fortaleza de s. tiago

05 Feb 2018 por "Leocadia"

[caption id="attachment_3472" align="alignleft" width="367"]Fortaleza de São Tiago - 1990 Fortaleza de São Tiago - 1990[/caption]

A ideia da construção de um baluarte junto da igreja de S. Tiago foi contemporânea da construção da mesma igreja, por volta de 1523, data de um pedido de D. João III para lhe enviarem orçamentos para os baluartes a construir em Santa Catarina e no corpo santo (Defesa). Segundo o documento, a câmara do Funchal ter-se-ia queixado de não possuir verbas para as construções de obras ”de que tinha necessidade para sua defesa”, ordenando o rei que se juntasse o capitão, o provedor e ”alguns pedreiros e pessoas que o muito bem entendam”, no sentido de ajuizarem o custo dessas obras e o exato local das mesmas ”para melhor defesa da cidade” (ARM, CMF, avulsos, fls. 1-134).

O pedido foi reenviado para Lisboa em 1528, depois de um ataque de um navio biscainho que roubara dois outros navios à carga no porto do Funchal, e a ordem foi emitida no ano seguinte, a 8 de junho de 1529, embora só registada muito depois, nos meados do c. XVIII. A opção da localização era entregue ao capitão do Funchal e recaiu, logicamente sobre as suas próprias casas (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), montadas sobre as fontes de João Dinis, numa visão ainda perfeitamente medieval e que já pouco tinha a ver com a defesa da cidade daquele tempo. Em 1566, logicamente como seria de esperar, não resistiu ao saque corsário francês.

O regimento de fortificação de 1572, entretanto, enviado para o mestre das obras reais Mateus Fernandes (c.1520-1597), entendia a cidade como compreendida entre as ribeiras de São João e de João Gomes, pelo que o velho bairro de Santa Maria Maior, habitado por artesãos, marítimos e pescadores, era considerado como fora da cidade senhorial. Com a união das coroas de Portugal e Castela, especialmente com as dificuldades sentidas nos Açores, por cujos mares passavam periodicamente as armadas de frança e da Inglaterra em apoio às pretensões de D. António, prior do Crato, foram repensadas as defesas do Funchal. O regimento promulgado em 1572 não previa então a possibilidade de um inimigo como o configurado com as armadas inglesas de Francis Drake e outros piratas ou corsários, pelo que foi de imediato revisto o esquema então levantado, que não defendia conveniente a frente-mar do Funchal.

O problema do alargamento da defesa da frente da cidade foi assumido pelo governador Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), antigo governador de Macau e de São Julião da Barra, que pouco depois de 1585, altura em que tomou posse da capitania do Funchal, determinou o prolongamento da muralha (Muralha do Funchal) em direção a nascente, dando inclusivamente o exemplo e participando pessoalmente nas obras, que eram então uma trincheira ”de madeira de uma banda e entulhada de calhau da outra” (FRUTUOSO, 1968, 204). Este troço de muralha ao longo do calhau da praia da cidade confinava com os arrifes por baixo da antiga igreja de S. Tiago Menor, no então ”cabo do calhau”, justificando a construção de uma fortaleza nessa baixa.

A fortaleza de S. Tiago deve ter tido projeto de Mateus Fernandes, mas terá sido reformulada depois por Jerónimo Jorge (c. 1570-1617), enviado de Lisboa em 1595, até então a trabalhar nas obras de São Julião da Barra e do forte do Bugio e que voltaria à Madeira em 1602. O muro do corpo santo deve ter passado a partir dessa data a pedra e cal, e a futura fortaleza deveria estar já em construção por volta de 1611 e bastante adiantada em 1614, data que se inscreveu na primitiva porta de entrada. Numa primeira versão, estaria também provavelmente quase pronta em 1612, quando o governador Manuel Pereira de berredo solicitou provisão como capitão da mesma para Domingos Rodrigues, dado, segundo o mesmo, estar edificada e aguardar guarnição, provisão que, no entanto, não viria a ser confirmada, entendendo o rei ainda não ser necessário haver capitão a ali residir.

