estados unidos da américa

19 Jan 2017 por "Carlos"

A América do Norte foi uma das principais colónias inglesas a estabelecer relações comerciais com a Madeira. A Ilha abasteceu a quase totalidade do vinho que aí se consumia e estava dependente deste mercado para suprir as suas carências alimentares. A independência desta colónia não implicou o fim desta relação, mas apenas algum transtorno no processo e o retomar das relações com maior pujança. A relação que existia desde a segunda metade do culo XVII vai prosseguir, e o mercado do novo país continuará a precisar do vinho Madeira para suprir as necessidades de uma clientela já apurada.

A primeira questão no contexto deste relacionamento começa com a instabilidade do culo XVIII que levou ao afrontamento da ex-colónia com a metrópole e que tem expressão numa guerra de corso nas proximidades das ilhas.

Numa época em que a Madeira consolidava a sua posição na economia atlântica, esta rutura da principal colónia com a metrópole, que fazia da Madeira o mais importante ponto estratégico da sua atividade colonial, não será favorável para os madeirenses. Mas rapidamente se superou o obstáculo. O porto do Funchal e o vinho madeirense faziam parte dessa estratégia colonial britânica. As diversas atas de navegação de 1660 e de 1663, corroboradas pelos tratados de amizade entre Portugal e o Reino Unido, de que merece relevo especial o de Methuen em 1703, foram os meios que abriram o caminho para que a Madeira entrasse na área de influência do mundo colonial inglês.

A procura do nosso vinho resultava também da feliz circunstância de ser o único que não se deteriorava com as constantes mudanças de temperatura, antes pelo contrário, adquiria propriedades mercê do balanço resultante da ondulação do mar e do calor tórrido a que estava sujeito nos porões e, depois, no destino. Temos referência desta constatação desde princípios do culo XVIII; quem o confirma é o cônsul francês no Funchal, que justifica a preferência dos ingleses pelo vinho Madeira em detrimento do de Bordéus. A partir da segunda metade do culo XVIII, o vinho Madeira é uma presença assídua nos portos atlânticos dos Estados Unidos – Boston, Charleston, Nova Iorque, Filadélfia, Baltimore e Virgínia –, onde era trocado por farinhas.

O vinho Madeira esteve ainda nas origens da convulsão que iniciou a luta pela independência norte-americana. Em 1764, o vinho Madeira havia já conquistado alguns mercados das colónias inglesas e a Inglaterra, através da Lei do Açúcar, decidiu tributar estas ligações diretas com a Ilha. A medida, que obrigava os navios da colónia a uma ligação com a metrópole inglesa, gerou uma onda de protestos. Em 1768, o navio Liberty foi o primeiro a desobedecer a esta lei, recusando-se John Hancock a pagar direitos pelas 100 pipas de vinho Madeira entradas em Boston. A isto seguiu-se o confronto de 1770, conhecido como o Boston Tea Party. Certamente que a este acontecimento e à ligação de alguns políticos norte-americanos não foi alheio o facto de o vinho Madeira ter sido escolhido para o brinde da proclamação solene da independência.

O corso foi, no culo XVIII, uma forma de extensão dos conflitos europeus e americanos decorrentes da independência das colónias, tendo a recém-criada nação da América do Norte como modelo e inspiração. O corso era entendido pelos corsários americanos como uma forma de combate às ancestrais ligações e ao controlo por parte da metrópole, e de propaganda do ideário de independência que despontou, em 1776, nas colónias inglesas da América do Norte. A ideia contagiou também as colónias espanholas (Argentina, Bolívia, Colômbia e Peru) e portuguesas (o Brasil). Esta nova situação implicaria dificuldades acrescidas para a Madeira, mercê do ancestral vínculo da Ilha ao Reino Unido e da quase impossibilidade de definir uma política de neutralidade. Durante algum tempo, a Madeira perdeu, não só um dos melhores consumidores do seu vinho, mas também a contrapartida de cereais, tendo como resultado a fome que atormentou os madeirenses. Durante os oito anos do bloqueio continental, as embarcações deixaram de fazer esta rota e o ambiente na Ilha era visto pelas autoridades como de total consternação.

