ajudavam a passar os fins de tarde e a noite. A Nau sem Rumo, cuja data de aparecimento não está devidamente revelada, ganhou dimensão a partir da déc. de 30 do séc. XX, retomando este espírito das esquadras submarinas de navegação terrestre, agora transferido para dentro de portas e tendo a mesa como palco e o bacalhau como o inseparável amigo. Não dispomos de documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da Nau Sem Rumo. Os primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, mas a Associação existia há muito tempo. Note-se que era costume que a data dos estatutos oficiais não coincidisse com o início de funcionamento. Senão vejamos: o Clube União foi fundado em 10 de março de 1836, mas os seus estatutos só foram aprovados pela Assembleia Geral em 20 de agosto de 1874 e pelo Governo Civil em 7 de fevereiro de 1879. O Clube Funchalense é de 3 de dezembro de 1839, mas os primeiros estatutos são de 18 de dezembro de 1876 e só foram aprovados pelo Governador Civil em 16 de fevereiro de 1877. O mesmo deverá ter sucedido com a Nau Sem Rumo. A História testemunha que o grupo inicial de boémios que, sem rumo, deambulavam pelos bancos da avenida Arriaga rapidamente encontrou a Nau. Durante muito tempo, esta não teve poiso certo, nem a adequada posição de relevo na vida boémia madeirense. Em 1945, parece ter-se encontrado o rumo. A uma sede, juntou-se um novo fulgor para a Nau que a projetaria para uma posição de relevo na sociedade funchalense dos anos 50 e 60, tendo os momentos áureos da tertúlia gastronómica ficado como a única memória herdeira das esquadras de navegação terrestre. Oficialmente, a data de fundação foi atribuída à data do primeiro registo da associação, a 27 de maio de 1935, tal como poderá constatar-se pelo regulamento de 1950, ficando o dia 27 de maio como o «Dia do Aniversário da Nau Sem Rumo». Contudo, a Nau continuou a manter o espírito errante que esteve na sua origem. A primeira sede foi no edifício do posterior Museu da Quinta das Cruzes, partilhado com “os Artistas”, passando, depois, em 1928, com o Almirante Dr. Agostinho de Freitas, para a Rua da Carreira. A partir daqui “vagueou” por algumas ruas da cidade: Rua dos Murças, Travessa do Nascimento e, finalmente, a Rua 31 de Janeiro, onde “varou”, definitivamente, em 1941. A 27 de janeiro de 1945, inaugurou-se a nova sede à Rua 31 de Janeiro, onde permaneceu, em prédio construído por Raul Câmara em 1940. O ato de inauguração foi um momento importante na vida da Associação, contando com a participação das mais importantes individualidades da Ilha. De entre estas, podemos destacar: Dr. Fernão de Ornelas, Presidente da Câmara do Funchal, Dr. Félix Barreira, Secretário-geral do Governo Civil, Comandante João Inocêncio Camacho de Freitas, capitão do Porto, Eng.º António Egídio Henriques de Araújo, Vice-presidente da Junta Geral, Dr. Humberto Pereira da Costa, Diretor da Alfândega e Fernando Rebelo Andrade, Diretor da PIDE. A admissão dos sócios obedecia a requisitos especiais. Sendo esta uma associação de boémia masculina, só eram admitidos candidatos do sexo masculino. As mulheres tinham entrada apenas como convidadas ou na condição de sócios honorários. Esta categoria estava reservada a individualidades que, pelo mérito ou serviços prestados à Nau Sem Rumo, adquiriam esta possibilidade, mediante proposta do Almirante e do Conselho do Estado Maior a apresentar em reunião deliberativa.   Festas e arraiais Os arraiais são a componente mais evidente das festas e romarias madeirenses: Nossa Senhora do Monte, Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada, Nossa Senhora do Loreto, Nossa Senhora do Rosário, Senhor dos Milagres, entre muitos outros. A devoção popularizou-se ao longo dos últimos cinco séculos, de modo que estas romarias são momentos de grande movimentação das gentes, primeiro a pé, pelos caminhos íngremes que ligavam a Ilha de norte a sul. Para apoio destes romeiros, abriram-se caminhos e construíram-se casas de romeiros junto dos templos de devoção. Havia, entre todos, um espírito de solidariedade para com estes. O