Pelo Livro de férias dos operários da fortificação, de 3 de janeiro a 11 de setembro de 1611, sabemos estarem em obras os muros do corpo santo, tal como outros, embora não existam referências específicas à futura fortaleza de S. Tiago. Nos meados de junho, inclusivamente trabalhavam nos muros do corpo santo os filhos do mestre das obras reais, Bartolomeu João (c. 1590-1658) e João Falcato, pagos a $100 réis por dia. Nesses muros, no entanto, os pedreiros mais bem pagos eram João Lopes e Sebastião Fernandes, pagos a $200 e $180 réis por dia, seguindo-se Francisco Álvares, a $140, e, depois, os vários mestres de alicerces, como Manuel Rodrigues, João Rodrigues, Antão Mendes, Domingos Dias, Rafael Pinheiro e António Pinheiro, pagos a $100 réis dia.

Para apoio a estas obras, trabalharam os boieiros António Gonçalves, Francisco Pires, António Pires, Amaro Gonçalves, Paulo Coelho, Gonçalo Correia, Domingos moniz, Domingos Álvares, Cosme Gonçalves, Pero Gonçalves, António Rodrigues, João Dias, “o velho”, e António, ao todo 13, que receberam $015 réis por corsada de pedra que transportaram para a obra. Trabalharam ainda 5 almocreves: António Perdigão, Sebastião Ferreira, Pero Borges, António Gonçalves e um outro de que não conseguimos ler o nome, igualmente a 15 réis por corsada ou carga de areia, variando o preço para outros materiais, como o caso do tabuado, cujo carreto era pago a $030 réis por cada dúzia de tábuas. Algumas informações apontam para obras mais específicas, como a do transporte de cal, para o que se alugaram sacos a $029 réis cada, optando-se depois por mandar fazer os mesmos, no que se gastaram mais $150 réis. Igual verba se pagou ao ferreiro António Gonçalves, pelos pregos para os caixões dos pelouros, que já se deviam destinar à fortaleza.

Nas férias pagas nos finais de maio desse ano de 1618, quando era apontador Pero de Castro de Andrade, essencialmente estava em construção o muro junto da igreja da Conceição do Calhau, tendo à frente das obras o aparelhador Brás Fernandes, que não trabalhou os dias todos. Recebeu então $780 reis e o seu moço Martinho, $150, meio tostão por dia. Este mestre, referido em inúmeras obras da época, parece ser o que é também mencionado como estando à frente das obras da igreja de São João Evangelista do colégio do Funchal pela década de 1630. Aparece depois, em 1620, acompanhado de um filho, António, como seu moço, ou seja, aprendiz, e ainda de um escravo, Lourenço, seu preto, referido, quer como mestre pedreiro, quer como mestre carpinteiro.

Nos pagamentos de maio de 1618, são referidos inúmeros pedreiros, boieiros, almocreves e serventes, com especial referência para os trabalhos de acarretar pedra, então enviada da Calheta, de que era proprietária beatriz Fernandes. Os quatro barcos de pedra, a cruzado cada barco, importaram em 1$600 réis, servindo de intermediário o mercador Simão Rodrigues. Nos pagamentos desse ano, compareceram o vereador Gonçalo de Freitas Bettencourt e o capitão António de Sá de Salamanca Polanco que, embora também vereador, aparece na qualidade de “apontador das obras que na dita fortaleza se fazem”, obras pagas pelas receitas do açúcar da coroa e escrituradas pelo escrivão camarário Manuel do Basto (ARM, CMF, RC, T6, 82). Este dinheiro foi depois reposto pela finta de 15.000 cruzados, lançada em setembro desse ano pela câmara do Funchal para o pagamento das fortificações.

As obras gerais da fortificação e a construção das fortalezas do Pico (Fortaleza do Pico) e de S. Tiago foram assim dotadas de valiosos meios pecuniários, a partir de 5 de maio 1618, por acordo entre a câmara e a provedoria da fazenda, face às informações da passagem pelo Estreito de Gibraltar de mais uma esquadra de piratas de Argel (Piratas e corsários) e dado que, no ano anterior, tinha sido totalmente saqueada a ilha do porto santo e quase toda a população levada para aquela cidade.

