quotidiano e sociabilidades

12 Nov 2020 por "Alberto Vieira"
História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

Tudo o que se prende com o quotidiano da sociedade madeirense tem de ser encontrado de forma indireta na documentação, tendo em conta que, no que respeita a épocas recuadas, faltam testemunhos que nos permitam descobrir como as pessoas ocupavam as 24 horas do dia e os escassos anos de vida que as condições sociais e materiais da sociedade do seu tempo lhes propiciavam.

Um dos recursos mais comummente usados são os diários pessoais e os retratos do quotidiano traçados por visitantes, alguém que, em busca de um clima ameno capaz de curar as suas doenças ou de passagem fugaz rumo a outros destinos, em missão política ou científica, fica impressionado com a realidade com que se depara, diferente da sua. Mas em que medida estes testemunhos referentes à nossa sociedade são fiéis? Muitos destes testemunhos resumem-se quase só ao espaço urbano, sendo raros os que apontam para um retrato, ainda que fugaz, do mundo rural, pois que a sua observação era feita de passagem e apenas durante os percursos, mais ou menos estabelecidos, pelo interior da Ilha. No Funchal, a presença era mais demorada, mas circunscrevia-se às quintas, depois aos hotéis, às casas, quase sempre mais abastadas, aos clubes, casinos e cafés e, raras vezes, se cruzavam com a maioria da população funchalense; apenas uma parte da sociedade e do quotidiano de alguns que, certamente, não se confundiam com a maioria dos madeirenses.

São poucos os testemunhos de madeirenses sobre a sua realidade quotidiana e espelham, quase sempre, uma leitura a partir da sua posição social. Neste quadro, importa refletir sobre o quanto o olhar apresentado por Horácio Bento de Gouveia, considerado o retratista da vivência madeirense, a partir de 1948, com a publicação de Ilhéus, depois renomeado para Canga, em 1975, poderá ser o retrato fiel do mundo rural madeirense ou apenas um olhar enviesado de um filho de senhorio, das bandas de Ponta Delgada. Perguntamos, assim, em que momento esta personagem se alheia da sua posição social e se integra, de forma participante, no quotidiano dos caseiros e demais homens do meio rural madeirense.

A Madeira estava longe dos progressos da Revolução Industrial e o analfabetismo dominante conduzia aqueles que atuam no processo produtivo, uma intervenção apenas por força da tradição e nunca fruto de uma sabedoria acumulada e vivenciada. A orografia da Ilha tanto dificultava qualquer tarefa produtiva como condicionava a criação de condições que favorecessem a valorização do magro resultado do trabalho do madeirense, por falta de vias de comunicação e de meios de transporte adequados. A situação não favorecia qualquer mudança, nem tão pouco o progresso técnico e o conhecimento batiam à porta de muitos destes protagonistas. Havia muito pouco para inventar no quotidiano deste ilhéu, que se pautava quase sempre pelo ritmo das estações do ano, do calendário religioso e de um ou outro acontecimento de índole política, cuja repercussão era mais acentuada no meio urbano. Ao madeirense que foi obrigado a construir a sua casa e sustento sobre um penhasco e a viver em permanente sobressalto à beira do abismo, faltaram tempo e meios para que o quotidiano se pudesse dividir entre os momentos de lazer e de trabalho e que, entre ambos, fosse visível uma interação. O descanso e o trabalho são repartidos e definidos pela própria natureza, como o nascer e o pôr do sol, a chuva e o tempo soalheiro. As tarefas são árduas, os meios técnicos reduzidos e pouco eficazes, pelo que não sobrava tempo para além daquele indispensável e imposto com a chegada da noite ou algo de anormal que acontecesse e obrigasse a uma paragem forçada.

A Igreja impôs o seu ritmo do tempo através do relógio do campanário dos templos, que ecoava por todos os recantos da Ilha. Definiu a regra para o ócio e para o lazer, impondo-o relativamente ao encontro do ritual de evocação dos santos e dos passos mais significativos da intromissão do ritual religioso na vivência e quotidiano. É o preceito religioso de que o domingo é “o dia do Senhor” que implica esta paragem semanal, mas que impõe a obrigação de longas caminhadas do seu local de assentamento até às igrejas e capelas para que o ritual seja cumprido. Depois, serão as festas dos oragos a definir outras paragens, quase sempre na época estival, após as colheitas, momentos em que o trabalho é menor e a natureza impõe uma pausa para descanso das terras à espera de novo momento de lavra e sementeira. Na cidade, por exemplo, as procissões dos Passos do Senhor, do Corpo de Deus e do Santíssimo Sacramento são consideradas um misto de manifestação de fé, espetáculo e diversão para todos os madeirenses e motivo de espanto para os forasteiros. Fora do controlo da Igreja, estavam os carnavais, tempos de grande folia e liberdade, aos quais apenas a política conseguiu impor regras. Os desfiles de Terça-feira de Carnaval ficaram célebres e transformaram-se num momento de grande animação da cidade. A isto juntam-se os saraus e bailes em diversos clubes e associações que atraíam as classes mais abastadas, na medida em que o Carnaval do povo era na rua.

Tudo é uma imposição que amordaça o ilhéu a um quotidiano e a uma forma de vida, deixando pouco ou nenhum espaço para descobrir o ócio e o lazer. Na verdade, nesta sociedade pré-industrial, trabalho e lazer misturavam-se nas atividades de colheita e plantação. O trabalho fazia parte do ritmo e ciclos das estações e dos dias, sendo alterado por pausas para repouso, descanso, jogos, competições, danças e cerimónias, que, em momento algum, constituíram um tempo determinado para o lazer. São muitos os estrangeiros que testemunham esta situação.

Quanto nos embrenhamos na Ilha, no sentido de estabelecer os ritmos que pautaram o lazer, a primeira ideia que importa reter é a da necessidade de diferenciar os ritmos que comandam o quotidiano nos espaços urbano e rural. No meio rural, tudo acontece de forma cadenciada e de acordo com os ritmos da própria natureza e da intervenção formal do homem, melhor dizendo da Igreja, através do calendário religioso. As estações do ano, as atividades do campo e as festividades religiosas moldam e expressam o quotidiano do homem rural. Já a cidade estava sujeita a outros fatores que determinavam um compasso distinto para o quotidiano. Para além disso, no caso do Funchal, pelo facto de ser uma cidade portuária, esses ritmos estarão, muitas vezes, alinhados de acordo com o movimento do porto. Em muitos aspetos, o porto comanda a vida do burgo. A cidade vive de olhos postos nele e na linha do horizonte. Qualquer movimento que a retina alcançasse gerava, de imediato, um burburinho desusado nas ruas e no calhau. Em pouco tempo, as ruas da cidade ganhavam outra animação, com a chegada dos forasteiros e os residentes em permanente rodopio.

O porto dominava quase por completo as expectativas dos funchalenses e das lojas comerciais que se anichavam nas proximidades da alfândega e do cais. São os barcos de comércio que movimentam o calhau e o cabrestante com a carga e descarga de produtos que se trocam por vinho ou outras riquezas da terra. São os navios das Rotas coloniais, que ligam as capitais europeias às principais cidades das colónias respetivas, com passageiros em trânsito e turistas de temporada, que trazem o movimento e animação ao comércio e às ruas da cidade. São as esquadras militares que fazem aumentar as expectativas do negócio, nas lojas ou nas casas de diversão e ainda transportam a animação para as ruas, com demonstração ou desfile das suas fanfarras. São os navios de expedições científicas que fazem desembarcar cientistas sedentos de descobertas no campo da botânica e demais ciências e que por isso se embrenham, no pouco tempo de estadia, pelo interior da Ilha, em cavalgadas de descoberta dos segredos infindáveis que esta natureza, quase virgem, lhes reservava.