Os corsários insurgentes arvoram, desde o primeiro momento, a bandeira do novo país independente, sendo a tripulação das embarcações composta por marinheiros de diversas proveniências, onde pontuavam, mais uma vez, os norte-americanos. Esta ligação dos insurgentes aos EUA é insistentemente referenciada nos relatórios oficiais. Assim, em 29 de abril de 1817, refere-se: “os corsários, ou antes piratas, que causavam nos mares desta capitania e ora se diziam pertencentes aos insurgentes de Buenos Aires, ou ao chamado governo republicano do México, haviam efectivamente saído de Baltimore nos Estados Unidos da América e são tripulados pela maior parte por cidadãos dos mesmos estados” (AHU, Açores, maço 69).

Desta forma, a proclamação da independência dos Estados Unidos e a guerra subsequente ditaram uma nova ordem internacional e, mais uma vez, geraram incómodos à posição portuguesa de neutralidade, tendo em conta a sua aliança com Inglaterra. A primeira reação portuguesa foi de encerramento de todos os portos aos barcos das colónias revoltadas (decreto de 4 de julho de 1776), o que prejudicou as ilhas da Madeira e Açores. Mas, cedo, o governo reconheceu o erro e optou, a 30 de agosto de 1780, por uma posição de neutralidade (ratificada a 13 de julho de 1782). Todavia, Portugal só reconheceu o novo estado, após o tratado de paz de 1783.

A frança, molestada nos seus intentos de ocupação deste continente, foi a primeira nação a reconhecer o novo país, assinando, em 1778, um tratado de comércio. Esta atitude foi compensada, mais tarde, com a Revolução Francesa (1789), surgindo os EUA como o preferencial aliado dos franceses. O novo estado de coisas não se apresentava favorável à Madeira, sendo natural a apreensão do governador da Ilha, em 1793, quanto a um possível ataque por “uns revoltosos franceses” (VIEIRA, 1994, 106), a exemplo do que sucedera em Nápoles.

Entretanto, João Pintard, cônsul americano no Funchal, não nega o seu apoio à república Francesa. Pintard era considerado o principal agitador e suspeito nas convulsões que começavam a aparecer na cidade, como foi o caso dos “dois pasquins” distribuídos anonimamente: um contra o governador e o outro que dava ideia bem contrária ao sistema das monarquias, convidando a frança, a quem chamava “Mãe”, a libertar os moradores da Ilha. O cônsul americano estaria por detrás de tudo isto, pois era um: homem “dotado de um espírito intrigante, libertino e revoltoso. Aplaude, e celebra com publicidade o atual sistema da conversão francesa; fala sobre este assunto com muita desenvoltura; e neste ponto exemplifica muito mal a estes insulares; entre os quais pouco, a pouco vai espalhando, e se poderão talvez introduzir no povo ideias contrárias ao sistema monárquico” (VIEIRA, 1994, 107). Por essa razão se fazem votos “para que esta Ilha seja livre deste insolente americano, antes que com o seu mau exemplo preveria aqueles fidalgos portugueses que ele puder seduzir e enganar” (VIEIRA, 1994, 107).

Nos culos XV e XVI, a afirmação da Cultura dos canaviais foi conseguida com o suprimento cerealífero dos Açores e Canárias. Já a partir de finais do culo XVII, o celeiro madeirense transferiu-se para a América do Norte. Cedo, a Madeira entrou na esfera dos interesses norte-americanos, sendo o vinho o cartão-de-visita. As ilhas atlânticas são conhecidas na documentação oficial norte-americana como as “ilhas do vinho”.