Em carta datada de 29 de agosto de 1632, o provedor da fazenda, António Antunes Leite, respondendo a um pedido de informação sobre mais uma tentativa de levantar forças na Madeira para combater no Brasil, contava que, entre 1618 e 1621, ficara a cidade toda murada e a fortaleza de S. Tiago concluída, o que seria um certo exagero, pois houve obras nos anos seguintes. O muro de Santa Maria Maior mantinha-se em obras ao longo de 1620, ano em que também foram feitas obras “na fortaleza nova de S. Tiago, onde mora” o capitão Paulo Pereira da Silva e em cuja morada, a 8 de fevereiro desse ano, tomou posse e apresentou fiança o tesoureiro da fortificação Jorge Mendes da Costa (ARM, CMF, 421, 3-5). O capitão Paulo Pereira da Silva seria eleito sargento-mor da ilha, tomando posse em São Lourenço perante o governador e os onze capitães de ordenanças (Guarnição Militar).

As obras ao longo do muro de Santa Maria Maior e até à fortaleza de S. Tiago justificaram, em 1619, o aluguer a Maria de Caires, a 4 vinténs por mês, de uma loja de casa junto a Nossa Senhora do Calhau, para estaleiro das obras e arrecadação da cal.. O aluguer começou a 22 de novembro de 1619 e incluía o pagamento a um homem para guarda do material, Manuel Vieira, que também aparece nos anos seguintes, a ser pago como trabalhador e servente de pedreiro. A 18 de abril de 1620, por exemplo, recebeu $200 réis «por guardar a fábrica da obra; 2 dias a tostão» (ARM, CMF, RC, T3, 421, 23).

Desde o início do povoamento que o problema da cal apresentou várias dificuldades, dado não existir na Ilha de material suscetível de redução. Houve assim necessidade de recorrer à matéria-prima que havia mais perto - o ilhéu da Cal do porto santo - que nem sempre colmatou as necessidades, optando-se então pelo continente do reino (bacia do Tejo) e mais especificamente pelo Algarve (vila de Portimão), embora se tenha recorrido também à bacia do Mondego. Temos referências à importação sistemática para a fortificação do Funchal de pedra de cal do porto santo a partir de 1600, pelo menos. Mais tarde, em 1629, a câmara também possuía um forno na área das hortas da Tintureira, acima da ponte do Cidrão e por debaixo do chamado Engenho Novo.

Nos meados de 1623, entretanto, a fortaleza estaria concluída na sua primeira fase, não aparecendo citada qualquer obra de vulto nos livros de despesa da fortificação. No entanto, dois anos depois, aparecia a adaptação de umas casas anexas à fortaleza para arrecadações. Nos inícios do mês de junho de 1623, foi recebida uma carta do vice-rei, avisando da possibilidade de uma armada holandesa atacar a Madeira. Foi então reorganizada a defesa da cidade e fez-se aprovisionamento de farinha e biscoito nas fortalezas; especialmente para S. Tiago, foi determinado que se metessem “na mais junta casa que nela houver”, pagando-se a adaptação e o aluguer (ARM, CMF, Vereações 1623/25, 40-47v.).

Entre 1641 e 1642, voltamos a ter referência a obras em S. Tiago, citando-se, em novembro de 1641, a construção de uma guarita e da casa dos artilheiros. Essas casas ou casernas não deviam estar previstas no projeto de Jerónimo Jorge, dada a dimensão da fortaleza ter ser equacionada para uma ameaça muito menor que a configurada nos anos seguintes. Jerónimo Jorge falecera na primeira oitava do natal de 1617, decorrendo as obras sob a responsabilidade de seu jovem filho Bartolomeu João (c. 1590-1658), logo com provimento do ano seguinte. As obras de S. Tiago decorreram ao longo do mês de novembro de 1641 e, no final do mês, ainda ali trabalhava o mestre pedreiro Brás Fernandes, acompanhado do filho António, seu moço, e do Lourenço, seu preto. Como carpinteiros, aparecem a trabalhar Gonçalo Fernandes e Francisco Alves, auxiliados pelo Domingos, escravo do mestre das obras reais, por certo um bom carpinteiro, dado aparecer referido várias vezes nos pagamentos das obras de fortificação. Nos pagamentos desse mês aparecem 4$000 réis a Amaro do Couto pelas 500 telhas para as obras de S. Tiago, que devem ter envolvido as casernas dos artilheiros e a guarita, à época coberta por telha.