Parece que todos eles alteram a pacatez do quotidiano do burgo e arredores. Na visão de muitos visitantes, a cidade acorda para um burburinho inusitado. As lojas de comércio, os cafés, os restaurantes, os hotéis abrem as suas portas para os receber e, muitas vezes, venerar. As casas das vilas e quintas arejam os seus quartos para receber os novos hóspedes. Os carreiros e quadrilhas de cavalos andam em permanente rodopio para poder satisfazer a demanda de serviço. É nesta altura que a animação se volta para os espaços interiores das quintas e vilas. Os salões de dança, os clubes e os casinos são os locais mais usuais para quebrar a monotonia e o tédio desta sociedade e daqueles que permanecem por longas temporadas. Desta forma, a presença destes navios e forasteiros trazia a vida ao burgo, dando novo colorido à cidade e aos arredores.

Os salões de dança, os clubes e os casinos serão o meio mais usual de quebrar a chamada monotonia e o tédio. Tudo isto até que, na linha do horizonte, se vislumbre um outro navio com novidades, mais gentes e a tão desejada animação para o burgo. Será assim, para estes, o ritmo quotidiano de uma sociedade portuária como o Funchal. Contudo, para quem vivencia este quotidiano desde o momento que vê a luz do dia as impressões são distintas. O quotidiano não para, dia e noite. Apenas diminui o movimento de pessoas e viaturas.

É certo que o Funchal se constituiu, desde o séc. XV, como uma cidade portuária. Abriu as portas do calhau às gentes e aos produtos de fora, franqueou as casas do burgo, das quintas e das vilas da encosta e fez construir altaneiras torres avista-navios e mirantes, com o propósito de alcançar o mais distante da linha do horizonte e de reencontrar, de novo, o barco que traz a mercadoria de que necessita, ou os porões vazios e disponíveis para o embarque do seu açúcar, vinho ou outro produto qualquer.

Ao longo do processo histórico do espaço atlântico, apercebemo-nos que as ilhas passaram de escalas de navegação e comércio a centros de apoio e laboratórios da ciência. Os cientistas cruzaram-se com mercadores e seguiram as Rotas delineadas pelos aventureiros e descobridores desde o séc. XV. Juntaram-se, depois, os turistas, que afluíram desde o séc. XVIII em busca de cura para a tísica pulmonar ou à descoberta da sua natureza. A Madeira pode muito bem ser considerada uma das mais destacadas salas de visita do espaço atlântico, pois foi, desde os primórdios da ocupação europeia, um espaço aberto à presença quase assídua de forasteiros. A chamada hospitalidade madeirense, que muitas vezes se confunde com servilismo, é considerada uma constante da História que os aventureiros, marinheiros, mercadores, aristocratas, políticos, artistas, escritores e cientistas nunca se cansam de assinalar. Na verdade, na perspetiva de quem chega, todos os inusitados mimos podem ser considerados como hospitalidade, mas para quem está e tem de oferecer os seus préstimos e serviços é apenas uma questão de oportunidade e de sobrevivência.

Os momentos de lazer, diversão ou ócio são definidos pelos acontecimentos, já programados anualmente, por força do calendário litúrgico (as festas do santos populares e dos oragos das freguesias, o natal, o Carnaval e a Semana Santa), aos quais se juntam as efemérides relacionadas com alguma data significativa, como o nascimento, a morte e a aclamação dos monarcas, e, também, por força destas circunstâncias, algumas eventuais festividades ou acontecimentos que mobilizam toda a cidade e a Ilha. A visita do Rei D. Carlos, em 1901, foi um dos acontecimentos mobilizadores de toda a sociedade madeirense, dando azo a múltiplas manifestações populares com desfiles, espetáculos, bailes e banquetes associados a luminárias e decorações nas principais artérias próximas do cais da cidade. Todos, residentes e forasteiros, participaram a seu modo nestes eventos. Entretanto, entre 29 de dezembro de 1922 e 4 de janeiro de 1923, celebraram-se as Festas do quinto centenário do descobrimento da Madeira, também com espetáculos, recitais, desfiles, desfiles, iluminações e decorações, jogos hípicos e desportivos, no Campo de Almirante Reis. Outro momento de grande interesse foi as Festas das Vindimas, celebradas em 1938 e 1940, no Campo de Almirante Reis, onde as tradições e cantares populares fizeram, pela primeira vez, parte do programa, por iniciativa de Carlos Maria dos Santos.

Outros momentos aconteceram na Ilha que implicaram uma grande mobilização popular e, por isso, a quebra da rotina diária. Assim, entre fevereiro e maio de 1931, aconteceram as revoltas da Farinha e da Madeira que atraíram multidões ao centro do Funchal, facilmente manipuladas para assaltos a moagens ou para “gritar vivas” ao novo Regime.

As manifestações públicas, desde desfiles, procissões e fanfarras de música, estavam franqueadas a todos os presentes, na cidade e no meio rural, que, muitas vezes, vinham de propósito para assistir a tais eventos. Já os espetáculos, os bailes, as receções e banquetes estavam limitados a um grupo restrito da sociedade e aos forasteiros. O movimento desusado de passageiros, em trânsito e turistas, obrigou as autoridades a cuidar das ruas e praças da cidade, de forma a criar as condições de conforto adequadas a estes transeuntes. O calcetamento das ruas principais e, depois, a melhoria dos espaços públicos, como as Praças da Rainha (em frente ao Palácio de S. Lourenço), da Constituição (que posteriormente se tornou parte do espaço da Restauração) e da Académica (posteriormente Campo de Almirante Reis), criaram as condições espaciais para inúmeras manifestações de diversão.

Alguns estrangeiros queixam-se do tédio permanente das estadias no Funchal, por falta de locais de diversão, pela má qualidade dos músicos e pela pouca variedade dos repositórios musicais. Disso se queixava, em 1853, Isabella de França:

“Não posso dizer muito em louvor da música destes bailes, porque só há uma no Funchal e o público não fica mais bem servido do que noutro monopólio qualquer. Outra consequência é que, durante a temporada, se tocam sempre os mesmos números. São eles, como em toda a parte, uma ou outra quadrilha, por mera formalidade, e muitas polcas, valsas, mazurcas, etc. - tantas quanto possível” (FRANÇA, 1969, 173).

Outros ainda, como Dennis Embleton, em 1882, apontavam a pouca veia musical dos madeirenses. Talvez por isso a presença de uma banda a bordo de um navio de passagem era motivo de interesse e curiosidade, providenciando-se a sua participação em bailes oficiais ou organizados pelos clubes. Em 1853, a banda de um barco americano foi convidada a atuar num baile no Palácio de S. Lourenço, como conta de novo Isabella de França:

“Na mesma sala dos quadros tocava a banda do navio americano surto no porto e cujo comodoro tivera a gentileza de a ceder para aquela ocasião. A música, de que o instrumento mais importante era o bombo, devia soar bem no mar alto mas ensurdecia muito debaixo de um teto” (Id., Ibid., 203).

A noite era um momento importante para o convívio e animação nas casas das principais famílias da Ilha e da comunidade britânica. Todos, nos seus solares apalaçados do espaço urbano ou quintas dos arredores da cidade, dispunham de amplos aposentos servidos com sala de jantar e de dança para muitos convidados. Entre estes, contavam-se sempre estrangeiros de diversas nacionalidades, que ocupavam o tempo de estadia na Ilha, pulando de Festa em Festa. Estes saraus eram marcados por grande animação de música e dança para servir os diversos convidados em que se incluíam sempre muitos forasteiros. Disso nos dá conta de novo Isabella de França:

“A reunião não teve muita concorrência, mas incluiu várias nações. Havia uma dama russa, três ou quatro alemães, além de ingleses, franceses e portugueses. Depois do chá, houve música nacional, para nossa distração: machete primorosamente tocado, viola e cavaquinho (machete de seis cordas em vez de quatro, peculiar ao Porto). Estes instrumentos foram todos bem tangidos e harmonizaram-se na perfeição em músicas que lhes são próprias. Gostei bastante” (Id., Ibid., 182).