bispo, nas suas visitações, recomendava ao município a recuperação dos caminhos e proibia os pastores de manter o gado na serra sobranceira. Esta é, pelo menos, a ideia que retemos da romaria da Ponta Delgada. Os moradores acolhiam os romeiros, dando-lhes, por vezes, guarida. Depois, com o avanço da rede de estradas, a partir da déc. de 40, estes deram lugar aos excursionistas e às filas intermináveis de “horários” e “abelhinhas”, como eram designados alguns transportes públicos. A abertura de estradas facilitou o contacto e acabou com o isolamento, mas, em contrapartida, veio retirar o bucolismo aos romeiros, que calcorreavam a Ilha de norte a sul para honrar o santo de sua devoção ou para retribuir a graça concedida. Não mais se ouviu ecoar as cantorias dos romeiros. O rajão, o machete e as castanholas emudecerem e, nas serras da Encumeada e do Paul, apenas se ouvirá o murmúrio do vento. A tradição ainda testemunha a vivência dos romeiros, como é o caso do folclore, que preservou muitos dos seus despiques e cantorias. O folguedo ou arraial no espaço vizinho da igreja/capela do orago é efémero. Dura 48 horas. Mas, para que isso aconteça, há todo um trabalho engenhoso e arte na criação das flores ou dos tapetes para a procissão. Os enfeites, de alegra-campo e loureiro, contrastam com o garrido das flores e o vermelho da Cruz da Ordem de Cristo que flutua nas bandeiras. O progresso trouxe a ambiência feérica da luz e da cor, fazendo-os prolongar pela noite fora. A luz elétrica, a partir da déc. de 40, veio revolucionar o arraial. Para além da oferta de um variado conjunto de barracas de comes e bebes, onde se destaca a espetada, encontramos aí a feira para venda dos produtos da terra ou de fora. Este é um momento de encontro, devoção e partilha da riqueza arrancada à terra. A festa do orago era um momento importante na vida das gentes da localidade. Ao divertimento e devoção juntam-se os contratos, negócios e, mesmo, as aventuras. Afinal, o arraial era um momento único em que todos se encontravam irmanados pela devoção ao santo padroeiro. A romaria de Ponta Delgada assume especial significado. Primeiro, porque o lugar se situa lá longe, na encosta norte, obrigando o madeirense ao grande esforço de calcorrear a Ilha para expressão da sua devoção. Depois, pela dimensão que assumiu em toda a Ilha, uma vez que, no princípio de setembro, todos estavam virados para o norte, por serem aí as terras das vindimas e onde estas movimentavam mais pessoas. As longas caminhadas por entre as montanhas reforçam o caráter lúdico destas manifestações e apresentavam-se como momentos de grande animação, de encontro de gentes, de troca de amizades. A devoção ao senhor Bom Jesus começou por ser particular e resultou da origem de um dos principais povoadores do lugar de Ponta Delgada. Foi Manuel Afonso Sanha, oriundo de Braga, quem para ali levou o culto ao Senhor Bom Jesus, ao construir, em 1470, nas suas terras, uma capela da mesma invocação. O culto ao senhor Bom Jesus espalhou-se rapidamente por toda a Ilha. A sua invocação em momentos de dificuldade e a necessidade de agradecer a benesse alcançada através do "pagamento da promessa" conduziram paulatinamente à sua afirmação. Assim, nos sécs. XVI e XVII, é manifesta a importância desta romaria no calendário religioso da Ilha, levando o bispo a recomendar medidas no sentido de reparar os caminhos que de toda a Ilha davam acesso ao local de Ponta Delgada. Na Madeira, o calendário das festas é estabelecido de acordo com o ano litúrgico e agrícola, sendo no primeiro que esta realidade tem a sua máxima expressão. Enquanto as primeiras celebram os principais momentos da vida da igreja e dos santos, as segundas demarcam o período das colheitas de um determinado produto, que cativava a vinda das gentes da Ilha ou da localidade em que têm lugar. As últimas são de criação recente, tendo algumas surgido nas duas últimas décadas do séc. XX, como as festas da cereja, vindimas, do pero e da maçã, enquanto as primeiras remontam aos primórdios da ocupação da zona. Os iniciais povoadores da