Em março desse ano de 1642, tinham decorrido na área de S. Tiago os exercícios de barreira dos artilheiros do Funchal, sendo condestável de S. Tiago Gabriel de Sousa, exercícios que envolveram algumas despesas, como o pagamento aos “dois pretos” que tinham levado a peça de barreira e as pranchas para S. Tiago e, depois, o arranjo do reparo da mesma peça (ANTT, PJRFF, 387, 55). Conhecemos a fortaleza inicial por um desenho de Bartolomeu João, de 1654, que a representa já com três ordens de baterias, que viriam depois a ser ampliadas nos meados do c. XVIII. Refere esta descrição que a forteza de S. Tiago era “remate dos muros do cabo do calhau, a qual tem 2 praças, uma superior à outra, em cima de abóbada, com uma cisterna capaz de mil pipas, cavada na rocha viva”. A fortaleza era “em estrela e escortinava os muros” da cidade, tendo custado “muito à fazenda real e era de muito efeito, porque escortina o porto, por o tomar atravessado, por fazer o porto enseada”. Dali também se defendia a ribeira de Gonçalo Aires, “porto perigoso” (CHPAZ, 1654).

A fortaleza dos meados do c. XVII possuía assim planta com dois baluartes pentagonais virados a norte, correspondentes à bateria alta, e dois baluartes com as baterias médias gémeas sobre o mar, comunicando com a bateria baixa, então semicircular por dois lanços de escadas, que nasciam frente à antiga capela e à cisterna. A cisterna situava-se no centro da esplanada baixa, numa situação estranha, pois tudo leva a crer não ser de grande serviço, dada a sua proximidade do nível da água do mar. A esplanada alta comunicava com a esplanada média por escadaria coberta a nascente. O desenho de Bartolomeu João identifica também, sobre a muralha da esplanada baixa, pequenas construções de madeira salientes, dando para o calhau da praia, que parecem ser as latrinas da guarnição.

A entrada da fortaleza fazia-se sob a esplanada média poente, dotada de grade vertical e ponte levadiça, devendo a grade vertical ficar então à vista, embora tal não se encontre representado no desenho de Bartolomeu João, tendo deixado como marca dois orifícios, por onde corriam as correntes que a articulavam com a ponte levadiça. No interior, este conjunto possuía lateralmente dois nichos onde se resguardavam os militares de guarda à entrada quando entravam carretas com bocas-de-fogo e outros transportes. A muralha da cidade entestava com esta entrada, possuindo porta de acesso ao mar e um cruzeiro, provavelmente de madeira, a fazer fé neste desenho aguarelado de 1654.

Ao longo do c. XVII, pouco mais sabemos da fortaleza de S. Tiago, salvo algumas mudanças de pessoal, principalmente dos artilheiros. Em agosto de 1671, foi nomeado Gabriel de Sousa como condestável de S. Tiago, a que se seguiu Salvador Lopes que ali serviu e se ocupou, ao longo da segunda metade desse culo, como carpinteiro dos reparos das várias peças de artilharia da guarnição do Funchal. Do final do culo, em 1697, foi a nomeação do capitão Manuel Teles de Meneses, ad honorem, com a obrigação de prover à manutenção da fortaleza e de garantir um serviço de vigias.