O quadro dos espaços de lazer completava-se com os cafés e restaurantes, lojas comerciais e quiosques. Assim, de acordo com um roteiro de 1910, as ruas do aljube e praças da Constituição e da Rainha reuniam o maior número de cafés, restaurantes e lojas de venda de artefactos da Ilha. A entrada da cidade era, assim, servida pelos cafés do Rio, Mónaco, Golden Gate e Restaurante Central, que estavam de portas abertas para receber todos os que desembarcavam no cais. Em muitos destes cafés e clubes (Ritz Café, Kit Cat, Theo’s Capitolio, Club Restauração, Club Inglês, Monte Stranger Club), a música ao vivo marcava presença para gáudio de forasteiros e de muitos residentes a quem estavam franqueadas as portas. Muitos dos hotéis da cidade ofereciam, igualmente, aos seus clientes animação musical com a organização de saraus dançantes animados por orquestra própria. Era este ambiente de animação que se oferecia, na déc. de 30, aos hóspedes e a alguns residentes, nos hotéis Savoy, Atlantic, Continental, Miramar e Golden Gate.

Para além de toda esta animação de rua que acontecia de forma calendarizada ou eventual e que concentrava as atenções de todos, temos, ainda, que considerar aquela que acontecia em recintos fechados e que não permitia a entrada de todos. Neste caso, temos as representações dramáticas, os espetáculos, saraus dançantes e concertos de música. Durante muito tempo, as representações dramáticas foram públicas e abertas a todos, pois faziam-se nas igrejas e durante as procissões religiosas. A Misericórdia do Funchal celebrava o seu dia, a 1 de julho, com representações de comédias e autos retirados da Bíblia. O mesmo sucedia em muitas das igrejas e conventos da Ilha. Já o séc. XIX pode ser considerado o grande momento do teatro, do circo e da ópera. Surgiram novas casas de espetáculo que mantiveram uma atividade permanente, trazendo à Ilha personalidades de destaque do belo canto, concertos, récitas, festas de beneficência, circo e teatro. A aposta das autoridades foi sendo, no entanto, adiada e mantinha-se a insistente reclamação da imprensa e dos forasteiros pela falta de uma casa de espetáculos.

O Funchal era uma cidade cosmopolita que fervilhava com forasteiros de passagem ou doentes em busca da cura para a tísica, como referimos anteriormente. Alguns lamentavam-se, mesmo assim, mencionando que as diversões eram poucas; a falta de teatro, de ópera ou de outras diversões europeias eram substituídas pelos passeios a pé ou de barco e pelos piqueniques. Perante isto, foi preocupação de vários governadores, desde José Silvestre Ribeiro, avançar com este projeto. Todavia, só na déc. de 80, a pertinácia de João da Câmara Leme venceu a inércia das autoridades centrais. Assim, em 25 de fevereiro de 1880, constituiu-se a Companhia Edificadora do Teatro Funchalense, mas a decisão da sua construção, por parte da Câmara, só ocorreu em 9 de fevereiro de 1882, tendo este aberto as suas portas ao espetáculo cinco anos depois com o nome de Teatro D. Maria Pia. Com a República, passou a ser chamado, em 1911, “Manuel de Arriaga”, mas, face à recusa do mesmo, ficou como “Teatro Funchalense” até à sua morte, em 1917. Já na déc. de 30, com Fernão Ornelas, presidente da Câmara do Funchal, passou para “Baltasar Dias”, como forma de homenagear o maior dramaturgo madeirense do séc. XVI. Os momentos mais destacados de representações teatrais, no Funchal, aconteceram nas décs. de 20 e de 30, tendo sido nesta última década que começaram as chamadas “Revistas” que deram muita animação à cidade.

A partir dos anos 30, o Teatro passa a funcionar como uma sala regular de projeção de cinema. A arte cinematográfica havia vencido as artes dramáticas. Tudo aconteceu, em 1863, com o cosmorama universal, o antecedente do animatógrafo. Note-se que a primeira apresentação do animatógrafo ocorreu, na Madeira, em 1897. A partir dessa, outras experiências se seguiram com o cinema mudo, que foi ganhando a adesão do público. Os filmes eram exibidos a par de outros espetáculos musicais. Só a partir de 1907 ocorre o lançamento do cinema em termos comerciais. A sua popularidade levou à construção de pavilhões e novas salas de projeção que vieram juntar-se ao Teatro Municipal e ao Teatro Circo. No primeiro quartel do séc. XX, as sessões de cinema intercalam com os espetáculos de variedades, mas, paulatinamente, o fascínio do cinema acaba por conquistar o público. No primeiro quartel do séc. XX, o Funchal estava servido por diversos espaços para o cinema (Cine Jardim, Almirante Reis, Victoria, Pavilhão Paris, Sallão Central, Salão Ideal, Salão Teatro Variedades, Teatro Águia de Ouro, Teatro Canavial, Teatro Circo) que atraíam a atenção dos entusiastas da sétima arte, certamente um público urbano. Aos poucos, esta animação chegou ao meio rural, com a criação de casas de espetáculos: Teatro Gil Vicente em S. Vicente (1931), Salão Cultural de Câmara de Lobos (1931) e Cinema da Ponta de Sol (1932).

A animação e o lazer encontraram novas formas de expressão para as elites locais. Os clubes de diversão e de recreio são uma realidade a partir da déc. de 30 do século XIX. Entre estes, destacaram-se o Clube União (1836-1879) e o Clube Funchalense (1839-1899). Este último ficou célebre pelos bailes e soirées, afirmando-se, ainda, como um dos principais espaços de receção aos visitantes. Algumas das homenagens prestadas a personalidades de passagem tinham lugar aí. Assim, em 1885, a Câmara do Funchal homenageou Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, que estavam de visita à cidade, com um baile neste clube. Outros clubes animaram a cidade, como o Clube Recreio Musical (1900), Turt Club (1900), Sports Club (1910), Clube Republicano da Madeira (1911), Club Naval Madeirense (1917), Clube Recreio e Restauração, Novo Clube Renascença, clube funchalense, Commercial Rooms. Em todos, a animação e a diversão eram constantes. Mas quem afluía a estes espaços, muitas vezes, reservados? Quem teria condições materiais e tempo disponível, nesta época, para o ócio? Aos clubes e aos hotéis, juntam-se os casinos como locais privilegiados de diversão e de jogo. O Casino da quinta vigia (1895), sobranceiro ao porto, era um dos mais visitados e conhecidos pelos saraus dançantes que se faziam todos os dias.

A música tinha uma expressão elitista, nos concertos à porta fechada, nos bailes dos casinos e nas quintas, e uma outra, popular, através de filarmónicas que desfilavam ou tocavam em espaços públicos para todos. A primeira banda de música surgiu, no Funchal, em 1850 e ficou conhecida como a Filarmónica dos Artistas Funchalenses. A segunda de que temos conhecimento foi a Filarmónica Recreio União Faialense, que surgiu, no Faial, em 1855. A déc. de 70 marca o incremento de novas bandas em toda a Ilha: Câmara de Lobos (1872), Calheta (1874), S. Jorge (1877), Camacha (1873) e Ribeira Brava (1875). O interesse por este tipo de música ganhou a adesão da população madeirense. Na cidade, os desfiles e os assaltos de Carnaval não dispensavam a sua presença, os domingos e os dias festivos contavam com exibições no passeio público e as tradicionais romarias ganharam mais animação. Deste modo, o período de finais do séc. XIX e princípios do seguinte é definido por um aumento do número de bandas em toda a Ilha. Neste período, assinalam-se mais no Funchal (1898, 1913, 1920, 1923, 1933), em Câmara de Lobos (1910), Calheta (1923), na Ponta do Pargo (1911), em santana (1926), no Arco de São Jorge (1933), na Camacha (1887, 1922), na Ribeira Brava (1912) e no Campanário (1923). Desta forma, estamos perante uma significativa divulgação da Cultura musical no espaço rural, fazendo com que o colorido sonoro das notas não se fique apenas pelo rajão, braguinha ou machete. As festas dos oragos das freguesias tornaram-se os principais palcos de atuação, não havendo Festa sem um ou mais coretos que, à sua volta, acolhiam inúmeros populares de ouvido bem atento às novas marchas populares que o reportório das bandas ia revelando.