Madeira, maioritariamente do Norte de Portugal, trouxeram impregnadas no corpo as tradições religiosas e festividades do calendário litúrgico. Foi desta forma que se delinearam os arraiais e romarias, que preenchem o tempo de lazer ao madeirense, expressos na afirmação dos santos populares (S.to António, S. João, S. Pedro) e importantes romarias (Bom Jesus, Braga/Ponta Delgada; Nossa Senhora do Loreto, Itália/Arco da Calheta; Nossa Senhora dos Remédios, Lamego/Quinta Grande), a que se vieram juntar as festividades genuinamente madeirenses (Nossa Senhora do Monte, Senhor dos Milagres, Nossa Senhora do Rosário). Estas últimas emergiram, de um modo geral, envoltas num misto de lenda e fervor religioso, o que contribuiu para a sua perpetuação e transmissão às gerações vindouras. Para o madeirense, o momento festivo mais importante e de maior significado é sem dúvida o Natal, que se demarca como o ponto de chegada e partida do calendário litúrgico. A prova disso está patente na afirmação de que o Natal madeirense é a Festa. Num lugar secundário, surgem as restantes festividades que têm lugar ao longo do ano, com particular incidência na época estival; note-se que a sua maioria tem lugar nos meses de junho a setembro. O clima favorece essa concentração na época estival e era preocupação da Igreja concretizá-las antes das primeiras chuvas, de modo a que fosse numeroso o grupo de romeiros. Assim sucedia, em meados do séc. XIX, com a romaria do Santo da Serra, deslocada da data habitual por causa do medo das primeiras chuvas de setembro. Mas aqui é necessário distinguir as romarias das demais festas aos oragos. Enquanto estas últimas assumem uma dimensão vivencial restrita à localidade, as demais são vividas por toda a população. Há um misto de devoção na igreja e os folguedos ou arraial, no espaço circunvizinho. As promessas, com todo o seu ritual martirológico, a ação intercessora junto do santo são os elementos devedores desta manifestação. A romaria, para além do tradicional pagamento da promessa ao patrono, expressa em valor pecuniário ou numa homenagem fervorosa, é um momento decisivo para o encontro das gentes da Ilha, aproveitado por muitos para o estabelecimento de contratos, troca e venda de produtos e, por vezes, uma fugaz aventura amorosa. Deste modo, as principais romarias da Ilha demarcavam o ritmo de vida dos nossos avoengos e atuaram como mecanismo unificador da vivência religiosa e do quotidiano, dada a dispersão populacional, resultante da orografia da Ilha. Em face disto, para além da sua importância na expressão da religiosidade do madeirense, destacam-se como momentos de afirmação de uma excessiva sociabilidade que conduzira a definição uniformizadora deste modo de ser que carateriza o madeirense. Estas romarias tinham lugar na época estival, após as colheitas da cana-de-açúcar, do cereal ou do vinho, o que permitia essa ventura, por terra e por mar, ao encontro do orago protetor. Estas festividades estavam devidamente calendarizadas: em agosto era a festa de Nossa Senhora do Monte; em setembro, Nossa Senhora do Loreto, no Arco da Calheta, e o Bom Jesus da Ponta Delgada; e, em outubro, encerravam-se as romarias, com o Senhor dos Milagres, em Machico. Para além das casas de acolhimento, conhecidas como as casas dos romeiros, estas manifestações deixaram marcas na toponímia da Ilha, estando os caminhos dos romeiros, o curral dos romeiros, a atestar essa frequência. As dificuldades de comunicação, nomeadamente na vertente Norte da Ilha, não impediram que os romeiros afluíssem em grande número às festividades do Senhor Bom Jesus. Desde o séc. XVII que este santuário ao norte ficou a marcar a nova aposta da reforma tridentina, ganhando uma dimensão particular na religiosidade do madeirense. Deste modo, no primeiro domingo de setembro, a pequena povoação de Ponta Delgada recebia inúmeros romeiros do sul e do norte, que para ai se dirigiam a cumprir as suas promessas. A sua passagem era anunciada pelos cantares e músicas apropriadas que davam ao Norte da Ilha uma animação inaudita. A própria igreja tomou algumas medidas no