A América do Norte foi, desde a década de 40 do culo XVII, um dos principais destinos do vinho da Ilha: New England (1641), New Haven (1642), Boston (1645), Nova Iorque (1687), embora só em meados da centúria seguinte se tenha tornado numa moda para os norteamericanos, de forma que o ato de o beber era uma forma de prestígio social No culo XVIII, consolidou-se o mercado americano e os demais mercados do mundo colonial inglês. Note-se que o vinho e as castas que o originavam foram motivo de grande admiração. A malvasia foi levada, em 1736, por William Houston para Charleston, enquanto em 1773 Joseph Aleston fez aí chegar novas castas com igual sucesso. A segunda metade do culo foi o momento de afirmação do vinho madeirense, sendo evidente o empenho dos mercadores norte-americanos no proveitoso comércio de troca de vinho por peixe, cereais e aduelas para pipas.

O apreço de alguns presidentes norte-americanos foi suficiente para assegurar no novo país um mercado preferencial para o vinho Madeira. A década de 60 do c. XVIII foi o momento de afirmação, surgindo o Madeira com 29 % do mercado. Nova Iorque era o seu destino preferencial. Metade do total das exportações de vinho, no período de 17851787, seguia para lá. A guerra de secessão, a partir de 1770, condicionou o mercado, marcado pela quebra nas duas décadas seguintes, mas rapidamente foi retomada a rota, de modo que, em 1794, foi atingido o máximo das exportações para este território.

A História regista ilustres apreciadores do vinho Madeira: George Washington, que foi um grande apreciador de bebidas alcoólicas, não prescindia do vinho Madeira, solicitando com frequência o seu envio da Ilha; a referência mais antiga ao envio de uma pipa de vinho é de 1759 e no período que decorre até 1783 recebeu 15 pipas de vinho velho da Madeira, cujo custo oscilou entre as 26 e 31 libras esterlinas. Benjamin Franklin, impelido pela fama do vinho, não prescindiu, na viagem à Europa que fez em 1763, de uma breve estância na Madeira, onde apreciou as belezas e, de novo, degustou o vinho. Em 1761, John Adams afirmava publicamente a predileção que tinha pelo vinho Madeira, e em 1774 não hesita em afirmar que “I drank Madeira at a great rate and found no inconvenience in it” [bebi grandes quantidades de Madeira e não vi qualquer inconveniente nisso] (VIEIRA, 2002, 169). Thomas Jefferson, que era considerado um grande enólogo, encontra-se entre os apreciadores do vinho Madeira; em 1786, em Paris não prescindia deste vinho, tendo solicitado o envio de uma pipa desde os Estados Unidos, uma vez que “I would prefer that which is of the nut quality, and of the very best” [prefiro aquele que é de superior qualidade e o melhor] (Id., Ibid.). Registam-se ainda apreciadores dentro dos governadores da colónia: Robert Monckton, governador de Nova Iorque, comprou, em 1763, três pipas para uso nas receções. Esta tradição chegou ao culo XX: em 1982, o presidente Ronald Reagan brindou ao seu 71.º aniversário com um cálice de vinho Madeira.

O c. XIX definiu novo rumo para o vinho madeirense. Os portos americanos continuaram a recebêlo, mas não com a assiduidade que os caracterizou na centúria anterior. O vinho estava de regresso ao velho continente e avançava à conquista do mercado nórdico. Num ápice, passou do calor tórrido para o frio da Sibéria, sem se deteriorar. A conturbada situação provocada pela guerra civil terá provocado este desvio. Em 1863, Charles Blandy, em carta a Jefferson Davies, Presidente dos Estados confederados, reclamava o pagamento dos danos causados com a perda de mercadoria provocada pelo afundamento do barco Lauraetta pelo Alabama.

No c. XX surgiram novas privações à expansão do vinho Madeira nos Estados Unidos da América. Em 1920 foi introduzida a lei de proibição de consumo de bebidas alcoólicas, situação que se manteve até 1933, altura em que foi revogada por Roosevelt. Os poucos que permaneceram fiéis criaram os Madeira Party, clubes onde se reuniam, em segredo, para beber o vinho Madeira. Ficou célebre o Madeira Club de Savanah que, mesmo depois de levantada a lei seca, se reunia ritualmente no dia 11 de novembro para saudar a Ilha com um cálice de Madeira. Os mercados produtores europeus temeram a possibilidade de semelhantes medidas se estenderem a outros países, pelo que se fundou em Paris a Liga Internacional dos Adversários das Proibições. A Associação Comercial do Funchal entrou na campanha em favor do consumo do vinho através do sector de vinhos, entregando verbas para o efeito à Liga de Paris.