Ao visitante de passagem ou de estadia temporária restavam, ainda, outras diversões. As atividades desportivas são assinaladas no decurso do séc. XIX e afirmam-se, de forma clara, na primeira metade do séc. XX, como a corrida de cavalos, o futebol, o ténis, o criquet e o bilhar. Este último foi o mais popular de todos e transformou-se numa das principais atrações dos clubes de receio da cidade. Por fim, para os mais destemidos, restava, ainda, a caça à codorniz, ao coelho, à galinhola e à perdiz, que tanto poderia ter lugar no Santo da Serra, no Caniçal, no Paul da Serra, ou no porto santo e nas Desertas.

A prática de diversas modalidades desportivas começa por ser uma criação dos ingleses, para seu usufruto e dos seus hóspedes. Desta forma, em 1875, Harry Hinton está ligado à prática de futebol, na Camacha. O cricket foi, igualmente, uma modalidade de grande impacto, com dois grupos, The Madeira Cricket Club e Excelsior Madeira Cricket Club, de renome, onde se destacavam os ingleses. Outra modalidade de elite foi a esgrima, que atraia muitos praticantes e público à Quinta Pavão, Casino Victoria e Reid’s Hotel. Outra forma de prática desportiva, também de elite, prende-se com o automobilismo, no quadro das festas do fim do ano, entre 1935 e 1937. O Campo de Almirante Reis foi palco de diversos festivais desportivos: em 24 de fevereiro de 1911, teve lugar um para comemorar o fim da cholera morbus; entre os dias 7 e 8 de dezembro desse mesmo ano, realizaram-se os jogos Olímpicos; a 27 de julho de 1924, conta-se um jogo de futebol entre os banqueiros e os doutores para angariar fundos para o Asilo de Mendicidade e os Órfãos do Funchal.

A popularização da atividade desportiva acontece com a República. O futebol acabou por tornar-se na modalidade mais popular e naquela que cativava maior número de adeptos. Talvez tenha sido, de entre todas as modalidades, a mais democrática, por acolher, nas suas fileiras, gentes de diversos estratos sociais. O primeiro clube surgiu a 5 de novembro de 1909, sob a designação de Club Sport Madeira. Nas vésperas da República, foi criado o Clube Sport Marítimo (18 de setembro de 1910) e, depois, o Club Desportivo Nacional (8 de dezembro de 1910), União Futebol Club (1 de novembro de 1913) e o Sports Club Madeira (9 de junho de 1934). Desta forma, em 1925, desaparece o cricket como modalidade por falta de praticantes, mas o futebol havia já conquistado um lugar cimeiro na prática desportiva, fazendo do Campo de Almirante Reis o centro desta modalidade na Ilha. Não sabemos, porque não há estudos sobre a composição social dos dirigentes e dos atletas destes clubes, qual o grau de participação dos diversos estratos sociais, sendo, no entanto, certo que, aos poucos, tal desporto se transformou naquele que abrangeu um leque maior da sociedade de então.

Na Madeira, a segunda metade do séc. XIX foi marcada por uma conjuntura difícil para as diversas classes socioprofissionais, mas foi o momento do despoletar de uma consciência das mesmas para o associativismo ou da busca de soluções que propiciassem a assistência e a proteção aos trabalhadores nos acidentes, na doença e na velhice. A tudo isto acresce o filantropismo social de ajuda aos mendigos, crianças e viúvas. Deste modo, a partir de meados da centúria, o mutualismo, o cooperativismo e o associativismo socioprofissional foram a solução capaz de minorar as dificuldades com que se debatia a população. Às associações de classe, juntaram-se as filantrópicas e as de diversão. Foi, então, nessa altura que se generalizou a criação de clubes destinados ao recreio e à distração dos sócios. Constituíam uma forma de quebrar a monotonia do quotidiano e enquadravam-se no espírito de associativismo que marcou o século. Estes clubes primavam pela realização de bailes e soirées que contavam com a participação de residentes e forasteiros. Aliás, era tradição destes clubes receber, nas suas instalações, as personalidades ilustres que passavam pela Ilha. Assim, em 1885, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens foram aclamados no clube funchalense e, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram obsequiados pelo Club Sport Madeira. Dos inúmeros clubes que organizaram o folguedo dos madeirenses, entre a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do seguinte, podemos salientar os seguintes: Clube Económico (1856), sociedade Club Económico (1856), Clube Recreativo (1856), Clube Aliança (1867), sociedade clube funchalense (1872), Clube Restauração (1879), Novo Clube Restauração (1908), Clube Washington (1882), Clube dos Estrangeiros (1897), Clube União (1888), Clube Recreativo Musical (?-1900), Clube Recreio e Instrução (1892), Turf Club (1900), Clube Internacional do Funchal (1896), Stranger's Club-Casino Pavão (1906), The Sports Club (1901), Clube Sports da Madeira (1910), Clube Sport Marítimo (1911), Clube Republicano da Madeira (1911) e Clube Naval Madeirense (1917).

De entre todas as atividades de animação do burgo, aquela que podemos considerar mais elitista surge a partir de 1880 com as esquadras de navegação terrestre, uma novidade na diversão que veio animar as ruas da cidade e as amplas quintas dos arredores do Funchal. Estas esquadras acabaram por monopolizar o lazer dos proprietários das principais quintas. Organizaram-se esquadras militares, fardadas a rigor, que, em momentos determinados, realizavam assaltos entre si. Mas estas eram formas de entretenimento das chamadas gentes da sociedade, os boémios de dominó dos subúrbios do Funchal, que viviam em quintas.

O seu espírito, porém, é muito anterior, pois, desde a déc. de 40 da referida centúria, sucediam este tipo de confrontos lúdicos, tendo como base as disputas entre miguelistas e pedristas. Aqui, não estamos perante estruturas militares, mas sim de boémios que se juntavam sob a capa do ritual da marinha. Nas quintas, sobranceiras ou não, ao mar ergueram-se os mastros engalanados com “bandeirinhas” e uma peça de fogo. Ficaram célebres as quatro esquadras: Esquadra Torpedeira, Esquadra Submarina, Esquadra Couraçada e Esquadra Independente. O espírito era levado a sério, aparecendo os associados, em atos públicos, fardados a rigor. As atividades resumiam-se a alguns desfiles dominicais e nos dias feriados, passeios a pé, por vezes ao longo da costa, e, acima de tudo, aos assaltos combinados às adegas para o tão esperado repasto. O espírito da marinharia portuguesa em terra era assumido na sua plenitude e conduziu a alguns equívocos, em 1901, aquando da visita do Rei D. Carlos.

A partir de 1914, as dificuldades sentidas com a guerra conduziram ao refrear da iniciativa das esquadras até ao seu desaparecimento. Acabou o aparato de rua e o movimento, em torno dos mastros e miradouros, transferiu-se para espaços recatados. As associações de boémios assumem este caráter interior, por vezes fechado e elitista. A grande aposta ficou para a mesa e os jogos de fortuna e azar que ajudavam a passar os fins de tarde e a noite. A nau sem rumo, cuja data de aparecimento não está devidamente revelada, ganhou dimensão a partir da déc. de 30 do séc. XX, retomando este espírito das esquadras submarinas de navegação terrestre, agora transferido para dentro de portas e tendo a mesa como palco e o bacalhau como o inseparável amigo.

Não dispomos de documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da nau sem rumo. Os primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, mas a Associação existia há muito tempo. Note-se que era costume que a data dos estatutos oficiais não coincidisse com o início de funcionamento. Senão vejamos: o Clube União foi fundado em 10 de março de 1836, mas os seus estatutos só foram aprovados pela Assembleia Geral em 20 de agosto de 1874 e pelo Governo Civil em 7 de fevereiro de 1879. O clube funchalense é de 3 de dezembro de 1839, mas os primeiros estatutos são de 18 de dezembro de 1876 e só foram aprovados pelo Governador Civil em 16 de fevereiro de 1877. O mesmo deverá ter sucedido com a nau sem rumo.