No início do c. XVIII, em 1724, S. Tiago tinha uma carga de bocas-de-fogo composta por 16 peças montadas, sendo 4 de bronze e 12 de ferro. Nessa data, era condestável António Lopes de Castro que, tendo falecido em 1736, foi depois substituído por Francisco de Freitas, devendo o local ter, então, um efetivo de cerca de 20 homens. Nos meados do mesmo culo, em 1754, segundo o “Mapa do Presídio Militar pago da ilha da Madeira”, mantinha o mesmo número de bocas-de-fogo: 2 colubrinas de bronze de calibre 14, 3 canhões bastardos de ferro de calibre 30, 9 quartos de canhão de ferro de vários calibres, mas incapazes, e um “barraco” (provavelmente um canhão pedreiro) de bronze de calibre 7.

Nos inícios do c. XVIII, já se sentia a necessidade de reforçar a defesa do cabo do calhau, optando-se pela construção, entre 1704 e 1712, de um forte ao meio da cortina de Santa Maria Maior, então denominado forte novo de são pedro em homenagem ao rei D. Pedro II, como se mandou exarar na lápide que existia sobre a porta de entrada (fortes). Poucos anos depois, no entanto, procedia-se à ampliação da fortaleza de S. Tiago. As obras devem ter tido projeto do engenheiro Francisco Tosi Colombina (1701-c.1770), que veio para o Funchal em 1756 como encarregado das obras do molhe do porto e que teria levantado, então, o forte de São José da Pontinha, embora não tenhamos documentação de apoio para esta atribuição. As obras prolongaram-se pela década seguinte, mandando o governador José Correia de Sá lavrar na lápide colocada sobre a nova porta que “Esta fortaleza foi novamente acrescentada sendo governador e capitão general desta Ilha José Correia de Sá e para a mesma fortaleza mandou vir de Londres cinquenta peças de artilharia com todos os seus reparos no ano de 1767”. A data, no entanto, deve corresponder ao final das obras, pois estas decorreram, por certo, durante alguns anos, dado o novo volume edificado de construção.

A bateria alta foi largamente ampliada, tal como a bateria média que uniu as duas anteriormente existentes, fazendo desaparecer o anterior lanço de escadas para a antiga bateria média nascente. Para poente foi construída uma ampla bateria baixa, reforçando-se a antiga porta datada de 1614, que se manteve. A nova esplanada média apoiou-se na parede de uma passagem, que passou a unir a bateria média a um novo baluarte quadrangular avançado para poente, que cruzava fogos com o forte novo de S. Pedro e cobria a nova porta da fortaleza virada a norte, encimada por um nicho que teria tido uma imagem do padroeiro, óculo para o lado do mar, a lápide já mencionada e um brasão de armas, desmontado depois em 1910. A pequena esplanada voltada para o mar prolongou-se ao longo da fachada, ocupando toda frente até ao limite nascente da fortaleza. Desta campanha de obras, é também o conjunto de guaritas cilíndricas assentes em consolas troncocónicas.

Nos finais do c. XVIII, encontrava-se em franca degradação toda a fortificação da ilha, tendo havido um certo desleixo geral na sua manutenção. A situação era de tal ordem que, em carta de outubro de 1781, o governador João Gonçalves da Câmara Coutinho se queixava para Lisboa de que os habitantes não queriam saber da fortificação nem da defesa da ilha, alegando que, caso viessem a ocorrer dificuldades, “os senhores ingleses a defenderiam” (AHU, Madeira, 506). E efetivamente tinham razão, pois vinte anos depois, em 24 de julho de 1801, durante o conflito generalizado a nível europeu entre os ingleses e as forças de Napoleão Bonaparte, uma esquadra inglesa, composta pelos HMS Agro, a fragata HMS Carrysfort, e o bergantim HMS Falcon, desembarcou na Madeira um efetivo de 3500 soldados britânicos, sob o comando do coronel William Henry Clinton (1769-1846), que ficaram aquartelados nas semiabandonadas fortificações, entre as quais esta fortaleza, então sob o comando de João Manuel de Atouguia e Vasconcelos.