A fama do vinho Madeira espalha-se rapidamente no quotidiano, incentivada pelos letrados, quer sejam poetas, romancistas ou ensaístas, que fazem fé no dom da pena para exaltar o seu valor gustativo. A constância e valorização na literatura testemunham que era um dado adquirido na sociedade, na economia e no quotidiano dos norte-americanos. É, aliás, na voz dos romancistas e poetas que se encontram as maiores e mais elogiosas referências ao vinho Madeira.

O Madeira não era um vinho comum ou para todos os momentos pois, segundo o escritor norte-americano Gabriel Furman (1800-1894), usava-se apenas em ocasiões especiais, como o nascimento de um filho, um casamento ou um funeral. Nathaniel Parker Willis (1806-1867), em Dashes at Life (1845), refere que o vinho Madeira era conhecido como um “vinho para casamentos”. Philip Hone (1780-1851), escritor que foi presidente da câmara de Nova Iorque entre 1825 a 1826, afirma que nunca havia tomado qualquer bebida espirituosa na vida, a não ser um ou dois cálices diários de vinho Madeira.

Alguns destes textos e autores – como Alexander Pope (1688-1744), Jane Austen (1775-1817), Herman Melville (1809-1849), Walter Scott (1771-1832), Edgar Allan Poe (1809-1849) – são clássicos, embora as referências ao vinho Madeira nas suas obras passem despercebidas. Richard Penn Smith (1799-1854) em The Forsaken: A tale (1831), refere a presença de muitas pipas de bom vinho velho da Madeira, enquanto a Roberta Sumiu Surtees (1805-1864), em Hades Cross (1854), bastava uma garrafa de malvasia da Madeira. Em Bleak House (1853), Charles Dickens (1812-1870) refere como é agradável beber o Madeira com pão doce e pudim. John dos Passos (1896-1970) é um dos escritores norte-americanos que merecem referência especial por ser descendente de madeirenses. Na sua vasta obra, não esqueceu a Ilha e o vinho que lhe deu fama.

Na poesia, os versos constroem-se com o aroma, a cor e o sabor do vinho Madeira, sendo assíduas e inúmeras as referências, nomeadamente em William Wordsworth (1770-1850), Philip James Bailey (1816-1902), Percy Byshe Abrelley (1792-1822). Junta-se-lhes ainda o escritor, filósofo e naturalista norte-americano Henry David Thoreau (1817-1862), um dos mais conhecidos ecologistas norte-americanos, cujos versos não ignoram o rubinéctar madeirense. Silas Weir Mitchell dedicou-lhe dois poemas: “A decanter of Madeira” e “An old man to an old Madeira” (VIEIRA, 2002, 164).

Na dramaturgia dos culos XVIII e XIX, a exemplo do que havia sucedido com Shakespeare no culo XVI, o vinho Madeira é um dos adereços de referência permanentes. Na comédia The Fox Chase (1808), de Charles Breck (1782-1822), a paixão de uma personagem pelo vinho Madeira era tanta, que tomou 20 cálices. O vinho Madeira aparece próximo do champanhe ou do borgonha, sempre com epítetos valorativos da apreciação, como “bom”, “excelente” ou “uma raridade”. Mathews Cornelius (1817-1889), em False Pretences (1858), refere uma garrafa de Madeira de 1811. Já John O’Keefle (1747-1833) em Wild Oats (1792), prefere-o decantado. Por fim, Benjamin Thompson (1760?-1816), em The Indian Exiles (1801), diz que o médico lhe prescreveu uma garrafa de Madeira, ficando seu apreciador para toda a vida.

Algumas das publicações periódicas de prestígio do culo XIX e princípios do culo XX insistem na referência frequente ao vinho Madeira. Isto deverá ser demonstrativo de que o Madeira era um dado do quotidiano e não podia ser ignorado. As indicações alargam-se a todo o tipo de publicações, abarcando os livros de culinária, os manuais de bons costumes e etiqueta e os tratados de medicina. No último caso, dava-se razão à tradição que apontava as qualidades profiláticas do vinho.