sentido de facilitar esse movimento, aconselhando as autoridades municipais sobre os necessários cuidados na manutenção dos caminhos ou punindo os proprietários de gado com excomunhão, pois, conforme refere o bispo, em 1706, sucediam-se, por vezes, desastres mortais, devido à queda de pedras provocadas pelas cabras que pastavam nos precipícios sobranceiros aos caminhos do lado de São Vicente e Boaventura. A partir da segunda metade do séc. XIX, o emigrante regressado do Havaí, Demerara, Brasil, Venezuela, África do Sul e Austrália reforça a animação destas festividades, dando-lhe uma nova dimensão; este era o festeiro que, reconhecendo a proteção do santo, lhe prestava a sua farta homenagem. Estas passaram a ser o momento para a visita aos familiares ou o regresso dessa promissora aventura; a animação festiva passou para o exclusivo controlo do emigrante, dependendo o seu brilhantismo da disponibilidade financeira: é o emigrante quem paga as despesas dessa realização, assumindo, aqui, este ato uma forma de devoção ao santo patrono do sucesso alcançado. A ostentação da riqueza amealhada manifesta-se, por vezes, no número de lâmpadas acesas, no fogo queimado, nas bandas de música e, mais recentemente, nos conjuntos de ritmos modernos. Na verdade, a realidade passou a ser outra e ao madeirense são oferecidas inúmeras formas de diversão que colocam em plano secundário as festas e romarias: primeiro, a rádio (1948), depois a televisão (1972) e as hodiernas formas de diversão urbana com as discotecas (1973). Uma breve incursão ao processo histórico da Ilha revela-nos que os nossos avós não reservavam a sua alegria apenas para as festividades religiosas. O madeirense, na sua labuta diária, soube manter-se em perfeita harmonia com o meio que o rodeava, expressando uma natural alegria, patente nas danças e cantares que animaram o seu quotidiano. Todos os momentos eram aproveitados, sendo o árduo trabalho amenizando com os diversos cantares – canção da erva, da ceifa, dos borracheiros, entre outras – repetidos nas romarias. O ritmo desses cantares foi trazido pelo batuque dos escravos africanos que vieram para a Ilha, desde meados do séc. XV, para o trabalho na safra do açúcar. Muitas destas manifestações surgem na Ilha com os primeiros colonos, resultando a sua variedade da sua múltipla origem. Dominante é, porém, a presença das manifestações rituais do norte de Portugal, local de origem do maior grupo de povoadores: as danças e os nomes das principais romarias têm aí a sua origem. Assim sucedeu com a devoção do Senhor Bom Jesus e com a Nossa Senhora dos Remédios que se implantou na Quinta Grande. A par disso, os santos populares mantêm a tradição lusíada, o mesmo acontecendo com as demais festividades que demarcam o calendário litúrgico: Corpus Christi e Natal. Não é fácil definir a data precisa em que as principais romarias madeirenses tiveram o seu início, pois faltam-nos comprovativos. As romarias que chegaram ao séc. XXI – Monte, Loreto, Ponta Delgada, Rosário e Machico – são muito antigas, ligando-se aos principais povoadores. Os venerados são os seus principais intercessores. Marcadamente rurais, as romarias desviavam os romeiros do burburinho urbano e conduziam-nos ao encontro da natureza. Eram elas que estabeleciam o ritmo de vida e quotidiano das gentes, atuando como elos de ligação e convergência das diversas freguesias. Neste contexto, alguns dos contratos tinham como prazo a data dos santos populares ou as mais destacadas romarias. Note-se que o S. João foi, durante o séc. XV, a data de início dos mandatos no município funchalense, mantendo-se a tradição nos Açores até época tardia. Gaspar Frutuoso refere, a este propósito, que em São Roque do Faial se realizava, a 8 de setembro, uma das mais importantes romarias da Ilha, na qual, para além da imprescindível devoção e folgares, se aproveitava o momento para a troca de produtos numa feira improvisada. Aliás, esta tradição de associar as feiras e mercados às romarias não é novidade, tendo sido trazida pelos colonos oriundos do norte de Portugal, onde eram frequentes. Em 