A História testemunha que o grupo inicial de boémios que, sem rumo, deambulavam pelos bancos da avenida Arriaga rapidamente encontrou a Nau. Durante muito tempo, esta não teve poiso certo, nem a adequada posição de relevo na vida boémia madeirense. Em 1945, parece ter-se encontrado o rumo. A uma sede, juntou-se um novo fulgor para a Nau que a projetaria para uma posição de relevo na sociedade funchalense dos anos 50 e 60, tendo os momentos áureos da tertúlia gastronómica ficado como a única memória herdeira das esquadras de navegação terrestre.

Oficialmente, a data de fundação foi atribuída à data do primeiro registo da associação, a 27 de maio de 1935, tal como poderá constatar-se pelo regulamento de 1950, ficando o dia 27 de maio como o «Dia do Aniversário da nau sem rumo». Contudo, a Nau continuou a manter o espírito errante que esteve na sua origem. A primeira sede foi no edifício do posterior museu da quinta das cruzes, partilhado com “os Artistas”, passando, depois, em 1928, com o Almirante Dr. Agostinho de Freitas, para a Rua da Carreira. A partir daqui “vagueou” por algumas ruas da cidade: Rua dos Murças, Travessa do Nascimento e, finalmente, a Rua 31 de Janeiro, onde “varou”, definitivamente, em 1941. A 27 de janeiro de 1945, inaugurou-se a nova sede à Rua 31 de Janeiro, onde permaneceu, em prédio construído por Raul Câmara em 1940. O ato de inauguração foi um momento importante na vida da Associação, contando com a participação das mais importantes individualidades da Ilha. De entre estas, podemos destacar: Dr. Fernão de Ornelas, Presidente da Câmara do Funchal, Dr. Félix Barreira, Secretário-geral do Governo Civil, Comandante João Inocêncio Camacho de Freitas, capitão do Porto, Eng.º António Egídio Henriques de Araújo, Vice-presidente da Junta Geral, Dr. Humberto Pereira da Costa, Diretor da Alfândega e Fernando Rebelo Andrade, Diretor da PIDE. A admissão dos sócios obedecia a requisitos especiais. Sendo esta uma associação de boémia masculina, só eram admitidos candidatos do sexo masculino. As mulheres tinham entrada apenas como convidadas ou na condição de sócios honorários. Esta categoria estava reservada a individualidades que, pelo mérito ou serviços prestados à nau sem rumo, adquiriam esta possibilidade, mediante proposta do Almirante e do Conselho do Estado Maior a apresentar em reunião deliberativa.

 

Festas e arraiais

Os arraiais são a componente mais evidente das festas e romarias madeirenses: Nossa Senhora do Monte, Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada, Nossa Senhora do Loreto, Nossa Senhora do Rosário, Senhor dos Milagres, entre muitos outros. A devoção popularizou-se ao longo dos últimos cinco séculos, de modo que estas romarias são momentos de grande movimentação das gentes, primeiro a pé, pelos caminhos íngremes que ligavam a Ilha de norte a sul.

Para apoio destes romeiros, abriram-se caminhos e construíram-se casas de romeiros junto dos templos de devoção. Havia, entre todos, um espírito de solidariedade para com estes. O bispo, nas suas visitações, recomendava ao município a recuperação dos caminhos e proibia os pastores de manter o gado na serra sobranceira. Esta é, pelo menos, a ideia que retemos da romaria da Ponta Delgada. Os moradores acolhiam os romeiros, dando-lhes, por vezes, guarida. Depois, com o avanço da rede de estradas, a partir da déc. de 40, estes deram lugar aos excursionistas e às filas intermináveis de “horários” e “abelhinhas”, como eram designados alguns transportes públicos. A abertura de estradas facilitou o contacto e acabou com o isolamento, mas, em contrapartida, veio retirar o bucolismo aos romeiros, que calcorreavam a Ilha de norte a sul para honrar o santo de sua devoção ou para retribuir a graça concedida. Não mais se ouviu ecoar as cantorias dos romeiros. O rajão, o machete e as castanholas emudecerem e, nas serras da Encumeada e do Paul, apenas se ouvirá o murmúrio do vento. A tradição ainda testemunha a vivência dos romeiros, como é o caso do folclore, que preservou muitos dos seus despiques e cantorias.

O folguedo ou arraial no espaço vizinho da igreja/capela do orago é efémero. Dura 48 horas. Mas, para que isso aconteça, há todo um trabalho engenhoso e arte na criação das flores ou dos tapetes para a procissão. Os enfeites, de alegra-campo e loureiro, contrastam com o garrido das flores e o vermelho da Cruz da Ordem de Cristo que flutua nas bandeiras. O progresso trouxe a ambiência feérica da luz e da cor, fazendo-os prolongar pela noite fora. A luz elétrica, a partir da déc. de 40, veio revolucionar o arraial. Para além da oferta de um variado conjunto de barracas de comes e bebes, onde se destaca a espetada, encontramos aí a feira para venda dos produtos da terra ou de fora. Este é um momento de encontro, devoção e partilha da riqueza arrancada à terra. A Festa do orago era um momento importante na vida das gentes da localidade. Ao divertimento e devoção juntam-se os contratos, negócios e, mesmo, as aventuras. Afinal, o arraial era um momento único em que todos se encontravam irmanados pela devoção ao santo padroeiro.

A romaria de Ponta Delgada assume especial significado. Primeiro, porque o lugar se situa lá longe, na encosta norte, obrigando o madeirense ao grande esforço de calcorrear a Ilha para expressão da sua devoção. Depois, pela dimensão que assumiu em toda a Ilha, uma vez que, no princípio de setembro, todos estavam virados para o norte, por serem aí as terras das vindimas e onde estas movimentavam mais pessoas. As longas caminhadas por entre as montanhas reforçam o caráter lúdico destas manifestações e apresentavam-se como momentos de grande animação, de encontro de gentes, de troca de amizades. A devoção ao senhor Bom Jesus começou por ser particular e resultou da origem de um dos principais povoadores do lugar de Ponta Delgada. Foi Manuel Afonso Sanha, oriundo de Braga, quem para ali levou o culto ao Senhor Bom Jesus, ao construir, em 1470, nas suas terras, uma capela da mesma invocação. O culto ao senhor Bom Jesus espalhou-se rapidamente por toda a Ilha. A sua invocação em momentos de dificuldade e a necessidade de agradecer a benesse alcançada através do "pagamento da promessa" conduziram paulatinamente à sua afirmação. Assim, nos sécs. XVI e XVII, é manifesta a importância desta romaria no calendário religioso da Ilha, levando o bispo a recomendar medidas no sentido de reparar os caminhos que de toda a Ilha davam acesso ao local de Ponta Delgada.

Na Madeira, o calendário das festas é estabelecido de acordo com o ano litúrgico e agrícola, sendo no primeiro que esta realidade tem a sua máxima expressão. Enquanto as primeiras celebram os principais momentos da vida da igreja e dos santos, as segundas demarcam o período das colheitas de um determinado produto, que cativava a vinda das gentes da Ilha ou da localidade em que têm lugar. As últimas são de criação recente, tendo algumas surgido nas duas últimas décadas do séc. XX, como as festas da cereja, vindimas, do pero e da maçã, enquanto as primeiras remontam aos primórdios da ocupação da zona. Os iniciais povoadores da Madeira, maioritariamente do Norte de Portugal, trouxeram impregnadas no corpo as tradições religiosas e festividades do calendário litúrgico. Foi desta forma que se delinearam os arraiais e romarias, que preenchem o tempo de lazer ao madeirense, expressos na afirmação dos santos populares (S.to António, S. João, S. Pedro) e importantes romarias (Bom Jesus, Braga/Ponta Delgada; Nossa Senhora do Loreto, Itália/Arco da Calheta; Nossa Senhora dos Remédios, Lamego/Quinta Grande), a que se vieram juntar as festividades genuinamente madeirenses (Nossa Senhora do Monte, Senhor dos Milagres, Nossa Senhora do Rosário). Estas últimas emergiram, de um modo geral, envoltas num misto de lenda e fervor religioso, o que contribuiu para a sua perpetuação e transmissão às gerações vindouras.