O sistema de relações comerciais não se sustentou apenas na troca de vinho por farinhas. A Madeira encontrou em Baltimore e New Orleans, por exemplo, os carvalhos e faias necessários para fornecer a madeira das aduelas que fazem as pipas que transportam o vinho para todo o lado. No período de 1727 a 1810, entraram no porto do Funchal 181 embarcações com aduelas. Para o período de 1819 a 1830, a maioria do vasilhame de retorno é oriundo de Filadélfia e Nova Iorque, o que atesta que estes eram também os principais portos de volta das pipas avinhadas e cheias.

A evolução do mercado madeirense do vinho adequa-se à conjuntura político-económica europeia e colonial. Antes da independência da América, a Madeira recebia da Inglaterra manufaturas, artigos de luxo e farinhas e, do outro lado do Atlântico, as farinhas e madeira para pipas. O inglês J. banger tinha, em finais do culo XVIII, o privilégio do negócio das farinhas americanas, mas em 1795, com a crise de fome, o Erário Régio procurou contrariar a situação. Em 1822, a casa de J. H. March, cônsul americano, era acusada por Casado Giraldes de ser detentora do monopólio das farinhas. Para o período que decorre de 1727 a 1810, entraram, no porto do Funchal, 4297 embarcações com cereal ou farinha, sendo 2053 (48 %) da América do Norte, 799 (19 %) de Inglaterra e 687 dos Açores (16 %).

Duarte Sodré Pereira, um fidalgo comprometido com o comércio Atlântico, dá-nos conta da situação do mercado em princípios do culo XVIII; com efeito, e de acordo com o copiador de cartas, este comerciante mantinha relações comerciais com Inglaterra, Lisboa, Estados Unidos da América, América Central (Barbados, Jamaica e Curaçau) e Brasil. Desta forma se entende que F. Taylor afirme que “A ilha da Madeira é conhecida pelos Americanos principal mente devido aos seus vinhos; e em anos anteriores, pelas quantidades de cereais que eram importados dos Estados Unidos para a Ilha. Nos últimos anos, o número de embarcações aqui chegadas, vindas dos Estados Unidos, diminuiu, embora ainda seja matéria de algum interesse para o nosso comércio” (TAYLOR, 1840, 106).

Na segunda metade do culo XVIII, a situação preferencial do vinho Madeira no mercado Atlântico, nomeadamente nos Estados Unidos da América e nas colónias britânicas, fez com que os espaços produtores vizinhos procurassem todos os meios para poderem usufruir desses mercados, usando para tal o nome do Madeira; daí a designação de falso Madeira. Várias são as situações, com expressão na documentação madeirense, que retratam esta realidade do falso Madeira, exportado para os mercados americanos, de forma velada, através da baldeação feita com vinhos dos Açores e das Canárias, no mar alto ou em pleno porto do Funchal.

A baldeação externa com o vinho dos Açores e das Canárias adquiriu importância no debate entre 1783 e 1810. A situação parece ter sido prática corrente nos momentos de maior procura de vinho; como a Madeira era a Ilha que tinha facilidades na exportação de vinho para os Estados Unidos (nesta época, todo o vinho bom e mau produzido na Ilha tinha saída, e raras vezes dava para as necessidades da demanda externa), os Açores e as Canárias viam nisto a possibilidade de uma saída eficaz para a sua produção. A Junta havia permitido a entrada de vinho do reino e das outras ilhas para consumo nas tabernas, o que foi aproveitado pelas praças estrangeiras para falsificar o vinho. Por esta razão, alguns negociantes decidiram tirar certidões autênticas, de forma a desvanecer a desconfiança sobre a qualidade do vinho exportado e impedir que qualquer boato pudesse fazer perigar o negócio. Em 1791, Carlos Maurray, cônsul geral inglês, em representação dirigida a Luís Pinto de Sousa, ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, manifestava-se contra a fraude praticada por alguns comerciantes, que exportavam vinhos da Madeira para as Canárias, onde os lotavam com os aí produzidos, mais baratos e de inferior qualidade. Em 1800, Domingos Oliveira Júnior solicita o desembarque de 80 pipas de vinho do Faial, transportadas no bergantim Bom Nome, apresentando como justificação as descargas permitidas em 1796 dos vinhos das Canárias e de Clarete. O senado, a nobreza, o povo e os comerciantes nacionais e estrangeiros, a Junta da Fazenda e o governador levantaram-se em uníssono, argumentando que a importação dos vinhos de inferior qualidade para depois serem reexportados como procedentes da Madeira arruinava o comércio dos vinhos da Ilha. Entre os navios que desviaram a rota para as Canárias entre 1784/87, contam-se o Duque de Bragança, o Invencível, o Santíssimo Sacramento, o Cara Assada e o Trindade.