1853, Isabella de França descreve-nos, de forma sucinta, a romaria de Santo António da Serra através da animação e devoção do arraial e da presença dos romeiros, que descreve como uma "palhaçada". Deste modo, as romarias, para além da dimensão religiosa, destacam-se como momentos de afirmação de uma excessiva sociabilidade, definidora do modo de ser que define o madeirense. Com o tempo, algumas das romarias, como esta de São Roque do Faial, ficaram esquecidas e outras apareceram a disputar a sua posição, pois apenas as do Monte, Ponta Delgada, Loreto e Machico continuaram a pautar o ritmo das festividades e devoção madeirenses. A romaria de Nossa Senhora do Monte, a 15 de agosto, foi, sem sombra de dúvida, a maior festividade da Ilha, atraindo a devoção de todos os madeirenses, mercê da eficaz proteção que lhes deu quando estes a solicitaram. Ao longo do séc. XVII, o madeirense colocou-se sob a sua proteção, implorando a sua intercessão para fazer cessar a seca (1627 a 1695) ou a peste (1686). Em 1803, em face da aluvião que assolou a cidade, recorreu-se mais uma vez à sua proteção, passando, a partir de então, à condição de padroeira menor da cidade. Tais condições favoreceram a perpetuação e afirmação do seu culto e a sua passagem à diáspora madeirense: desde o planalto de Cubango, em Angola (1885), às ilhas do Havaí (1902), passando, mais tarde, pelos EUA, África do Sul e Austrália, esta festa manteve-se como um dos poucos elos à terra de origem. Em síntese, o madeirense fez transbordar a sua alegria nessas manifestações festivas, distribuídas ao longo do ano. O período estival era definido como o momento de maior atividade no campo e na cidade; era a época das colheitas que ocupava todos sem exceção e que quase paralisava o burgo. Esta situação é muito antiga e tem origem no período de interrupção das atividades administrativas e judiciais, para que as gentes se pudessem dedicar inteiramente às colheitas. Já nas Sete Partidas de Afonso X de Castela e, depois, nas Ordenações Régias, ficou estabelecida a paragem por um período de dois meses. Os vereadores abandonavam a vereação e iam para o campo fazer as suas colheitas; na realidade, toda a animação estava aí, onde se concluía a safra do açúcar e se iniciavam as ceifas que depois davam lugar às vindimas. O verão era sinónimo de redobradas canseiras, para uns, e mudança de atividade, para outros. Todavia, este movimento apresentava ocasiões propícias ao lazer; era nessa época que se realizavam as tradicionais romarias, cujo roteiro coincidia, amiudadas vezes, com o processo de transmigração da mão de obra braçal para as colheitas. Essas atividades agrícolas eram sempre acompanhadas de folias, com ativa participação dos senhores, escravos e jornaleiros. Lembremo-nos que inúmeras manifestações do nosso folclore têm aí as suas origens. Era também no período estival que tinham lugar as festividades mais representativas que se realizavam na Ilha: primeiro, a procissão do Corpus Christi no Funchal, com participação das gentes de toda a Ilha, e, depois, as romarias das freguesias rurais. Estas últimas eram, segundo Isabella de França “o único divertimento da gente do campo” (FRANÇA, 1969, 132). A sua realização estava ordenada de acordo com o calendário religioso e agrícola, estabelecendo um roteiro em toda a Ilha; primeiro as da vertente sul a culminar a safra do açúcar e o período da ceifa, depois as do norte a concluir as vindimas. A dança e o canto eram os aspetos mais fulgurantes destas manifestações lúdicas dos dias santificados e dos oragos, únicos momentos de repouso para as gentes da Ilha. Era a Igreja quem estabelecia os momentos de lazer e de trabalho, sendo os primeiros definidos como os domingos e dias santificados. Nestes dias, livres e escravos estavam libertos do trabalho e disponíveis para orar a Deus. Apenas havia permissão para se fazer um conjunto limitado de ofícios e de tarefas. Ao madeirense, restavam ainda as festas civis, consideradas no segundo caso, estabelecidas pelo capitão e demais autoridades da Ilha. Comemorava-se o nascimento de um