Para o madeirense, o momento festivo mais importante e de maior significado é sem dúvida o natal, que se demarca como o ponto de chegada e partida do calendário litúrgico. A prova disso está patente na afirmação de que o natal madeirense é a Festa. Num lugar secundário, surgem as restantes festividades que têm lugar ao longo do ano, com particular incidência na época estival; note-se que a sua maioria tem lugar nos meses de junho a setembro. O clima favorece essa concentração na época estival e era preocupação da Igreja concretizá-las antes das primeiras chuvas, de modo a que fosse numeroso o grupo de romeiros. Assim sucedia, em meados do séc. XIX, com a romaria do Santo da Serra, deslocada da data habitual por causa do medo das primeiras chuvas de setembro. Mas aqui é necessário distinguir as romarias das demais festas aos oragos. Enquanto estas últimas assumem uma dimensão vivencial restrita à localidade, as demais são vividas por toda a população. Há um misto de devoção na igreja e os folguedos ou arraial, no espaço circunvizinho. As promessas, com todo o seu ritual martirológico, a ação intercessora junto do santo são os elementos devedores desta manifestação.

A romaria, para além do tradicional pagamento da promessa ao patrono, expressa em valor pecuniário ou numa homenagem fervorosa, é um momento decisivo para o encontro das gentes da Ilha, aproveitado por muitos para o estabelecimento de contratos, troca e venda de produtos e, por vezes, uma fugaz aventura amorosa. Deste modo, as principais romarias da Ilha demarcavam o ritmo de vida dos nossos avoengos e atuaram como mecanismo unificador da vivência religiosa e do quotidiano, dada a dispersão populacional, resultante da orografia da Ilha. Em face disto, para além da sua importância na expressão da religiosidade do madeirense, destacam-se como momentos de afirmação de uma excessiva sociabilidade que conduzira a definição uniformizadora deste modo de ser que carateriza o madeirense. Estas romarias tinham lugar na época estival, após as colheitas da cana-de-açúcar, do cereal ou do vinho, o que permitia essa ventura, por terra e por mar, ao encontro do orago protetor. Estas festividades estavam devidamente calendarizadas: em agosto era a Festa de Nossa Senhora do Monte; em setembro, Nossa Senhora do Loreto, no Arco da Calheta, e o Bom Jesus da Ponta Delgada; e, em outubro, encerravam-se as romarias, com o Senhor dos Milagres, em Machico. Para além das casas de acolhimento, conhecidas como as casas dos romeiros, estas manifestações deixaram marcas na toponímia da Ilha, estando os caminhos dos romeiros, o curral dos romeiros, a atestar essa frequência.

As dificuldades de comunicação, nomeadamente na vertente Norte da Ilha, não impediram que os romeiros afluíssem em grande número às festividades do Senhor Bom Jesus. Desde o séc. XVII que este santuário ao norte ficou a marcar a nova aposta da reforma tridentina, ganhando uma dimensão particular na religiosidade do madeirense. Deste modo, no primeiro domingo de setembro, a pequena povoação de Ponta Delgada recebia inúmeros romeiros do sul e do norte, que para ai se dirigiam a cumprir as suas promessas. A sua passagem era anunciada pelos cantares e músicas apropriadas que davam ao Norte da Ilha uma animação inaudita. A própria igreja tomou algumas medidas no sentido de facilitar esse movimento, aconselhando as autoridades municipais sobre os necessários cuidados na manutenção dos caminhos ou punindo os proprietários de gado com excomunhão, pois, conforme refere o bispo, em 1706, sucediam-se, por vezes, desastres mortais, devido à queda de pedras provocadas pelas cabras que pastavam nos precipícios sobranceiros aos caminhos do lado de São Vicente e Boaventura.

A partir da segunda metade do séc. XIX, o emigrante regressado do Havaí, demerara, Brasil, Venezuela, África do Sul e Austrália reforça a animação destas festividades, dando-lhe uma nova dimensão; este era o festeiro que, reconhecendo a proteção do santo, lhe prestava a sua farta homenagem. Estas passaram a ser o momento para a visita aos familiares ou o regresso dessa promissora aventura; a animação festiva passou para o exclusivo controlo do emigrante, dependendo o seu brilhantismo da disponibilidade financeira: é o emigrante quem paga as despesas dessa realização, assumindo, aqui, este ato uma forma de devoção ao santo patrono do sucesso alcançado. A ostentação da riqueza amealhada manifesta-se, por vezes, no número de lâmpadas acesas, no fogo queimado, nas bandas de música e, mais recentemente, nos conjuntos de ritmos modernos. Na verdade, a realidade passou a ser outra e ao madeirense são oferecidas inúmeras formas de diversão que colocam em plano secundário as festas e romarias: primeiro, a rádio (1948), depois a televisão (1972) e as hodiernas formas de diversão urbana com as discotecas (1973).

Uma breve incursão ao processo histórico da Ilha revela-nos que os nossos avós não reservavam a sua alegria apenas para as festividades religiosas. O madeirense, na sua labuta diária, soube manter-se em perfeita harmonia com o meio que o rodeava, expressando uma natural alegria, patente nas danças e cantares que animaram o seu quotidiano. Todos os momentos eram aproveitados, sendo o árduo trabalho amenizando com os diversos cantares – canção da erva, da ceifa, dos borracheiros, entre outras – repetidos nas romarias. O ritmo desses cantares foi trazido pelo batuque dos escravos africanos que vieram para a Ilha, desde meados do séc. XV, para o trabalho na safra do açúcar. Muitas destas manifestações surgem na Ilha com os primeiros colonos, resultando a sua variedade da sua múltipla origem. Dominante é, porém, a presença das manifestações rituais do norte de Portugal, local de origem do maior grupo de povoadores: as danças e os nomes das principais romarias têm aí a sua origem. Assim sucedeu com a devoção do Senhor Bom Jesus e com a Nossa Senhora dos Remédios que se implantou na Quinta Grande. A par disso, os santos populares mantêm a tradição lusíada, o mesmo acontecendo com as demais festividades que demarcam o calendário litúrgico: Corpus Christi e natal.

Não é fácil definir a data precisa em que as principais romarias madeirenses tiveram o seu início, pois faltam-nos comprovativos. As romarias que chegaram ao séc. XXI – Monte, Loreto, Ponta Delgada, Rosário e Machico – são muito antigas, ligando-se aos principais povoadores. Os venerados são os seus principais intercessores. Marcadamente rurais, as romarias desviavam os romeiros do burburinho urbano e conduziam-nos ao encontro da natureza. Eram elas que estabeleciam o ritmo de vida e quotidiano das gentes, atuando como elos de ligação e convergência das diversas freguesias. Neste contexto, alguns dos contratos tinham como prazo a data dos santos populares ou as mais destacadas romarias. Note-se que o S. João foi, durante o séc. XV, a data de início dos mandatos no município funchalense, mantendo-se a tradição nos Açores até época tardia. Gaspar Frutuoso refere, a este propósito, que em São Roque do Faial se realizava, a 8 de setembro, uma das mais importantes romarias da Ilha, na qual, para além da imprescindível devoção e folgares, se aproveitava o momento para a troca de produtos numa feira improvisada. Aliás, esta tradição de associar as feiras e mercados às romarias não é novidade, tendo sido trazida pelos colonos oriundos do norte de Portugal, onde eram frequentes. Em 1853, Isabella de França descreve-nos, de forma sucinta, a romaria de Santo António da Serra através da animação e devoção do arraial e da presença dos romeiros, que descreve como uma "palhaçada". Deste modo, as romarias, para além da dimensão religiosa, destacam-se como momentos de afirmação de uma excessiva sociabilidade, definidora do modo de ser que define o madeirense.