A informação sobre o movimento de exportação da Madeira para os Estados Unidos é lacunar mas, mesmo assim, permite perceber o peso deste mercado na economia da Ilha no período de 1699 a 1850; entre 1699 a 1714 a Ilha exportou 44.484 pipas; entre 1777 e 1782, são referidas 57.286 pipas, sendo 47.030 para os portos norte-americanos.

Para o período de final do c. XVII e primeiros anos do c. XVIII, o acervo de cartas de W. Bolton (1699-1714) informa-nos desse movimento do vinho madeirense, dominado pelo mercado norte-americano, tendo particular incidência nos portos de Boston, Nova Inglaterra e Nova Iorque. William Bolton fixou-se no Funchal em 1695, e aí permaneceu até 1740, tornando-se o principal negociante de vinhos da Ilha, com uma posição dominante no comércio com a América do Norte, para além de ser detentor da rede de reabastecimento da Ilha em manufaturas e comestíveis. Foi o comerciante inglês que maior influência exerceu nos circuitos comerciais britânicos coloniais das Índias Orientais e Ocidentais. A Madeira era a base das suas operações comerciais e bancárias e o vinho a contrapartida do negócio colonial. Em carta de 6 de setembro de 1695, Bolton afirma que os géneros que comerciava na Ilha eram trocados por vinho.

Alguns viajantes ingleses dão conta da situação do vinho a partir do último quartel do culo. Hans Sloane (1687) evidencia a conquista de novos mercados, fruto de desusadas propriedades, referindo que o vinho Madeira é exportado em grandes quantidades para as plantações das Índias Ocidentais e depois para o Ocidente, pois não há nenhuma espécie de vinho que se mantenha tão bem em climas quentes. A ideia é corroborada por John Ovington (1689), que dá conta da exportação de 8000 pipas principalmente para as Índias Ocidentais, especialmente Barbados, onde tem mais aceitação que os vinhos europeus.

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Para os dados globais da exportação aos Estados Unidos da América temos informação de 1865 a 1970.

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Os alemães intervêm no comércio do bordado a partir da década de 80 do c. XIX, fazendo-o entrar no circuito internacional através do porto franco de Hamburgo. A Casa Grande de Otto Von Streit começou por enviar os bordados em bruto para Hamburgo, onde eram depois preparados para a exportação, com destino aos Estados Unidos da América, facultando aos alemães um fácil controlo dos ciclos produtivo e comercial. Assim, se por qualquer motivo o trabalho das bordadeiras não satisfizesse os seus interesses procuravam outros mercados de mão-de-obra, uma vez que eram detentores dos padrões usados.

A Primeira Guerra Mundial atingiu de forma direta alguns mercados concorrentes do bordado, na Europa e Pacífico, deixando espaço aberto para o da Madeira. Em 1936, a Madeira continuava a exportar o bordado para distintos destinos, como a Inglaterra, os Estados Unidos da América, a Austrália, o Canadá, a frança, a União Sul Africana, o Brasil, a Alemanha, a Bélgica, a Holanda, o Peru, Malta, a Noruega e Singapura. Em 1952, a Ilha exportou 259.165 kg de bordados, sendo este movimento dominado pelos Estados Unidos da América do Norte, com mais de 50 %. Em 1956, as exportações para os EUA correspondem a 92.119.000$00, num total de 138.869.000$00 e, em 1959, foram de 92.119.000$, para uma receita global de 136.869.000$00