príncipe, a coroação de um rei ou o regresso à Ilha do capitão. Estas eram as festividades profanas, de raiz urbana sem data estabelecida, que consistiam em jogos de canas, touradas e lutas corpo a corpo em que participavam gentes de toda a Ilha. Mas, aos poucos, essa tradição foi-se perdendo e essas manifestações deram lugar a outras, como o teatro e a ópera. Apenas o clero tinha a possibilidade de passar um período de férias. Tal como o referem as constituições sinodais do Funchal de 1578, o beneficiado ou ecónomo tinha direito a quarenta dias de ausência aos ofícios para sua "recreação", enquanto o bispo poderia ausentar-se por dois meses do seu episcopado. Esta situação foi estabelecida nos primórdios do catolicismo, tendo sido confirmada pela sessão XXIV do Concílio de Trento.   Férias e descanso Um outro aspeto a ter em conta na diferença entre as férias desses tempos e aquelas que hoje conhecemos tem a ver com a exposição do corpo desnudo que não era admitida nesta sociedade; a indumentária não serve apenas pela moda, mas também pela necessidade de cobrir o mais possível o corpo. Às interdições estabelecidas pela Igreja relativamente à exposição e higiene do corpo vieram juntar-se as posturas camarárias proibitivas dos banhos na praia e ribeiras do Funchal, Machico e Porto Santo; de acordo com a postura da Câmara do Funchal de 26 de julho de 1839, estava proibido aos funchalenses o banho de mar nus, só se permitindo em calças ou camisa até abaixo do joelho. Os seus infratores sujeitavam-se a uma pesada coima de mil réis. Mais tarde, ao invés, tornou-se moda o topless e as praias de nudismo. Diz-se que os primeiros que se banharam nas águas límpidas da Ilha foram João Gonçalves Zarco e seus companheiros quando, em 1420, se refugiaram nas águas refrescantes do mar, para fugir ao calor infernal do incêndio que se ateou na floresta da Ilha. Mas o banho foi a preceito, com todas as vestes que traziam no corpo. Já em 1850 se referia, nos anais do município da Ilha do Porto Santo, que as suas praias eram propícias aos banhos de mar, mas que não atraiam forasteiros por falta de condições, estando os naturais limitados pelas posturas. Na realidade, a sua revelação como uma estância balnear é do nosso século. Num texto de Giulio Landi, de cerca de 1530, pode ler-se que os naturais do Norte da Ilha da Madeira tinham por hábito “ir à praia” (ARAGÃO, 1981, 84). Não sabemos se com isso o autor se referia ao ir a banhos ou a um mero passeio para desfrutar da aragem marinha e contemplar o imenso mar.   Assistência e saúde Uma das vertentes que pautou a intervenção da Igreja nas ilhas foi a prestação de serviços de assistência aos cristãos e cativos. Para isso, existia um conjunto variado de instituições que foram criadas de acordo com as necessidades dos diversos núcleos populacionais. As cidades portuárias ficaram servidas de hospitais, que davam o necessário apoio aos marinheiros e demais gentes de passagem. Por outro lado, os problemas resultantes da fome, mendicidade e peste levaram à criação de inúmeras instituições de beneficência por iniciativa de particulares, que depois passaram para a alçada da igreja. Na Madeira, é de referir o empenho de Zargo em fazer construir, em 1454, um hospital junto à capela de S. Paulo, mas não sabemos se o seu desejo foi por diante. A isto, juntam-se referências a outros dois hospitais de iniciativa de particulares, sendo um na Rua de Boa Viagem. A partir de 1485, com a bula de Inocêncio VIII Iniunctum Nobis, a estrutura assistencial ganha uma nova forma. De acordo com esse espírito, a coroa criou, em 1498, o hospital de Lisboa, que veio a congregar todos os menores aí existentes. O mesmo espírito foi seguido em todas as vilas do reino, por autorização papal de 23 de outubro de 1501, expresso na carta régia de 4 de maio de 1507. De acordo com as ordenações régias, cabia aos bispos a sua superintendência. É neste contexto que surgem idênticas instituições nas ilhas. Na Madeira, existiu, primeiro no Funchal (1507) e depois em Machico, Calheta, Santa Cruz e Porto Santo, o hospital da