Com o tempo, algumas das romarias, como esta de São Roque do Faial, ficaram esquecidas e outras apareceram a disputar a sua posição, pois apenas as do Monte, Ponta Delgada, Loreto e Machico continuaram a pautar o ritmo das festividades e devoção madeirenses. A romaria de Nossa Senhora do Monte, a 15 de agosto, foi, sem sombra de dúvida, a maior festividade da Ilha, atraindo a devoção de todos os madeirenses, mercê da eficaz proteção que lhes deu quando estes a solicitaram. Ao longo do séc. XVII, o madeirense colocou-se sob a sua proteção, implorando a sua intercessão para fazer cessar a seca (1627 a 1695) ou a peste (1686). Em 1803, em face da aluvião que assolou a cidade, recorreu-se mais uma vez à sua proteção, passando, a partir de então, à condição de padroeira menor da cidade. Tais condições favoreceram a perpetuação e afirmação do seu culto e a sua passagem à diáspora madeirense: desde o planalto de Cubango, em Angola (1885), às ilhas do Havaí (1902), passando, mais tarde, pelos EUA, África do Sul e Austrália, esta Festa manteve-se como um dos poucos elos à terra de origem. Em síntese, o madeirense fez transbordar a sua alegria nessas manifestações festivas, distribuídas ao longo do ano.

O período estival era definido como o momento de maior atividade no campo e na cidade; era a época das colheitas que ocupava todos sem exceção e que quase paralisava o burgo. Esta situação é muito antiga e tem origem no período de interrupção das atividades administrativas e judiciais, para que as gentes se pudessem dedicar inteiramente às colheitas. Já nas Sete Partidas de Afonso X de Castela e, depois, nas Ordenações Régias, ficou estabelecida a paragem por um período de dois meses. Os vereadores abandonavam a vereação e iam para o campo fazer as suas colheitas; na realidade, toda a animação estava aí, onde se concluía a safra do açúcar e se iniciavam as ceifas que depois davam lugar às vindimas.

O verão era sinónimo de redobradas canseiras, para uns, e mudança de atividade, para outros. Todavia, este movimento apresentava ocasiões propícias ao lazer; era nessa época que se realizavam as tradicionais romarias, cujo roteiro coincidia, amiudadas vezes, com o processo de transmigração da mão de obra braçal para as colheitas. Essas atividades agrícolas eram sempre acompanhadas de folias, com ativa participação dos senhores, escravos e jornaleiros. Lembremo-nos que inúmeras manifestações do nosso folclore têm aí as suas origens. Era também no período estival que tinham lugar as festividades mais representativas que se realizavam na Ilha: primeiro, a procissão do Corpus Christi no Funchal, com participação das gentes de toda a Ilha, e, depois, as romarias das freguesias rurais. Estas últimas eram, segundo Isabella de França “o único divertimento da gente do campo” (FRANÇA, 1969, 132). A sua realização estava ordenada de acordo com o calendário religioso e agrícola, estabelecendo um roteiro em toda a Ilha; primeiro as da vertente sul a culminar a safra do açúcar e o período da ceifa, depois as do norte a concluir as vindimas. A dança e o canto eram os aspetos mais fulgurantes destas manifestações lúdicas dos dias santificados e dos oragos, únicos momentos de repouso para as gentes da Ilha. Era a Igreja quem estabelecia os momentos de lazer e de trabalho, sendo os primeiros definidos como os domingos e dias santificados. Nestes dias, livres e escravos estavam libertos do trabalho e disponíveis para orar a Deus. Apenas havia permissão para se fazer um conjunto limitado de ofícios e de tarefas. Ao madeirense, restavam ainda as festas civis, consideradas no segundo caso, estabelecidas pelo capitão e demais autoridades da Ilha. Comemorava-se o nascimento de um príncipe, a coroação de um rei ou o regresso à Ilha do capitão. Estas eram as festividades profanas, de raiz urbana sem data estabelecida, que consistiam em jogos de canas, touradas e lutas corpo a corpo em que participavam gentes de toda a Ilha. Mas, aos poucos, essa tradição foi-se perdendo e essas manifestações deram lugar a outras, como o teatro e a ópera. Apenas o clero tinha a possibilidade de passar um período de férias. Tal como o referem as constituições sinodais do Funchal de 1578, o beneficiado ou ecónomo tinha direito a quarenta dias de ausência aos ofícios para sua "recreação", enquanto o bispo poderia ausentar-se por dois meses do seu episcopado. Esta situação foi estabelecida nos primórdios do catolicismo, tendo sido confirmada pela sessão XXIV do Concílio de Trento.

 

Férias e descanso

Um outro aspeto a ter em conta na diferença entre as férias desses tempos e aquelas que hoje conhecemos tem a ver com a exposição do corpo desnudo que não era admitida nesta sociedade; a indumentária não serve apenas pela moda, mas também pela necessidade de cobrir o mais possível o corpo.

Às interdições estabelecidas pela Igreja relativamente à exposição e higiene do corpo vieram juntar-se as posturas camarárias proibitivas dos banhos na praia e ribeiras do Funchal, Machico e porto santo; de acordo com a postura da Câmara do Funchal de 26 de julho de 1839, estava proibido aos funchalenses o banho de mar nus, só se permitindo em calças ou camisa até abaixo do joelho. Os seus infratores sujeitavam-se a uma pesada coima de mil réis. Mais tarde, ao invés, tornou-se moda o topless e as praias de nudismo. Diz-se que os primeiros que se banharam nas águas límpidas da Ilha foram João Gonçalves Zarco e seus companheiros quando, em 1420, se refugiaram nas águas refrescantes do mar, para fugir ao calor infernal do incêndio que se ateou na floresta da Ilha. Mas o banho foi a preceito, com todas as vestes que traziam no corpo. Já em 1850 se referia, nos anais do município da Ilha do porto santo, que as suas praias eram propícias aos banhos de mar, mas que não atraiam forasteiros por falta de condições, estando os naturais limitados pelas posturas. Na realidade, a sua revelação como uma estância balnear é do nosso século. Num texto de Giulio Landi, de cerca de 1530, pode ler-se que os naturais do Norte da Ilha da Madeira tinham por hábito “ir à praia” (ARAGÃO, 1981, 84). Não sabemos se com isso o autor se referia ao ir a banhos ou a um mero passeio para desfrutar da aragem marinha e contemplar o imenso mar.

 

Assistência e saúde

Uma das vertentes que pautou a intervenção da Igreja nas ilhas foi a prestação de serviços de assistência aos cristãos e cativos. Para isso, existia um conjunto variado de instituições que foram criadas de acordo com as necessidades dos diversos núcleos populacionais. As cidades portuárias ficaram servidas de hospitais, que davam o necessário apoio aos marinheiros e demais gentes de passagem. Por outro lado, os problemas resultantes da fome, mendicidade e peste levaram à criação de inúmeras instituições de beneficência por iniciativa de particulares, que depois passaram para a alçada da igreja.

Na Madeira, é de referir o empenho de Zargo em fazer construir, em 1454, um hospital junto à capela de S. Paulo, mas não sabemos se o seu desejo foi por diante. A isto, juntam-se referências a outros dois hospitais de iniciativa de particulares, sendo um na Rua de Boa Viagem.

A partir de 1485, com a bula de Inocêncio VIII Iniunctum Nobis, a estrutura assistencial ganha uma nova forma. De acordo com esse espírito, a coroa criou, em 1498, o hospital de Lisboa, que veio a congregar todos os menores aí existentes. O mesmo espírito foi seguido em todas as vilas do reino, por autorização papal de 23 de outubro de 1501, expresso na carta régia de 4 de maio de 1507. De acordo com as ordenações régias, cabia aos bispos a sua superintendência. É neste contexto que surgem idênticas instituições nas ilhas. Na Madeira, existiu, primeiro no Funchal (1507) e depois em Machico, Calheta, Santa Cruz e porto santo, o hospital da Misericórdia. A função assistencial completa-se com as confrarias, autênticas associações de solidariedade social e espiritual, sendo os irmãos recrutados pela sua situação socioprofissional ou pela sua devoção ao santo patrono. É de salientar o caso da dos pescadores, que, na Ilha, não tiveram o mesmo patrono, e a dos mesteres, como a de S. Jorge (1562) e de S. Miguel, de S. Crispim e de S. Crispiniano (1572). Realçamos, ainda, as confrarias ligadas às misericórdias, onde os irmãos tinham assegurado a sua assistência hospitalar e espiritual.