Durante esta primeira ocupação inglesa, a fortaleza de S. Tiago recebeu algumas obras de beneficiação, como atestam os vários ofícios e ordens emitidos pelo comando britânico, ao qual não agradava a organização geral da fortaleza e, inclusivamente, a própria construção. A 25 de julho de 1801, S. Tiago recebia as munições de guerra e o parque de artilharia inglesa com a competente guarnição, mantendo a anterior portuguesa que incluía um subalterno, um sargento, um cabo, um tambor e 15 soldados. Na ordem desse dia, recomendava-se a melhor harmonia entre a tropa nacional e a britânica, conservando-se o comando na nacional. Dois dias depois, saíam os depósitos de correame, para maior comodidade da guarnição auxiliar portuguesa, e em agosto saíam os soldados de artilharia auxiliar, “para maior comodidade da guarda britânica” (RODRIGUES, 1999, 159-160).

Se, por um lado, a ocupação britânica teve o aspeto positivo de ter levado a obras de beneficiação e manutenção das fortalezas do Funchal, por outro, com a sua saída, quer em 1802, quer depois em 1814, após a segunda ocupação, as peças de artilharia que estavam em condições (que não deveriam de ser muitas), provavelmente com outro material e armamento que ali havia, seguiram para o continente, ficando a ilha em ainda mais precárias condições de segurança. Na ocupação de 1801, estiveram na Madeira forças do destacamento da Royal Artillery e, na de 1807 a 1814, forças da 3.ª companhia do 3.º destacamento de artilharia inglesa.

Quando do grande aluvião de 9 de outubro de 1803, que só no bairro de Santa Maria Maior vitimou cerca de 200 pessoas, o comandante de S. Tiago recebeu ordens para alojar nas dependências da fortaleza as vítimas que tinham ficado sem habitação. Nesse mesmo ano, esteve detido nas dependências da fortaleza o morgado João de Freitas da Silva, evadido do convento de são bernardino, de câmara de lobos, “para onde tinha sido mandado até se instruir nos rudimentos da doutrina cristã” segundo refere o Heraldo da Madeira, n.º 441 (SILVA e MENESES, II, 1998, 46), tendo servido depois esta fortaleza para outras prisões nos confrontos políticos ocorridos nos cs. XIX e XX. A fortaleza foi objeto de especial atenção da equipa do brigadeiro Reinaldo Oudinot (1747-1807), destacada para o Funchal na sequência da aluvião de 1803, tendo sido de imediato levantada e desenhada pelo então tenente Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832); foi o melhor levantamento da mesma até essa época.

Nas primeiras décadas do c. XIX, mereceu a fortaleza de S. Tiago uma especial atenção, mercê da sua localização, não sendo assim por acaso que na primeira planta inglesa da fortificação da baía do Funchal, na segunda ocupação, se encontrem representadas as fortalezas de S. Tiago, Pico e Ilhéu, todas com a bandeira inglesa hasteada. Sucessivamente, foram depois ocorrendo obras, datando sensivelmente de 1820 a demarcação da parada exterior, com a construção da casa da guarda (projeto, em princípio, de Paulo Dias de Almeida), que foi reformulada e mudada de localização nos anos seguintes pelo capitão António Pedro de Azevedo (1812-1889), autor da primeira fase do corpo central do edifício do comando, do novo portão de armas exterior (reformulado nos anos seguintes), da reforma do paiol instalado sob a parada superior, etc.

Em 1823, começou a pensar-se na ampliação do molhe de cais do Funchal, uma de cujas hipóteses passava por S. Tiago. Por carta de 13 de setembro de 1824, o brigadeiro Francisco António Raposo foi mandado passar à Madeira para in loco estudar o assunto. As obras iniciaram-se no calhau frente à fortaleza, mas acabaram por ser interrompidas pela força do mar, que tudo destruía. Perderam-se então os 37.000$000 réis ali gastos nos trabalhos de quebrar e talhar pedra. Em 1827, foi proposta para Lisboa nova alteração do molhe do cais, com o aumento da bateria baixa, servindo de apoio às novas obras do possível cais, mas tudo não passou do papel. Por esta data, servia a fortaleza de quartel e local de instrução de milícias do Funchal, por ali tendo passado nobres locais, como o morgado José Henrique de frança (1802-1886), embora já nascido em Londres, segundo escreveu depois sua mulher Isabella de frança (1795-1880) nas memórias de 1853-54.