Nos anos 70 do c. XX, o peso do bordado nas exportações era assinalável e só começou a descer a partir de 1974, não obstante o volume de negócios do bordado ser ascendente. A partir desta altura, é evidente a concentração das exportações em apenas cinco mercados: Itália, Estados Unidos da América, república Federal da Alemanha, Suíça, Grã-Bretanha e frança. O mercado nacional continua a deter alguma importância na venda do bordado, mas nunca ultrapassou um quarto do total do volume de negócios.

A emigração do culo XIX assume características diferentes das migrações anteriores. Até então, estávamos perante uma saída de acordo com as solicitações externas, em que se aliava o desejo de aventura aos interesses económicos e políticos. O continente americano foi o principal porto de destino da emigração madeirense no culo XIX, recebendo 98 % dos emigrantes saídos da Madeira. São três as principais áreas de destino: Antilhas inglesas, América do Norte e Brasil.

A escalada da emigração continuou, na última década do culo XIX e princípios do XX, mantendo-se os países de destino, com especial destaque para o Brasil e Estados Unidos. A grande depressão dos anos 30 levou ao encerramento das portas de alguns, enquanto se abriram outros novos, como a África do Sul, e se reabriu, em 1939, o Brasil. As décadas de 50 e 60 foram momentos de forte emigração, tendo como principais destinos a Venezuela, o Brasil, a África do Sul, os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália.

Desde meados do culo XVIII que existe informação sobre a emigração madeirense para os EUA, mas o facto de existir uma via aberta desde o culo anterior a partir do Funchal deve ter permitido a emigração de muitos madeirenses em épocas de dificuldade económica. A perseguição por motivos políticos ou por pertença à Maçonaria levou à emigração em 1792 e 1793. No caso dos Estados Unidos, podemos assinalar, no c. XIX, duas fases com características distintas: nos anos de 1828-1834, a instabilidade política levou a uma fuga para Inglaterra e os Estados Unidos; em 1846, a perseguição ao pastor protestante Roberto Kalley levou à emigração de mais 2000 portugueses, que se refugiaram em Trinidad, Tobago, nas Bermudas e nos Estados Unidos. Foram estes madeirenses que fundaram a cidade de Jacksonville, no Estado de Illinois. Dispomos dos livros de registo de passaporte desde 1872 a 1915, onde é possível saber quais os madeirenses que emigraram de forma legal para os Estados Unidos. No último quartel da centúria oitocentista, foi reduzido o número de pedidos, ficando-se em apenas 179. Mas o primeiro quartel do c. XX terá sido a época de grande debandada para os EUA, com 7280 registos. Ocasionalmente, alguns passaportes anteriores a 1872 mostram uma incidência do destino norte-americano. O primeiro de que temos registo é de 1851 e reporta-se a José Correia, seguindo-se, em 1858, Gregório de Sousa. A maioria dos madeirenses emigra para determinados destinos como New Bedford e São Diego. Na primeira cidade, criou-se uma comunidade importante de pescadores madeirense.

De entre os madeirenses emigrados para os Estados Unidos no culo XX, temos José Eduardo Fernandes (1923/1984), natural do Arco da Calheta, que emigrou para a cidade de Massachusetts, onde na década de 1970 criou uma das maiores redes de supermercados da América, chegando a ter 32 supermercados e mais de 2000 trabalhadores no ativo. Fundou uma organização mundial de supermercados de que foi presidente durante muitos anos. Foi presidente da Câmara de comércio Luso-Americana, com sede em Nova Iorque. Fundou e era proprietário do canal 20 da televisão americana, que funcionava em sinal aberto para a comunidade portuguesa nos EUA. Foi ainda o proprietário do jornal Portuguese Times e criou um fundo de beneficência. José Fernandes foi um homem muito influente nos meandros sociais, políticos e económicos americanos.

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Alberto Vieira

(atualizado a 02.01.2017)