O Funchal, cidade portuária, estava aberta ao contágio das doenças. Deste modo, para precaver a urbe desta infeção estabeleceram-se espaços onde as mercadorias e passageiros suspeitos eram mantidos em quarentena. Este espaço situava-se, primeiro, em Santa Catarina, tendo sido depois transferido para a outra ponta da cidade, no chamado Lazareto. A vereação da cidade estava atenta aos anúncios de peste nas principais áreas de ligação à Ilha. Porém, isto era considerado pouco numa terra onde a importação de géneros é fundamental, sendo, ao mesmo tempo, a principal via de transmissão de doenças contagiosas e dermatológicas. Deste modo, em 1787, o governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho avançou com a casa da saúde, com o objetivo de vistoriar os navios entrados e os produtos alimentares de importação à venda no mercado local.

As condições de vida no Norte da Ilha não eram diferentes das do resto do seu território, sendo a sua evolução igualmente pautada por um significativo progresso. Uma das medidas mais importantes a ter em conta nesta época prendia-se com a prevenção. As condições sanitárias das habitações e, acima de tudo, dos aglomerados como a Vila não eram as melhores. Neste último caso, a época invernosa tornava as ruas da Vila num palco de imundice, sendo constante o apelo à limpeza das regadeiras e ao seu calcetamento. As melhorias significativas nas condições de vida dos munícipes são apenas visíveis a partir da déc. de 30. A cobertura de palha cede lugar ao barro e adiciona-se, nas proximidades, um novo compartimento, que depois passará a fazer parte dos planos da casa. Note-se que, quer na construção da retrete quer do palheiro para gado, o médico municipal deveria informar da sua conveniência e localização.

A Câmara assumiu o compromisso de pagar todas as despesas com os doentes pobres, que incluíam os medicamentos, o transporte ao hospital da misericórdia no Funchal e a diária do período de internamento. Para que isso acontecesse, o doente deveria ser acompanhado de um atestado de pobreza passado pela Câmara. A vereação sentia-se obrigada a apoiar as famílias pobres através de subsídios fixos ou eventuais. Noutras circunstâncias, as famílias pobres eram acudidas com milho ou então géneros alimentícios de mercearia.

Às crianças reservava o município dedicados apoios. Primeiro, com o apoio e acolhimento indispensáveis à sobrevivência das crianças expostas. Depois, no apoio às mães solteiras ou àquelas que não tinham posses para alimentação dos filhos recém-nascidos. As crianças expostas surgem neste período nas mais diversas circunstâncias. Ao município, mediante verba concedida pelo governo civil, estava atribuído o encargo de assegurar a sobrevivência destas crianças. Após o batismo, eram entregues a uma ama, sendo conhecidas pelo número de registo no livro de expostos. Nem todas as crianças que nasciam no seio de famílias constituídas tinha assegurada a sua sobrevivência. Ameaçada pelo estado de miséria, tal sobrevivência só poderia ser assegurada mediante um apoio do município para a lactação. Este subsídio poderia ir até dois anos e contemplava os filhos de mães solteiras ou outras que viviam em estado de pobreza ou a quem tinha secado o leite. Este subsídio era atribuído caso a caso mediante requerimento dos interessados à vereação. A Vereação estava responsável pela gerência deste apoio, podendo retirá-lo a quem não oferecesse as condições exigidas.

 

 

Alberto Vieira

(atualizado a 15.12.2017)

Bibliog.: ARAGÃO, António, Para a História do Funchal. Pequenos Passos da sua História, Funchal, DRAC, 1979; Id., A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, SREC, 1981; BRANCO, Jorge de Freitas, Camponeses da Madeira: As Bases Materiais do Quotidiano no Arquipélago (1750-1900), Lisboa, Dom Quixote, 1987; BRANDÃO, Raul, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa, Perspectivas & Realidades, s.d.; BRUDT, Kate, “Madeira. Estudo Linguístico-Etnográfico”, Boletim de Filologia, t. V, fasc. 1-4, 1937-38, pp. 59-91 e 289-349; CALDEIRA, Abel Marques, O Funchal no Primeiro Quartel do Século XX, Funchal, s.n., 1964; CAMACHO, Margarida R., Cozinha Madeirense, Funchal, ed. do Autor, 1992; CAMACHO, Rui, “Festas e Romarias da Madeira”, Xarabanda, n.º 1, 1992, pp. 31-36; CÂMARA, Jayme, Senhora da Luz. Subsídios Etnográficos, Funchal, ed. do Autor, 1938; CASTELO BRANCO, Maria dos Remédios, “Perspectivas Americanas na Madeira”, Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1989; Id., “Testemunhos de Viajantes Ingleses sobre a Madeira”, Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, SRTCE/DRAC, 1989; EMBLETON, Dennis, Visit to Madeira in the Winter 1880-81: Two Lectures Delivered Before the Members of the Literary and Philosophical Society of Newcastle-upon-Tyne, on the 17th and 19th of October 1881, London, Churchill, 1882; FERREIRA, Lídia Góes, “Gastronomia Tradicional. Três Plantas Utilizadas na Alimentação dos Portosantenses”, Xarabanda, n.º 6, 1994, pp. 27-30; FRANÇA, Isabella de, Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal (1853-54), Funchal, s.n., 1969; FREITAS, Paulo de, “A Casinha de Prazer”, Islenha, n.º 8, 1991, pp. 87-93; GOMES, Maria de Fátima, “Festas – Romarias na Madeira”, Atlântico, n.º 14, 1988, pp. 140-148; GONÇALVES, Luísa, “Malassadas à Moda de Santana”, Xarabanda, n.º 12, 1991, pp. 45-48; GUERRA, Jorge Valdemar, “A Casa da Ópera do Funchal”, Islenha, n.º 11, 1992, pp. 113-149; Id., “A Quinta de Nossa Senhora das Angústias. Em Torno dos Seus Proprietários”, Islenha, n.º 14, 1994, pp. 113-136; LAMAS, Maria, Arquipélago da Madeira, Maravilha Atlântica, Funchal, Eco do Funchal, 1956; MARQUES, João Maurício, Os Faunos do Cinema Madeirense, Funchal, Correio da Madeira, 1997; MORAIS, Manuel de (coord.), A Madeira e a Música. Estudos (c. 1508-1974), Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 anos, 2008; Os dias dos Nossos Carnavais, Funchal, DRAC, 1991; PESTANA, Eduardo Antonino, Ilha da Madeira I. Folclore Madeirense, Funchal, CMF, 1965; Id., Ilha da Madeira II. Estudos Madeirenses, Funchal, CMF, 1970; SANCHES, Jayme, Ensaios de Etnografia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931; SANTOS, Carlos M., Tocares e Cantares da Ilha. Estudo do Folclore Musical, Funchal, ed. do Autor, 1937; Id., Trovas e Bailados da Ilha. Estudo do Folclore Musical da Madeira, Funchal, DTM, 1942; SANTOS, Rui, Crónicas de Outros Tempos, Funchal, Xarabanda, 1996; SILVA, António R. Marques da, Apontamentos sobre o Quotidiano Madeirense (1750-1900), Lisboa, Caminho, 1994; SILVA, Fernando Augusto da Silva e MENEZES, Carlos Azevedo, Elucidário Madeirense, 3 vols., 3.ª ed., Funchal, SRTC, 1984; SILVA, Mariana Xavier da, Na Madeira. Offerendas, Lisboa, s.n., 1884; VERÍSSIMO, Nelson, “Funchal Città Dolente”, Islenha, n.º 12, 1993, pp. 7-15; Id., “A Festa do Espírito Santo”, Atlântico, n.º 1, 1985, pp. 9-17; SAINZ-TRUEVA, José de (coord.), Cousas & Lousas das Cozinhas Madeirenses, Funchal, DRAC, 1987; VIEIRA, Alberto, “O Funchal. Os Ritmos Históricos de uma Cidade Portuária”, in Sociedade e Território, n.os 31-32, pp. 60-80; Id., “As Cidades e o Vinho. O Funchal como Cidade do Vinho do Mundo Atlântico”, in As Cidades do Vinho, Funchal, CEHA, pp. 21-45.