Nos primeiros meses do c. XX, teve a fortaleza alguns melhoramentos, quando da visita do rei D. Carlos, a 24 de junho de 1901; depois de assistir a uma missa campal no campo D. Carlos, depois rebatizado campo do Almirante Reis, o monarca visitou a fortaleza e ali almoçou. Para o efeito foi montada uma grande tenda redonda, listada em azul e branco, na parada média, tendo ficado as argolas de ferro que lhe serviam de sustentação. Na parada superior existe uma pequena placa de referenciação geodésica, identificada por “NR”, inglesa ou portuguesa e datável do c. XIX ou XX, que deve ser exemplar único na região. À época da visita de D. Carlos, a fortaleza servia como quartel à Bateria de artilharia Móvel que tinha uma secção destacada na fortaleza do Ilhéu e salvava as embarcações que entravam no porto do Funchal, servindo de registo. Em 1911, S. Tiago passou a quartel da Bateria n.° 3 de artilharia de Montanha e, em 1922, a sede do Grupo de Defesa Móvel. Data de 1930 a construção das instalações de oficiais e sargentos na bateria baixa, frente ao mar, e de um coberto sobre o caminho da guarda superior, depois removido. Com a criação do Grupo de artilharia contra Aeronaves, em 1945, passou a sede do mesmo, mas, em 1947, dava-se a saída do comando daquele grupo para São Martinho, passando a servir somente de quartel à bateria de salvas destacada daquela equipa.

Nos meados do c. XX, entre 1970 e 1973, tendo mudado o material de salvas, tornou-se difícil a sua circulação nos estreitos túneis da fortaleza, pelo que foi desocupada pela artilharia, sendo pontualmente ocupada pela delegação da Manutenção Militar e pela Liga dos Combatentes. Nos meados de 1975, face à necessidade de instalação de um aquartelamento para a Polícia do Exército, com possibilidades de acorrer rapidamente a alterações da ordem pública, ali foi instalado o Esquadrão de Lanceiros do Funchal. Esta unidade veio a sair daquelas instalações quando da construção do novo aquartelamento do Comando-chefe, no Pico da Cruz, em maio de 1992 e, por solicitação do GRM, o local foi cedido para instalações de atividades culturais e de um futuro museu militar. O protocolo foi assinado a 17 de julho de 1992, assinando pelas Forças Armadas o ministro da Defesa e o Comandante-chefe e, pela ram, o presidente do GR, na presença do então primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva. A fortaleza passou, na altura, por um arranjo de fundo, abrindo depois como museu de Arte Contemporânea da Madeira (museus).