Misericórdia. A função assistencial completa-se com as confrarias, autênticas associações de solidariedade social e espiritual, sendo os irmãos recrutados pela sua situação socioprofissional ou pela sua devoção ao santo patrono. É de salientar o caso da dos pescadores, que, na Ilha, não tiveram o mesmo patrono, e a dos mesteres, como a de S. Jorge (1562) e de S. Miguel, de S. Crispim e de S. Crispiniano (1572). Realçamos, ainda, as confrarias ligadas às misericórdias, onde os irmãos tinham assegurado a sua assistência hospitalar e espiritual. O Funchal, cidade portuária, estava aberta ao contágio das doenças. Deste modo, para precaver a urbe desta infeção estabeleceram-se espaços onde as mercadorias e passageiros suspeitos eram mantidos em quarentena. Este espaço situava-se, primeiro, em Santa Catarina, tendo sido depois transferido para a outra ponta da cidade, no chamado Lazareto. A vereação da cidade estava atenta aos anúncios de peste nas principais áreas de ligação à Ilha. Porém, isto era considerado pouco numa terra onde a importação de géneros é fundamental, sendo, ao mesmo tempo, a principal via de transmissão de doenças contagiosas e dermatológicas. Deste modo, em 1787, o governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho avançou com a casa da saúde, com o objetivo de vistoriar os navios entrados e os produtos alimentares de importação à venda no mercado local. As condições de vida no Norte da Ilha não eram diferentes das do resto do seu território, sendo a sua evolução igualmente pautada por um significativo progresso. Uma das medidas mais importantes a ter em conta nesta época prendia-se com a prevenção. As condições sanitárias das habitações e, acima de tudo, dos aglomerados como a Vila não eram as melhores. Neste último caso, a época invernosa tornava as ruas da Vila num palco de imundice, sendo constante o apelo à limpeza das regadeiras e ao seu calcetamento. As melhorias significativas nas condições de vida dos munícipes são apenas visíveis a partir da déc. de 30. A cobertura de palha cede lugar ao barro e adiciona-se, nas proximidades, um novo compartimento, que depois passará a fazer parte dos planos da casa. Note-se que, quer na construção da retrete quer do palheiro para gado, o médico municipal deveria informar da sua conveniência e localização. A Câmara assumiu o compromisso de pagar todas as despesas com os doentes pobres, que incluíam os medicamentos, o transporte ao hospital da misericórdia no Funchal e a diária do período de internamento. Para que isso acontecesse, o doente deveria ser acompanhado de um atestado de pobreza passado pela Câmara. A vereação sentia-se obrigada a apoiar as famílias pobres através de subsídios fixos ou eventuais. Noutras circunstâncias, as famílias pobres eram acudidas com milho ou então géneros alimentícios de mercearia. Às crianças reservava o município dedicados apoios. Primeiro, com o apoio e acolhimento indispensáveis à sobrevivência das crianças expostas. Depois, no apoio às mães solteiras ou àquelas que não tinham posses para alimentação dos filhos recém-nascidos. As crianças expostas surgem neste período nas mais diversas circunstâncias. Ao município, mediante verba concedida pelo governo civil, estava atribuído o encargo de assegurar a sobrevivência destas crianças. Após o batismo, eram entregues a uma ama, sendo conhecidas pelo número de registo no livro de expostos. Nem todas as crianças que nasciam no seio de famílias constituídas tinha assegurada a sua sobrevivência. Ameaçada pelo estado de miséria, tal sobrevivência só poderia ser assegurada mediante um apoio do município para a lactação. Este subsídio poderia ir até dois anos e contemplava os filhos de mães solteiras ou outras que viviam em estado de pobreza ou a quem tinha secado o leite. Este subsídio era atribuído caso a caso mediante requerimento dos interessados à vereação. A Vereação estava responsável pela gerência deste apoio, podendo retirá-lo a quem não oferecesse as condições exigidas.     Alberto Vieira (atualizado a 15.12.2017)

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