Bibliog.: manuscrita: AGS, Leg. 1472, Secretarias Provinciales; AHM, 47.ª sec., n.º 16750, G.B. Lawrence, Plan of the Fortifications, of Funchal in the Island of Madeira, Dez. 24 th 1808, which was given up to the British Forces under Admiral Sir Samuel Hood K. B. and Gen.l Beresford, 1808; Ibid., doc. 47, 506, Mapa do Presídio Militar pago da ilha da Madeira; do das Milícias da Ordenança que guarnecem e vigiam; das suas Fortalezas, Armas, Munições e apetrechos de Guerra existentes, 1754; ARM, CMF, cod. 322 e 421, avulsos, fls. 1-134; BNL, reservados, cod. 6.705, Planta de Fortaleza de Santiago, 1817; Ibid., 7486-1A-12A-16, Fortaleza de Santiago, c. 1817; Ibid., 1.304, 2/22A/109, Planta da Baía do Funchal em que se representam o projeto de um molhe no Porto da Pontinha e um cais nas baixas de Santiago e a nova bateria, c. 1824; BNP, reservados, cod. 8391, Index Geral do registo da antiga Provedoria da Real Fazenda, acrescentado com algumas notícias e sucessos da Ilha da Madeira desde o ano de 1419 do seu descobrimento até o de 1775 da extinção da mesma Provedoria; CHPAZ, Bartolomeu João, Descrição da Ilha da Madeira, Cidade do Funchal, Vilas, Lugares, portos e Enseadas, e mais Secretos, Feita por Bertolameu João, Engenheiro dela em Tempo do Governador Bertolameu Vasconcelos da Cunha, Capitão Geral desta Ilha no Ano de 165[4]; DSIE, GEAEM, 5576-1A-12A-16; 10228-1A-12A-16; 10916, 2º e 5º-3-46-61, etc., António Pedro de Azevedo, Planta da Fortaleza de S. Tiago, 1841, 1865 ss.; GEAEM, 1.304, 2/22A/10, Paulo Dias de Almeida, Perfil de Santiago, 1804 (9); IAN/TT, Chancelaria D. Filipe I, liv. 28; Ibid., Corpo Cronológico, Parte I, fls. 39-75, 118-151 e 219; Ibid., Junta da Provedoria da Real Fazenda do Funchal, fls. 837 e 963; NÚCLEO MUSEOLÓGICO DA CIDADE DO AÇÚCAR, Thomas Hearne, panorâmica da cidade do Funchal, 1772; Registo Geral, Tombo Velho, 2, 3 e 9; Vereações 1481, Vereações 1618, Vereações 1623/25, Vereações 1627, Vereações 1629; Governo Civil, Livro de Carga das Fortificações 1724-1730 (L. 3º), cod. 418; Registos Paroquias, , Óbitos, livro 6; impressa: BOTELHO, João, e VICENTE, Ramiro, Regimento de Guarnição n.º 3, das origens à atualidade, 1864-2008, Uma viagem ao passado pelas Unidades da Madeira, Funchal, s. n., 2008; CARITA, Rui, Paulo Dias de Almeida e a sua Descrição da ilha da Madeira de 1817/1827, Funchal, DRAC, 1982; Id., Fortaleza de São Tiago, Visita Guiada n.º 3, Funchal, Centro Regional de Cultura, 1983; Id., O Regimento de Fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carta de Bartolomeu João (1654), Funchal, Centro de Apoio Universitário do Funchal, 1984; Id., A Visita do rei D. Carlos à Companhia n.º 3 de artilharia de Guarnição em 24 de Junho de 1901, catálogo de exposição, Funchal, Grupo de artilharia de Guarnição n.º 2, texto policopiado, 1987; Id., História da Madeira (1600-1700), vol. III: As dinastias Habsburgo e Bragança, Funchal, SRE, 1992; Id., A Fortaleza de São Tiago, catálogo da exposição, Funchal, DRAC, 1992; Id., A arquitetura Militar na Madeira nos culos xv a xvii, Funchal/Lisboa, EME/universidade da madeira, 1998; Id., História da Madeira, vol. VI: As Ocupações Inglesas e as Lutas Liberais: O processo Político (1801-1834), Funchal, DRAC, 2002; DILLON, Frank, e PICKEN, T., Scketches in the Island of Madeira, London, Day and Son Lith, 1850; FRANÇA, Isabella de, Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal, 1853-1854, Funchal, JGDAF, 1970; FRUTUOSO, Gaspar, Livro Segundo das Saudades da Terra, s. l., Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1968; GUERRA, Jorge Valdemar, “O saque dos argelinos à ilha do porto santo em 1617”, Islenha, n.º 8, 1991, pp. 57-78; PICKEN, Andrew, Madeira Ilustrated, London, Day & Haghe, 1840; RODRIGUES, Paulo Miguel, A Política e as Questões Militares na Madeira. O Período das Guerras Napoleónicas, Funchal, CEHA, 1999; SILVA, Maria Júlia Oliveira e, Fidalgos-mercadores no culo XVIII, Duarte Sodré Pereira, Lisboa, IN/Casa da Moeda, 1992; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, SRTC, 1998; TOMÁS, Manuel, Insulana, Antuérpia, Joam Mevresio, 1635; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na sociedade Madeirense do culo XVII, Funchal, DRAC, 2000.

Rui Carita

(atualizado a 31.01.2017)